Introdução
Os processos de transmissão da vida psíquica têm se revelado como objeto de estudo relevante para a psicanálise de família ao possibilitar a investigação de novos saberes teóricos e a reorientação da prática clínica. A partir dessa perspectiva, a descoberta de uma gravidez demarca, antes mesmo do nascimento de um sujeito, o seu ingresso numa trama familiar. Ao refletir sobre as articulações entre a transmissão psíquica e família, Azevedo et al. (2015) afirmam que a origem de todo indivíduo é precedida por uma história familiar preexistente. Nessa lógica, a chegada de um novo sujeito ao arranjo familiar é atravessada por sua inscrição numa corrente geracional da qual ele é elo de transmissão. O sujeito apoia sua história no enredo familiar que o antecede, levando-o a uma existência dupla: uma, para servir às suas finalidades singulares, e a outra, como conexão que ele serve involuntariamente (Azevedo et al., 2016).
O bebê se torna herdeiro dos sonhos não realizados por seus pais, de modo que o sujeito necessita, em seu processo de subjetivação, assumir sua posição e apoderar-se do sentido do seu próprio desejo, a partir dos desejos de seus antecedentes (Correa, 2003). Azevedo et al. (2016) acrescentam que “o infante seria o depositário, o servidor e herdeiro dos sonhos e dos desejos não realizados dos pais” (p. 170).
De forma a preservar esse legado, a experiência emocional desse novo herdeiro sofre interferências das vivências afetivas de gerações anteriores, o que pode ser compreendido a partir da transferência, no plano subjetivo, dessa identidade singular presente em cada agrupamento familiar. De acordo com Abdala et al. (2013), o resultado desse processo de transmissão da vida psíquica é denominado de herança e pode ser constituída por conteúdos inter e transgeracionais, transmitidos de modo inconsciente e simultaneamente. A primeira herança manifesta-se “entre os sujeitos”, a partir de uma operação de ligações e transformações entre linhagens adjacentes, processo que abrange um espaço de metabolização do conteúdo herdado, com sentido para a próxima geração (Lemos & Neves, 2019). Esses conteúdos podem ser entendidos, segundo Kaës, como “aquilo que ampara e assegura as continuidades narcísicas, a manutenção dos vínculos intersubjetivos, a conservação das formas e dos processos de conservação e de complexidade da vida: ideais, mecanismos de defesa, identificações, certezas, dúvidas” (Kaës, citado por Eiguer, 1998a, p. 9).
Em contrapartida, a transmissão psíquica transgeracional se processa “através” dos sujeitos (Lemos & Neves, 2019). Isso ocorre porque ela comumente se manifesta no cerne dos laços parentais de forma negativa e traumática, pois o que se transmite é “preferencialmente o que não contém, aquilo que não se retém, aquilo que não se lembra, como a vergonha, a falta, a doença, o recalcamento, os objetos perdidos e ainda enlutados” (Kaës, citado por Eiguer, 1998a, p. 9). A atuação desses aspectos inconscientes, transmitidos por gerações e não elaborados, traduz-se por não ditos, tabus, pelo não pensado, pelo oculto, pelo segredo, pelo que é negado (Bertin & Passos, 2003). O conteúdo dessas heranças será transmitido com a chegada de novos descendentes, e Bertin e Passos (2003) argumentam que um dos materiais que podem compor a cadeia de transmissão psíquica são violências não vividas e não elaboradas, que ultrapassam diferentes gerações por se instituírem como elemento cristalizado que se repete pela ausência de inscrição subjetiva.
Essa repetição pode ser compreendida a partir das teorizações freudianas do texto “Repetir, recordar e elaborar”, de 1914, no qual, de acordo com o autor, o retorno do que outrora fora recalcado induz o sujeito à repetição: “repete-o, sem, naturalmente, saber o que está repetindo” (p. 94); há uma dificuldade de recordação instituída pela resistência (Freud, 1914/1990), o que dificultaria o processo de elaboração subjetiva desse cenário de violência intrafamiliar, possibilitando sua reiteração. Nesse sentido, tomada a violência como elemento transgeracional, não processado simbolicamente entre distintas gerações, estudos recentes compreendem-na como uma patologia conectada à herança (Azevedo, 2022). As investigações de Abdala et al. (2013) oferecem realce a isso num recorte particular da violência, ao articular a constituição do incesto (violência sexual intrafamiliar) como um sintoma e seu caráter transgeracional, por se repetir como um legado em distintas gerações.
