Introdução
O abuso, a exploração, o insulto, o ataque, a invalidação e outros tipos de agressões são práticas que afetam a saúde mental. O racismo, como a crença na superioridade de algumas raças sobre outras que leva à atuação com base em preconceitos (Guimarães, 2004), tem sido uma justificativa para a opressão, agressão e violência contra os indivíduos de forma deliberada ou inconsciente, o que tem afetado a saúde global, sobretudo mental, das pessoas de grupos racialmente discriminados.
Observa-se que o racismo é um fenômeno complexo que se retroalimenta, no sentido de proporcionar e, ao mesmo tempo, assegurar a manutenção do adoecimento a que ele próprio sujeita suas vítimas (Bicudo, 2010). Indivíduos racialmente discriminados sofrem mais de problemas de saúde mental e física em comparação com brancos, e já se percebeu que a discriminação é associada a resultados de saúde mental e física e dificuldades estruturais que envolvem poder, privilégio e cultura (Smolen & Araújo, 2017). Assim, podemos inferir que a população negra é uma clientela potencial para a psicoterapia, pois sem dúvida o racismo adoece e essa prática poderia beneficiar pessoas negras, no sentindo de acolher o sofrimento e oferecer maiores ferramentas de enfrentamento ao racismo. Mas, será que, no Brasil, psicólogos brancos estão preparados para acolher o sofrimento de pacientes negros na psicoterapia?1
A violência racial é um fenômeno que não pode ser ignorado pela psicologia e, no entanto, a pesquisa sobre o tema é incipiente – sobretudo no que diz respeito à psicologia clínica e às práticas psicoterapêuticas (Tavares & Kuratani, 2019). E, ao considerar-se que o racismo é um fenômeno presente em todos os espaços e permeando as mais diversas relações, é de se presumir que as práticas clínicas não estejam imunes ao fenômeno e que, dentro de uma estrutura social racializada, possam ocorrer práticas racistas nesses contextos, conforme já indicado por estudos internacionais (Hook et al., 2016; Mazzula & Nadal, 2015; Nadal et al., 2014; Owen et al., 2011, 2014, , 2014, 2018).
Nos diálogos do cotidiano, uma das formas de agressão sofridas comumente relatadas por sujeitos negros no contexto da psicoterapia no Brasil são as agressões raciais em microescala: formas mais sutis de discriminação e agressões raciais reproduzidas consciente ou inconscientemente, que são experimentadas por vários grupos minoritários raciais (Constantine, 2007; Hook et al., 2016; Nadal et al., 2014; Sue et al., 2007). São as microagressões: agressões em função do preconceito racial que se manifestam em forma de comunicações sutis, muitas vezes automáticas e não verbais, geralmente não percebidas pelos perpetradores, destinadas a “rebaixar” as pessoas negras. São negligências, desrespeitos, desvalorizações, insultos sutis, gestos e tons desdenhosos tão difundidos e automáticos nas conversas e interações cotidianas que comumente são dispensadas e encobertas como sendo inocentes e inócuas – mas que contribuem para o estresse psicológico e angústia dos destinatários (Sue et al., 2007).
Quando as microagressões são percebidas na psicoterapia, elas podem interferir no processo terapêutico, sendo relacionadas a alianças de menor qualidade com seus psicoterapeutas (Owen et al., 2014), e são indicativas de piores resultados em saúde mental e de prevalência de sintomas depressivos e afetos negativos (Nadal et al., 2014). Nessa perspectiva, a partir do que os estudos internacionais indicam e do que se tem observado empiricamente no Brasil sobre a díade paciente negro/psicoterapeuta branco, o objetivo deste estudo, derivado de uma tese de doutorado, foi compreender a experiência de pacientes negras que sofreram microagressões raciais de seus psicoterapeutas durante a psicoterapia e interpretar os significados atribuídos a essa vivência.
Método
Desenvolveu-se um modelo de pesquisa qualitativa, exploratória, buscando compreender a experiência de pessoas negras que sofreram microagressões raciais na psicoterapia, bem como apreender os significados atribuídos a essa vivência. Participaram desta pesquisa, selecionadas por meio da técnica bola de neve, cinco mulheres negras cisgênero entre 25 e 46 anos, todas com, no mínimo, formação universitária, quatro residentes no Rio Grande do Sul e uma no estado de São Paulo. Os instrumentos usados para coleta foram: a ficha de contato inicial e de dados sociodemográficos; e a entrevista semiestruturada, a qual teve por finalidade explorar e compreender a experiência de sofrer microagressões raciais na psicoterapia, realizada por meio eletrônico e gravada a partir da plataforma Google Meet. As perguntas exploratórias enfocavam (a) a trajetória pessoal da participante; (b) o motivo da procura por psicoterapia; (c) as expectativas iniciais sobre a psicoterapia; (d) os encontros; (e) a descrição das experiências de sofrer racismo na psicoterapia; (f) a descrição de como o processo da psicoterapia seguiu depois das agressões; (g) a descrição do término da relação; (h) a compreensão do processo e dos impactos da experiência na vida da participante; (i) a compreensão sobre o processo de psicoterapia, de forma geral, após à experiência de sofrer microagressões raciais pelo psicoterapeuta no contexto do tratamento; (j) os sentimentos gerados na participante ao relatar sua experiência.
