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Jornal de Psicanálise
versão impressa ISSN 0103-5835
J. psicanal. v.39 n.70 São Paulo jun. 2006
REFLEXÕES SOBRE O TEMA
Da experiência clínica ao desenvolvimento de um conceito1
From clinical experience to the development of a concept
De la experiencia clínica al desarrollo de un concepto
Vera L. C. Lamanno-Adamo*
Membro Efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
Membro do Núcleo de Psicanálise de Campinas e Região
RESUMO
A autora introduz um breve histórico do nascimento da clínica enquanto método de investigação. Em seguida, discute alguns aspectos do processo de desenvolvimento de um conceito psicanalítico a partir de uma experiência clínica.
Palavras-chave: Clínica, Investigação psicanalítica, Método psicanalítico, Desenvolvimento de conceitos.
ABSTRACT
Firstly the author makes an introduction about how the clinic has been historically a method of investigation and then discusses some aspects of the development of a psychoanalytic concept that emerged from clinical experience.
Keywords: Clinic, Clinical investigation, Psychoanalytic method, Concepts development.
RESUMEN
La autora introduce un breve relato del nacimiento de la clínica como método de investigación. Enseguida, discute algunos aspectos del proceso de desarrollo de un concepto psicoanalítico a partir de una experiencia clínica.
Palabras-clave: Clínica, Investigación psicoanalítica, Método psicoanalítico, Desarrollo de conceptos.
Um breve histórico do nascimento da clínica enquanto método de investigação
A clínica enquanto método de pesquisa nasceu da clínica médica, quando o paciente era observado em seu leito: clinos, etimologicamente, quer dizer leito (Barbier, 1985).
Em O nascimento da clínica, Foucault (1977) retorna às origens da clínica, fornecendo elementos para uma reconstituição da ciência médica. Clínica e conhecimento não estiveram interligados o tempo todo. A ligação entre clínica e conhecimento aconteceu no início da medicina, com Hipócrates, quando houve uma sistematização do saber.
Quando a filosofia foi introduzida neste processo e a observação abandonada, instalou-se uma dissociação entre a clínica e o saber, dando início a um longo período de prevalência de sistemas e especulações. Somente no século XVIII é que ressurgem possibilidades de conexão entre clínica e conhecimento.
Contribui para este fato a reestruturação das faculdades de medicina e hospitais, até então dissociados. Desta forma, a clínica passa a ser o principal elemento da coerência científica, ao ser definida como uma experiência prática, mas com o objetivo de estabelecer ligação entre o saber individual e o sistema geral de conhecimento. Neste ponto, foi possível estabelecer diferenças entre o prático e o clínico. O prático é capaz de um empirismo controlado, na medida em que integra sua experiência aos níveis de percepção, memória e repetição. O clínico realiza uma experiência complexa que deve integrar o conhecimento à sua experiência, para que possa surgir daí uma nova codificação do objeto de pesquisa.
A partir dessa nova articulação, o método clínico passa a se constituir sobre dois pilares. O primeiro envolve reconhecer o método hipocrático, que consiste basicamente na observação fiel e imediata que antecede a intervenção. O segundo inclui a idéia de que a observação não é ingênua e está equipada por uma lógica que permite superar o simples empirismo.
Para Foucault (1977), no final do século XVIII a experiência clínica está composta pela observação e pela experiência, elementos em constante oposição. A observação conduz à experiência, mas a interrogação que se faz do objeto deve estar confinada aos limites das coisas observadas. Este movimento contém uma dimensão analítica, isto é, um logos através do qual observação e objeto observado se comunicam. Desse modo, instaura-se uma nova relação entre sujeito e objeto. A experiência a partir de então não acontece mais entre o que sabe e o que ignora, mas se faz solidariamente entre o que descobre e aquele sobre o qual se descobre.
O método clínico emerge no momento em que a doença passa a ser concebida dentro do modelo naturalista de ciência, cujo elemento fundamental é o sintoma. Ao mesmo tempo que é um fenômeno natural, o sintoma é significante da doença. Dentro dessa totalidade, a doença é vista como coleção de sintomas. Através deles, é possível estabelecer o processo classificatório e nosográfico das doenças.