Em “Totem e tabu” (1913/1974), Freud ilustra que a proibição do incesto na civilização estaria articulada ao mito da horda primeva. Neste, o pai violento e incestuoso, com receio de que seus filhos dominassem as mulheres do bando e tomassem o seu lugar, expulsa-os da horda. Os filhos se unem e decidem matá-lo e devorá-lo. Contudo, eles são posteriormente tomados por sentimentos de culpa e de ambivalência, com o que impedem a morte do pai, substituem-no pelo totem e renunciam aos seus desejos, proibindo o incesto (Freud, 1913/1974). Logo, a interdição do incesto representaria a inserção do indivíduo na cultura, na medida em que lhe permite a convivência social com os pares, por meio da renúncia a suas pulsões sexuais e agressivas.
Dada tal proibição, porém, não é incomum que a ocorrência de relações incestuosas não seja revelada, e elas vigorem por tempos em segredo, o que fortalece a transgeracionalidade desse fenômeno. Azevedo et al. (2015) diferenciam duas categorias de segredo que perpassam as gerações: o não dito (proibido de dizer) e o inominável. A primeira envolve uma interdição, associada à vergonha e à culpa. Essa modalidade repete-se entre as gerações posteriores sob a forma de um material recalcado, que pode retornar. Já a segunda categoria, o inominável, dispõe-se fora do registro inscrito; algo não foi pronunciado pela ausência de palavras. Com efeito, tais segredos circulam na ancestralidade como indizível, foracluído, sem que um trabalho psíquico de elaboração tenha sido possibilitado.
Os vínculos incestuosos, nesse cenário de segredo, emergem e são denunciados, muitas vezes, na revelação de gravidezes incestuosas. Vale destacar que, quando gravidezes desse tipo são resultado da violência cometida contra crianças, adolescentes ou mulheres adultas, a legislação brasileira prevê o aborto legal como um dos destinos possíveis para esse impasse. De acordo com os arts. 124 a 128 do Código Penal Brasileiro (Brasil, 1940), a gravidez resultante de estupro pode ser interrompida legalmente, desde que o aborto seja precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal. Toma relevo, nesse contexto, as possíveis intersecções entre o direito, a medicina e a psicanálise: o cumprimento da lei em termos jurídicos – por meio da execução do aborto legal, procedimento médico – pode-se operar como mecanismo que oportuniza o processamento simbólico da lei psicanalítica, permitindo que a gravidez incestuosa não se configure como herança não metabolizada, que se torna reincidente e extrapola gerações sem ser representada pelos membros da família.
Contrariamente, cogita-se que a não interrupção de gravidezes decorrentes de incesto oferece maior possibilidade para que as modalidades de herança transgeracional que compõem a identidade familiar sejam transmitidas pelo nascimento de um novo descendente, dificultando que ele metabolize esses conteúdos, tornando-o prisioneiro de um futuro atravessado por um passado ancestral. Diante dessas considerações, este estudo envolve uma análise sobre a repetição de gravidezes incestuosas não interrompidas em distintas gerações de uma mesma família. Especificamente, a partir da análise dos registros documentais do atendimento a uma adolescente numa instituição pública de saúde, buscou-se refletir a respeito das articulações possíveis entre a gravidez na adolescência e o incesto como legado familiar.
Método
O presente estudo abrange a análise documental dos prontuários de atendimentos de Najla1, uma adolescente de 14 anos, vítima de incesto (violência sexual intrafamiliar), que foi atendida no pronto-socorro (PS) de um hospital universitário e depois encaminhada para um ambulatório de atenção a vítimas de violência sexual, composto por uma equipe interdisciplinar. De acordo com Rosa (2004), a compreensão psicanalítica dos fenômenos sociais pode ser aplicada em contextos que extrapolam a clínica tradicional justamente porque “o inconsciente está presente como determinante nas mais variadas manifestações culturais e sociais. O sujeito do inconsciente está presente em todo enunciado, recortando qualquer discurso pela enunciação que o transcende” (p. 341-342).
Partindo da psicanálise, a escolha da participante da pesquisa se deu por meio da leitura de prontuários de adolescentes que sofreram violência sexual intrafamiliar e deram continuidade à gravidez, e que foram atendidas nesse serviço público. Por se tratar de estudo com seres humanos, o projeto de pesquisa foi submetido à avaliação pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e aprovado sob o nº 3.679.423.
Foi realizado contato telefônico com a adolescente e sua responsável, e foi marcado um encontro presencial único (dado o contexto da pandemia da Covid-19 e as medidas de segurança contra a contaminação e o isolamento social na época), a fim de que a participante e sua responsável fossem orientadas a respeito da pesquisa. Assim, depois de concordarem em participar, Najla e sua responsável assinaram os documentos necessários, a saber: o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para Responsável Legal por menor de 18 anos e o Termo de Assentimento para o Menor entre 12 e 18 anos incompletos.
