SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.35 número3DEPRESSÃO, ANSIEDADE E CYBERBULLYING EM ADOLESCENTES DE PERNAMBUCO índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.35 no.3 Rio de Janeiro set./dez. 2023  Epub 11-Out-2024

https://doi.org/10.33208/pc1980-5438v0035n03a09 

Artigo

INTERVENÇÃO CLÍNICA PSICOSSOMÁTICA NA GESTAÇÃO DE ALTO RISCO

PSYCHOSOMATIC CLINICAL INTERVENTION IN HIGH-RISK PREGNANCY

INTERVENCIÓN CLÍNICA PSICOSOMÁTICA EN EL EMBARAZO DE ALTO RIESGO

Taritza Basler(1) 
http://orcid.org/0000-0002-7005-2274

Tagma Marina Schneider Donelli(2) 
http://orcid.org/0000-0003-3083-0083

(1)Mestra. Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Porto Alegre, RS, Brasil. https://orcid.org/0000-0002-7005-2274 — email: taritza@live.com

(2)Doutora. Professora e Pesquisadora no Departamento de Psicologia, Programa de Pós-graduação em Psicologia, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), São Leopoldo, RS, Brasil. https://orcid.org/0000-0003-3083-0083 — email: tagmad@unisinos.br


RESUMO

O objetivo deste estudo foi compreender o processo e o desfecho de uma intervenção clínica psicossomática no tratamento de uma gestação de alto risco. Para tanto, foi realizada uma pesquisa exploratória, de estudo de caso único, de enfoque qualitativo e delineamento longitudinal. Participou da pesquisa uma gestante com diagnóstico prévio de hipertensão arterial sistêmica crônica. A coleta de dados se deu por transcrições das gravações em vídeo das sessões e das anotações da pesquisadora em cada encontro, nos quais foram utilizados como instrumentos de coleta entrevistas semiestruturadas e a Caderneta da Gestante. Os dados coletados foram analisados por meio de relato clínico. As evidências permitiram concluir que a intervenção contribuiu para um desfecho favorável da gestação e do parto, como também para a diminuição do sofrimento psicológico associado à experiência da gestação de alto risco.

Palavras-chave intervenção psicológica; gravidez de alto risco; medicina psicossomática

ABSTRACT

The aim of this study was to understand the process and outcome of a psychosomatic clinical intervention in the treatment of a high-risk pregnancy. To this end, exploratory research was performed, in a single case study, with a qualitative approach and longitudinal design. A pregnant woman with a previous diagnosis of chronic systemic arterial hypertension participated in the research. Data were collected through transcriptions of video recordings of the sessions and the researcher’s notes at each meeting, in which semi-structured interviews and the pregnant woman’s medical booklet were used as gathering instruments. The data collected were analyzed through a clinical report. The evidence led to the conclusion that the intervention contributed to a favorable outcome of the pregnancy and birth, as well as to the reduction of the psychological suffering associated with the experience of high-risk pregnancy.

Keywords psychological intervention; high risk pregnancy; psychosomatic medicine

RESUMEN

El objetivo de este estudio fue comprender el proceso y el resultado de una intervención clínica psicosomática en el tratamiento de un embarazo de alto riesgo. Para ello se realizó una investigación exploratoria, en un estudio de caso único, con enfoque cualitativo y diseño longitudinal. Participó de la investigación una gestante con diagnóstico previo de hipertensión arterial sistémica crónica. La recolección de datos ocurrió mediante transcripciones de videograbaciones de las sesiones y de las notas de la investigadora en cada encuentro, en los que se utilizaron como instrumentos entrevistas semiestructuradas y el Manual de la Gestante. Los datos recolectados fueron analizados mediante relato clínico. Las evidencias permitieron concluir que la intervención contribuyó a un resultado favorable del embarazo y del parto, así como a la reducción del sufrimiento psicológico asociado a la vivencia del embarazo de alto riesgo.

Palavras chave intervención psicológica; embarazo de alto riesgo; medicina psicosomática

Introdução

As gestações de alto risco são assim denominadas por imputar maior probabilidade de evolução desfavorável da gestação, tanto para gestante quanto para o feto, e têm como integrantes de seu espectro as síndromes hipertensivas gestacionais (Fernandes & Sá, 2019). Essas síndromes são mais bem classificadas em quatro formas de apresentação: hipertensão arterial crônica, hipertensão gestacional, pré-eclâmpsia e hipertensão arterial crônica sobreposta por pré-eclâmpsia (Peraçoli et al., 2019).

Segundo a Organização Mundial da Saúde, em avaliação de dados do período de 2000 a 2020, identificou-se que as síndromes hipertensivas gestacionais estão entre as três principais causas de óbitos maternos no mundo (WHO, 2023). Não obstante, verifica-se a relevância das síndromes hipertensivas gestacionais, por representarem 29,23% das causas obstétricas (exceto O98 e O99) de óbitos maternos no Brasil, e serem a primeira maior causa de mortalidade materna. Da mesma forma, no estado do Rio Grande do Sul, representam 27,27% dos óbitos maternos, segundo a mesma classificação, e, juntamente com a hemorragia pós-parto, são a maior causa de mortalidade materna (Ministério da Saúde, 2020).

Considerando esse potencial de morbidade associado, dentre as síndromes hipertensivas gestacionais destaca-se a pré-eclâmpsia, que é uma síndrome multifatorial, multissistêmica e progressiva, que em geral se manifesta na segunda metade da gestação, e tem como apresentações clínicas na maioria dos casos a associação de hipertensão arterial sistêmica e proteinúria (Montenegro & Rezende Filho, 2018). Diante da dificuldade de definição da patogênese da pré-eclâmpsia, torna-se imperativa a identificação dos fatores de risco associados ao seu desenvolvimento, visando principalmente a impedir sua ocorrência mediante a prevenção secundária.

Salienta-se que a falta de reconhecimento do risco tem importante contribuição para o fomento de cuidados precários que estão associados à mortalidade materna (Duhig et al., 2018). Dentre os fatores de risco estão nuliparidade, idade materna avançada, história familiar em primeiro grau, obesidade, gestação múltipla, história de hipertensão em gestação pregressa, diabetes mellitus, trombofilias, doença renal crônica, lúpus eritematoso sistêmico e hipertensão arterial sistêmica crônica (Fernandes & Sá, 2019).