Foucault afirma que:
A formação do método clínico está ligada à emergência do olhar médico no campo dos signos e sintomas. O reconhecimento de seus direitos constituintes acarreta o desaparecimento de sua distinção absoluta e o postulado de que doravante o significante (signo e sintoma) será inteiramente transparente ao significado que aparece, sem ocultação ou resíduo, em sua própria realidade, e que o ser do significado - o coração da doença - se esgotará inteiramente na sintaxe inteligível do significante (Foucault, 1977, pp. 102-103).
No entanto, apesar de o poder oriundo da clínica dar status de ciência à medicina, muitos foram os debates em relação à dificuldade de lidar com o homem dentro dos postulados científicos das ciências naturais, e a medicina era incerta. Dumas, citado por Foucault, dizia que:
A ciência do homem se ocupa de um objeto muito complicado, abarca uma multidão de fatos muito variados, opera sobre elementos demasiado sutis e numerosos para sempre dar as imensas combinações de que é suscetível a uniformidade, a evidência e a certeza que caracterizam as ciências físico-matemáticas (Foucault, 1977, p. 109).
Tal situação levou a uma série de indagações sobre os elementos que pudessem definir a clínica como lugar de encontro dos médicos com os doentes. Para Foucault, este lugar era determinado por três meios: alternância dos momentos falados e dos momentos percebidos em uma observação, esforço para definir uma forma estatutária de correlação entre o olhar e a linguagem, e o ideal de uma descrição exaustiva. Através dessas discussões ocorridas no fim do século XVIII e início do século XIX, foi possível perceber a preocupação dos médicos em dar à clínica o estatuto científico, através de um método que conseguisse dar conta da experiência clínica sob o paradigma das ciências físico-naturais.
Esta busca de enquadramento da clínica, em parâmetros científicos, culminou numa mudança significativa. Passou-se da medicina dos sintomas para a medicina dos órgãos. A clínica passou a ser ordenada pela anatomia patológica e foi instaurada a hegemonia do método anatomoclínico e do positivismo na medicina. Mas, apesar desta hegemonia, o método clínico esteve presente na busca do conhecimento a respeito das "doenças nervosas". Isso aconteceu principalmente devido ao trabalho de Pinel sobre a articulação do método e a formulação do próprio estatuto das doenças nervosas e posteriormente ao avanço do conhecimento sobre elas fornecida pela anatomia fisiológica.
Salienta Foucault (1991) que, desde que foi possível traçar distinção entre as perturbações com etiologia orgânica (caso da paralisia geral gerada pela sífilis) e as perturbações sem fundamento orgânico definidas no final do século XIX (caso da histeria), iniciou-se um novo capítulo na história.
O seu desenrolar seguiu direções distintas.
Uma foi orientada por pesquisadores que transpuseram a estrutura conceitual do método clínico para a explicação da patologia orgânica: isolava tanto os sintomas psicológicos como os fisiológicos e estabelecia uma classificação e uma nosografia das doenças mentais. Como exemplo temos a obra de Kraepelin (Foucault, 1991).
A outra foi orientada pelos pesquisadores que começaram a perceber a impropriedade de lidar com tais doenças utilizando-se da estrutura conceitual em voga e começaram a estruturar novos caminhos. Nessa linha podem ser citados Charcot e seu método hipnótico, Breuer e seu método catártico, e Freud, com a formulação da teoria e do método psicanalítico.
Mas, assim como na medicina, mais particularmente na clínica das doenças nervosas, em outras áreas da ciência, como a história, a sociologia, a antropologia, verificavam-se dificuldades de se trabalhar dentro dos parâmetros das ciências naturais e delineavam-se novas concepções. Como marco dessas mudanças é reconhecido o trabalho de Dilthey (1984) sobre as ciências do espírito.