Resultados e discussão
A partir da leitura dos prontuários de atendimento, foi possível construir uma narrativa sobre a passagem de Najla e de sua família pelo pronto-socorro (PS) do hospital e pelo ambulatório. O período de análise dos prontuários da adolescente envolveu desde o primeiro acesso ao hospital até a data de seu último atendimento na instituição. O histórico dos registros de atendimentos abrangeu um período de 15 meses.
Nos serviços, como prevê a Lei 12.845 (Brasil, 2013), que dispõe sobre o atendimento a pessoas em situação de violência sexual, o registro dos prontuários reflete a composição multidisciplinar da equipe, visto que são preenchidos por diferentes profissionais responsáveis pelo acolhimento das vítimas. Nesse sentido, os registros podem ter sido escritos por médicas ginecologistas, psicólogos(as), assistentes sociais, enfermeiros(as), internos(as) e residentes de medicina, além de estudantes de psicologia. Preferiu-se, em alguns momentos, a partir do relato dos prontuários, manter a fala (entre aspas) dos profissionais que acompanharam a adolescente, de forma a preservar com maior autenticidade o conteúdo dos registros.
Encontro com o serviço: o descortinamento de relações incestuosas entre gerações
Os relatos dos prontuários iniciaram-se no mês de fevereiro de 2019. Najla (14 anos), estudante, acompanhada de sua mãe, Cecília (34 anos), cuidadora de idosos, solicita atendimento no PS do hospital com queixas de dor abdominal intensa. A adolescente residia na zona rural de uma cidade vizinha junto com a mãe, o pai e mais três irmãos – uma irmã mais velha e dois mais novos que Najla. Após realização de consulta e exames, foi constatado que a jovem estava grávida, com aproximadamente 20 semanas. Em acolhimento, Najla relatou que desde os 10 anos era vítima de violência sexual cometida por seu pai, Olavo. Até aquele momento, a jovem nunca havia vivenciado outras experiências sexuais. Na ocasião, ela revelou que seu pai também violentava sua irmã mais velha, de 16 anos, desde que esta completara 10 anos.
Antes de ter contado à equipe do hospital sobre as violências que sofria, Najla as havia relatado previamente para seu namorado na época. Pelos registros documentais, verifica-se que esse primeiro relato não contribuiu para que as situações de violência fossem de fato reveladas e cessadas. Pode-se considerar que o descortinamento do incesto aconteceu durante o acolhimento da equipe interdisciplinar que atendeu a jovem e sua mãe.
Antes disso, parece não ter havido uma intervenção efetiva a respeito das circunstâncias de violência vividas por Najla e sua irmã. Com a revelação da gravidez, tornou-se desnudo aquilo que anteriormente pertencia à ordem do inominável nessa família. Delatou-se, pois, a violação de uma das regras mais primitivas de toda a humanidade, a do tabu do incesto, a transgressão da qual constitui o “crime dos crimes” (Cyrulnyk, 1994, p. 27, citado em Cromberg, 2001, p. 30).
A confidência de Najla apontou que os episódios de violência ocorriam de uma a duas vezes por semana, em horários nos quais a mãe não estava em casa. “O fato era desconhecido pela mãe e pelos irmãos mais novos” (relato da residente de medicina). Ainda que as circunstâncias de violência não fossem (re)conhecidas por todos os componentes familiares, pode-se pensar que o agrupamento familiar envolvia a dinâmica incestuosa da qual todos faziam parte. A anunciação das violações sofridas por Najla e sua irmã parece evidenciar o que Gobbetti (2000) nomeia como vínculo com caráter incestuoso e entendido como um sintoma familiar. De forma semelhante, Faiman (2003) compreende que a violência sexual intrafamiliar se refere ao funcionamento familiar como um todo, e não somente ao par vítima-agressor.
