Introdução
O Transtorno do Espectro Autista (TEA) se caracteriza por comprometimentos persistentes na comunicação e interação social e em padrões de comportamentos, interesses e atividades restritos, repetitivos e incomuns (APA, 2014). Segundo o último relatório do Centers for Disease Control and Prevention (CDC), nos Estados Unidos, estima-se que 1 a cada 36 crianças apresentem o transtorno (Maenner et al., 2023). O TEA requer diferentes níveis de suporte que podem afetar diferentemente as famílias. Tais níveis se distinguem de acordo com a necessidade de apoio exigida em relação à comunicação social verbal e não verbal, interações sociais, a presença de comportamentos restritos/repetitivos, entre outros. Os níveis se dividem em: nível 1 (exige apoio), nível 2 (exige apoio substancial) e nível 3 (exigindo apoio muito substancial) (APA, 2014).
A literatura aponta que o diagnóstico produz efeitos na família, entre eles, o estresse parental (Anjos & Morais, 2021; Portes & Vieira, 2022). Apesar do foco nos cuidadores, os impactos do diagnóstico também se estendem a outros membros, como os irmãos (Iannuzzi et al., 2022). Os estudos que exploram a experiência de viver com um irmão com TEA, por exemplo, revelam a coexistência de aspectos negativos e positivos. Prejuízos na rotina doméstica e escolar, obstáculos no lazer em família e pouca atenção dos pais refletem aspectos negativos (Cridland et al., 2016; Pavlopoulou & Dimitriou, 2020). Entre os aspectos positivos, destaca-se a possibilidade de crescimento pessoal, por meio do desenvolvimento de habilidades para lidar com as diferenças, e o fortalecimento dos vínculos familiares (Corsano et al., 2017; Gorjy et al., 2017). Tais efeitos demonstram a capacidade do sistema familiar de crescer diante de uma adversidade, revelando processos de resiliência (Bayat, 2007).
Entre os estudos que exploram a resiliência no campo da deficiência estão aqueles que utilizam o conceito de resiliência familiar (Aguiar & Morais, 2022; Rooke & Pereira-Silva, 2016). Segundo Walsh (1996), a resiliência familiar amplia o conhecimento acerca dos processos que permitem que as famílias em situações estressoras consigam se recuperar e se fortalecer. Mais do que enfrentar, administrar e se adaptar a situações estressantes, a resiliência familiar se refere ao crescimento positivo da família a partir da adversidade (Walsh, 1996, 2003). Nessa perspectiva, a resiliência envolve processos dinâmicos e relacionais, nos quais cabem fatores de risco e proteção, além de influências individuais, familiares, sociais e culturais (Walsh, 2016).
Walsh desenvolveu uma estrutura composta por elementos fundamentais para a resiliência familiar que têm potencial para diminuir o estresse em situações desafiadoras, promover crescimento e capacitar o sistema para superar adversidades prolongadas (Walsh, 1996, 2003). O primeiro processo-chave se refere aos sistemas de crenças, no qual crenças e atitudes produzem explicações e geram significado para a experiência vivenciada. Tal domínio envolve processos como dar sentido à adversidade, uma perspectiva positiva e a transcendência e espiritualidade. O segundo processo-chave se refere aos padrões organizacionais que permitem a reorganização da família e sua mobilidade na presença de flexibilidade, conectividade e coesão, e recursos sociais e financeiros. O último processo-chave remete à comunicação e resolução de problemas, e envolve informações claras e consistentes, expressão emocional aberta e resolução de problemas colaborativa (Walsh, 2003, 2016).
Há estudos que buscaram explorar a resiliência familiar no contexto do TEA (Bayat, 2007; Ilias et al., 2019). Na revisão sistemática conduzida por Gunty (2021), os estudos indicaram elementos comuns entre as famílias que podem influenciar o processo de resiliência familiar, como fatores estressores (características da criança e o suporte exigido), recursos de proteção (apoio formal e informal), relacionamentos fortes, comunicação assertiva e a criação de um significado positivo sobre a deficiência. O trabalho de Bayat (2007) buscou identificar os fatores de resiliência familiar no contexto do TEA por meio de entrevistas com 175 cuidadores. O estudo utilizou o referencial teórico de Walsh e identificou fatores de resiliência familiar relacionados à capacidade das famílias de reunir recursos e estabelecer conexões entre os membros, à criação de um significado positivo para a deficiência, ao fortalecimento dos relacionamentos familiares e das crenças espirituais.
A pesquisa desenvolvida por Leone et al. (2016) também utilizou o modelo de Walsh em seu estudo com 155 cuidadoras de crianças com transtorno do neurodesenvolvimento, incluindo o TEA. Os resultados demonstraram que a resiliência foi caracterizada, em parte, pelo sistema de crenças, padrões organizacionais e processos de comunicação. Constatou-se a presença dos sistemas de crenças, por meio de percepções positivas da deficiência e da criança e padrões organizacionais marcados por um ambiente estimulante. Outros estudos internacionais, como os de Ilias et al. (2019) e Fong et al. (2021), também apresentaram evidências empíricas que apontam para a presença de fatores de resiliência familiar no contexto do TEA. Redes de apoio informal, por exemplo, podem ser associadas à maior resiliência em famílias com crianças com TEA. Para Fong et al. (2021), o apoio informal fornece empatia, conforto e promove o compartilhamento de informações, protegendo as famílias do isolamento e aumentando sua capacidade de resiliência.