Este autor explicitou que era inadequado trabalhar com o homem dentro do paradigma científico reinante e formalizou a ruptura entre as ciências físico-naturais e as ciências humanas. Tal ruptura se caracterizou, inicialmente, pela diferenciação do objeto. Para ele, as ciências humanas tinham por objeto a própria experiência humana (experiência interna). A partir daí estabeleceu-se uma distinção entre o método de análise das ciências. A explicação seria própria das ciências naturais e a compreensão seria própria das ciências humanas. A compreensão consistiria na busca dos sentidos e significados da experiência humana, na qual estaria envolvido também o investigador (Ladrières, 1970).
Nessa perspectiva, foi-se delineando um amplo reconhecimento de diferenciações entre as ciências físico-naturais e as ciências humanas, e estabelecendo distinções entre o método de análise das ciências. Enquanto as ciências naturais têm por base a matemática e o objetivo é buscar explicações sobre os fenômenos, ou seja, as relações causais entre eles, as ciências humanas têm o escopo de tentar compreender os fenômenos humanos e sociais, isto é, as relações de significado (Turato, 2000).
Este panorama vai abrindo campo para se definir e se firmar o novo paradigma de ciência vinculado ao surgimento da dialética, da fenomenologia e da psicanálise, possibilitando um novo reordenamento na discussão de questões como a relação sujeito-objeto, neutralidade científica e objetividade (Haguetti, 1990; Brandão, 1985; Minayo, 1993; Martin & Bicudo, 1989).
É nesse novo paradigma que se insere a pesquisa psicanalítica, fundamentada em investigações realizadas através do método psicanalítico, descrito inicialmente por Freud para investigação do funcionamento inconsciente. Freud formulou várias definições de psicanálise. As mais aceitas no movimento psicanalítico encontram-se no início do artigo "Dois verbetes de enciclopédia", publicado em 1923 (Freud, 1923/1976). Nesse artigo ele afirma que a psicanálise é o nome dado a um procedimento para a investigação de processos mentais que, de outra forma, são praticamente inacessíveis; a um método, baseado na investigação, para o tratamento de distúrbios neuróticos; a uma série de concepções psicológicas adquiridas por esse meio e que se somam umas às outras para formarem progressivamente uma nova disciplina. Assim, para Freud, o termo psicanálise tem três sentidos: um método de investigação, uma forma de tratamento, e, igualmente, define o conhecimento que o método produz, isto é, a teoria psicanalítica.
Nessa perspectiva, a direção da pesquisa analítica é a própria experiência analítica, é ela a base da pesquisa em psicanálise e é ela que fornece os eixos fundamentais para seu norteamento no registro teórico. É na clínica que se desenvolve a modalidade mais essencial de pesquisa psicanalítica (Herrmann, 1988). É na clínica, tendo como instrumento a escuta, em atenção flutuante, da livre associação do paciente, que surge a interpretação dos estados mentais apresentados pelo paciente, através de seus comportamentos, atitudes, atos falhos, sonhos e da interação com a análise e com o processo analítico. Dessa forma, faz-se possível detectar, identificar e validar funcionamentos mentais inconscientes, responsáveis pela configuração de constelações psicopatológicas. É no cotidiano das sessões, dentro do estrito espaço transferencial/contratransferencial, que se inscreve a psicanálise enquanto método de investigação e geradora de novas teorias.
A psicanálise, portanto, tal como formulada por Freud, é indissociável de um método, é este último que a funda, que constitui o seu meio e também, seu horizonte. A teoria psicanalítica é inseparável da prática, e sua evolução é o fruto das aquisições progressivas a partir de e nos limites do método. Sendo a própria psicanálise um procedimento de investigação, a sessão já se constitui uma pesquisa. A tradição psicanalítica deu expressão a uma mudança importante na relação entre técnica e teoria.