Nessa perspectiva, Gobbetti (2000) entende que a interdição do incesto viabiliza aos sujeitos o acesso ao mundo simbólico, bem como à capacidade de reconhecer limites e regras. No entanto, a descoberta da gravidez de Najla sinalizava que, na família, a interdição do incesto não havia sido efetivada. Ao não estabelecer limites às pulsões sexuais, observa-se dificuldade de diferenciação de papéis, isto é, a posição que cada membro ocupa no arranjo familiar. Pinheiro (2015) afirma que:
É a repressão dos desejos incestuosos que possibilitará o reconhecimento das funções do pai e da mãe, fundamentais para o desenvolvimento da identidade familiar e social, e é essa repressão que vai mostrar para o sujeito que existem limites para a realização de seus desejos, para sua conduta e que vai balizar o reconhecimento de si próprio. (Pinheiro, 2015, p. 21)
A irrupção da gravidez de Najla evidencia uma falha na limitação dos desejos incestuosos familiares, com precária simbolização e a constituição de um arranjo familiar em que transparece contínua inversão de papéis e funções afetivas. Com o prosseguimento dos atendimentos, foi revelado o caráter ancestral do incesto no campo familiar, presente em diferentes gerações. Após descobrir que Najla estava grávida do pai, Cecília relata à equipe que seu marido é filho de uma relação incestuosa entre a mãe dele, Jaci, perpetrada pelo pai-avô de Olavo. Logo, toma relevo que Jaci, que é tia-avó de Najla, também ficou grávida de Olavo com a mesma idade em que a adolescente engravidou dele.
Segundo Lacan (1938/2002), a função paterna ocupa papel determinante na relação da mãe com a criança e detém poder normativo e organizador de transmitir ao sujeito a cultura, a ética e a humanidade, ao instaurar a repressão dos instintos e a estruturação das leis familiares. Concebe-se que, entre essas leis, a proibição do incesto está inclusa. Nesse sentido, pressupõe-se que tanto Olavo quanto seu pai-avô promovem a inversão da lógica da função paterna, pois materializam o incesto na trama familiar. As figuras que representariam a renúncia aos desejos incestuosos pelo estabelecimento de limites a eles, contrariamente, subvertem essa lógica ao atuá-los.
As heranças transgeracionais e a repetição incestuosa
Com a gravidez de Najla, assim como aconteceu com sua avó quando ficou grávida de Olavo, a história se repetiu, evidenciando a trama entrelaçada por um passado que se reedita no presente. Com efeito, esse acontecimento remete aos estudos de Cromberg (2001), ao afirmar que há casos de famílias com dinâmicas incestuosas em que a violência é reincidente entre as gerações.
A transgressão do tabu do incesto na família de Najla parece se configurar como um legado. Pela precariedade da simbolização que se mostra presente na história desse grupo, pode-se pensar que, no processo de transmissão da vida psíquica, a repetição de relações incestuosas e de gravidezes parecem se configurar como parte do conteúdo herdado pelos membros desse agrupamento familiar em sucessivas linhagens.
Pelo surgimento da gravidez de Najla, que é a segunda decorrente de incesto na família, deduz-se que a violência sofrida por Jaci pode ter sido uma experiência traumática, que não foi metabolizada no espaço interpsíquico familiar, de forma a operar como uma herança transgeracional, oportunizando a repetição dessa vivência em outras gerações. Se a transmissão de conteúdos e experiências entre diferentes linhagens sofre entraves, o conteúdo traumático não elaborado, não simbolizado, é transmitido em estado bruto para a próxima geração (Garcia et al., 2010). Nessa lógica, compreende-se o incesto e as gravidezes decorrentes dessa violência como um legado transgeracional, modalidade de transmissão psíquica que induz à denegação, à clivagem e à repetição, e se opera na inscrição da presença ausente, na medida em que não houve como elaborar ou simbolizar aquilo que pertence ao sujeito e aquilo que ele herdou de seus ascendentes, isto é, estabelecer diferenças entre as gerações (Garcia et al., 2010).
Ao longo dos atendimentos ambulatoriais, Najla relata que acreditava que “o abuso é genético, pois o pai é fruto de um abuso” (relato da médica ginecologista). Essa falha no processo de transmissão psíquica, evidenciando a transgeracionalidade, pode ser apoiada a partir de Rosa (2001), ao assinalar a existência de famílias que não conseguem enfrentar circunstâncias de sofrimento, tampouco significar e elaborar as vivências traumáticas e não revelar experiências dolorosas, negando elementos marcantes de sua história, transpassando-os de forma oculta aos seus componentes.
Outro aspecto que aponta dificuldades na elaboração de tais vivências é a duração das violações perpetradas por Olavo contra Najla e sua irmã, que envolveram anos em segredo. Os registros evidenciam que, mesmo sabendo o que acontecia uma com a outra, Najla e sua irmã não conversavam a respeito das violências, apesar de Najla já ter visto “o pai abusando de sua irmã mais velha anteriormente” (relato da médica ginecologista).