Ainda sobre aspectos subjetivos envolvidos na gestação de alto risco, ressalta-se que a gestante que passa por essa experiência de adoecimento em geral necessita de cuidados complexos, que impõem mudanças em sua rotina e estilo de vida. Além disso, essas alterações podem contribuir para o surgimento de processos de alteração de humor, assim como a experiência de sentimentos negativos, como medo, ansiedade, estresse e vulnerabilidade (Azevedo et al., 2020; Mirzakhani et al., 2020). Outrossim, também é possível que ocorram alterações comportamentais, afetivas e emocionais, que podem levar a dificuldades no desempenho de papéis relacionais, impactando negativamente na qualidade da vivência da maternidade, sobretudo no investimento afetivo em relação ao bebê após o parto (Antoniazzi et al., 2019).

A partir desse contexto, entende-se o processo de adoecimento sob uma perspectiva teórico-conceitual integrativa, a Psicossomática, que compreende o ser humano enquanto constituído de corpo e mente inseparáveis, anatômica e funcionalmente. Trata-se de uma abordagem abrangente que não apenas compreende a interação entre mente e corpo na saúde e no adoecimento, mas também orienta as práticas de saúde para uma medicina integral, representando tanto um conjunto de ideias sobre a saúde humana quanto um campo de investigação dedicado a explorar esses fenômenos (Mello Filho, 2010). Também pode ser compreendida como o estudo das relações mente-corpo com ênfase na explicação da patologia somática, uma proposta de assistência integral e uma transcrição para a linguagem psicológica dos sintomas corporais (Eksterman, 2010).

A Psicossomática contemporânea se destaca por sua natureza interdisciplinar, congregando diferentes áreas do conhecimento para uma visão integral da saúde que vai além dos aspectos físicos, englobando todas as dimensões da experiência humana na busca pelo bem-estar (Rodrigues, 2022). Ela parte de uma concepção monista do homem, na qual toda a doença é psicossomática, na medida em que incide e representa expressões desse ser integral (Groddeck, 1994). Nesse sentido, pode-se entender que a pessoa inteira está representada em qualquer parte do corpo, o que torna possível reconhecer a parte que se manifesta disfuncional, principalmente por meio do sintoma. Em outras palavras, do mesmo modo que em qualquer célula do corpo encontra-se a estrutura genética de todo o indivíduo, em cada órgão encontra-se a informação da sua totalidade (Schnake, 2017a).

Nessa perspectiva, Costardi (1994) propõe que nosso núcleo de consciência (o todo), enquanto atributo primordial do ser humano, investe sua manifestação mediante espectros de sentimento desejo e vontade, como também do corpo físico. Para o autor, a ocorrência de um distúrbio no processo de expressão dessa totalidade será responsável pelo surgimento das doenças orgânicas, tornando os sintomas a expressão possível para o aparelho psíquico. É pela racionalização de sentimentos e da repressão de desejos que a exteriorização desses conteúdos acontecerá, sob diferentes formas, burlando a vigilância da razão e provendo o sujeito dos objetos que satisfaçam a intenção primária desses mesmos desejos (Costardi, 1997). Complementarmente, concebe-se o princípio fundamental de que todo organismo vivo tem a capacidade de se autorregular e de se autocompletar, ressaltando o processo terapêutico como uma forma eficaz de aproximar o sujeito de sua integração e inteireza (Schnake, 2017a).

No processo de construção deste estudo, por meio de revisão integrativa da literatura realizada em 2022, foi identificada uma lacuna significativa em relação a pesquisas que abordassem a lógica do cuidado e tratamento em gestantes de alto risco sob uma ótica integrativa. Essa carência se mostrou ainda mais evidente no que diz respeito a estudos conduzidos por psicólogos. Com vistas a atualizar as informações acerca dessa lacuna, realizou-se uma busca com os mesmos descritores e bases de dados consultados por aquela revisão, entre o período de 2023 e março de 2024, a qual não retornou resultados pertinentes aos critérios de inclusão nela estabelecidos, corroborando os achados anteriores.

Outrossim, essa mesma escassez é evidenciada no que tange a estudos de intervenção no campo da psicossomática clínica mediados por abordagens que contemplem sintomas físicos, uma vez que não foram encontrados estudos brasileiros de similar temática publicados nos últimos 10 anos. Isso evidencia a relevância da intervenção realizada neste estudo, tendo em vista principalmente seus aspectos integrativo e inovador. Para tanto, o objetivo deste estudo foi compreender o processo e o desfecho de uma intervenção breve da clínica psicossomática no tratamento de uma gestante de alto risco.

Método

Delineamento

Priorizando a adequação ao objetivo deste estudo, optou-se por realizar uma pesquisa exploratória, de estudo de caso único, de enfoque qualitativo e delineamento longitudinal (Sampieri et al., 2013). A escolha pela pesquisa de abordagem qualitativa com desenho de estudo de caso único destinou-se a permitir maior aprofundamento acerca do objeto de estudo, e o caráter exploratório por tratar-se de um tema pouco difundido na literatura. O delineamento longitudinal diz respeito à coleta de dados ocorrer em mais de um momento.

Participante

Participou deste estudo Sueli (nome fictício), 29 anos, gestante, com diagnóstico de hipertensão arterial sistêmica (HAS) crônica prévia (acima de 140/90 mmHg). A seleção deu-se por conveniência, por indicação do médico obstetra, como amostragem intencional de caso típico. Como critérios de inclusão no estudo foram definidos: estar gestante, ser maior de 18 anos, com diagnóstico de pré-eclâmpsia de início precoce ou tardio, ou de hipertensão arterial sistêmica.

Sueli iniciou a participação na pesquisa com idade gestacional de 17 semanas e quatro dias (IG 17+4) da sua segunda gestação. Como sinal, apresentava picos hipertensivos ao longo do dia, e como sintoma, taquicardia transitória em repouso, o que lhe causava sensação de desconforto torácico. Em eletrocardiograma realizado na 30ª semana gestacional, foi constatada taquicardia sinusal.

