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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. v.39 n.70 São Paulo jun. 2006

 

JORNADAS PESQUISA E UNIVERSIDADE — SPBSP

 

Pesquisa em psicanálise: algumas idéias e um exemplo1

 

Research in psychoanalysis: some ideas and an example

 

Investigación en psicoanálisis: algunas ideas y un ejemplo

 

 

Luís Claudio FigueiredoI,II,*; Marion MinerboIII,**

I Psicanalista, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
II Professor da Universidade de São Paulo
III Psicanalista, Membro Efetivo e Analista Didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Inicialmente, os autores diferenciam pesquisa em psicanálise de pesquisa com o método psicanalítico. No primeiro caso, a psicanálise é o objeto da pesquisa, e o pesquisador não precisa ser um psicanalista atuante. Pode ser um filósofo, um historiador, um sociólogo ou um crítico literário. No segundo caso requer-se um psicanalista. Após a pesquisa, o objeto, o sujeito (o pesquisador) e seus meios de investigação (conceitos, técnicas) são transformados. Em seguida, o procedimento é minuciosamente exemplificado pela análise de uma entrevista. Nas considerações finais, considera-se, ao lado da dimensão investigativa, a dimensão terapêutica da pesquisa, bem como o seu campo de validade.

Palavras-chave: Pesquisa em psicanálise, Pesquisa com o método psicanalítico, Análise psicanalítica de entrevista.


ABSTRACT

Initially the authors differentiate research in psychoanalysis and research with the use of the psychoanalytic method. In the first case psychoanalysis is the object of research. The researcher does not need to be an active psychoanalyst. He may be a philosopher, a historian, a sociologist or a literary critic. In the second case a psychoanalyst is required. In this case, the object, the subject (the researcher) and his means of investigation (technical concepts) are transformed in the end of the research. The procedure is then minutely exemplified by the analysis of an interview. In the final considerations, the therapeutic dimension and its field of validity are considered along with the investigative dimension.

Keywords: Research in psychoanalysis, Research with the psychoanalytic method, Psychoanalytic analysis of an interview.


RESUMEN

Inicialmente, los autores presentan una diferenciación entre la investigación en psicoanálisis y la investigación que usa el método psicoanalítico. En el primer caso, el psicoanálisis es el objeto de la investigación, y el investigador no necesita ser un psicoanalista actuante. Puede ser un filósofo, un historiador, un sociólogo o un crítico literario. En el segundo caso se requiere un psicoanalista. Después de la investigación, el objeto, el sujeto (el investigador) y sus medios de investigación (conceptos, técnicas) sufren transformaciones. Enseguida, el procedimiento es minuciosamente ejemplificado con el análisis de una entrevista. En las consideraciones finales se coloca, al lado de la dimensión investigativa, la dimensión terapéutica de la investigación, así como su campo de validad.

Palabras-clave: Investigación en psicoanálisis, Investigación con el método psicoanalítico, Análisis psicoanalítico de entrevista.


 

 

Introdução

Todos nos lembramos das palavras de Freud: a psicanálise, simultaneamente, é (1) um procedimento para a investigação de processos mentais inconscientes (inacessíveis a outras formas de pesquisa), (2) um procedimento terapêutico e (3) um conjunto de conhecimentos em contínua expansão e reformulação sobre seu objeto. Sabemos também da preocupação freudiana em não subordinar as atividades clínicas terapêuticas, em seu livre curso, a metas especificamente científicas — procura obstinada de conhecimento —, embora tais processos estejam e precisem estar bem articulados. Muito do que conhecemos da clínica freudiana vem dos seus historiais, em que a dimensão de pesquisa e comunicação (freqüentemente colorida por razões políticas e polêmicas) era dominante e elaborada após o término do tratamento. Pouco sabemos, na verdade, das centenas de casos clínicos conduzidos por ele. Ou não parecem ter despertado sua maior atenção "científica", ou não lhe serviam para a afirmação ou confirmação de suas posições no campo psicanalítico. Assim, não vieram a se tornar peças ilustrativas nem de sua técnica, nem de suas idéias, nem de suas descobertas ou invenções conceituais. O que sugere que uma certa distinção entre o Freud clínico e terapeuta e o Freud produtor de conhecimento deve ser mantida, mesmo com a ressalva de que na psicanálise pesquisa, prática clínica e teoria caminham juntas.