Os dados foram examinados por meio da análise fenomenológico interpretativa (AFI) (Tombolato & Santos, 2020), que é ideográfica. A construção da essência do que os dados revelaram e a condensação dos dados foram alcançadas na elaboração do texto fenomenológico e a estrutura de significado foi obtida pelo entendimento do fenômeno descrito em termos de categorias de significado e tema (Tombolato & Santos, 2020). Desse modo, a partir das categorias de significado reveladas, foi possível extrair a estrutura da experiência vivida. Nesse processo, emergiram as categorias: amordaçamento, sufocamento, assenzalamento, envenenamento e abolição. Essas categorias, as quais descrevem os fenômenos paradoxalmente singulares e em comum da experiência de cada uma das entrevistadas, representaram o tema “(in)consciência negra: a experiência de pacientes negras na psicoterapia com psicoterapeutas brancas e brancos” – a essência do fenômeno vivido pelos sujeitos deste estudo.
A fim de preservar o sigilo sobre a identidade das participantes da pesquisa, as mulheres negras foram chamadas pelos nomes fictícios de Nanã, Iansã, Obá, Oxum e Yemanjá. Os nomes foram escolhidos com base nas yabás, entidades femininas da mitologia Yorubá dos orixás, elementos presentes na cultura negra brasileira (Prandi, 2001; Silva, 2021). De acordo com Silva (2021), as yabás representam para as mulheres negras um percurso de reencontro com suas referências ancestrais e míticas positivas, possibilitando a reelaboração de sua autoimagem e autoconceito para além dos estereótipos depreciativos que recaem sobre as mulheres negras na sociedade brasileira.
A motivação da pesquisadora principal com o tema parte de que ela é uma mulher negra, psicóloga, que atuou como psicoterapeuta antes de assumir o cargo de docente numa universidade pública e que, diversas vezes, escutou situações, dentro e fora do ambiente psicoterapêutico, de microagressões raciais. Ela também foi paciente de psicoterapeutas brancos e, das quatro experiências com psicólogas e psicólogos brancos, em três foi microagredida, o que culminou no encerramento do processo.
Participantes
Nanã é psicóloga e vive há aproximadamente quatro anos no Rio Grande do Sul. Nanã passou por três experiências terapêuticas, duas com psicólogas brancas. O motivo que levou Nanã a procurar psicoterapia foi um forte sentimento contínuo de angústia após um episódio de microagressão racial ocorrido quando resolveu se inscrever numa escola de formação e que culminou, segundo ela, num sintoma recorrente de despersonalização. Nanã então buscou psicoterapia por indicação de profissionais da área e relatou que, num primeiro momento, se sentiu acolhida por uma das psicólogas brancas – sentimento que mudou assim que surgiram as discussões sobre questões raciais:
Não tive nenhum problema a priori. Na verdade, eu entendo que toda a problemática se deu no momento em que eu comecei a levar as questões raciais. Até o momento em que eram questões muito pontuais da infância, dos meus pais, de relações outras, eu me sentia sempre muito acolhida, mas a partir do momento que eu comecei a denunciar mesmo o espaço da cidade enquanto que eu estava ali me sentindo segregada isso começou a mudar.
Iansã é assistente social e vive no Rio Grande do Sul. Iansã passou por cinco experiências terapêuticas, dos 19 aos 25 anos, todas com psicólogos brancos (um homem e quatro mulheres). O motivo que a levou a procurar psicoterapia pela primeira vez foi por problemas de rejeição numa relação amorosa. Iansã contou que o psicólogo branco, por pertencer a um grupo estigmatizado (de orientação sexual homoafetiva), sentiu-se à vontade para abordar as questões raciais. Entretanto, o psicoterapeuta afirmava que no Brasil todas as pessoas eram iguais e fazia acusações a Iansã, no sentido de indicar que ela era, enquanto mulher negra, racista:
[…] ‘tu está escolhendo uma pessoa por conta da cor da pele dela’ […] E aí ele falou assim: ‘tu está escolhendo a […] como tua orientadora só porque ela é negra, tu está sendo racista’.
Iansã está agora no quinto processo psicoterapêutico e contou que foi hipersexualizada em quatro das cinco experiências psicoterapêuticas, o que a está levando a pensar em abandonar também a terapia atual.
Obá é professora universitária e vive no Rio Grande do Sul. Passou por quatro experiências psicoterapêuticas, primeiro com um psicólogo branco e uma estagiária do curso de psicologia, orientada por ele, depois com uma psicóloga branca e posteriormente uma sessão com uma psicóloga negra. Contou que o motivo que a levou a procurar psicoterapia da primeira vez foi porque, no momento da vida universitária estava em crise pessoal, com diversos rompimentos significativos – com a família, com a igreja, com amigos de infância e adolescência. Ela relatou que tinha questões de rejeição com o próprio corpo – negro e gordo – e não se sentia romanticamente desejada, mas hipersexualizada. Na primeira experiência, Obá contou que foi ajudada, mas que as questões raciais nunca foram abordadas e hoje ela percebe isso com outro olhar:
Hoje eu consigo fazer uma releitura que a questão racial nunca foi… dois anos de terapia e a questão racial nunca foi pauta pra isso.