Assim como ocorre no cenário internacional, os estudos sobre resiliência familiar no contexto do TEA no Brasil também contemplam as percepções dos cuidadores. A pesquisa de Semensato e Bosa (2017), por exemplo, buscou identificar indicativos de resiliência parental no processo de elaboração do diagnóstico do TEA, por meio de entrevistas com casais. Os resultados demonstraram que a elaboração do diagnóstico é permeada pelo desenvolvimento de processos de resiliência que se refletem no desenvolvimento da família. Destaca-se que a escolha de abordar famílias que convivem com um familiar com TEA ocorre devido às especificidades desse transtorno, tais como o comprometimento na interação social recíproca e a presença de comportamentos repetitivos e rígidos que podem interferir nas dimensões de resiliência familiar.
Considerando esses aspectos, observa-se que a resiliência familiar no TEA tem sido estudada, especificamente, com os cuidadores. Como mencionado por Gunty (2021), mostra-se necessário explorar tais processos na perspectiva de outros membros da família, como os irmãos. Nesse sentido, conhecer as percepções dos irmãos pode contribuir para entender os impactos do diagnóstico neles e suas necessidades, além de ampliar a compreensão sobre a ocorrência dos processos de resiliência familiar nesse contexto. Dessa forma, este estudo teve como objetivo identificar processos de resiliência familiar e eventuais barreiras que podem interferir em sua realização, a partir da percepção de irmãos de indivíduos com TEA.
Método
Delineamento e caracterização dos participantes
Esta é uma pesquisa qualitativa, transversal e exploratória, de estudo de casos múltiplos (Yin, 2015). O estudo contou com seis adolescentes, entre 12 e 18 anos de idade, três do sexo feminino e três do sexo masculino. Os adolescentes eram irmãos de indivíduos com TEA e residiam com eles. Os irmãos com TEA haviam recebido o diagnóstico há, pelo menos, seis meses. Os seguintes dados foram solicitados para compreender o nível de suporte dos irmãos com TEA: presença de linguagem verbal, se frequenta a escola regular e deficiências associadas. Esses dados, bem como outros que caracterizam os participantes da pesquisa e suas famílias, estão apresentados na Tabela 1.
Tabela 1 Caracterização dos participantes e de suas famílias
Participante:* | I1 | I2 | I3 | I4 | I5 | I6 |
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Sexo | Masculino | Feminino | Masculino | Feminino | Masculino | Feminino |
Idade | 13 anos | 12 anos | 14 anos | 15 anos | 16 anos | 18 anos |
Raça/Cor | Branco | Parda | Branco | Branca | Branco | Branca |
Escolaridade | 7º ano EF | 7º ano EF | 9º ano EF | 1º ano EM | 2º ano EM | 3º ano EM |
Ordem de nascimento | Irmão mais novo | Irmã mais nova | Irmão mais velho | Irmã gêmea | Irmão mais velho | Irmã mais velha |
Fotografia: “Como é ser irmão de alguém com TEA?” | ||||||
Cena em que ele está ajudando o irmão numa tarefa escolar | Cena em que ela está no quarto do irmão e ele está jogando no computador | Cena dele com o irmão fazendo caretas | Cena de um portaretrato com uma fotografia em que ela segura o irmão | Cena tentando engajar a irmã numa brincadeira | Cena do irmão comendo chocolate | |
Irmão com TEA | ||||||
Sexo | Masculino | Masculino | Masculino | Masculino | Feminino | Masculino |
Idade | 14 anos | 14 anos | 3 anos | 15 anos | 3 anos | 6 anos |
Diagnóstico TEA | Aos 2 anos | Aos 12 anos | Aos 2 anos | Aos 6 anos | Com 1 ano | Aos 3 anos |
Deficiências associadas | Sim, deficiência | intelectual | Sim, deficiência | intelectual | Não | Não |
Linguagem verbal | Sim, com limitações | Sim | Sim, iniciando | Não | Sim | Sim |
Frequenta escola | Sim, escola regular | Sim, escola regular | Não | Não | Não | Sim |
Configuração familiar | ||||||
Moradia | Moram com os pais | Pais separados. Moram com a mãe | Moram com os pais e a avó | Moram com os pais | Moram com os pais | Pais separados. Moram com a mãe |
Outros irmãos | 1 irmã mais velha que não reside junto | Não | Não | Não | Não | Não |
Idade pais |
Mãe: 41 Pai: 36 |
Mãe: 36 Pai: 53 |
Mãe: 32 Pai: 45 |
Mãe: 57 Pai: 62 |
Mãe: 45 Pai: 46 |
Mãe: 38 |
Escolaridade |
Mãe: Superior completo Pai: Superior incompleto |
Mãe: EM completo Pai: Superior incompleto |
Mãe: EF completo Pai: EF incompleto |
Mãe: Pós-graduação Pai: Pós-graduação |
Mãe: Superior Completo Pai: Pós-graduação |
Mãe: Superior completo |
Ocupação atual |
Mãe: do lar Pai: policial |
Mãe: instrutora de cursos Pai: corretor |
Mãe: auxiliar de serviços gerais Pai: motorista |
Mãe: professora Pai: arquiteto |
Mãe: bancária Pai: corretor |
Mãe: empresária |
Local de residência | Área rural em cidade metropolitana | Interior do estado | Interior do estado | Cidade da região metropolitana | Capital do estado | Interior do estado |
Renda familiar | 3 a 6 SM | Até 1 SM | 3 a 6 SM | Mais de 15 SM | Mais de 15 SM | 3 a 6 SM |
* = letra e número para identificar o participante, irmão adolescente da pessoa com TEA;
EF = Ensino Fundamental; EM = Ensino Médio; SM = salário-mínimo.
Instrumentos
Ficha de dados sociodemográficos da família (adaptado de Gomes, 2003): Teve como objetivo o levantamento dos dados sociodemográficos dos participantes e de suas famílias.