O quadro de HAS teve início na gestação do primeiro filho, na qual desenvolveu pré-eclâmpsia na 34ª semana gestacional, que se manteve após o parto. O parto foi prematuro (IG 36), por cesárea. Aos 24 anos teve um AVC (acidente vascular cerebral), sem posse de registro médico. Nos registros que conserva pode-se constatar que houve a suspeita médica de processo isquêmico. Foi realizada investigação de trombofilia; entretanto, não tem registro do resultado.

Em seu histórico de saúde familiar paterno existem casos de HAS, hipertireoidismo e câncer, enquanto na família materna há casos de HAS e diabetes. Em relação ao seu nascimento, teve informações de familiares que foi prematuro (IG 28). Como histórico da mãe, relata a ocorrência de abortos espontâneos intercalados ao nascimento dos filhos e HAS, entretanto sem acompanhamento médico regular ou tratamento. Aos 7 anos, presenciou a morte da mãe (43 anos) por infarto agudo do miocárdio. Na ocasião, a mãe estava grávida, nas primeiras semanas de gestação. Decorreu desse fato o distanciamento do pai, quando passou a morar com outras pessoas da família, passando por situações de negligência e de vulnerabilidade social.

Sueli reside com o marido (35 anos) e o filho (8 anos) e tem como escolaridade o ensino médio incompleto. Trabalhava como autônoma, mas afastou-se de suas atividades em função do quadro de saúde. Está casada há 16 anos, com bom padrão de relacionamento, e teve seu primeiro filho aos 20 anos de idade. Considera ter uma boa rede de apoio familiar.

Instrumentos

Foram utilizadas na investigação entrevista semiestruturada de anamnese para coleta de aspectos socioeconômicos e história de vida, entrevista semiestruturada pós-técnica para verificação do que foi alcançado pela participante na sessão, e entrevista semiestruturada de acompanhamento com vistas a identificar como a participante elaborou o que foi trabalhado na sessão anterior. Como coleta documental, foi utilizada a Caderneta da Gestante (Ministério da Saúde, 2016), e acompanhados os registros médicos com a evolução do quadro clínico.

Procedimentos

Este artigo é derivado da dissertação de mestrado intitulada Clínica psicossomática na gestação de alto risco: Um estudo de caso, de autoria de Taritza Basler Pereira, sob orientação da Profª Drª Tagma Marina Schneider Donelli, vinculada ao Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). A pesquisa foi realizada em conformidade com as normas vigentes e recomendações éticas para a realização de pesquisas com seres humanos no Brasil e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, conforme o CAAE 40541320.0.0000.5344.

O estudo foi realizado no Ambulatório de Pré-natal de Alto Risco do Centro Médico Capilé, na cidade de São Leopoldo, RS. A divulgação da pesquisa deu-se internamente na instituição, pelo médico obstetra responsável, que fez a indicação da participante identificada no critério de inclusão do estudo para participação voluntária. As sessões ocorreram em ambiente virtual, por videochamada, no período de julho de 2021 a março de 2022, num total de 12 encontros, gravados em vídeo. Os encontros foram realizados com intervalo aproximado de uma a três semanas entre sessões, e duração de aproximadamente 40 minutos.

Foi realizada uma intervenção psicossomática clínica que teve como ponto de partida a proposta de Tessari (2018), que visa à reconexão com a totalidade no processo de tratamento, e tem as etapas estruturadas a partir da conjugação dos verbos: acolher, demandar, propor, morrer, aprender, respeitar, integrar e reencontrar. Para mediar a intervenção, elegeu-se a técnica do diálogo gestáltico com o órgão, idealizado por Adriana Schnake (2017b), que é caracterizada como um exercício imaginativo e vivencial no qual a pessoa realiza um diálogo franco com o órgão doente e, numa troca de papéis, acessa o conteúdo de si que anteriormente não pôde ser reconhecido ou tornado consciente (Schnake, 2017a). A técnica é realizada em 10 passos, em ambiente com disposição de três cadeiras, duas de frente para a outra e uma transversal, ocupada pelo terapeuta. Para este estudo, foi promovida uma adaptação da técnica para a realização em ambiente virtual, na qual a participante posicionou duas cadeiras uma de frente para a outra, e deixou a câmera na transversal, como que na posição do terapeuta. A fim de facilitar uma melhor compreensão da participante sobre o processo, foram incluídas narrativas de identificação das posições ocupadas pela pesquisadora.

Coleta de dados

Os dados foram coletados por meio das anotações da pesquisadora com a descrição detalhada de cada sessão, organizados em forma de relato clínico, e das transcrições das gravações oriundas das videochamadas de cada encontro do processo de intervenção. Também foram incluídos os dados documentais registrados na Caderneta da Gestante da participante e os resultados de exames clínicos.

Análise de dados

A análise de dados se deu pelo relato clínico (Epstein, 2011; Mordcovich, 2011), concebido como uma forma de comunicação privilegiada, na medida em que permite ao pesquisador um maior aprofundamento nos dados, ocupando-se dos conteúdos verbais e não verbais manifestados, como também da inclusão de suas próprias expectativas e subjetividades. Ferrari (2012) salientou que, por se tratar de narrativa do já vivido, o relato clínico permite a reorganização dos acontecimentos a partir de novos contatos e significações, mediante esse contar da experiência. Ainda, para que seja considerado um caso científico, deve estar atravessado por fundamentos metapsicológicos que possibilitarão a produção de significados daqueles conteúdos que se encontram sem representação na palavra.

Resultados e discussão

Os resultados foram organizados e serão apresentados em forma de relato clínico, no qual serão apontados os momentos mais pertinentes a contemplar o objetivo deste estudo. A fim de fomentar um melhor aproveitamento da análise dos dados, o relato será concomitantemente discutido à luz da literatura. A intervenção realizada será apresentada a partir da ilustração das principais vinhetas de falas e situações emergidas das sessões. Para tanto, as falas da participante que foram transcritas literalmente estarão destacadas em itálico para melhor identificação, enquanto as demais serão citadas no próprio relato. As contribuições da pesquisadora serão narradas em primeira pessoa, visando a aproximar o leitor do contexto dessa experiência.