Complementarmente, Najla tinha dificuldades em relatar a violência que vivia para sua mãe, pois sentia medo de suas reações e imaginava que ela não acreditaria, além de temer opiniões de seus familiares e das pessoas de sua cidade natal com o descortinamento da violência. Todas essas passagens deixavam transparecer a existência de algo que dificultava o desvelamento das situações de sofrimento que as adolescentes viviam. De acordo com Azevedo et al. (2015), a não transformação dessas histórias, que perpassam gerações sem serem enunciadas, operam na forma de traços sem lembranças e esvaziadas de significação, mantidas cristalizadas numa pré-história geracional.
De acordo com Faimberg (2005), na transmissão psíquica transgeracional, o espaço de constituição da subjetividade própria do sujeito encontra-se aprisionado pelo discurso e pela vivência da geração anterior, visto que ele é bloqueado por tais experiências. A apropriação e intrusão desses conteúdos ocupam o espaço psíquico do sujeito, alienando-o na subjetividade do outro. Conforme Garcia et al. (2010), a vivência traumática não simbolizada “fica enquisitada, encriptada no mundo do sujeito, paralisando-o e condenando-o […] à repetição” (p. 77).
Desvelar gestacional: impasses ao aborto legal
Neste ponto, vale destacar os contextos que antecederam o processo de decisão pela continuidade ou não da gravidez, demonstradas pelos registros documentais. Desde o princípio da descoberta da gestação de Najla, a conduta da equipe multidisciplinar que participou dos atendimentos dela e de sua mãe pautou-se no pressuposto de que a verdade da violência sexual sofrida dependia apenas do discurso da vítima, o que dispensa a lavração do Boletim de Ocorrência como condição indispensável para o acolhimento da jovem, o que é garantido pelas atualizações de 2005 e 2012 ao Código Penal Brasileiro (Brasil, 2005, 2012).
Durante o acolhimento multidisciplinar oferecido, algo que sobressaiu com frequência nos prontuários foi a expressiva reação de negação de Cecília frente ao desvelar das violências sofridas pelas filhas. Os registros documentais evidenciam que Cecília “apresenta crises agudas de estresse e ansiedade” (relato da psicóloga). Ao saber das violações sofridas pelas filhas, surpresa e chorando, Cecília enuncia que “a relação entre pai e filha era normal, e que não suspeitava do que acontecia” (relato da médica ginecologista). Cecília chega a pensar na possibilidade de Najla ter tido experiências sexuais com outros homens, já que a jovem namorava um rapaz de 16 anos há quatro meses, mas logo descarta essa possibilidade, alegando que a filha nunca ficou sozinha com ele.
Ainda que o estado de surpresa de Cecília pudesse gerar sentimentos de ambivalência diante da narrativa de violência sofrida pelas filhas por parte do marido, o cuidado e o tratamento oferecido a Najla e à sua mãe pautaram-se no acolhimento humanizado e na escuta atenta, sensível, empática e sem preconceitos da equipe, como preconizam tanto a Norma Técnica de Atenção humanizada ao abortamento (MS-SAS, 2005) quanto a Norma Técnica de Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes (MS-SAS, 2012). Como prevê esse segundo documento, além do acolhimento, é direito da jovem e sua responsável também serem orientadas a respeito de todos os procedimentos necessários nessa situação. Conforme a Lei 12.845 (Brasil, 2013), em seu art. 3º, item 3, Najla e sua família foram esclarecidas sobre o registro de ocorrência e os demais processos legais para encaminhamento aos órgãos responsáveis, com o intuito de diminuir a impunidade da violência sofrida pelas filhas.
No entanto, Cecília, em estado de desorganização afetiva, acreditava que seu marido não sabia da gravidez da filha, nem mesmo da revelação de Najla. Os registros indicam que “a mãe da paciente se manteve tensa com a revelação, chorosa e muito resistente a fazer o Boletim de Ocorrência, temendo pelas reações do pai da paciente” (relato da assistente social). Cecília ficou receosa pela segurança dos outros três filhos que se encontravam com o marido em casa, em outro município, e esboçava medo de voltar para sua cidade e sofrer retaliações.
Além do incentivo à denúncia previsto na referida lei, a Norma Técnica de Atenção humanizada ao abortamento (MS-SAS, 2005) garante que Najla e sua genitora fossem informadas de todas as alternativas possíveis diante da gravidez decorrente de violência sexual. A partir das circunstâncias violentas da gravidez, o acesso ao aborto legal configurou-se como uma das possibilidades de atuação da equipe, como previsto pelo art. 128 do Código Penal Brasileiro (Brasil, 1940). Segundo essa lei, não é passível de punição a prática de aborto realizado por médico em caso de violência sexual, se consentido pela gestante ou por sua representante legal.