Ficha de dados sobre o irmão com TEA (adaptado de Gomes, 2003): Teve como objetivo o levantamento de dados acerca do diagnóstico do irmão com TEA e de suas características.
Entrevista com o uso de fotografias sobre a experiência da adolescência e os processos de resiliência familiar: Outros estudos com irmãos com TEA também têm empregado o uso de fotografias (Latta et al., 2014; Pavlopoulou & Dimitriou, 2020). Esse recurso, além de ampliar a compreensão acerca da experiência dos participantes, também facilita a comunicação com os adolescentes durante a entrevista (Latta et al., 2014). Neste estudo, os participantes foram orientados a produzir fotografias que representassem: “como é ser adolescente”, “como é ser adolescente numa família que convive com o autismo” e “como é ser irmã/irmão de um indivíduo com autismo”. Os registros fotográficos foram explorados durante a entrevista, composta por 38 perguntas, com base na revisão da literatura, acerca da experiência de adolescentes de viver com um irmão com TEA e dos processos de resiliência familiar.
Procedimentos de coleta de dados
Todos os procedimentos de coleta de dados ocorreram de forma remota. Para o recrutamento, associações pró-autismo e profissionais da área de diferentes regiões do Rio Grande do Sul foram contatados por telefone e indicaram 12 famílias que contemplavam os critérios do estudo: famílias com filhos com idades entre 12 e 18 anos, com desenvolvimento típico, que residissem com irmãos com TEA. Em contato telefônico, três famílias foram excluídas por não atenderem ao critério de idade dos filhos e três outras, por não retornarem o contato da pesquisadora, restando seis adolescentes que aceitaram participar. Após a concordância do responsável e do adolescente, foi realizado um encontro online com ambos para orientações sobre os procedimentos da pesquisa. Uma entrevista piloto foi realizada, resultando em poucas alterações ao roteiro de perguntas. Todas as entrevistas foram dirigidas pela primeira autora, que é psicóloga e tem experiência no atendimento a adolescentes. As entrevistas foram realizadas por meio da plataforma digital Google Meet, versão institucional, e foram gravadas. Em média, cada entrevista teve duração de 1 hora e 20 minutos.
Considerações éticas
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética da instituição à qual está vinculado (CAAE 46952321.0.0000.5334) e seguiu os preceitos éticos das Resoluções nº 466/2012 e nº 510/2016, além das orientações da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa para estudos em ambientes virtuais (Ministério da Saúde, 2021). Os adolescentes aceitaram sua participação por meio do Termo de Assentimento e seus responsáveis, com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, disponibilizados online. Eles foram informados sobre todos os procedimentos, riscos e direitos e foram identificados neste estudo com siglas para manter seu anonimato.
Análise dos dados
Para a caracterização dos casos, foram utilizados os dados da Ficha de dados sociodemográficos da família e da Ficha de dados sobre o irmão com TEA. As entrevistas abordaram inicialmente o conteúdo das fotografias e foram examinadas por meio da análise temática dedutiva, do tipo codebook thematic analysis (Braun & Clarke, 2006; Braun et al., 2019). Os temas foram definidos a priori e se referem aos processos-chave de resiliência familiar de Walsh (2003) e eventuais barreiras que podem interferir nesses processos. As entrevistas foram transcritas na íntegra e o software NVivo, versão 13, foi utilizado na organização dos dados codificados. A análise foi realizada pela primeira autora com a consultoria de uma especialista em análise qualitativa e revisada pela segunda autora.
Resultados e discussão
A análise temática gerou três categorias e subcategorias: sistemas de crenças (dar sentido à adversidade, perspectiva positiva, transcendência e espiritualidade); padrões organizacionais (flexibilidade, conectividade e coesão, recursos sociais e econômicos) e processos comunicacionais / resolução de problemas (informações claras e consistentes, expressão emocional e aberta, resolução de problemas colaborativa).
Na categoria sistemas de crenças são apresentados os seguintes processos: dar sentido à adversidade; perspectiva positiva; e transcendência e espiritualidade. Dar sentido à adversidade envolve a construção de significados para a situação potencialmente adversa, entendendo-a como um desafio compartilhado, contextualizado, gerenciável e significativo (Walsh, 2003, 2016). Os resultados deste estudo apontam que os irmãos atribuem um significado positivo à experiência do TEA na família. Os participantes I1, I4 e I6 mencionaram que ter um irmão com TEA promoveu mudanças na família, como ilustrado por I1: “Se o [irmão] não fosse autista, a mãe não teria criado a associação [pró-autismo]. Muito provavelmente, se o [irmão] não fosse autista, esta família não seria tão unida.” Esses resultados são semelhantes aos de Sim et al. (2019) em que os participantes, que eram cuidadores, reconheceram o TEA como uma responsabilidade compartilhada que os aproximou e que impactou positivamente a família. Outros estudos apontaram para o papel das percepções positivas em relação à deficiência como um processo que estimula a resiliência familiar (Bayat, 2007; Thompson et al., 2013). Para Thompson et al. (2013), o reconhecimento do impacto positivo da deficiência num nível pessoal e familiar pode mediar a relação entre o estresse parental e o ajustamento familiar.
Os resultados também apontaram para a tentativa de contextualizar a experiência de viver com um irmão com TEA. Observou-se, por exemplo, nos relatos de I1, I3 e I6, a busca por entender o irmão numa perspectiva de desenvolvimento típico, como dito por I3: “Pra mim é um irmão normal.” I1 reporta se incomodar com o tratamento das pessoas ao irmão, por compreenderem a diferença como algo “estranho”, demonstrando uma busca do participante por entender o irmão numa perspectiva da diversidade, como exposto: “Bah, mas todo mundo é diferente, ninguém é igual. O [irmão] só tem necessidade que vocês não têm. Só isso.” (I1) Tais achados corroboram os resultados de King et al. (2006), em que se aponta que famílias com crianças com deficiência tendem a desenvolver visões de mundo mais amplas, reconhecendo as contribuições positivas do filho com deficiência e valorizando a diversidade. No presente estudo, o processo de dar sentido à adversidade foi observado tanto em famílias que receberam o diagnóstico de TEA recentemente quanto há mais tempo.