Em nosso primeiro encontro, Sueli chegou com IG 17+4, muito colaborativa, acolhendo bem o enquadramento proposto. Iniciado o processo de entrevista de anamnese, ela deixou clara a presença do medo associado à gestação atual, que não foi planejada e para a qual havia contraindicação médica motivada pelo quadro hipertensivo. O medo pode ser concebido como a resposta ao impacto da percepção de algo nocivo, ou ainda como uma resposta sobre a previsão do possível ou provável dano, e tem como principal contribuição a incapacidade de garantir-se uma resolução ao que se apresenta (Mira y López, 1980).

Em relação aos sintomas que percebe, Sueli afirmou que “a pressão para mim está sendo tranquila, né? Só o aceleramento no coração que me assusta um pouco”, referindo-se à taquicardia. Contou que, mesmo em momentos de relativa tranquilidade e repouso, o sintoma se faz presente, e atribuiu essa manifestação à ansiedade, pois percebe-se muito ansiosa. A taquicardia pode estar presente em quadros ansiosos desadaptativos; entretanto, deve-se considerar ser mais bem explicada por uma condição médica. Ainda, quanto aos aspectos neurológicos de respostas adaptativas, respostas de medo aprendidas, como ansiedade, podem ser intermediadas pela amígdala, e assim direcionar a expressão de algumas emoções (Sadock et al., 2017).

Sobre suas recordações da infância, Sueli apontou o quão marcante foi a morte da mãe e difíceis os tempos que se seguiram. “Ela morreu do meu lado. Isso eu carrego desde lá”. Sua fala nesse momento se impregnou de emoção, evidenciando o quanto os sentimentos vinculados a essa experiência ainda estão presentes. Ao relatar sua experiência, deixou evidente o quão trágica foi, e o fato de a mãe estar grávida, inevitavelmente, veio a atravessar sua própria história hoje. Ressalta-se o que Sueli disse: “Isso eu carrego desde lá”, refletindo sobre quais sentimentos ainda “carrega”. Em relação ao pai, contou que, após a morte da mãe, ele se distanciou dos filhos, legando seu cuidado a outras pessoas da família, período no qual ela passou por situações recorrentes de negligência e vulnerabilidade. Esse contexto de sua narrativa faz compreender a legitimidade de sua preocupação e seu medo em relação aos riscos da gestação atual, principalmente pela possibilidade de vir a morrer e faltar para o filho.

Ao abrir espaço para o que Sueli quisesse incluir na sua história, ela mencionou: “eu tenho essa ansiedade. É que eu sou muito assim, ó, de guardar, entendeu? De guardar as coisas para mim, e às vezes é isso que me afeta”. Entende-se que o significado das palavras, simbolicamente, pode contar sobre o que representam para a pessoa, e ao se considerar a palavra também como símbolo, compreende-se que é por meio disso que o inconsciente se dirige à consciência (Groddeck, 2004). Nesse sentido, quando Sueli traz à superfície algo de si e o reconhece, mostra um caminho possível para a elaboração e ressignificação desses conteúdos. Sua percepção de si, apesar de traduzida em linguagem simples, está de acordo com a necessidade, para o processo de cura, de tornar consciente o que é inconsciente, tendo em vista saúde e doença serem manifestações da existência do Isso (todo) (Groddeck, 2004).

Ao dar-se conta novamente da gravidade e do potencial risco de sua atual gestação, conectou-se mais uma vez com o medo: “no meio da criação do meu filho e o meu medo muito é de deixar ele no mundo, né? Porque minha mãe deixou eu no mundo cedo. E eu fico assim, né? Fico naquele pensamento”. Esse sentimento tem muitas formas de apresentação e graus de invasão. Nessa situação, especificamente, Sueli experimenta o medo racional-sensato, que é aquele condicionado pela experiência e baseado na racionalidade, que é lógico e se apresenta como reação à antecipação do dano (Mira y López, 1980). Esse medo é do tipo que pode ser compreensível para as pessoas que não o sentem diretamente, mas possivelmente o sentiriam, caso vivenciassem situação similar.

Em nosso segundo encontro, Sueli estava com IG 19+3 e mostrou-se receptiva à proposta de realizar o diálogo gestáltico com as artérias, a fim de trabalhar o sintoma de HAS. Essa proposta parte do princípio de que o processo de cura depende da conexão entre as partes divididas pelo adoecimento, com vistas a recuperar a totalidade do ser humano. Para tanto, a pessoa deve passar pela vivência da estrutura da parte doente (órgão), uma vez que, por meio da tomada de consciência de que esta é parte de si mesma, tem a representação de sua totalidade (Schnake, 2017b). Em relação à escolha do órgão, tem-se o princípio de que o sintoma é a linguagem emergente e, portanto, o ponto de partida de qualquer tratamento (Groddeck, 2004). A partir disso, o sintoma deve ser observado e apropriado pelo terapeuta, para que possa facilitar trazer à luz do consciente o sentido de sua manifestação.

Durante o diálogo com as artérias, Sueli demonstrou certa dificuldade em fazer contato com o lugar de órgão e renunciar ao controle, por meio da racionalização, para ampliar a vivência naquela condição. A partir disso, a terapeuta foi convocada a estimulá-la a retomar a condição em que estava facilitando o contato, nomeando novamente esse lugar. A partir da experiência da troca de papéis, ficou fácil compreender sua resistência, uma vez que se mostrou como uma resposta à etapa morrer da intervenção, na qual a pessoa deve executar a difícil tarefa de deixar de existir e de perceber-se como antes, abandonando aquilo que pensava ser (Tessari, 2018). Ainda, foi possível identificar a necessidade de promover a adequação da descrição do órgão ao vocabulário de Sueli, que, a partir disso, foi se apropriando do processo. Nessa experiência, o que se torna mais importante é o reconhecimento das semelhanças e diferenças com o órgão, tendo em vista que as características evitadas ou não reconhecidas são a chave do conflito, por alguma razão, negado ou não aceito (Schnake, 2017a). Ao final do processo, foi possível identificar, por meio da entrevista de verificação pós-técnica, que Sueli alcançou o objetivo de contato consigo mesma e o que de contraste necessitava ser resgatado.