Oxum é professora universitária e vive no estado de São Paulo. Ela passou por duas experiências terapêuticas, uma delas com uma psicóloga branca, em que ocorreram situações de racismo. Descreveu que o motivo que a levou a procurar psicoterapia foi porque estava em crise existencial causada por experiências de racismo, problemas no trabalho e um relacionamento abusivo. Também relatou que estava em crise espiritual, porque começou a questionar os dogmas religiosos de sua fé cristã.
Oxum narrou que a psicóloga naturalizava o racismo, descrevendo o preconceito como algo de impacto insignificante na vida de seus alvos. Contou, ainda, que a psicóloga, cristã, a acusava de estar cometendo “atos pecaminosos”, como deixar de ir à missa e procurar “ocultismo”.
Yemanjá é médica e vive no Rio Grande do Sul. Yemanjá passou por uma experiência psicoterapêutica na adolescência com uma psicóloga branca e está agora em tratamento com outra psicoterapeuta branca. Ao todo, ela relembrou ter estado em psicoterapia, entre idas e vindas, por 29 anos, por motivos variados.
Yemanjá buscou a segunda psicóloga por indicação de uma pessoa de seu convívio íntimo. Na ocasião, Yemanjá relatou estar passando pelo término de um relacionamento abusivo. Assim, Yemanjá começou uma relação psicoterapêutica que já dura, entre términos e recomeços, de 15 a 18 anos. Atualmente, ela intensificou as sessões porque está se divorciando. Durante esses períodos, nunca tinha surgido o tema das questões raciais de forma aprofundada nas sessões, segundo seu relato. Mas, com a ruptura do vínculo com o marido, que é um homem branco, tais temas começaram a emergir e Yemanjá percebeu a psicoterapeuta despreparada para lidar com eles. Yemanjá relatou que a psicoterapeuta transfere o trabalho de procurar leituras para aperfeiçoar seu trabalho de escuta em questões raciais na relação psicoterapêutica das duas para ela, paciente:
Ela lê, já me pediu bibliografias, eu já indiquei para ela algumas coisas… eu vejo que ela se esforça, mas eu ainda não me sinto à vontade […] ah, eu me sinto mal. Tenho vontade de sei lá, eu sou meio… sabe aqueles tatu bola que tu encosta e fecha? Eu sinto que cada vez que ela faz isso me afasta um pouquinho mais, me fecha um pouquinho mais.
Ela revelou que, diante do sentimento de não ser compreendida pela psicoterapeuta em seu sofrimento decorrente de ser uma mulher negra vitimada pelo racismo, acaba compartilhando suas questões com uma amiga, transferindo assim o conteúdo racial, que poderia ser abordado no processo psicoterapêutico, para outras relações com mulheres que repartem os mesmos sofrimentos.
Discussão e resultados
Foi possível observar nas entrevistas que há na relação psicoterapêutica o atravessamento pela lógica da violência escravagista, quando a díade é formada por paciente negra e psicoterapeutas brancos. Isso aparentemente se dá porque a escravidão, a partir do evento sócio-histórico da escravização negra, perpetua-se no imaginário coletivo não como um fenômeno temporal e espacial, mas como uma dinâmica relacional que ainda persiste na sociedade e determina para indivíduos negros uma representação inconsciente objetificante (Kilomba, 2020; Wilderson III, 2021).
Quanto ao arcabouço teórico utilizado para interpretar categorias de significado reveladas nas entrevistas, dialogou-se com as teorias decoloniais (Reis & Andrade, 2018) e as teorias críticas da raça (Crenshaw et al., 1995), com maior ênfase nos estudos referentes a microagressões e significações do racismo. A razão para essa escolha se assenta sobre o fato de que as epistemologias comumente escolhidas para explicar os fenômenos revelam a história social dominante, que exclui os episódios de outras raças e não os legitima na comunidade de pesquisa convencional.
Desse modo, porque a sociedade ainda conserva em seu imaginário coletivo traços do escravismo, ainda permeia o imaginário dos psicoterapeutas brancos a ideia do negro como um objeto abjeto. Isso explica a agressividade direcionada contra o corpo negro (Nogueira, 1998), bem como dificulta a tomada de consciência sobre o conteúdo violento dessa posição (Owen et al., 2018).
A partir da discussão teórica que identifica a escravização como um fenômeno ontológico e psíquico, foram identificadas cinco categorias de significados: (1) Amordaçamento; (2) Sufocamento; (3) Assenzalamento; (4) Envenenamento; e (5) Abolição, as quais serão explicadas adiante. Essas categorias formaram a estrutura do tema fenomenológico “(in)consciência negra: a experiência de pacientes negras na psicoterapia com psicoterapeutas brancas e brancos”.
Amordaçamento
O amordaçamento do sujeito enquanto ato ou efeito de amordaçar (Dicio, 2009-2025), de colocar a máscara de flandres, tipo de mordaça que era utilizada para impedir a ingestão de bebidas e alimentos, bem como para obstar o suicídio por autoenvenenamento (Calazans & Bastos, 2010; Santos, 2013), é substituído pela proibição de falar ou de emitir opinião sobre sua própria condição de sofrimento enquanto assujeitado e objetificado dentro da estrutura social racista. Isso ocorre a partir de mensagens diretas que remetem à negação do racismo, como “isso não existe e, portanto, não temos por que falar nesse assunto” ou indiretas, como evitar criar uma situação de acolhimento e continência psíquica para que o sujeito negro fale de sua condição de estigmatizado e discriminado devido à raça.