A perspectiva positiva envolve a afirmação de pontos fortes e o foco no potencial dos membros e da família. Nesse sentido, os resultados deste estudo demonstraram que os irmãos reconhecem diversos aspectos positivos no irmão com TEA, nos pais e na família. Todos os irmãos reconhecem qualidades dos irmãos com TEA as quais admiram. Entre elas, mencionaram que eles são carinhosos, afetuosos e preocupados com a família. I1, I2, I4 e I6 destacaram que os irmãos são inteligentes, espertos e despreocupados com estereótipos, o que consideram positivo.
Os participantes I1, I3, I4 e I5 têm uma percepção da família pautada em admiração, orgulho e no reconhecimento de que mantêm uma boa relação e uma forte ligação, como exposto por I4: “A gente tem essa relação e é até um negócio de orgulho, tipo ‘eu tenho isso aqui, sabe?’, e eu prezo muito por isso. Até chorei antes, né.” Os irmãos também observam características positivas nos cuidadores, percebendo-os como esforçados e batalhadores, especialmente quanto ao tratamento dos irmãos. De fato, ter uma visão positiva acerca da pessoa com deficiência e dos demais membros da família contribui para o processo de resiliência familiar no contexto do TEA (Bayat, 2007; Sim et al., 2019). Na pesquisa de Sim et al. (2019) com cuidadores, foi identificado otimismo em relação ao progresso da criança e da família, além do foco em suas potencialidades. Estudos com irmãos de indivíduos com TEA também apontaram a presença de percepções positivas (Pavlopoulou & Dimitriou, 2020; Schmeer et al., 2021), entre elas a percepção do irmão com TEA como alguém inspirador, como observado no estudo de Schmeer et al. (2021).
No que se refere à transcendência e espiritualidade, entende-se que tanto as práticas religiosas quanto a conexão com a natureza, com a arte ou o encontro com ações comunitárias e o ativismo social podem ser fontes de conforto e aprendizado. Isso também pode levar os membros à transformação e ao crescimento pessoal (Walsh, 2003). Os participantes deste estudo não mencionaram, por exemplo, aspectos relacionados a crenças religiosas ou espirituais na família, o que contrasta com estudos com cuidadores que apontam uma forte influência da espiritualidade (Bayat, 2007; Ilias et al., 2019). A ausência dessa dimensão nos relatos dos participantes pode se justificar pela fase de desenvolvimento em que se encontram, em que tais temas podem não ser foco do interesse e envolvimento dos adolescentes.
Os participantes relataram transformações ocorridas neles e na família a partir da experiência de viver com um irmão com TEA. Entre as transformações, I2, I4, I5 e I6 destacaram uma melhor compreensão sobre as pessoas, sobre as suas diferenças e necessidades, como exposto por I6: “Aprender a compreender melhor as pessoas, não julgar, tentar entender como funciona. Claro que a gente nunca vai conseguir, mas tentar compreender como funciona o pensamento e a cabeça de cada um, sabe.” O participante I5 reflete que a convivência com a irmã o ensinou a ser mais cuidadoso com as pessoas: “Ser mais cauteloso na hora de invadir o espaço de alguém. Eu acho que esse foi o principal ensinamento: aprender o cuidado que eu tenho que ter com as pessoas que eu não era tão cuidadoso antes.” Para Walsh (2016), a transformação obtida por meio da aprendizagem, da mudança e do crescimento a partir das adversidades é um elemento importante para a resiliência familiar.
No estudo de Bayat (2007), os participantes relataram se tornar mais compassivos, atenciosos e conscientes das diferenças individuais a partir da experiência com o TEA. Os estudos com irmãos adolescentes de indivíduos com TEA também ressaltam a possibilidade de aprendizado como um efeito da convivência com o irmão (Iannuzzi et al., 2022; Schmeer et al., 2021). Nos resultados de Iannuzzi et al. (2022), a experiência de viver com o irmão com TEA foi entendida pelos irmãos como uma oportunidade de crescimento, pela possibilidade de desenvolverem aceitação, empatia e compaixão.
Outro resultado deste estudo apontou para o envolvimento dos pais dos participantes em ações sociais, como a criação de uma associação pró-autismo e a divulgação de informações sobre o tema, conforme exposto por I1. Cabe destacar que a família desse participante reside numa área rural, onde serviços de saúde para o tratamento do filho com TEA podem se mostrar ausentes. Para esse irmão, por meio da associação pró-autismo a mãe consegue auxiliar outras famílias que também convivem com o TEA, o que se relaciona ao elemento da transcendência proposto por Walsh (2016), em que o ativismo social pode ser fonte de resiliência. Destaca-se que nesse primeiro domínio não foram identificadas barreiras que possam ter interferido nesses processos de resiliência familiar.