Dito isso, o que ele poderia pensar ao ver a "pesquisa em psicanálise" — o que inclui, mas não se confunde com a "pesquisa com o método psicanalítico" — ganhar a extensão que veio conquistando no mundo e, em especial, no Brasil? É bem provável que, ao dizer que a psicanálise é ao mesmo tempo as três ordens de processos e fenômenos acima mencionados, não lhe passasse pela cabeça a produção em grande escala de pesquisas tais como observamos, por exemplo, em diversos cursos de pós-graduação no país e no exterior (França, Estados Unidos e até Inglaterra). Mesmo ao sugerir uma certa distância entre pesquisa e clínica, talvez não lhe ocorresse a possibilidade de existência de sistemas de produção em série de pesquisas em que a dimensão terapêutica está à margem ou ausente, não sendo levada em conta, por exemplo, nos momentos de avaliação: pode-se dar 10 a uma tese de doutorado sem considerar se o candidato é um bom clínico, se é que exerce a clínica de forma significativa e minimamente satisfatória. Um doutor em teoria psicanalítica pode muito bem ser um zero à esquerda em psicanálise ou nem isso: um mero letrado curioso. Não há nenhum critério universitário que permita discriminar entre um psicanalista e um interessado em psicanálise. Ambos podem tirar 10 ou ser reprovados diante de uma banca.

Cabe perguntar diante de tanta pesquisa em psicanálise: será que isso existe? Ou, ao menos, existe como algo merecedor de uma atenção tão concentrada? Será que nesta estranha segregação de uma das três facetas da psicanálise de forma a que, isolada das demais, venha a receber um grande investimento de tanta gente e de parcelas ponderáveis de nossos dispositivos educacionais ainda há psicanálise viva? Será que a psicanálise tem algo a ganhar com tais, aparentemente aberrantes e desgarradas, atividades? O que se faz quando se pretende estar fazendo "pesquisa em psicanálise" e, mais especificamente, quando se está "pesquisando com o método psicanalítico"?

Chamemos de "pesquisa em psicanálise", no sentido amplo, um conjunto de atividades voltadas para a produção de conhecimento que podem manter com a psicanálise propriamente dita relações muito diferentes. Em certas circunstâncias, por exemplo, observa-se uma respeitosa distância: ora as teorias da psicanálise tornam-se "objeto" de estudos sistemáticos, ora de estudos históricos, ora de reflexões epistemológicas; outras vezes, alguns conceitos psicanalíticos são mobilizados como instrumentos para a investigação e compreensão de variados fenômenos sociais e subjetivos. Em nenhuma destas modalidades de pesquisa em psicanálise requer-se um psicanalista atuante. Estudos do primeiro tipo podem muito bem ser realizados por filósofos ou historiadores; trabalhos do segundo tipo podem ser feitos por críticos literários, teóricos da cultura, sociólogos, pessoas bem-intencionadas em geral etc. Num caso, algum aspecto da psicanálise — em geral, suas idéias, mas eventualmente, suas práticas — é objeto de exame; no outro caso, a psicanálise é usada como um arsenal de idéias e conceitos que, mal ou bem manejados — muitas vezes, na verdade, bastante mal, dada a distância existente entre eles e os pesquisadores —, deveriam lançar alguma luz sobre fenômenos e processos da cultura. Algumas vezes, mas não sempre, tais pesquisas em psicanálise são divertidas, úteis e de interesse para um vasto público letrado. Quando isso acontece, expande-se e reforça-se a "cultura psi" no campo social, o que não deixa de ser bom, ao menos em termos mercadológicos. Às vezes, tais trabalhos chegam a ser úteis até mesmo para psicanalistas, embora raramente sejam indispensáveis na formação de um profissional do ramo. Muitas pesquisas acadêmicas ilustram bem estas modalidades de investigação e, aqui entre nós, repousarão para sempre na paz das bibliotecas universitárias, passada a festa da aprovação, garantido o diploma.