Os prontuários indicaram que foram realizadas “orientações sobre possibilidade de interrupção legal da gravidez, manutenção da gravidez e encaminhamento para adoção”, além das “orientações quanto aos riscos gestacionais” (relato da médica ginecologista). Com efeito, o posicionamento da equipe multidisciplinar frente ao desvelar gestacional salienta a importância do aborto legal em condições seguras, em detrimento da alarmante realidade brasileira de nascidos vivos de meninas menores do que 14 anos (MS-SVSA, 2022) e do risco aumentado de morte materna nessa faixa etária (Conde-Agudelo et al., 2005).
Ao ser informada das alternativas frente à violação que sofreu, Najla de início demonstrou desejo de interromper a gravidez. Os prontuários indicam que “quando questionada sobre seus sentimentos, relata desejo em realizar o abortamento” (relato da psicóloga). A adolescente chegou a ingerir substâncias potencialmente abortivas em casa; foram as dores abdominais intensas causadas por essas substâncias que a levaram a procurar o hospital. A adolescente também havia pesquisado previamente o preço de remédios abortivos.
Conforme a Norma Técnica de Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes (MS-SAS, 2012), a presença dos responsáveis nesse contexto torna-se dispensável para o consentimento da realização do aborto legal, haja vista que tal procedimento justifica-se em função de uma violência sexual. De acordo com essa norma, caso haja desejo da adolescente de não interromper a gestação e um posicionamento contrário dos responsáveis ao desejarem o aborto, deve-se respeitar o direito de opção da jovem, sem realizar qualquer direcionamento que se oponha a isso. Nas situações em que a adolescente deseje o aborto e a família não, e estes estejam envolvidos na violência, deve-se buscar a via judicial, por meio do Conselho Tutelar ou Promotoria de Justiça da Infância e da Juventude, os quais poderão solucionar o impasse.
Assim, fica claro que no mesmo dia em que chegaram ao PS, Najla e sua mãe concordaram com a interrupção da gravidez e até chegaram a assinar os termos necessários. Em cumprimento aos requisitos da Portaria 1.508 (Ministério da Saúde, 2005), referente ao procedimento de justificação e autorização do aborto legal no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), a adolescente e sua mãe assinaram cinco termos, a saber: Termo de consentimento livre e esclarecido, Termo de responsabilidade, Termo de relato circunstanciado, Parecer técnico e Termo de aprovação de procedimento de interrupção de gravidez.
Entretanto, no mesmo dia, quase seis horas depois, Najla apresentou dúvida em relação à interrupção da gestação. Ela manifestou questionamentos relacionados ao exame de DNA para comprovação da identidade do pai-agressor. Na ocasião, Najla foi informada que poderia realizar a solicitação da comprovação de DNA após o procedimento, a partir do material biológico do feto abortado. Caso escolhesse pela manutenção da gravidez, seria necessário aguardar o nascimento para a coleta do material genético, haja vista os riscos do exame para o feto durante a gravidez, o que fica claro pelo seguinte trecho: “Esclarecemos sobre a possibilidade de encaminhar material genético para exame de DNA após nascimento, se opção pela manutenção da gravidez” (relato da médica ginecologista).
Em seguida, apesar de a jovem ter expresso o desejo de não manter a gravidez ao saber de seus direitos de interrupção legal no início do atendimento, Najla e Cecília demonstram tendência a mudar de opinião em relação à continuidade da gestação. Antes de decidir, Najla e sua mãe preferiram refletir e seguiram para a casa de Jaci, avó da adolescente. Como indicam os prontuários: “paciente prefere aguardar até amanhã pela manhã para sua decisão, que será apoiada pela mãe” (relato da médica ginecologista).
Ao retornar ao serviço no dia seguinte, Najla explicita o desejo de dar continuidade à gestação: “Paciente deseja manter a gestação, e, portanto, não deseja a interrupção. Sente que tem vínculo com o feto e que vai conseguir conciliar com os estudos no futuro, sem prejuízos para a vida. Acredita que a criança não tem culpa e por isso não deve interferir no curso normal da gestação. A mãe e a avó cientes e aprovam a decisão da paciente” (relato da médica ginecologista).