Vassalli (2003) propõe que a maneira freudiana de pensar a prática e a teoria não tem base nos fundamentos da ciência e da técnica moderna, mas, sim, raízes na cultura grega da techne. Techne, salienta o autor, em Aristóteles, é o nome de uma atividade realizada com perícia (poiesis), que atinge seu objetivo na produção de um trabalho específico. Quando se produz alguma coisa, o trabalho resultante não é algo que exista por intermédio da necessidade, já que é dado. É uma coisa que só pode ser entendida enquanto surge, algo que está em processo de se tornar (esomenon). O objeto da techne, então, é o provável, no sentido de possível, algo que pode ser ou não. Portanto, não há um conhecimento certo e absoluto dela, mas, ao contrário, um conhecimento baseado na intuição, para o qual é adequado o uso da razão conjetural. Techne, mesmo quando guiada por uma idéia (eidos), não pode determinar, com certeza, o sucesso de um trabalho. E isso, na cultura helênica, não era motivo de desvalorização.
Freud também foi capaz de usar a idéia para a sua técnica nessa fronteira com o acaso, certamente em relação ao material similarmente acidental da linguagem. Pois, como sabemos, também é o caso da linguagem das piadas. Assim, Freud atingiu o ponto de despir a linguagem da sua lógica estrita, e de forma um pouco antecipada, de afirmar o valor, para a sua terapia, da revelação de outra realidade, inconsciente (Vassalli, 2003, p. 112).
No entanto, por se manter nessa tradição, Freud teve que se defender da acusação de que a psicanálise é um sistema especulativo. No entanto ela é "empírica - seja como expressão direta das observações, seja como resultado da reelaboração"2 (Freud, 1916-17/1963,, p. 244).
Nessa perspectiva, isto é, no seu diálogo com a ciência, encontramos Rezende (2000), propondo não estar a psicanálise inserida nem nas ciências formais, segundo o paradigma da matemática; nem nas ciências empírico-formais, embora tenha muito a aprender com seus critérios de realidade e a verdade como correspondência; nem nas ciências humanas, embora tenha também a aprender a respeito da simbolização e da verdade como consenso simbólico.
A psicanálise, segundo o autor, é paradoxalmente pós-paradigmática, querendo dizer com isso "que ela não se submete ao paradigma de outras ciências, mas o questiona, fazendo com que todas elas progridam, a psicanálise não é submissa, mas questionadora" (Rezende, 2000, p. 20).
Com essa inovadora proposta, Rezende mantém a conjunção preciosa de investigação e tratamento proposta por Freud, eliminando os riscos de afastar do campo do conhecimento a razão conjectural, e de obscurecer a articulação original de Freud entre teoria e técnica. Técnica, no sentido que Aristóteles imprime a esse termo, não é uma ação cega, mas exame pensado (theoria) sobre a forma pela qual ocorre a produção de algo, uma atividade realizada com perícia e que está contida nesta. Técnica é um instrumento de investigação e descoberta (Vassalli, 2003, p. 113).
Nesta mesma perspectiva, encontramos o trabalho de Botella & Botella (2001). Os autores propõem denominar a pesquisa psicanalítica, em contraste com as pesquisas efetuadas por psicanalistas, usando outros métodos que não a clínica psicanalítica, pesquisa fundamental em psicanálise, cujo propósito, estratégia e desenvolvimento foram resumidos em alguns pontos.
O seu objetivo é o aumento de conhecimentos acerca dos processos psíquicos inconscientes. As condições de sua realização, de suas explorações e descobertas, são as da sessão de análise marcada pelas características regressivas inerentes ao procedimento de investigação psicanalítica. A pesquisa prossegue no pós-sessão, com os "restos da sessão", com os quais o analista pode trabalhar psiquicamente até fazer emergir, na esteira de uma elaboração, uma nova inteligibilidade, sem que tenham entrado em jogo outros procedimentos além da ela comunidade psicanalítica, mediante sua repetição por um grande número de analistas.
Resumindo, para Botella & Botella, a pesquisa fundamental em psicanálise começa pela experiência do setting psicanalítico, na intimidade psíquica da sessão, seguida pela elaboração dessa experiência no pós-sessão e culminando numa hipótese teórico-clínica que o analista redige e faz publicar. É a última etapa, ou seja, a de difundir e "pôr à prova" a sua hipótese, que permitirá a validade de uma nova concepção pela comunidade psicanalítica, mediante sua repetição por um grande número de analistas.