Em nosso terceiro encontro, Sueli estava com IG 22+3. Chegou bem-disposta e comunicativa. Contou que houve melhora na hipertensão arterial; entretanto, apresentou picos na aferição em consultório quando foi às consultas médicas. Mais recentemente, essa manifestação sintomática foi admitida como passível de ocorrer entre as síndromes hipertensivas gestacionais como “hipertensão do jaleco branco”, caracterizada por aferições domiciliares dentro do normal (abaixo de 135/85 mmHg) e pela presença de hipertensão arterial alta (acima de 140/90 mmHg) durante as consultas de pré-natal, podendo ainda evoluir para pré-eclâmpsia (Peraçoli et al., 2019).

Em continuidade à entrevista de verificação, ao questioná-la sobre como foi exercitar as características identificadas no diálogo e como percebeu o processo, Sueli mencionou que conseguiu praticar apenas “um pouco” o que foi proposto. Com o intuito de ressaltar a importância do movimento de mudança que iniciou, peço a ela que explique melhor sua análise sobre o que se passou. Ao narrar, Sueli percebeu e identificou suas características em diferenças que foram exercitadas no período entre as sessões, principalmente, de controlar e “guardar tudo para si”, como sinalizou no primeiro encontro. Em seguida, busquei validar seu trabalho e disponibilidade internos para a mudança, reforçando a importância de conseguir exercitar as etapas morrer, aprender, respeitar e integrar da intervenção. Minha conduta nessa situação foi balizada pela concepção do papel do terapeuta enquanto facilitador, que, visando despertar potencialidades e virtudes, dispensa à pessoa a condição de retomar o caminho em direção ao autoconhecimento, permitindo-lhe assim assumir suas imperfeições e entregar-se ao trabalho de reconstruir sua própria identidade (Costardi, 1997). Sob essa premissa, cabe ao terapeuta o trabalho de auxiliar o sujeito a tornar-se consciente de sua responsabilidade sobre seu adoecimento, ressignificando suas crenças e adequando seus sentimentos, emoções e pensamentos à realidade daquilo que realmente é.

A partir dessa validação e reconhecimento, Sueli foi capaz de perceber o que estava sendo mais difícil para ela nesse processo de apropriação de si, que “é o guardar, sabe, para si. Isso estou conseguindo lidar bem, já aprendi a lidar bem, sabe?”, como também as mudanças em sua forma de pensar e de sentir que estavam se refletindo em seu comportamento. Nesse sentido, evidencia-se a principal motivação deste processo, que é a possibilidade de a pessoa perceber a totalidade que é, e que tudo o que acontece com ela conta algo muito importante sobre si (Schnake, 2017a).

Nos encontros seguintes, Sueli estava com IG 25+3 e 30+4, respectivamente, e se apresentava um pouco menos disponível do que nas sessões anteriores, relatando certo desgaste com a experiência do aumento do número e frequência de consultas médicas a que estava sendo submetida, por volta de duas a três vezes por semana. Outro aspecto de tensionamento foi consoante com a constatação de picos de pressão arterial durante o sono e taquicardia sinusal em exames. A partir disso, sua atenção voltou-se para a evolução da sua condição de saúde e dos possíveis desfechos da gestação e do parto, estabelecendo um padrão de funcionamento ansioso.

Sua narrativa, então, se impregnou de expectativas em relação ao parto e do quanto tem medo e se preocupa com esse momento, principalmente em referência à experiência da gestação anterior. Esse processo pode ser bem entendido a partir da constatação de que gestantes de alto risco podem desenvolver a ansiedade como manifestação de base no curso da gestação quando experimentam complicações ou alterações no quadro clínico (Cabral et al., 2018). Ademais, ainda que sentimentos ambivalentes e ansiedade comumente estejam presentes em gestações típicas como um padrão adaptativo saudável, nas gestações de alto risco esses sentimentos e estados emocionais encontram-se potencializados, o que se dá principalmente pela iminência do desfecho desfavorável da gestação e do parto, e do risco de morte (Azevedo et al., 2020). A partir disso, visando a fomentar uma mudança no foco de sua atenção e uma maior conexão com o momento presente, orientei Sueli quanto ao uso de uma técnica de respiração consciente. Minha escolha terapêutica naquele momento se deu incentivada pela prerrogativa de que se deve colocar a técnica sempre a serviço do processo terapêutico, aproveitando a situação que se apresenta da melhor forma possível para contribuir com a tomada de consciência da paciente (Figueroa, 2015).

Em nosso sexto encontro, Sueli estava com IG 31+3. Preocupou-se em informar sobre a indicação do médico obstetra para antecipar o parto para antes de 38 semanas caso a pressão continuasse a se elevar, uma vez que, em sua última consulta com o médico cardiologista, havia sido identificada oscilação da pressão arterial e taquicardia sinusal. Sobre essa mudança no quadro sintomático, é importante salientar que a etapa integrar da intervenção é um processo, e por isso deve ser vivenciada quantas vezes forem necessárias, com vistas a facilitar ao sujeito a autorresponsabilização por sua doença, como o conhecimento da mensagem que traz a todo o seu ser (Costardi, 1997; Schnake, 2017b). Nesse sentido, essa reconfiguração da manifestação do sintoma traduz o processo de que, quando um conteúdo é trabalhado e perde sua intensidade de expressão, pode retornar à superfície consciente quando novamente tensionado, com vistas a uma nova oportunidade de atualizar-se, comunicando a totalidade que representa e podendo assim ser reintegrado.

No sétimo encontro, realizou-se o diálogo gestáltico com o coração, uma vez que foi identificada a mudança no padrão de enfrentamento de Sueli e no quadro sintomático. Sueli estava com IG 32, mostrou-se receptiva e colaborativa com a proposta de trabalho. Dessa vez, foi capaz de conectar-se mais facilmente com o órgão e com suas características, o que provavelmente teve contribuição da experiência anterior. O diálogo ocorreu com os mesmos parâmetros de procedimentos, e Sueli identificou o medo como sentimento pelo coração e como diferenças: “descanso mais do que trabalho e dou o que recebo” (Schnake, 2017a). Quando questionada sobre a experiência, Sueli retomou a identificação da sua característica de guardar para si, fazendo a associação de que “não dá o que recebe”, e quando está no processo ansioso de “a mente não parar”, não descansa para se nutrir, como faz o coração. “O cardiologista tinha já me falado sobre isso. O neuro [neurologista] também, que não era para mim guardar as coisas para mim. Muita coisa eu guardava pra mim, por isso que acabava ficando acelerada, essas coisas, né?”. Pode-se extrair o potencial desses diálogos em promover para a pessoa a aceitação de aspectos que antes negava como parte de si mesma, evidenciando o quão incrível pode ser a percepção de uma pessoa sobre o órgão ou parte de si adoecida (Schnake, 2017b).