Na categoria de padrões organizacionais, são apresentados os seguintes processos: flexibilidade; conectividade ou coesão; e recursos sociais e econômicos. Flexibilidade refere-se à reorganização estrutural familiar que pode resultar em mudanças nos padrões de interação dos membros, nas rotinas e em seus papéis. Deve ser acompanhada pela garantia de continuidade e segurança para os membros da família, equilibrando estabilidade e mudança (Walsh, 2003). Nos relatos dos participantes foram identificadas adaptações na organização familiar para atender às necessidades dos irmãos com TEA. I5, por exemplo, refletiu que a organização da família se modifica em relação aos horários dos atendimentos da irmã. I1 e I6 apontaram para ajustes na rotina doméstica em função das dificuldades comuns ao TEA, como a hipersensibilidade sonora e a seletividade alimentar. Nesse sentido, há um maior cuidado com o excesso de ruídos sonoros e a escolha dos alimentos no preparo das refeições da família. Observou-se também, nos relatos de I3 e I5, que as famílias deixaram de frequentar espaços que o irmão com TEA demonstra dificuldade de permanecer, optando por lugares de que ele goste. Para I5, a família encontrou novas formas de aproveitar os momentos de lazer: “Ela [irmã] gosta de lugares mais calmos, de natureza, e eu gosto, adoro também. Então pra mim não faz muita falta. A gente adaptou um novo jeito de aproveitar.”
Para Walsh (2016), é necessário que a família reorganize seus padrões de interação a fim de se adequar às novas condições. Nesse sentido, observa-se que alguns participantes também experimentam diferentes papéis na família, entre eles, o de cuidado com o irmão. Por exemplo, I1 e I6 relataram que, com frequência, cuidam dos irmãos quando os pais não podem e os auxiliam em tarefas escolares. Além disso, I3 e I5 contaram participar de atividades de estimulação relacionadas ao plano terapêutico dos irmãos. Os achados demonstraram que os participantes se sentem importantes e valorizados em auxiliar os pais nos cuidados com os irmãos. Outros estudos com irmãos revelam que eles tendem a compartilhar os cuidados dos irmãos com TEA com os pais (Corsano et al., 2017; Pavlopoulou & Dimitriou, 2020), reforçando os achados desta pesquisa.
As fotografias dos participantes também demonstraram os diferentes papéis assumidos por eles na família. I1, por exemplo, representou “como é ser irmão de um indivíduo com TEA”, com uma fotografia em que o auxiliava numa tarefa escolar. Já I5 apresentou uma fotografia em que tentava engajar a irmã numa brincadeira. Esse participante, inclusive, declarou se ver como “coterapeuta” (descrição utilizada pelo participante), manifestando sentir-se bem em colaborar.
Os resultados dos estudos sobre resiliência familiar no contexto da deficiência também apontam para a presença da flexibilidade. Na pesquisa de Rooke e Pereira-Silva (2016), as famílias demonstravam compartilhar papéis e funções frequentemente. Já no estudo de Choi e Yoo (2015), observou-se que os cuidadores com maior flexibilidade, coesão familiar, habilidades de comunicação e suporte social demonstraram maior adaptação e tendiam a apresentar menores índices de depressão.
De maneira geral, os resultados demonstraram abertura à mudança presente nessas famílias, tendo em vista que conseguem adaptar a rotina e compartilhar papéis. Entretanto, também se observaram barreiras que podem interferir nesse processo. I6 reportou preocupar-se com o fato de a mãe resolver sozinha as questões familiares, por entender que isso pode sobrecarregá-la, como exposto: “Ela meio que tenta trazer tudo pra ela e a gente acaba não dividindo como uma família deveria dividir, então ela toma a frente e a iniciativa de tudo.” I6 demonstrou reconhecer a importância de dividir as demandas familiares entre os membros. Cabe ressaltar que os pais de I6 são separados e ela reside com a mãe e o irmão. Nesse caso, a possível ausência de coparentalidade pode contribuir para a sobrecarga materna, conforme já observado em outros estudos (Portes & Vieira, 2020).
Ainda em relação às barreiras, os resultados revelaram que alguns papéis desempenhados pelos irmãos na família podem interferir negativamente na relação entre os irmãos. I5, por exemplo, apesar de sentir-se bem por colaborar com o plano terapêutico da irmã, também indica incômodo ao perceber que seu papel como “coterapeuta” já interferiu na relação, uma vez que se via cobrado a buscar estimulá-la em todas as interações. Nos estudos com irmãos de indivíduos com TEA, em geral, há evidências de que eles tendem a assumir um papel de cuidado com os irmãos (Leedham et al., 2020). No estudo de Cridland et al. (2016), com irmãs adolescentes, elas demonstraram sentimentos conflitantes quanto ao papel de cuidadoras. Ao mesmo tempo em que se sentiam valorizadas em prestar apoio, observaram sobrecarga com essa responsabilidade.
A conectividade ou coesão refere-se à presença de apoio mútuo, compromisso e colaboração para enfrentar a crise juntos. Ao mesmo tempo, é fundamental que as necessidades, diferenças e limites individuais sejam preservados (Walsh, 2003). Todos os participantes mencionaram a presença de afeto e apoio mútuo nas relações com a família, como exposto por I1: “A gente tem uma ligação maior [...] todos nós somos carinhosos, todos nós somos amorosos uns com os outros, e eu acho que a nossa ligação que é importante.” Para I1, essa aproximação é resultado do cuidado compartilhado do irmão com TEA. Tal dado corrobora os achados de Bayat (2007) em que a maioria das famílias indicou uma maior aproximação entre os membros por terem um filho com deficiência.