Da experiência clínica ao desenvolvimento de um conceito: uma ilustração
Vou trazer o relato de como fui construindo a noção de um continente primário (Lamanno-Adamo, 2004). Esse conceito propõe a existência de estruturas psíquicas que têm como função operar uma contínua ligação entre corpo e mente. O relato da trajetória dessa conceituação pode ilustrar os caminhos que percorri até chegar a esse pensamento.
A noção de um continente primário surgiu a partir da clínica com uma paciente que apresentava melanoma. Com essa paciente tive oportunidade de trabalhar por mais ou menos seis anos, até às vésperas de sua morte.
O primeiro trabalho que escrevi sobre essa experiência clínica chamava-se "Pensando configurações arcaicas de continência" e foi apresentado, em 1998, no Congresso Brasileiro de Psicanálise, realizado no Rio de Janeiro. Nesse texto, privilegiei um determinado momento da análise: a paciente estava com o corpo todo manchado de vermelho devido a uma urticária, dando-me a impressão de que seu corpo estava mapeado. Isso me remeteu imediatamente à lembrança de que certos povos traziam gravado na própria pele o mapa do lugar onde viviam; sendo essa a única vestimenta que utilizavam, eles convertiam seus corpos em mapas, nos quais desenhavam o lugar onde nasceram.
Esse momento da sessão correspondeu a um fato selecionado, um fato que dava coerência e integração ao que parecia estar em estado de caos e dispersão.
A paciente, nesse período, estava apresentando metástase no pulmão. Estávamos num momento penoso, pois confrontávamo-nos com os terrores frente à ameaça de morte, temores esses associados com fantasias persecutórias em relação ao seu tumor. Ela percebia sua doença como um castigo, uma punição, e seu câncer como um personagem terrorífico, um poderoso inimigo que habitava o interior de seu corpo, comendo-o, devorando-o, destruindo-o, sorrateira e silenciosamente, sem que nada pudéssemos fazer.
Ao mesmo tempo, estava ocorrendo um fato interessante: essa paciente havia perdido seu pai quando tinha uns três anos de idade, mas até então ela nunca tinha me trazido fatos, episódios e lembranças de sua infância. Nesse período da análise estávamos podendo perceber que, apesar de não ter podido se negar totalmente, ela não parecia ter sido capaz de experimentar nem a si mesma nem aos outros. Sua mente era quase totalmente desprovida de memória. Suas lembranças reportavam-se ao período de dezoito anos em diante.
Estávamos percebendo, nesse período, como a vida íntima dessa paciente era uma casa vazia onde encontrávamos uma criança psiquicamente quase-morta e sem pecúlio.
No entanto, percebia também que o reencontro com o seu mundo interno ocorria pari passu com uma intensa aproximação com o próprio corpo. O "corpo mapeado" de minha paciente, considerando outras associações e o que vinha ocorrendo em sessões anteriores, comunicava-nos sua necessidade de saber sobre suas origens, seus objetos de amor, sua história. O corpo percebido, agora intensamente, devido à doença, parecia estar propiciando uma espécie de assoalho para todo um percurso em relação a um estado de personalização.
Isso me levou a conjecturar "configurações arcaicas de continência". Minha curiosidade em relação a esse fenômeno ficou aguçada, auxiliando-me a rastrear, na experiência clínica com essa paciente (e também com outros pacientes), o que o seu corpo enfermo poderia estar representando, o impacto disso em seu funcionamento mental e vice-versa.
Um ano depois essa paciente morreu. Foi uma experiência intensa, minha primeira experiência de análise com alguém que vivenciava as angústias, medos e fantasias relacionados a uma doença que levava à morte. Não era uma perda simbólica, era um fato concreto.
Seis meses depois do falecimento dessa paciente, retomei o texto "Pensando configurações arcaicas de continência". Desta feita, através de extenso relato das sessões, discuti como a partir da experiência analítica essa paciente pôde ir povoando seu mundo interno. Através de relato minucioso dos sonhos ocorridos no final da análise, descrevi como o processo analítico foi proporcionando uma reanimação em seu mundo interno. Os objetos mortos sentidos como destituídos de vida, personalidade, combinação e interação estavam sendo reanimados, propiciando uma capacidade para memória, sonho e pensamento.