O oitavo encontro foi destinado à verificação da sessão anterior, quando Sueli estava com IG 34+1. Chegou tranquila, menos ansiosa, reportando uma melhora da taquicardia. Entretanto, mantinha como sintoma a oscilação da pressão arterial, que era de difícil controle medicamentoso. Passou a manifestar preocupação em relação à possibilidade de um desfecho desfavorável da gestação, demonstrando insegurança, como se faltasse continência da situação que se apresentava na rotina de atendimentos médicos e exames. Na tentativa de tirar das consultas médicas a única via de segurança para o enfrentamento das incertezas sobre o parto, propus o exercício de materializar em palavras os pensamentos e fantasias que podem surgir sobre esse foco de preocupação, com vistas a diminuir a intensidade e a frequência com que se apresentavam. Além disso, retomei os exercícios de conexão com o momento presente, para que Sueli não antecipasse a vivência emocional de possíveis desfechos negativos da gestação. Minha conduta tomou como base a importância de facilitar à paciente a redução do nível de sofrimento incorporado, estimulando o desenvolvimento de recursos internos até que tivesse condições de reconectar-se de forma resolutiva com a situação problema (Joyce & Sills, 2016).

No nono encontro, Sueli estava com IG 34+4, bem-disposta, colaborativa e acolhendo a proposta de trabalhar o diálogo com as artérias novamente, que se faz pertinente a partir da identificação do quadro sintomático que se apresentou nos últimos encontros. É importante salientar que as oportunidades que se apresentam para facilitar o processo de cura não devem ser desperdiçadas, uma vez que a técnica passa inevitavelmente pela compreensão da verdadeira função e característica do órgão que não está funcionando bem (Schnake, 2017a). No diálogo, Sueli demonstrou abertura e disponibilidade interna para conexão com o órgão, e identificou como a diferença é elástica, no sentido de ser flexível e adaptar-se (Schnake, 2017b).

Por meio da entrevista de verificação pós-técnica, Sueli disse: “eu estou me sentindo bem, desde a outra vez já primeiro. Não estou, não está sendo mais pensado. Eu queria fazer tudo. Não deixava nada, queria aquilo ali naquele momento, e tinha que ser. Queria controlar mais as coisas, não deixava fluir. E agora eu já mudei, mudei muito, muito mesmo”. Validei seu reconhecimento sobre o que conquistou até aqui, pois de fato era perceptível a maior leveza e fluidez na sua expressão. Em seguida, Sueli demonstrou ser capaz de apropriar-se das características a serem reintegradas, como também de comprometer-se em investir nesse processo de mudança, deixando claro que alcançou as etapas de respeitar e integrar da intervenção, comprometendo-se a alcançar a etapa de reencontrar a essência perdida, a totalidade (Tessari, 2018).

A partir do contato com as características das artérias, surgiu uma inquietação para Sueli: “é, essa função das artérias e do coração que eu vou trabalhar muito isso no hospital, né? Porque eu vou ficar muito ansiosa, muito nervosa, com tudo né? Eu vou usar muito isso em algum momento”. Mesmo diante da oferta da terapeuta de contraste à projeção negativa que faz, Sueli sustentou: “é que a minha mente não vai conseguir parar, e com isso, como ela não vai parar, automaticamente vai subir a minha pressão. É igual a outra vez que eu pensava mil coisas e no final ela não baixava de maneira nenhuma, nem depois que eu ganhei ele”. Diante disso, busquei reforçar o aprendizado que teve pelos diálogos, a fim de promover a utilização das características do órgão como potencial de enfrentamento, como também alternativas em contraste, o que novamente a fez conectar-se com o “medo lógico” (Mira y López, 1980).

Decorreu desse momento uma alteração no comportamento de Sueli, que passou a falar de forma retraída, quase como que pedindo licença para acrescentar algo ao que estávamos contatando. Conecta-se novamente com a preocupação sobre o fato de apresentar picos hipertensivos quando em atendimentos no ambulatório de alto risco ou no hospital, e traz em sua fala pouca perspectiva de resolução para situação. A partir disso, mudei minha postura terapêutica e ofereci-lhe investigarmos a razão desse sintoma. Numa atitude fenomenológica, devolvi a ela o conteúdo que trouxe de forma mais sintética e objetiva, visando a facilitar sua tomada de consciência e reconhecimento do objeto de sofrimento. A abordagem fenomenológica prevê a apropriação do que surge na sessão com uma curiosidade genuína, em vez de interpretar, buscando estar o mais perto possível da vivência do paciente, no aqui e agora, ajudando-o a explorar e tornar-se consciente de como está fazendo sentido no mundo (Joyce & Sills, 2016). Em decorrência desse processo, Sueli pôde identificar a representação desses locais para ela: “eu sei, é o medo. É um medo, sim, de acontecer alguma coisa. É a única coisa que eu tenho: medo. Disso assim, sabe? De não resistir, alguma coisa”. Validei sua identificação e incluí os recursos adquiridos por ela como formas de enfrentamento eficientes, a fim de orientá-la quanto a possíveis manejos desse sentimento.