Nas fotografias apresentadas, destaca-se a escolha dos irmãos por momentos compartilhados com os irmãos com TEA, o que pode representar a proximidade entre eles. Na fotografia de I2, ela estava no quarto com o irmão enquanto ele jogava no computador. Na de I3, ele aparecia fazendo caretas com o irmão. Já I4 utilizou uma cena da infância em que eles estão abraçados. Os dados corroboram os achados de Schmeer et al. (2021), demonstrando que os irmãos compartilhavam diariamente momentos conjuntos de lazer. Além disso, I1, I2, I5 e I6 demonstraram sentir-se conectados com os irmãos com TEA e observaram que há apoio entre eles. Por exemplo, I2 relatou como o irmão a acolheu após uma briga dela com os pais: “Eu tava chorando e ele perguntou se eu queria um abraço. Aí a gente ficou um bom tempo abraçado até eu me acalmar”. A conectividade e coesão se mostrou presente tanto em famílias cujos filhos com TEA tinham idade pré-escolar quanto naquelas em que estavam na adolescência. Nesse contexto, Ilias et al. (2019) reportaram que a experiência de ter um filho com TEA pode levar a maior coesão familiar, servindo como um fator de proteção frente ao estresse.
Observa-se também barreiras que podem interferir nesse processo, como a falta de tempo exclusivo dos participantes com os pais, como exposto por I5: “Raramente, eu acho que no último ano a gente fez isso só uma vez, muito pouco.” Os participantes I2 e I5 relataram que gostariam de ter um momento com os pais sem os irmãos. I5 ressaltou que a impossibilidade de ter esses momentos reside na falta de alguém que fique com a irmã, o que indica que a falta de suporte familiar pode ser um obstáculo. Já I2 relacionou essa falta de tempo às demandas do irmão. Para a participante, o irmão precisa receber mais atenção devido ao seu diagnóstico. Walsh (2016) apontou que um dos elementos da conectividade é o respeito às necessidades individuais. Nesse sentido, observa-se que o fato desses irmãos não terem momentos exclusivos com os cuidadores pode interferir nesse processo, visto que suas necessidades individuais não estão sendo atendidas. No estudo de Schmeer et al. (2021), os irmãos também relatavam que os pais passavam mais tempo com o irmão com TEA do que com eles, o que gerava sentimentos contraditórios. Embora compreendessem que o irmão precisava de atenção, sentiam-se incomodados e desejavam que os pais estivessem mais próximos deles.
Algumas características do irmão com TEA são apontadas como obstáculos para momentos compartilhados em família, o que pode interferir na proximidade. Os irmãos observavam que as saídas em família eram raras e, quando aconteciam, eram rápidas, devido à dificuldade do irmão com TEA em permanecer muito tempo fora de casa, como exposto por I1: “A gente não vai muito em festas, a gente não fica muito em festas também [...] a minha mãe vai, fica no parabéns, às vezes nem come o bolo e já sai. Por causa do [irmão].” A participante I4 também sinaliza que os passeios em família são limitados a saídas de carro, devido à instabilidade de humor do irmão, das dificuldades dele para interagir socialmente e da falta de estrutura dos espaços. Aspectos semelhantes foram mencionados por cuidadores de crianças com TEA no estudo de Myers et al. (2009), no qual os pais apontavam para os passeios em lugares públicos ou momentos com a família extensa como um grande desafio, devido aos comportamentos agressivos do filho com TEA, o que levou ao isolamento da família. Em relação aos achados do presente estudo, entende-se que a presença de suporte familiar e espaços acessíveis para o irmão com TEA poderiam contribuir para que as famílias compartilhassem momentos de lazer fora do espaço doméstico.
Os recursos sociais e econômicos referem-se ao suporte social e financeiro, apoio prático e emocional de familiares, comunidade, instituições e demais redes sociais (Walsh 2003, 2016). Os participantes mencionaram a importância do suporte, tanto dos profissionais que acompanham a família quanto dos familiares. I1 e I2 compreendiam que os profissionais que atendem o irmão desempenham um papel fundamental de suporte à família. Quanto ao suporte de familiares, I1, I3, I4, I5 e I6 contaram que familiares próximos costumavam auxiliar a família nos cuidados com o irmão, especialmente avós e tias. Esse suporte acontecia, por exemplo, por um cuidado alternativo, permanecendo com os irmãos na ausência dos pais, como mencionado por I3, I4 e I6, bem como por meio do apoio financeiro, como exposto por I1: “Principalmente a minha vó. Ela ajuda dando dinheiro”. (I1) No caso de I3, a avó materna reside em alguns períodos com a família e tem como ocupação cuidar dele e do irmão.
Ainda sobre o cuidado alternativo, os participantes I4 e I5 destacaram a importância do suporte da babá. Para I4, a presença da babá permite que ela e os pais saiam de casa quando se sentem sobrecarregados: “Às vezes a mãe e o pai precisam sair de casa, tipo vão dar uma arejada, daí chamam a [babá] e ela vem aqui e fica com o [irmão] e daí eles saem ou eu saio.” (I4) Os participantes também mencionaram o suporte dos amigos, como relatou I5, que, inclusive, ensinou aos amigos formas de se comunicar com a irmã: “São os três que eu mais falo, inclusive, eu ensino eles a falar com a minha irmã, porque eles frequentam aqui em casa então eu tenho que ensinar eles.” De maneira geral, as pesquisas apontam que o suporte social desempenha um papel importante como atenuante do estresse, na adaptação e no bem-estar da família que convive com o TEA (Faro et al., 2019; Fong et al., 2021). A pesquisa de Fong et al. (2021), por exemplo, realizada com 153 cuidadores de crianças e adolescentes com TEA, buscou examinar a relação entre a satisfação com o apoio informal e a resiliência familiar. Os resultados demonstraram que as redes de apoio informal podem ser associadas a maior resiliência em famílias com crianças com TEA. Para os autores, o apoio informal, por meio da família e amigos, fornece empatia, conforto e promove o compartilhamento de informações, protegendo as famílias do isolamento.