Disso se diferenciam as "pesquisas em psicanálise com o método psicanalítico", em que a exigência de presença do psicanalista enquanto psicanalista é incontornável, embora seus temas e alcances possam ser bastante amplos. Pesquisas em psicanálise com o método psicanalítico podem ter como alvo, entre outros, processos socioculturais e/ou fenômenos psíquicos transcorridos e contemplados fora de uma situação analítica no sentido estrito (embora também aí se constate uma dimensão clínica e se observem efeitos terapêuticos, como se verá no caso da análise da entrevista que será apresentada a seguir).

Aqui desaparece a respeitosa distância entre "pesquisador" e "referencial teórico" para dar lugar a um corpo-a-corpo do qual a psicanálise, Deus seja louvado, não sairá tal como entrou. Isso é, aliás, digno de nota: na academia ou fora dela, uma "pesquisa com o método psicanalítico" é sempre obra de psicanalista e capaz de trazer novidades à própria psicanálise.

A especificidade da pesquisa com o método psicanalítico, esta que requer o psicanalista em atividade analítica, é marcada por diversas características a que aludiremos em seguida.

A relação sujeito e objeto em uma pesquisa tal como concebida nas ciências naturais e nas ciências sociais ou humanas implica um sujeito ativo debruçado metodicamente sobre seu objeto, munido de conceitos, instrumentos e técnicas de descoberta e de verificação — ou refutação — de suas hipóteses. Não é bem assim nas relações entre o psicanalista, suas "teorias" e seus "objetos". A entrega do "pesquisador" ao "objeto", o deixar-se fazer por ele e, em contrapartida, construí-lo à medida que avançam suas elaborações e descobertas faz desta "pesquisa" um momento na história de uma relação que não deixa nenhum dos termos tal como era, antes de a própria pesquisa ser iniciada. Isso é mais óbvio em uma situação "terapêutica", mas a atitude clínica pode se manifestar em outras condições e sempre terá como efeito a transformação das partes em jogo, o "objeto" e o "sujeito" da pesquisa, tal como se verá no exemplo de investigação psicanalítica apresentado a seguir, uma análise de entrevista.

Mas qual a natureza da transformação do objeto? Interpretar significa olhar para o fenômeno investigado fora de seu campo habitual. O olhar do psicanalista é um olhar fora da rotina, que desopacifica o objeto. Ele ressurge diferente, desconstruído, transformado. O sujeito também se transforma na medida em que se torna capaz de ver coisas que não via antes.

Como sublinha reiteradamente Renato Mezan em sua tese de doutorado (Mezan, 1985), uma magistral pesquisa com o método psicanalítico que tanto se diferencia de sua pesquisa em psicanálise realizada na condição de filósofo e que fora seu mestrado (Mezan, 1985, p. 638) — "de me fabula narratur"; esta história fala de mim pode ser o mote do pesquisador psicanalista em todas as etapas de seu trabalho, que o vai alterando lentamente e, às vezes, abruptamente. Aliás, o confronto entre o mestrado e o doutorado de Renato Mezan, ambos excelentes, serve para diferenciar os estatutos de dois tipos de trabalho com o texto freudiano: no mestrado, obra de filósofo (ou teólogo), o texto de Freud (sagrado) é verdadeiramente "objeto" de exegese e pode ser útil ao estudioso da teoria freudiana sem chegar a ser indispensável na formação do psicanalista; no doutorado, as relações se complicam e se instala o aludido corpo-a-corpo em que Renato, Freud e a cultura ocidental se engalfinham com efeitos bem mais interessantes e muito mais formativos. Pois também o "objeto" e a própria "teoria" passam pelo mesmo processo de transformação sofrido pelo pesquisador ao longo da pesquisa com o método psicanalítico. Indo além, a pesquisa com o método psicanalítico é tanto um momento na história do "objeto" (no caso do exemplo abaixo, um momento para a entrevistada poder se sentir escutada e cuidada, embora não se estivesse praticando com ela uma psicanálise clínica), quanto na história do "pesquisador" (a intérprete da entrevista vai claramente deixando-se embalar no processo e ganhando uma desenvoltura de escuta e interpretação inexistentes no início), e as transformações que a pesquisa engendra vão além das relações específicas que estes elementos entretêm ao longo da "pesquisa". O "objeto" — seja um paciente, uma comunidade, uma formação da cultura, um texto — não sai incólume quando submetido a uma atividade de "pesquisa" deste tipo, que, por outro lado, ele mesmo convocou. Que um paciente forme seu próprio analista e a escuta analítica que o acolhe e reflete não nos espanta. Mas o mesmo pode ser dito de uma obra pictórica, de um filme, de um padrão sociocultural, de uma pessoa "simplesmente" entrevistada e realmente "ouvida" ou de um texto realmente lido e isso faz com que a atividade cognitiva e afetiva que tais "objetos" produzem e induzem faça parte de suas potencialidades de realização, expressão e autoconhecimento. O leitor de um texto, por exemplo, responde ao apelo de leitura que tal peça constitui e ao responder seriamente a tal demanda — ao ler com devoção, cuidado e liberdade o texto — dá a ele novo fôlego, novas possibilidades interpretativas, novo futuro. Um texto, ao ser bem lido, renova-se e sai da experiência de leitura em direção a um porvir que, por outro lado, fazia parte, como possibilidade, do que o texto já "era" mas a que não acederia sem o concurso do leitor que responde, do seu modo, a tal apelo. Passa a existir assim, a cada boa leitura, na condição de texto descoberto e inventado, como na lógica do paradoxo que Winnicott elabora para tratar dos fenômenos transicionais. O mesmo pode-se dizer do depoimento colhido em uma boa entrevista: descoberto e inventado pela e na interpretação analítica.