No entanto, mesmo após a decisão pela não interrupção da gravidez, os relatos indicam que Cecília ainda não acreditava que a adolescente e sua irmã tivessem sido violentadas por seu marido. Nesse contexto, o sofrimento de Cecília parece evidente. Enfrentar e suportar a revelação da violência e vivenciar sentimentos ambíguos em relação às filhas, ao marido e a si mesma parecia uma exigência insuportável. Araújo (2002) justifica as reações maternas que podem surgir nessas situações ao afirmar que a mãe:
Também vive uma situação de muita confusão e ambiguidade diante da suspeita ou constatação de que o marido ou companheiro abusa sexualmente da filha. Frequentemente nega os indícios, denega suas percepções, recusa-se a aceitar a realidade da traição do marido. Vive sentimentos ambivalentes em relação à filha: ao mesmo tempo em que sente raiva e ciúme, sente-se culpada por não protegê-la. Na verdade, ela também é vítima, vítima secundária, da violência familiar. Negar, desmentir a filha ou culpá-la pela sedução é uma forma de suportar o impacto da violência, da desilusão e da frustração diante da ameaça de desmoronamento da unidade familiar e conjugal. (Araújo, 2002, p. 7)
Concebe-se que talvez a não interrupção da gravidez de Najla – apesar de todas as complexas dimensões que a maternidade na adolescência engloba – tenha relação com o estado de negação de Cecília frente à situação traumática vivenciada. Ao decidir manter a gravidez, Najla ratificaria não apenas seu discurso, mas também a validação da violência, não sendo, desse modo, culpada pelo sofrimento da mãe e das outras consequências que o desvelar ainda desencadearia.
Intersecções possíveis entre o direito, a medicina e a psicanálise: nascimentos, mortes, herdeiros e heranças
Os registros revelam que as orientações feitas pela equipe que acolheu Najla e sua família não apenas serviram de amparo para que ela escolhesse pela continuidade da gravidez, mas também para que a família fosse incentivada a denunciar o pai abusador. Possivelmente, a denúncia de Olavo (pai) traria consequências. Segundo o Código Penal Brasileiro (Brasil, 1940), a pena para quem causa violência sexual pode ser a reclusão de 6 a 10 anos, e, se a vítima for menor de 18 ou maior de 14 anos, a pena pode ser de 8 a 10 anos de prisão. Entretanto, conforme os prontuários, dias depois da denúncia, Olavo suicidou-se, durante uma ligação de vídeo com Cecília.
Com o falecimento do pai-agressor, tornou-se mais complexa a verificação genética das violências sofridas por ela. Os registros mostram que a escolha de Najla pela não interrupção da gravidez parece ter sido motivada pelo desejo de provar a sua verdade, confirmando seu discurso. Porém, ainda que não se saiba, pelos escritos nos prontuários, se Olavo confessou seus atos antes de morrer, deduz-se que a validade do discurso da adolescente tenha sido sustentada com o suicídio do pai-violentador.
Apesar dos novos contornos da cena familiar, com o falecimento de Olavo, Najla dá seguimento à gravidez e, prematuramente, com sete meses, dá à luz sua filha, Diana. A jovem preferiu mudar de cidade e passou a morar com a avó Jaci, numa cidade maior. A avó tornou-se a responsável legal pela adolescente, ajudando a menina com os cuidados à criança, sua bisneta.
Com o nascimento de Diana, retoma-se a perspectiva da transmissão psíquica, já que, de acordo com André-Fustier e Aubertel (1998), “todo indivíduo chega sempre dentro de uma história que preexiste, da qual ele é, às vezes, herdeiro e prisioneiro”. Nessa perspectiva, se na transmissão da identidade familiar buscam-se cumprir legados ancestrais desse grupo, questiona-se: Quais poderão ser os conteúdos acessados por Diana por meio da transmissão psíquica nessa família?
Neste ponto, destaca-se a possível articulação entre o direito e a psicanálise. Azevedo (2022) sinaliza a convergência entre as heranças subjetivas, conteúdo da transmissão da vida psíquica, e as heranças jurídicas, bens vinculados à morte e que são transferidos por testamento ou por direito sucessório aos herdeiros legítimos. A primeira herança é entendida a partir da lógica do inconsciente e, a segunda, a partir dos aspectos materiais, patrimoniais e de propriedade.
No direito, o inventário é a construção doutrinária – de forma prática, o documento – que ratifica a transmissão desse patrimônio aos correspondentes herdeiros. É ele que atesta o que esse descendente está recebendo como herança deixada por seus ancestrais. Do ponto de vista simbólico, toma destaque no enredo familiar que este trata de um inventário com heranças portadoras de maldição. Eiguer (1998) destaca que essas heranças malditas se referem ao conteúdo transmitido entre gerações e que não sofreram qualquer processo de transformação por terem sido não ditos, ocultados, proibidos de dizer devido ao seu aspecto vergonhoso, traumáticos, que remete a fardo, a entraves. Esse inventário maldito, então, comprovaria a transmissão de sintomas transmitidos transgeracionalmente. Nessa lógica, pode-se deduzir que o nascimento de Diana formaliza o recebimento fortuito por ela de um inventário que se compõe de legados familiares malditos, tais como a repetição de relações incestuosas com consequentes gravidezes não interrompidas e o fatídico falecimento de seu pai, que também seria seu avô.