O amordaçamento poderia ser classificado, a partir da taxonomia de Sue et al. (2007), como uma forma de microinvalidação do sofrimento das pessoas racializadas. É isso que as yabás explicitam sobre a relação com seus psicólogos, quando relatam serem amordaçadas para não tocar no assunto, a partir da negação do racismo, conforme se observa nas falas ilustrativas de Nanã e Oxum:
Na verdade, eu entendo que toda a problemática se deu no momento em que eu comecei a levar as questões raciais. Até o momento em que eram questões muito pontuais da infância, dos meus pais, de relações outras, eu me sentia sempre muito acolhida, mas a partir do momento que eu comecei a denunciar mesmo o espaço da cidade enquanto que eu estava ali me sentindo segregada, isso começou a mudar. (Nanã, entrevista piloto)
Quando a questão racial surgiu, ela ficou totalmente sem paciência, parecia que ela queria passar batido, ‘deixa eu falar!’, já vou resolver aqui e não quero mais falar disso e vamos para o próximo assunto. […] Aí parece que até o olhar dela mudou. Parecia que eu estava vendo o olhar de uma senhora de engenho com a sua escravizada. Da gente não poder falar e ficar ali amarrado, preso, tipo um criado mudo, literalmente. (Oxum)
É sabido que persevera um grande incômodo diante do tema do racismo no Brasil, que constitui, portanto, um “assunto proibido”, um tabu, em prol da manutenção da falsa convivência cordial entre as raças (Reis, 2019). Isso se reproduz também no contexto da psicoterapia: a denúncia do sofrimento decorrente dele é obstada – o que mantém as tensões raciais da relação terapêutica que se estabelece, dentro e para além do contexto da psicoterapia, com aparência de cordiais e apaziguadas para o psicoterapeuta. A ideia transmitida é a de que se pode falar de tudo, menos de racismo.
Sufocamento
O sufocamento, como ato concreto ou efeito de sufocar algo ou alguém, ou como ato simbólico de restringir a liberdade, de reprimir ou censurar e silenciar (Dicio, 2009-2025), era a punição dada à insurreição pelo escravizado “rebelde” (aqueles considerados insurgentes contra a escravidão, revoltosos e homicidas de senhores e seus protegidos), com a morte por sufocação mediante enforcamento, na época do Brasil Império (Scherer Jr., 2013). O sufocamento é reeditado hodiernamente na medida em que, negado o racismo pelo sujeito branco (nesse sentido, a re-negação), este “sufoca” a pessoa negra a fim de que ela permaneça em silêncio sobre sua condição de desumanizada e violentada – o que ocorre, portanto, quando a proibição de falar sobre o “assunto proibido” é desobedecida. Ele poderia ser classificado como uma forma de microataque à pessoa negra (Sue et al., 2007; Wong et al., 2014), uma vez que seriam como um reforço, ainda mais severo e com conteúdo mais punitivo, à microinvalidação pelo amordaçamento.
Assim, não havendo sucesso no amordaçamento do Outro (esse que se opõe ao sujeito), dá-se a “passagem ao ato discreta”, ou seja, uma resposta definitiva à demanda asfixiante do Outro (Calazans & Bastos, 2010). Desse modo, o sujeito que amordaça também se “asfixia” pela própria angústia gerada com a resistência do amordaçado e, por meio da heteroagressão por sufocamento, efetua a passagem ao ato como forma de exigir uma separação de caráter resolutivo (Calazans & Bastos, 2010), demonstrando que há no racismo um caráter dinâmico que consiste em delinear e rejeitar, para o racista, a diferença e internalizar as representações do eu e do outro no mundo interno do sujeito via identificação projetiva – usando a negação e a onipotência como apoio ao senso de paranoia e significando que o sujeito se vê como bom e ao outro como ruim, perigoso e ameaçador (Thomas, 2008), o que justificaria o ato de sufocamento. No contexto da psicoterapia, na tentativa de afirmar sua insurreição à condição de estigmatizadas pela raça, as entrevistadas demonstraram se “insurgir” contra os psicoterapeutas, violando a proibição implícita de falar sobre o “assunto proibido”. Dessa vez, então, na tentativa de se reestabelecer o aparente equilíbrio da relação e repactuar o cruel acordo de silêncio da branquitude – a qual é conceituada como um modelo de comportamento social inserido numa estrutura de poder e posta como neutra, não refletida, mas mantenedora dos privilégios sociais da vida cotidiana do ser branco (Meireles et al., 2019) – sobre o racismo, os psicoterapeutas sufocaram as pacientes, Ao efetuar a “passagem ao ato discreta”, não há o reconhecimento da existência do Outro; o sair de cena a partir do ato de retirar o Outro da cena, de forma discreta, com efeito de pacificação definitiva (Calazans & Bastos, 2010). A passagem ao ato discreta é demonstrada pelas pacientes Nanã e Oxum na forma de gestos de aperto no pescoço quando elas insistiam em trazer à tona, ao consciente, o que “não pode” ser discutido – reprimindo, censurando e oprimindo como alguém que, metaforicamente, pune o escravizado “falador” com a “forca”:
E eu levo essa cena para a análise e mais uma vez a resposta foi que não era tudo racismo e ela termina dizendo que eram questões do meu narcisismo primário que precisava ser trabalhado, que a gente se aprofundasse mais nessas questões. […] eu acho que é sufocamento, sabe? Hoje, dar conta de falar disso sem chorar é um alívio; porém, lembrar é como se algo tivesse aqui ó, te sufocando [faz gesto de aperto no pescoço]. (Nanã, entrevista piloto)
Cara, realmente será que é coisa da minha cabeça? Será que eu que estou louca? E aí eu fiquei alimentando esse sentimento dentro de mim, ela me colocou num lugar que o racista te coloca, você fica ali preso, sufocado, amarrado, e foi muito ruim, muito ruim de verdade. […] Dela falar, falar, falar e eu ficar sem conseguir falar e aquilo me sufocando [faz gesto de aperto no pescoço]. (Oxum)
Por conseguinte, o sufocamento apareceu nas entrevistas como a re-negação (repetição da negação) do racismo na forma de microagressões raciais, com os conteúdos de cegueira racial (reafirmação da proibição de falar do assunto que vem por meio de colocações como “eu não te enxergo como negro, mas como uma pessoa”), mito da democracia racial (reafirmação que o racismo não existe e que “somos todos iguais”) e identificação excessiva (invalidação da dor e do sofrimento decorrentes do estigma racial e das experiências de preconceito e discriminação mediante afirmações cujo conteúdo remete à ideia de “sua dor não me comove porque eu também sofro”) (Constantine, 2007). Nesse sentido, abrolharam também a confusão, a indecisão e a hesitação na relação psicoterapêutica nas díades paciente negra/psicoterapeuta branco. Se, num primeiro momento, há o acolhimento, a escuta, o estabelecimento de um vínculo e, no momento seguinte, a violência, sentimentos de ambivalência parecem emergir em relação ao psicoterapeuta – o que leva à hipótese de que o motivo pelo qual as entrevistadas tiveram dificuldade em confrontar diretamente as microagressões na psicoterapia era a própria dificuldade de identificação e nomeação do sentimento de desconforto que a agressão racial vinda do psicoterapeuta gerava.
Além disso, o “desequilíbrio” dessa relação – o psicoterapeuta na posição daquele que “dá” a ajuda e a paciente na posição de quem a recebe – pode ser outra explicação possível, pois a verticalidade da relação poderia reforçar os sentimentos inconscientes de subserviência e assujeitamento das pessoas negras, as quais também têm o racismo internalizado e estão inconscientemente assujeitadas “às mistificações da própria ideologia racista que as aprisionam e as definem” (Pyke, 2010). Nesse sentido, quatro das cinco entrevistadas abandonaram o processo sem fazer qualquer confrontamento aos psicoterapeutas, e uma ainda permanece em psicoterapia, apesar das microagressões, mas sem falar, na medida de sua vontade, sobre os episódios microagressivos.
Assenzalamento
No processo de escravização, uma das tecnologias de massificação e deterioração da identidade dos escravizados eram as senzalas, as quais eram espaços de habitação que delineavam as dimensões do poder expressas nesses espaços de moradia, construídas no Brasil tipicamente no formato em quadra, caracterizada pelo isolamento em relação ao espaço externo das fazendas (para evitar levantes), muros altos, entrada única e inexistência de janelas, para evitar fugas (Marquese, 2006). Nas senzalas, escravizados eram forçados a viver de forma insalubre, infectada e promíscua, amontoando-se mulheres, homens, crianças e idosos, com escassez de alimentação e, habitualmente, com o acorrentamento diário das pessoas, as quais só eram desacorrentadas para o trabalho (Souza, 2011).
Nesse processo de assenzalamento, a subjetividade negra era, portanto, apagada, o que levava o sujeito ao status de objeto, pela destituição de sua individualidade e pela identificação massificante. Dessa forma, as identidades negras se deterioravam, formando uma massa amorfa, um empilhado passivo de corpos à espera de ordens e de castigos (Azevedo, 2006).
Na relação psicoterapêutica, o assenzalamento, enquanto processo de destituição da individualidade da pessoa negra, apareceu nas falas das entrevistadas como uma categoria significante. É nessa perspectiva que Nanã é vista como simplória pela psicoterapeuta, Iansã é hipersexualizada por três de seus psicólogos, Oxum é acusada de “pecar” e não ter “pensamentos sadios” (atavismo), Yemanjá é questionada durante a sessão sobre “como faz para lavar o cabelo” (exotização) e Obá é definida como um “crédito” para sua raça, referida como “tu não és tão negra assim”.