O décimo encontro passou a ser destinado a trabalhar o medo. Sueli estava com IG 36, e iniciou sua narrativa trazendo informações acerca de sua condição de saúde e de sua bebê, articulando pausadamente, calmamente, e com cuidado, como se quisesse fazer perceber a importância disso para ela. A partir daí, verifiquei como estava sua conexão com o medo, sinalizado por ela como muito presente ainda. Propus, então, uma técnica de imaginação dirigida para que se instrumentalizasse e pudesse lançar mão do recurso de enfrentamento que dela decorre, sempre que achasse necessário. Esse tipo de técnica tem o papel de ajudar a pessoa a explorar o tema com que tem dificuldade de lidar ou contatar, e pode ser desenvolvida sempre a partir desse tema e da situação que emerge na sessão (Figueroa, 2015). Foi possível constatar que Sueli demonstrou ser capaz de apropriar-se do recurso proposto, pois conseguiu vivenciar em plenitude o processo ofertado.

Os últimos encontros se deram no puerpério, e destinaram-se a verificar os efeitos da intervenção para Sueli. No primeiro, ela estava há 30 dias no puerpério, quando a estimulei a contar como foi a experiência das últimas semanas da gestação e do parto. Relatou que, no período que antecedeu o parto, passou por aferições da pressão arterial diárias na UBS e precisou de quatro internações na emergência para supervisão da condição de alto risco e possível antecipação do parto. Contou que vivenciou momentos de medo intenso nas idas à emergência e no momento do parto, ainda que não tivesse se confirmado o diagnóstico de HAS sobreposta por pré-eclâmpsia, e de o parto ter ocorrido a termo, na 39ª semana de gestação. Mencionou que nesses momentos utilizou os exercícios vivenciados durante o processo interventivo e, mesmo com importante sofrimento psicológico associado, estes a ajudaram a tornar mais toleráveis essas experiências.

O último encontro aconteceu três meses após o parto, no qual busquei saber sobre o estado de saúde geral de Sueli. Abri a possibilidade de ela trazer sua narrativa, a partir daquilo que se tornasse mais relevante naquele momento sobre suas experiências do período. Sueli ateve-se à rotina como mãe e aos cuidados com a bebê, e às dificuldades e alegrias que essa experiência estava trazendo. Apesar do aparente cansaço com os cuidados com a bebê, Sueli demonstrou estar de posse e segura do papel que desempenhava, mostrando-se tranquila enquanto falava. Quando encaminhávamos para o fim da sessão, Sueli mencionou o quanto ainda levava consigo o aprendizado e os recursos dos quais se apropriou no período interventivo, que ainda exercita o que aprendeu e se percebe evoluindo. Ao final do encontro enfatizou: “eu estou bem, estou muito bem. Desde que a minha nenê nasceu a minha pressão tá boa”.

Em síntese, todo o processo de intervenção foi permeado pela incerteza dos resultados, com o desfecho sendo moldado a cada sessão e sustentado pelo comprometimento de Sueli e pela experiência clínica da terapeuta com a abordagem. A cada encontro, um universo de possibilidades se apresentava, e, por meio do que era proposto, Sueli foi aos poucos se apropriando de si mesma, se conhecendo e transformando, e acabou contrariando o prognóstico desfavorável do início da gestação. Portanto, a terapia contribuiu para sustentar um desfecho favorável com o controle do quadro sintomático e um parto a termo.

Considerações finais

A partir deste estudo de caso, pode-se compreender o quanto a clínica psicossomática como abordagem de tratamento permite ao sujeito que sofre tomar consciência de si e apropriar-se da totalidade que é. Nesse sentido, as informações obtidas ilustraram que a intervenção realizada contribuiu para um desfecho favorável da gestação e do parto, que ocorreram sem o desenvolvimento de pré-eclâmpsia superposta à hipertensão arterial crônica, como também para a diminuição do sofrimento psicológico associado à experiência da gestação de alto risco. Ainda, a análise das implicações do tratamento que decorreram da intervenção permitiu constatar que se trata de processo interventivo passível de ser integrado ao tratamento de gestantes de alto risco de modo geral, como também de ser inserido em contextos de assistência multiprofissional em saúde, desde que observada a necessidade de ser implementado por psicólogos com a formação específica que exige.

Apesar da pertinência e do potencial de tratamento da clínica psicossomática enquanto abordagem, algumas limitações perpassaram este estudo. Dessas, destaca-se o setting virtual, que, apesar de se mostrar muito viável, fomentou a imprecisão da apreensão de alguns detalhes de expressão corporal da participante, em função do enquadramento da câmera. Por tal razão e para melhor aproveitamento, sugere-se a realização desse tipo de intervenção de forma presencial. Vale esclarecer que a opção por um setting virtual se deu pela necessidade de preservação da participante, diante do contexto pandêmico de Covid-19 no momento do processo de intervenção.

Por fim, com vistas a ampliar o conhecimento acerca do potencial de tratamento das intervenções em psicossomática clínica, sugere-se a realização de novos estudos empíricos, principalmente por tratar-se de prática ainda incipiente do ponto de vista estrutural e pouco difundida no meio acadêmico. Ademais, a considerar o potencial objeto de benefício de tal intervenção para gestantes de alto risco, que esses novos estudos sejam estendidos aos demais processos de adoecimento do ciclo gravídico, sobretudo pela importância da saúde materno-fetal para a sociedade e pela urgência na diminuição da mortalidade associada a esse grupo.

Não se declararam fontes de financiamento.

Referências

Antoniazzi, M. P.; Siqueira, A. C.; Farias, C. P. (2019). Aspectos psicológicos de uma gestação de alto risco em primigestas antes e depois do parto. Pensando Famílias, 23(2), 191-207. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-494X2019000200015Links ]

Azevedo, C. C. S.; Hirdes, A.; Vivian, A. G. (2020). Repercussões emocionais no contexto da gestação de alto risco. International Journal of Development Research, 10, 20034. https://www.journalijdr.com/repercuss%C3%B5es-emocionais-no-contexto-da-gesta%C3%A7%C3%A3o-de-alto-riscoLinks ]

Cabral, S. A. A. O.; Alencar, M. C. B.; Carmo, L. A.; Barbosa, S. E. S.; Barros, A. C. C. V.; Barros, J. K. B. (2018). Receios na gestação de alto risco: Uma análise da percepção das gestantes no pré-natal. Id on line – Revista Multidisciplinar e de Psicologia, 12(40), 151-162. https://doi.org/10.14295/idonline.v12i40.1051Links ]

Costardi, A. C. (1994). Quebrando o espelho. Martin Claret. [ Links ]