O suporte formal e informal limitado pode constituir uma barreira para a realização desse processo. I4, por exemplo, revelou que algumas situações, como crises do irmão, não são compartilhadas com os familiares, sendo gerenciadas exclusivamente pelos pais: “A família é super compreensiva, mas na hora do ‘pega pra capar’ é a gente aqui.” Outros estudos revelam que alguns comportamentos no TEA podem gerar estresse e, consequentemente, limitar o apoio recebido. No estudo de Schmeer et al. (2021), por exemplo, os irmãos relataram que pessoas de fora da família não apoiam ou não compreendem os desafios vivenciados por eles. Cabe destacar que o diagnóstico do TEA, como aponta Anjos (2019), não constitui o fator que interfere negativamente na família, tendo em vista que existem diversos fatores concomitantes ao TEA que podem exercer impacto sobre os membros; entre eles, a disponibilidade da rede de apoio.
Os processos comunicacionais / resolução de problemas são compostos por: informações claras e consistentes, expressão emocional aberta e resolução de problemas colaborativa. Informações claras e consistentes referem-se à clareza das mensagens que circulam entre os membros acerca da situação de crise e das expectativas futuras e que contribuem para a construção de significado e na tomada de decisões (Walsh, 2003). A presença de um diálogo claro e direto entre os pais é mencionada por I4: “A minha mãe acha que o meu pai tá pensando em alguma coisa ou o pai acha que a mãe tá exagerando ou sei lá. Eles conversam, entendeu?” Os participantes I1, I3, I4, I5 e I6 referiram que os pais, com frequência, conversam sobre o diagnóstico do irmão e observam que a mãe é quem se mostra mais empenhada em buscar informações e compartilhá-las na família, como apontado por I1, I3 e I5. O participante I5 relatou o impacto da conversa com os pais sobre o diagnóstico da irmã: “Eles já vieram com uma base muito boa pra me apresentar o diagnóstico. E eu reagi super de boa e desde lá eu prometi comigo mesmo a me engajar pro tratamento da [irmã].”
Os participantes também relataram conversar com os pais para compreender o funcionamento dos irmãos. Nesse sentido, I6 disse compartilhar com os pais descobertas ou situações acerca do TEA que considera importantes: “Quando a gente descobre alguma coisa ou vê algum relato, a gente sempre compartilha, porque acho que compartilhar o conhecimento entre a gente pra entender ele é legal.” I4, I5 e I6 também apontaram que situações com o irmão vivenciadas fora do ambiente doméstico são compartilhadas pelos pais, o que faz com que conversem e reflitam sobre os desafios futuros, como situações de preconceito. Para Walsh (2016), quando as famílias conseguem esclarecer e compartilhar informações importantes sobre alguma situação, isso tende a facilitar a compreensão e o planejamento de intervenções futuras. Nos estudos de Ilias et al. (2019) e Sim et al. (2019), a clareza na comunicação favoreceu a interação entre os membros, aproximando-os.
Embora o diálogo aberto e claro seja um fator importante nesse processo, numa família ele se mostrou ausente, constituindo uma barreira. Observou-se que os pais de I2 não compartilhavam muitas informações sobre o diagnóstico do irmão com ela. Para I2, essa falta de clareza a impedia de entender o funcionamento do irmão. No estudo de Cardoso e Françozo (2015), explicações insuficientes acerca do diagnóstico do irmão com TEA também foram observadas. Nele, os participantes também relataram dificuldade e demora para entender o funcionamento do irmão. Para Walsh (2016), mensagens ambíguas e o segredo podem interferir na compreensão da adversidade, no senso de domínio e na proximidade entre os membros da família.
A expressão emocional aberta refere-se ao clima de empatia, de expressão dos sentimentos, de tolerância à diferença e confiança. É um processo que inclui o compartilhamento de momentos de lazer e interações prazerosas (Walsh, 2003). Alguns irmãos relataram encontrar espaço para expressar como se sentem na família, como apontado por I1, I4 e I5. O participante I5 considerava positiva a abertura que os membros tinham um com o outro: “Acho que isso é uma coisa muito positiva da minha família, que a gente é muito aberto um com o outro, a gente consegue dialogar, criar uma intimidade muito forte. Eu acho isso muito positivo.” Para I4, os pais se mostravam sensíveis às suas necessidades e buscavam entender como ela estava: “Às vezes me perguntam ‘Ah, como é que tá?’, eles querem dar uma sondada pra ver como é que eu tô.” Ela também observava abertura no relacionamento dos pais, que costumavam expressar como se sentiam um para o outro. O estudo de Sim et al. (2019), realizado com casais, também demonstrou que os participantes se sentiam à vontade para compartilhar opiniões e sentimentos, reconhecendo a presença do suporte emocional entre eles. No estudo de Bayat (2007), o apoio entre os membros da família também foi apontado como um fator para a resiliência familiar.
Sobre as interações, todos os irmãos referiram compartilhar momentos de lazer e situações prazerosas em família, que consideram importantes, como refeições, assistir filmes ou brincar e passear com o irmão com TEA. Por outro lado, observaram-se situações que poderiam interferir na expressão emocional e nas interações prazerosas com a família. Por exemplo, alguns irmãos tendiam a não compartilhar com a família situações que os incomodavam. I6 relatou que muitas vezes preferia compartilhar com alguma amiga, por achar a mãe muito brava. Walsh (2016) reportou que é comum que os filhos escondam seus sentimentos ou suas necessidades como forma de não sobrecarregar os pais. De fato, há evidências de que os adolescentes que têm irmãos com TEA podem apresentar esse comportamento como forma de proteger os genitores frente a tantas demandas com o irmão (Pavlopoulou & Dimitriou, 2020). Walsh (2016) afirmou que gerar espaço para o compartilhamento de sentimentos dolorosos torna-se essencial para a promoção da resiliência, assim como para respeitar as necessidades e diferenças de cada um.