O assenzalamento se reedita na forma do ato de subordinar o outro ao seu arbítrio e prepotência, de “amesquinhar” (Dicio, 2009-2025) com a retirada das características próprias ou únicas da pessoa negra, com o estabelecimento de pressupostos estereotipados sobre membros da raça negra. Assim, aparecem ideias massificantes como mulheres negras são mais “fogosas” (hipersexualização), pessoas negras gostam de “práticas de ocultismo” (atavismo), negros são mais “selvagens” (exóticos, menos asseados, mais emotivos e simplórios) (Constantine, 2007). Em contraste à estereotipação, quando se identifica algo na pessoa negra que destoe desse pensamento massificante, a tendência racista é atribuir ao indivíduo uma condição de status especial/exclusivo para a raça, tratando o sujeito que destoa da visão massificada como exceção no grupo (Constantine, 2007). O assenzalamento aparece, portanto, na forma de microinsultos racistas, os quais, frequentemente, não são reconhecidos como racistas pelos perpetradores, mas que transmitem mensagens desumanizantes e reforçam estigmas (Sue et al., 2007), como pode se depreender das falas de Iansã e Yemanjá:
E ela falou ‘vocês são quentes, o africano… até eu sou um pouco, porque a minha bisavó é negra, eu sou um pouco, mas o branco ele é todo tem que casar, tem que fazer sexo depois do casamento, o africano não é assim’. […] Aí ela me hipersexualizava muito, tanto que eu parei de falar para ela dos caras que eu me envolvia. (Iansã)
Ou aquelas perguntas chatas ‘mas tu lava teu cabelo? Como é para lavar?’ Igual o teu, entendeu? Meu cabelo é igual o teu, são coisas que ela não perguntaria para uma pessoa de cabelo liso. […] É que são coisas que tu já tem que responder tanto, pra tantas pessoas, que tu espera que pra tua terapeuta tu não precise. (Yemanjá)
Kilomba (2020) e Fanon (2020) elucidam que a construção do sujeito negro como o primitivo, o exótico-erótico, o “mais perto da natureza”, traz ao sujeito branco a excitação sexual, o que põe o indivíduo negro numa condição despersonalizada, como objeto da obsessão e do desejo, que cumpre um fetiche. Nesse sentido, o psicoterapeuta insiste que a paciente performize seu roteiro – como quando Nanã é indagada por que não usa batom, Iansã é incentivada a sair com homens, Oxum é inquisitoriada como “pecadora” e Yemanjá é questionada sobre como lava seus cabelos. O assenzalamento pode ser definido como um dos tentáculos do racismo internalizado, o qual confere, para pessoas brancas, a aceitação consciente e inconsciente de uma hierarquia racial em que os brancos são consistentemente classificados acima das pessoas negras (Pyke, 2010).
Envenenamento
O envenenamento, enquanto ato sofrer intoxicação aguda – que ocorre quando uma pessoa inala, tem contato direto pela pele ou ingere alguma substância tóxica ou em quantidade que a torna tóxica (Dicio, 2009-2025) –, era uma das formas de execução às quais um escravizado poderia ser condenado (Grinberg, 2018). Sintomas/sinais como vômitos e náuseas, dor no estômago, dificuldade para respirar, confusão mental, agitação motora, entre outros, são evidências dessa intoxicação (Romão & Vieira, 2012).
Hodiernamente, o envenenamento aparece socialmente reeditado na forma de microagressões, compostas de breves trocas diárias que enviam mensagens aviltantes a pessoas negras (Sue et al., 2007), a partir do uso de palavras, gestos e atitudes que envenenam, prejudicam, adoecem e liquidam as subjetividades negras – mas que, por serem trocas tão difundidas e automáticas, são naturalizadas como inofensivas (Sue et al., 2007).
Ao tratar a questão racial como um interdito e não reconhecer seus sentimentos em relação ao racismo, os psicoterapeutas projetaram seus afetos “negrofóbicos” (aversivos) e “negrofílicos” (de atração) nas entrevistadas, intoxicando suas mentes com esse conteúdo de aversão e/ou atração ao corpo negro. Os comportamentos e atitudes negrofóbicos e negrofílicos são descritos por Fanon (2020) como faces da mesma moeda, a qual remete para o inconsciente afetos considerados repugnantes para o sujeito, como o reconhecimento do racismo em si mesmo e da posição de algoz na negrofilia, e o reconhecimento da subjetividade e humanidade do outro no qual se projetam os aspectos repugnantes de si mesmo na negrofobia.
Nessa perspectiva, a psicoterapia, que deveria ser um processo de palavras e atitudes nutritivas e curativas da psique, acabou sendo para as yabás um lugar onde as palavras e as intervenções (ou falta delas) envenenaram – sobretudo porque as massivas microagressões nesse espaço acabam por desfazer a imagem da psicoterapia como um ambiente acolhedor e seguro, mas ao invés reforçam a ideia de que a relação terapêutica é mais um espaço de reprodução do racismo que essas pessoas já sofrem diariamente. O envenenamento das pacientes negras apareceu como iatrogenia (intoxicação pela suposta “cura”), na forma do uso de expressões racistas e de intervenções onde prepondera a idealização (como o mito da mulher negra forte, que tudo suporta) e minimização das questões culturais, bem como o oferecimento de ajuda insuficiente ou inadequada e/ou a prática de comportamentos negligentes (a falta de oferecimento de um “antídoto”).