Ou seja, o "objeto" do psicanalista goza deste mesmo estatuto ambíguo — objetivo-subjetivo — próprio do que é humano. Mas, em contrapartida, o interesse e os pressupostos (ideológicos e, principalmente, teóricos e simbólicos) com que o pesquisador entrega-se e dirige-se a tais "objetos" fazem da pesquisa que enceta também uma parte de suas transformações possíveis. A história do pesquisador psicanalista não seria a mesma sem estas passagens e desvios pelos seus "objetos" e pelas interpretações que suscitam.

Estamos nos referindo, naturalmente às relações transferenciais (e seus equivalentes2) e contratransferenciais que dão a marca da singularidade ao que se descobre e ao que se inventa e cria em uma "pesquisa com o método psicanalítico". Chamaríamos, assim de "pesquisa com o método psicanalítico" uma atividade em que se constituem e se transformam "objetos", "pesquisadores" e "meios" ou "instrumentos" de investigação (conceitos, técnicas etc).

Em acréscimo, nestas atividades operam necessariamente e de forma suplementar as duas lógicas (ou duas formas de ser) a que se refere Matte-Blanco: a lógica dos processos secundários — a da consciência e da razão — e a lógica do inconsciente, a dos processos primários e emoções, interligadas e, não apenas, mas ao invés disso, incomensuráveis. Isso será verdadeiro, provavelmente, em toda atividade criativa e, no caso de uma pesquisa, dá conta da dimensão criativa do descobrir e, principalmente, do inventar. Contudo, nas pesquisas ditas acadêmicas, o momento da demonstração tende a predominar: prefere-se uma idéia idiota, desde que bem demonstrada, a uma idéia ousada e fecunda sem a devida demonstração. Daí imperar na pesquisa universitária a exigência da verificação e/ou da refutação, o que quase sempre deixa o psicanalista em palpos de aranha. Daí, igualmente, ser tão fácil no caso daquelas pesquisas convencionais anunciar-se claramente o quê e o como do que vai ser feito, apresentando-se antecipadamente o material na forma de "projetos de pesquisa" muito bem alinhavados e de fácil compreensão por qualquer assessor dos chamados "órgãos de fomento". Em psicanálise, ao contrário, o segmento demonstrativo é bem pobre e, quando dá o ar de sua graça, é sempre ilusório. Já os momentos de descoberta e invenção criativa predominam na psicanálise e neles o entrejogo das duas lógicas em regime de suplementaridade é decisivo: não há descoberta do inesperado e invenção do novo sem as irrupções inspiradas dos nossos subterrâneos anímicos e corporais. Na análise da entrevista que se segue, nem o material analisado fundamenta e justifica cabalmente as interpretações, nem estas explicam de forma indiscutível o depoimento: trata-se de um trabalho de descoberta/invenção que se alimenta do depoimento e, em contrapartida, o enriquece e abre para dimensões psíquicas, individuais e sociais, inesperadas.