A elaboração desse trabalho redundou em poder elucidar, um pouco mais, minhas idéias a respeito de um continente constituído por uma complexa rede de estruturas somatopsíquicas que operam um contínuo movimento transformativo entre corpo e mente.
O título deste texto era "O continente somatoforme: aspectos de uma dinâmica somatopsicótica", pois, na época, somatoforme foi o termo que achei mais apropriado para denominar uma configuração arcaica, primária, de continente.
Apresentei esse trabalho na Sociedade Brasileira de Psicanálise e no Núcleo de Psicanálise de Campinas e Região. Obtive valiosos comentários dos colegas presentes. Esse trabalho contém os fundamentos de elaborações posteriores, mas era um trabalho essencialmente catártico. Apresentá-lo aos colegas, em Reunião Científica, teve importante participação no meu processo pessoal de elaboração de perda da minha paciente.
Continuei trabalhando minhas idéias na experiência clínica com outros pacientes e em discussões com colegas psicanalistas. Reformulei o texto e resolvi submetê-lo ao International Journal of Psychoanalysis. O parecer de psicanalistas de outras Sociedades de Psicanálise que não aquela à qual pertencia poderia ser estimulante e gerador de novos confrontos.
Os comentários que recebi foram fundamentais no esclarecimento de minhas idéias e para o entendimento da experiência clínica na qual elas se sustentavam.
Basicamente, a maioria dos comentadores achou o conceito original, estimulante e interessante, necessitando, no entanto, de maior clareza e precisão. Sobretudo, fazia-se necessário "estabelecer uma clara conexão entre o material clínico poderia mudá-lo se quisesse e o foco principal de minhas idéias, especialmente, o conceito muito interessante de continente somatoforme" (comentários de 27 de abril de 2001, do editor do International Journal of Psychoanalysis).
Reestruturei o trabalho, esclareci melhor o meu pensamento, mas mantive a experiência clínica que originou o conceito e na qual eu sustentava minhas noções.
Para mim, nessa época, era fundamental manter na íntegra e com alguma minúcia o trabalho clínico que estimulou o conceito que tentava teorizar.
No final de 2001, ressubmeti o texto, mas dois dos três comentadores, em meados de 2002, mantiveram a opinião de que o material clínico não oferecia uma adequada conexão com o conceito de continente somatoforme. O editor sugeriu novamente que poderia utilizar outro material clínico, se quisesse.
A partir daí, fiz duas modificações no texto. Primeiro, inseri a experiência clínica originária relacionando-a com a trajetória do meu pensamento a respeito do continente somatoforme. Além disso, introduzi uma outra experiência clínica, que, no meu entender, oferecia uma correspondência mais esclarecedora entre a clínica e a teoria. Mas os comentadores continuaram insatisfeitos com a conexão que eu estabelecia entre a clínica e o conceito que a originou.
Deixei minhas idéias em estado de decantação. Era uma questão fundamental, na época, manter minha paciente no texto.
No final de 2003, eu tive um sonho. Sonhei que estava caminhando com a minha paciente e ela estava muito debilitada. No meio do caminho ela se dependurou em mim. Prosseguimos. Sabia que iria carregá-la até que morresse, mas isso não me assustava, não me incomodava, nem estava me causando uma insuportável sobrecarga. Sabia que precisava fazer isso até que morresse e então eu poderia prosseguir.
Um pouco depois de essa paciente ter morrido eu já havia sonhado com ela, mas foi um sonho muito diferente desse que eu tive três anos depois. Nesse primeiro sonho, eu estava doente e, por causa disso, estava toda enfaixada, como se fosse uma múmia. Continuava fazendo tudo que tinha que fazer, mesmo enfaixada, mas estava muito assustada, atordoada.
Há uma diferença significativa entre esses dois sonhos ocorridos num espaço de três anos. No primeiro, a experiência da perda de minha paciente foi vivida concretamente, como faixas que envolveram todo o meu corpo transformando-me numa espécie de múmia-fantasma. No segundo, essa experiência já tem uma trajetória, um caminho suportável, uma certa compreensão de que "é assim mesmo". Os que estão morrendo necessitam dos que estão mais aptos a ajudá-los, naquele momento.