É nesse sentido que Nanã, depois de uma sessão em que é agredida, decide se retirar do processo psicoterapêutico, passa a ter episódios constantes de vômito (sinal de envenenamento) e é abandonada pela psicoterapeuta, que nunca mais a procura (negrofobia); Iansã é envenenada pelas constantes faltas da psicóloga (negrofobia) e pelos aconselhamentos do psicólogo de que ela deveria aguentar situações extremas porque é uma mulher negra e mulheres negras são fortes (intoxicação pela idealização, negrofilia) (Constantine, 2007); Oxum é intoxicada (expressão que ela mesma usa) pelas crenças religiosas da psicoterapeuta católica (envenenamento pela demonização, negrofobia) (Santos, 2002); Yemanjá é contaminada pelas expressões racistas da psicoterapeuta (racismo em seu aspecto etnossemântico, negrofobia) (Menezes et al., 2020); Obá debate e “se debate” (se agita) contra a atitude da psicoterapeuta de não querer olhar para as questões culturais que perpassavam seu processo (negrofobia) (Constantine, 2007). Essa “intoxicação aguda” da mente das mulheres negras produz sintomas psicológicos e psicossomáticos, são como estar envenenada, como é possível observar da alocução de Iansã:
Lembro que vivia muito cansada e ele colocava muita força que tinha que aguentar, tu consegue, tu é forte. […] tomei uma dose cavalar não sei de que remédio e eu fiquei uns três dias ‘grogue’, nem comemorei meu aniversário, porque eu estava fazendo muita coisa e estava ali no psicólogo falando que deveria aguentar e não dizer não para ninguém […] Ele sempre ali dizendo ‘tu aguenta’. Ele podia dizer ‘não te cobra tanto, larga alguma dessas coisas’. Ficava dizendo ali ‘a mulher negra aguenta, vai que tu aguenta’. (Iansã)
pequenas microagressões e até palavras, expressões que eu já falei para ela em relação ao vocabulário: ‘denegrir, nuvem negra…’. E aí são pequenas microexpressões que acho que me cansam, me magoam. Ah, ‘hoje passou uma nuvem negra, teu passado é negro’, e eu já falei para elas várias vezes que é ruim tu associar a minha cor a coisas ruins, entendeu? (Yemanjá)
A psicoterapia tem como fundamento ético de sua prática a presença (concreta e simbólica) na relação com o outro, a escuta daquilo que não se pode dizer, o interesse profundo pelo conteúdo que é tido como proibido, repugnante ou descartável (Roudinesco & Plon, 1998). É o lugar da alteridade, da humanização e do reconhecimento. Quando o psicoterapeuta envenena a paciente, a psicoterapia se torna o lugar da “outridade”, conceito desenvolvido por Kilomba (2020) que se articula como “a personificação dos aspectos reprimidos na sociedade branca” (p. 78). Ou seja: o corpo negro das entrevistadas se tornou a tela em que se projetaram as repugnâncias do psicoterapeuta branco.
Abolição
Por último, como definidor da essência da experiência vivida individualmente pelas entrevistadas, mas fenomenologicamente compartilhada por elas, está a categoria abolição. Tal qual o cativo que esperava sua liberdade no processo de abolição, as expectativas iniciais das entrevistadas sobre a psicoterapia eram que ela fosse um processo de busca pela liberdade, conforme Oxum ilustra:
Eu achei que ela ia me colocar no lugar. Achei que ela ia me dar uma outra visão de mundo que eu não estava conseguindo enxergar. (Oxum)
Oxum delineia, de forma geral, que é possível inferir nas falas das yabás que, ao procurarem a psicoterapia, as entrevistadas clamaram por um processo de libertação dos grilhões pesados que as prendem às dores do racismo. Em última instância, a cura para elas é mais que recobrar a saúde, mas a condução a um lugar desconhecido: o lugar da liberdade que elas não conseguem enxergar.
Aliás, re-cobrar remete a um processo de voltar ao estado anterior de organização, depois de ter experienciado a desorganização. E, nessa esteira, Wilderson III (2021) elucida que não há, para o sujeito negro, um caminho de volta à um estado/tempo de organização, posto que o tempo da negritude é ontológico e nenhuma pessoa negra pode se reconhecer fora do tempo do racismo, pois esse tempo nunca existiu em suas vidas. Assim, o lugar de cura para o sujeito negro não é o lugar do re-estabelecimento, mas o lugar da libertação.
Quando Oxum diz que esperava ser “colocada no lugar”, evidencia-se o lugar do desejo de liberdade, de estar “fora” do outro lugar, que é a prisão desumanizante e objetificante do racismo. Entretanto, ela e as outras entrevistadas se depararam, nessa busca, não com a liberdade, mas com a abolição: uma falsa promessa de libertação que não cura e nem trata suas feridas – pelo contrário: provoca ainda mais dor, sofrimento e, quiçá, adoecimento.
A abolição, que se caracterizou pelo fim do direito de propriedade do sujeito branco sobre a pessoa negra, ou seja, o término da escravidão legal no Brasil, não foi acompanhada de políticas públicas e mudanças estruturais para a inclusão dos milhões de escravizados (Oliveira & Oliveira, 2019). O entendimento dominante era que, como o escravizado não possuía a propriedade de sua força de trabalho (e nem de sua individualidade) na economia escravagista, também não tinha direito a indenização e reparação pelos trabalhos forçados (Oliveira & Oliveira, 2019). Assim, o processo de abolição apenas conferiu um status jurídico de liberdade, mas não foi, de fato, um processo de humanização para o ex-escravizado, que lhe concedesse meios para uma libertação efetiva (Oliveira & Oliveira, 2019). A abolição foi, portanto, uma falsa promessa de liberdade.