Como visto, parece que no arranjo familiar de Najla tais heranças preservam-se à margem de um reduzido processo de elaboração, favorecendo a transmissão. Se esses materiais psíquicos figuram como predominantes nessa dinâmica familiar, supõe-se que, entre outros aspectos, eles fazem parte da organização dessa família; consequentemente, podem ser transferidos inconscientemente às gerações futuras.
Interessa pensar como essa família representará entre eles o luto pela morte de Olavo enquanto conteúdo não elaborado. A dificuldade de simbolização de situações traumáticas nessa família faz pensar acerca das possibilidades desse trágico acontecimento tornar-se um legado. Kaës (citado por Eiguer, 1998a) aponta a transmissão de objetos perdidos e ainda enlutados como possíveis conteúdos que fazem parte da cadeia de conteúdos transgeracionais.
Parece pertinente a consideração de que a dificuldade em elaborar o luto pelo suicídio de Olavo seja cristalizada por meio da ordem do oculto e do mal-dito. Os prontuários evidenciam que, mesmo após meses do nascimento de Diana, seu registro ainda não havia sido feito. “A respeito da investigação de paternidade, a avó demonstra profunda ambivalência porque deseja limpar o nome da neta e do filho. Quer que seja feita, mas não quer que o nome dele conste do registro de Diana” (relato da médica ginecologista).
Outro ponto que pode sinalizar um entrave na representação desses legados ancestrais refere-se à não adesão de Najla ao acompanhamento psicológico ofertado pela rede de saúde do município, após receber alta do ambulatório multiprofissional. Os registros indicam que Najla “interrompeu o acompanhamento psicológico que estava fazendo na UBS de referência por não ter feito vinculação com a profissional” (relato da psicóloga).
Além disso, é intrigante pensar na articulação dessas heranças transgeracionais com a reincidência de situações traumáticas não transformadas e perpetuadas sucessiva e inconscientemente. Como asseverado, a composição do incesto parece se configurar como sintoma familiar que se repete, operando como herança transgeracional nesse agrupamento. Conforme Abdala et al. (2013), não há como construir um futuro independentemente do passado, como se fosse possível negar aos descendentes as situações de sofrimento que permeiam a história familiar pregressa.
Pensando a herança como algo que é deixado para os descendentes, e como Diana representa uma possibilidade de que a cadeia de transmissão de heranças se preserve – já que a existência de um descendente, um novo depositário, pressupõe a transmissão de heranças dessa família para ele –, pode-se considerar que a gravidez de Najla oferece aporte a esse curso de transferência. Logo, a continuidade de gravidezes e a geração de herdeiros pode ser entendida não apenas como via de transmissão, mas também de preservação de heranças familiares.
A interrupção legal da gravidez e o bloqueio da cadeia genealógica, por si só, não poderiam ser garantias para a não reincidência de relações incestuosas ou mesmo situações de violência. Após passar a morar com a avó, Najla, ainda com 15 anos, teve um breve envolvimento com um homem mais velho, de 51 anos, ex-companheiro de uma tia-avó. Os documentos analisados afirmam que Najla envolveu-se sexualmente com esse homem. Parece haver um descolamento, uma alienação do fato de que o relacionamento sexual de uma adolescente com um homem mais velho configura uma violação.
Ainda assim, cabe refletir se a possibilidade da interrupção da gravidez de Najla nessas condições poderia ter significado uma ruptura no ciclo de repetição de gestações incestuosas. Nesse sentido, o aborto legal poderia ser compreendido como um dispositivo que poderia favorecer a alteração do curso de transmissão psíquica nessa família, talvez contribuindo para a não reedição de gravidezes resultantes de relações incestuosas, ao proporcionar uma nova realidade representacional. Contudo, no enlace estudado, a vida de Diana ainda insiste na evidenciação do incesto – filha e ao mesmo tempo irmã de Najla, neta e sobrinha de Jaci, filha e neta de Olavo, neta e enteada de Cecília. Almeida (2008) retoma a possibilidade de herdeiros serem aprisionados na experiência ancestral pela objeção a elaborar analiticamente o trauma. Caberá a Diana, nessa ótica, escapar das violências ao seu desejo, à sua autonomia e à sua existência, desvincular-se desse passado reincidente e apoderar-se, em vida, de sua própria história.