Meses depois desse sonho retomei minhas idéias a respeito de um continente somatoforme e, após uma longa reflexão, resolvi denominá-lo continente primário. Abreviei o caso clínico originário, fiz algumas modificações no sentido de esclarecer melhor algumas de minhas idéias, e submeti o texto à Revista Brasileira de Psicanálise. Desejava continuar minhas elaborações.
Alguns meses depois recebi os comentários. Basicamente, os colegas sugeriam que eu resumisse a experiência clínica originária e fosse mais minuciosa com o outro relato clínico, ou seja, com o relato clínico que eu havia introduzido no final de 2002.
Em meados de 2004, passados já quase quatro anos desde a morte da minha paciente, consegui colocar a experiência clínica originária como figura de fundo, auxiliando o esclarecimento de minhas idéias.
O relato desta trajetória não introduz nada de novo. Esse foi o método utilizado por Freud na elaboração de seu pensamento sobre o funcionamento mental e que fica mais explícito na Interpretação dos sonhos. Nesse trabalho, Freud (1900/1972) fornece vários flashes de um trabalho de auto-análise, utilizando muitos de seus próprios sonhos para ilustrar seus pontos de vista. O mais claro e o mais revelador de todos, devido à riqueza do material associativo que Freud apresenta com ele, é o famoso "sonho da injeção de Irma".
É a partir da elaboração desse sonho, e apresentando-o como exemplo de seu método de interpretação de sonhos, que Freud abandona especificamente o que chama de "métodos populares" de interpretação dos sonhos, isto é, o uso da inspiração ou da decifração. A "inspiração", um procedimento pelo qual o interpretador simplesmente "sabe" a significação do sonho, sem refletir sobre ele e sem necessidade de recolher informações a respeito do sonhador ou das circunstâncias do sonho. Já o método de "decifração" seria um sistema rigidamente mecânico, de tradução com símbolos fixos do tipo almanaques.
O que Freud afirma é que seguindo na mente do paciente as conexões associativas dos elementos dos sonhos, através da associação livre, pode-se estabelecer o significado individual dos símbolos ao invés de basear-se numa decifração prévia fornecida por um livro de sonhos. Além disso, ao publicar essas idéias através de uma auto-análise de seu sonho com Irma, Freud esclarece, com riqueza, a trajetória do processo elaborativo que teve que percorrer, até alcançar sua concepção sobre os sonhos e sobre o método psicanalítico de investigação clínica.
O objeto de estudo da psicanálise, portanto, não é o acontecimento per se e sua interpretação, mas os movimentos e sentidos inconscientes que lhe são subjacentes, os quais constituem a vida psíquica simultânea do paciente e do analista. Esses movimentos continuam no decorrer dos processos de pensamento que se seguem à sessão (ou o término da análise). Esses "restos de sessão" ou "restos da análise" podem psiquicamente trabalhar o analista até fazer emergir nele, através de um processo de elaboração, uma nova inteligibilidade. A escrita psicanalítica é o produto final de um acúmulo de experiências e elaborações dessa qualidade. Quando essa especificidade é negada corre-se o risco de introduzi-la numa premissa metodológica na qual já não mais se trata de "construir no escuro", mas sim de certeza e evidência (Vassalli, 2003).
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Endereço para correspondência
Vera L. C. Lamanno-Adamo
Av. João Mendes Jr., 180/17
13024-030 Campinas, SP
Fone/fax: (19) 3254-0824
E-mail: veraadamo@uol.com.br
Recebido em: 21/03/2006
Aceito em: 20/04/2006
* Membro Efetivo da SBPSP, Membro do Núcleo de Psicanálise de Campinas e Região.
1 Este trabalho é a síntese de um capítulo da tese de doutorado em Ciências Médicas, na área de Saúde Mental, defendida em agosto de 2004, UNICAMP.
2 Tradução livre da Autora, a quem se deve também o destaque do trecho (em itálico).