A abolição, repetida na atualidade, aparece na forma de uma falsa liberdade para as pessoas negras. Vivemos num país onde persiste uma igualdade formal entre negros e brancos, mas, empiricamente, o que observamos são diferenças marcantes entre esses dois grupos (Almeida, 2018). Também poderíamos compreender a abolição como uma promessa de cuidado, reconhecimento, humanização e cura das dores do racismo – que, porém, não se cumpre, uma vez que o que se observa é o desconhecimento e o despreparo para lidar com as questões do racismo (Tavares et al., 2013) e, outrossim, a reprodução do racismo exatamente pelos sujeitos que ocupam profissionalmente a posição de oferecer cuidado, nos serviços públicos e privados de saúde (Kalckmann et al., 2007).
A abolição foi para os escravizados o que a experiência psicoterápica foi para as yabás: uma falsa promessa de liberdade. Seus relatos gerais evidenciam um processo de bastante dor e sofrimento na relação psicoterapêutica. Nesse sentido, elas trazem o que acham que é ideal/necessário na psicoterapia com sujeitos negros:
Vou atender um paciente negro, bom, bora lá estudar sobre as questões raciais. Não tem problema nenhum não querer trabalhar as questões étnico-raciais, ninguém é obrigado, mas fala, bom, ‘tu é uma paciente negra e eu não trabalho com as questões étnico-raciais’. Tá beleza, vou procurar outro, mas eu acho que deveria ter nos anúncios também isso. (Iansã)
A vontade que eu tinha era de achar alguém com uma consciência racial e que entendesse e ao mesmo tempo… […] que juntasse as duas coisas. […] Se a comunidade de psicólogos conseguisse entender, quem sabe os novos psicólogos negros formados conseguissem também entender, porque não adianta tu só formar em psicologia, ser negro e te formar, tu precisa mais que isso. (Yemanjá)
É possível inferir das falas das entrevistadas que todas creem que psicólogos, sobretudo brancos, não estão preparados para atender às suas demandas de sofrimento, principalmente porque têm pouca consciência racial, não se interessam em estudar o assunto e não olham para os próprios preconceitos. Tal resta também demonstrado em estudos prévios sobre o tema (Mazzula & Nadal, 2015; Owen et al., 2014, 20, 2018).
Ao contrário do que Iansã acredita, é necessário se ater ao fato de que a negação dos psicoterapeutas brancos em trabalhar com pessoas negras é não só uma faceta perversa do racismo, mas a própria reprodução do racismo implícito, que é de difícil identificação e pode se dissimular numa sutil (porém não menos violenta) afirmação: “eu não trabalho com questões étnico-raciais”. Não é raro que pessoas brancas dissimulem seus próprios sentimentos e intenções racistas na relação com pessoas negras; a maior parte das violências experimentadas por pessoas negras se dá de forma arguciosa, a partir de microagressões (Kilomba, 2020).
Isso torna ainda mais difícil para as pessoas negras reconhecerem e legitimarem os preconceitos e tratamentos discriminatórios sofridos, pois o “jogo de palavras doces e amargas não apenas dificulta a identificação do racismo, ele também é uma forma de reproduzir o racismo”, ou seja, a dificuldade de identificar o racismo é o próprio racismo em si mesmo (Kilomba, 2020). É nesse sentido também que Yemanjá demonstrou ter dificuldade em reconhecer a falta de profundidade da psicoterapeuta para olhar as questões raciais que lhe trazem sofrimento como uma forma de expressão, ainda que inconsciente para ambas, do racismo.
Conclusão
Foi possível observar sobre as atitudes dos psicoterapeutas relatadas pelas entrevistadas um conteúdo simbólico semelhante às técnicas de violência racial perpetradas contra os escravizados. Na prática psicoterapêutica, isso apareceu na forma de violência contra a paciente, que começa com a negação da existência do racismo e vai se sofisticando em formas mais sutis, implícitas e inconscientes – porém não menos alegoricamente agressivas do que as técnicas de violência usadas contra os escravizados para destituí-los de sua subjetividade. E é nesse sentido que emergiram as categorias de significado amordaçamento, sufocamento, assenzalamento, envenenamento e abolição na relação entre as entrevistadas negras e seus psicoterapeutas brancos.
Existe, portanto, uma inconsciência racial por parte de psicoterapeutas brancos que causa sofrimento e também adoecimento para os sujeitos negros. É necessária, portanto, a tomada de consciência sobre as questões raciais, bem como sobre o significado de ser um sujeito branco dentro de uma sociedade racializada. Desse modo, o processo de conscientização é um trabalho não apenas de aprimoramento profissional e formação pedagógica crítica para as questões raciais, mas uma compreensão da dimensão do impacto da violência racial no contexto de vida, visto que não se pode afastar a construção das subjetividades das condições materiais que emolduram a vida dos sujeitos e, nessa perspectiva, a história, a cultura, a linguagem e a psicologia são fatores constitutivos do sujeito-paciente, mas, também do sujeito-psicoterapeuta (o qual também tem preconceitos que o afetam e moldam sua subjetividade, e, por que não, suas “lentes” profissionais).











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