A categoria resolução de problemas colaborativa refere-se ao envolvimento dos membros no manejo dos conflitos, utilizando a negociação e soluções criativas (Walsh, 2003). Os resultados revelaram que os participantes reconhecem o diálogo na família como um recurso para a resolução dos problemas, como apontou I1: “A gente sempre senta pra conversar e acaba resolvendo na conversa.” (I1) A participante I4 relatou que a família busca se apoiar em momentos em que observam aumento de estresse em situações com o irmão: “Rola um ‘arranca rabo’ [...] briga, fica meio estressado e depois acabam se perdoando porque sabem que não é uma coisa entre eles ou é uma coisa minha com eles, é porque a gente tá nervoso por causa do [irmão].” Verificou-se também que I1, I3, I4 e I5 costumavam ser chamados a participar de decisões familiares, como na organização doméstica ou nos cuidados com o irmão com TEA. I5, por exemplo, contou que a mudança do plano terapêutico da irmã foi feita em consenso e que ele participou dessa decisão, corroborando os achados de Pavlopoulou e Dimitriou (2020), em que as adolescentes também participavam das decisões familiares.
Os dados deste estudo também indicaram que os participantes contribuem com soluções criativas, especialmente nas demandas do irmão com TEA. Para I2, o interesse do irmão por tecnologia poderia ser utilizado como um recurso para abordar suas dificuldades nas tarefas escolares. Já I4 relatou ter criado uma tabela para monitorar o humor do irmão: “Inventei uma coisa, porque ele muda muito de humor [...] quando ele tá muito bem a gente diz que o [irmão] tá no azul, que é uma tabela por cores, e quando ele tá muito mal, ele tá no preto.” O envolvimento dos irmãos nessas decisões demonstra a presença de abertura na família para ouvi-los e considerar suas opiniões. No entanto, a não inclusão de alguns deles nessas decisões também foi constatada, o que pode constituir um obstáculo para a realização do processo de resiliência familiar.
Considerações finais
O presente estudo buscou identificar processos de resiliência familiar a partir da perspectiva de irmãos de indivíduos com TEA. Os resultados revelaram a presença de todos os processos-chave de resiliência propostos no modelo de Walsh (2003). Aspectos do fortalecimento familiar foram observados quando os irmãos identificavam transformações pessoais e na família a partir da experiência com o irmão com TEA, como novas perspectivas na forma de se relacionar com o outro e maior união na família. Essa união é facilitada pela comunicação aberta entre os membros, o apoio mútuo, a flexibilidade nas rotinas familiares e nos papéis e a percepção de que os desafios do TEA são compartilhados por todos na família. Destaca-se o reconhecimento do TEA como uma experiência que, apesar dos desafios, também produz crescimento para o irmão e para a família.
Por outro lado, observaram-se algumas situações que interferiam nesses processos, como a falta de tempo exclusivo dos pais com esses irmãos; o não compartilhamento de algumas informações sobre o diagnóstico do irmão com TEA; a falta de espaços acessíveis e características específicas do TEA que podem dificultar momentos de lazer juntos. Embora tenha sido identificada a presença de apoio formal e informal, especialmente de mulheres da família (avós e tias), ele se mostrou limitado em situações de crise comportamentais do irmão com TEA. Além disso, a necessidade de estimular continuamente o irmão, exercendo um papel de coterapeuta, se refletiu numa possível interferência nas interações espontâneas entre eles. Observou-se, inclusive, que tal papel de coterapeuta foi identificado, principalmente, em irmãos adolescentes que tinham irmãos menores com TEA.
Destaca-se que não foram encontradas barreiras na dimensão dos sistemas de crenças, o que pode indicar que essas famílias têm conseguido ressignificar a experiência do TEA, com estratégias adaptativas. Conclui-se que, apesar dos desafios, ter um membro com TEA propicia crescimento pessoal e familiar que depende, entre outros aspectos, de como essas experiências são compartilhadas na família. Tais achados podem ser explicados, em parte, pelos níveis de escolaridade (ensino superior), o nível socioeconômico, a qualidade das relações nessas famílias e a presença de apoio social, considerados fatores de proteção. Por outro lado, ressalta-se que entre os participantes havia famílias com menores níveis de escolaridade e socioeconômicos, em que processos de resiliência também foram identificados.
Em relação aos aspectos metodológicos, o delineamento utilizado se mostrou adequado para a compreensão mais aprofundada acerca das experiências dos irmãos na família. O roteiro de entrevista foi eficaz para apreender os diferentes processos que caracterizam a resiliência familiar na perspectiva dos irmãos. O uso de registros fotográficos facilitou o desenvolvimento da entrevista com os irmãos e auxiliou no entendimento dessas experiências. Em futuros estudos, uma análise específica de imagens pode contribuir para um refinamento dos achados. Pesquisas futuras também podem incluir estudos comparativos envolvendo irmãos de indivíduos com TEA e outras deficiências ou com desenvolvimento típico, além de irmãos adultos.
A realização das entrevistas de forma online apresentou vantagens e desvantagens. A possibilidade de entrevistar participantes de diferentes regiões geográficas pode ser considerado vantajoso. Embora os participantes e familiares tenham sido orientados previamente pela pesquisadora sobre a importância da privacidade para a realização da entrevista, observou-se em alguns casos a interferência de familiares. Entende-se que isso pode ter alguma influência sobre os resultados.
Por fim, acredita-se que este estudo contribui para subsidiar futuras intervenções familiares no contexto do TEA, pautadas em estratégias que potencializem os processos de resiliência familiar. Incluir as perspectivas e necessidades dos irmãos nessas intervenções mostra-se fundamental, tendo em vista os diferentes papéis que eles podem desempenhar nesse contexto.