Costardi, A. C. (1997). Cartas a uma amiga. Martin Claret. [ Links ]

Duhig, K.; Vandermolen, B.; Shennan, A. (2018). Recent advances in the diagnosis and management of pre-eclampsia. F1000Research, 7, 242. https://doi.org/10.12688/f1000research.12249.1Links ]

Eksterman, A. (2010). Psicossomática: O diálogo entre a psicanálise e a medicina. In: J. Mello-Filho, M. Burd, Psicossomática hoje (2ª ed.), cap. 8, p. 93-105. Artmed. https://www.lotuspsicanalise.com.br/biblioteca/Julio_de_Mello_Filho_Psicossomatica.pdf (acesso 29/07/2024) [ Links ]

Epstein, R. (2011). El relato y la realidad. In: M. Vorchheimer (Coord.), XXXIII Simposio Anual: Relatos de la clínica. Asociación Psicoanalítica de Buenos Aires. [ Links ]

Fernandes, C. E.; Sá, M. F. S. (Eds.) (2019). Tratado de Obstetrícia Febrasgo. Elsevier. [ Links ]

Ferrari, H. (2012). Qué nos enseña Freud acerca del relato clínico psicoanalítico. Psicoanálisis: Revista editada por la Asociación Psicoanalítica de Buenos Aires, 34(1), 87-96. https://www.psicoanalisisapdeba.org/autores/hector-ferrari/que-nos-ensena-freud-acerca-del-relato-clinico-psicoanalitico/ (acesso 29/07/2024) [ Links ]

Figueroa, M. (2015). As técnicas em Gestalt-terapia. In: L. M. Frazão, K. O. Fukumitsu (Orgs.), A clínica, a relação psicoterapêutica e o manejo em Gestalt-terapia, p. 103-128. Summus. [ Links ]

Groddeck, G. (1994). O Homem e seu Isso. Perspectiva. [ Links ]

Groddeck, G. (2004). O Livro dIsso. Perspectiva. [ Links ]

Joyce, P.; Sills, C. (2016). Técnicas em Gestalt: Aconselhamento e psicoterapia. Vozes. [ Links ]

Mello Filho, J. (2010). Introdução. In: J. Mello-Filho, M. Burd, Psicossomática hoje (2ª ed.), cap. 1, p. 29-38. Artmed. https://www.lotuspsicanalise.com.br/biblioteca/Julio_de_Mello_Filho_Psicossomatica.pdf (acesso 29/07/2024) [ Links ]

Ministério da Saúde (2016). Caderneta da Gestante (3ª ed.). https://www.mds.gov.br/webarquivos/arquivo/crianca_feliz/Treinamento_Multiplicadores_Coordenadores/Caderneta-Gest-Internet(1).pdf (acesso 29/07/2024) [ Links ]

Ministério da Saúde (2020). Óbitos de mulheres em idade fértil e óbitos maternos – Capítulo CID-10. DATASUS. http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?sim/cnv/mat10uf.def (acesso 29/07/2024) [ Links ]

Mira y López, E. (1980). Quatro gigantes da alma: o medo, a ira, o amor, o dever (11ª ed.). José Olympio. [ Links ]

Mirzakhani, K.; Ebadi, A.; Faridhosseini, F.; Khadivzadeh, T. (2020). Well-being in high-risk pregnancy: An integrative review. BMC Pregnancy and Childbirth, 20(1), 526. https://doi.org/10.1186/S12884-020-03190-6Links ]

Montenegro, C. A. B.; Rezende Filho, J. (2018). Rezende: Obstetrícia fundamental (13ª ed.). Guanabara Koogan. https://shalomtreinamentos.com.br/wp-content/uploads/2023/06/Rezende-Obstetricia-Fundamental-13_a-edicao.pdf (acesso 29/07/2024) [ Links ]

Mordcovich, N. (2011). Una contribución a la idea de “relato”. In: M. Vorchheimer (Coord.), XXXIII Simposio Anual: Relatos de la clínica. Asociación Psicoanalítica de Buenos Aires. [ Links ]

Peraçoli, J. C.; Borges, V. T. M.; Ramos, J. G. L.; Cavalli, R. C.; Costa, S. H. A. M.; Oliveira, L. G.; Souza, F. L. P.; Korkes, H. A.; Brum, I. R.; Nascimento, M. L. C.; Corrêa Jr., M. D.; Sass, N.; Diniz, A. L. D.; Cunha Filho, E. V. (2019). Pré-eclâmpsia/eclâmpsia. Revista Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia, 41(5), 318-332. https://doi.org/10.1055/s-0039-1687859Links ]

Rodrigues, A. L. (2022). Pensar a psicossomática. Mudanças – Psicologia da Saúde, 30(1), 105-109. https://revistas.metodista.br/index.php/mudancas/article/view/655Links ]

Sadock, B. J.; Sadock, V. A.; Ruiz, P. (2017). Compêndio de psiquiatria: Ciência do comportamento e psiquiatria clínica (11ª ed.). Artmed. https://oitavaturmadepsicofm.wordpress.com/wp-content/uploads/2019/03/compecc82ndio-de-psiquiatria-kaplan-e-sadock-2017.pdf (acesso 29/07/2024) [ Links ]

Sampieri, R. H.; Collado, C. F.; Baptista Lucio, M. P. (2013). Metodologia de pesquisa (5ª ed.). Penso. [ Links ]

Schnake, A. (2017a). Los diálogos del cuerpo: Un enfoque holístico de la salud y la enfermedad. Cuatro Vientos. [ Links ]

Schnake, A. (2017b). Enfermedad, síntoma y carácter: Diálogos gestálticos con el cuerpo. Cuatro Vientos. [ Links ]

Tessari, D. A. (2018). Tudo tem sentido, inclusive o câncer. Olsen. [ Links ]

WHO – World Health Organization (2023). Trends in maternal mortality 2000 to 2020: estimates by WHO, UNICEF, UNFPA, World Bank Group and UNDESA/Population Division. https://iris.who.int/bitstream/handle/10665/366225/9789240068759-eng.pdf (acesso 18/08/2024) [ Links ]

Recebido: 09 de Setembro de 2022; Aceito: 04 de Abril de 2024

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.