Pois bem, as duas características até aqui apontadas se articulam: é porque as duas lógicas se mesclam sob a forma da suplementaridade que "sujeito de pesquisa", "objeto de pesquisa" e "meios de investigação" podem se constituir e se deixar transformar, perdendo cada um a sua identidade monolítica e empedernida e existindo no regime do paradoxo: descobertos e inventados simultaneamente.

Mas será que isso em que o método psicanalítico opera com tamanha incidência e tanta insistência deve ainda ser chamado de pesquisa? Não se prestaria isso à confusão entre duas coisas totalmente distintas? De um lado, temos a pesquisa planejada e racional das ciências modernas e, de outro, uma atividade de descoberta e invenção característica da atividade psicanalítica. Por que não assumirmos, enfim, que a psicanálise comporta em seu pleno exercício a dominância da descoberta e da invenção criativas e que a idéia de "pesquisa" veste muito melhor as atividades em que descoberta e invenção podem até existir, mas subordinadas ao momento da demonstração, da verificação ou da refutação de hipóteses e teses?

Indo além: será que a noção de "método" é a que mais se afina com a mútua constituição e transformações de objeto, sujeito e meios e com a primordial "entrega não mediada ao objeto", sem a qual não se exerce a psicanálise? Não seria a psicanálise ela mesma uma matriz de estratégias de investigação (Minerbo, 2000) mais do que um "método de pesquisa", considerando-se o quanto a noção de "método" está, desde Descartes, comprometida com a pretensão do homem da modernidade de exercer um pleno controle sobre seus próprios processos volitivos e cognitivos? Já as estratégias vão se formando e transformando, engendrando táticas e propiciando "sacadas", em função das condições atuais em que são efetivadas; estratégias deixam uma larga margem para o improviso e para os processos primários, para as descobertas e para as invenções. A menos que se desconstrua a acepção corrente de "método", forjada em muitos séculos da cultura ocidental, para retomar uma acepção mais arcaica e original do termo, deixando de lado suas ressonâncias modernas e "científicas".

A estas questões poderemos retornar nas considerações finais sem que nos sintamos obrigados a dar a elas uma resposta unívoca. Passemos ao exemplo.

A entrevista e sua interpretação, originalmente, fizeram parte de uma monografia apresentada ao fim do curso de especialização em psicanálise da Universidade Federal de Uberlândia3, que um de nós (MM) teve a oportunidade de orientar. A autora partia da observação de um fenômeno que a intrigava: por que, mesmo tendo as informações necessárias à prevenção da AIDS, uma alta porcentagem de mulheres se deixa contaminar pelo HIV? Sua hipótese era de que há outros fatores — quais? — que tornam a informação insuficiente. Optou, então, por entrevistar uma mulher nestas condições: tinha as informações, e estava contaminada pelo vírus. A entrevista transcorreu livremente: "Conte-me sua vida" foi a única instrução dada à paciente.

Depois de transcrita, a entrevista foi interpretada seguindo os mesmos procedimentos usados na clínica psicanalítica: uma escuta flutuante, isto é, descentrada do tema central, intencionado; um recorte do texto privilegiando temas, expressões, brechas, palavras, ou quaisquer elementos que sirvam como cunha para desconstruir o texto; uma reconstrução deste texto que permita ao analista criar ali um sentido novo, inesperado, produzindo uma outra verdade sobre o texto. A escuta é informada pela contratransferência, ou seja, pela maneira como a entrevista, e depois o texto, interpelam o intérprete4. Acompanharemos este processo — o pulo do gato — detalhadamente.

Antecipamos o que a interpretação da entrevista revelou. O processo de contaminação, neste caso, se iniciou muito antes da relação sexual em que a mulher contraiu a doença. A causa da doença foi o ambiente familiar e social que deixou esta paciente totalmente desprotegida e vulnerável. A AIDS pode ser entendida também como uma metáfora do modo de vida de certas meninas/adolescentes/mulheres, transmitido de mãe para filha. Desde o berço, esta mulher foi exposta, sem qualquer tipo de proteção, a uma situação social altamente contaminada. Não houve, em seu cotidiano, uma matriz simbólica para que se construísse a noção de "proteção". Os significantes "proteger" e "ser protegida" permaneceram vazios de experiência e de significação. Tal como o corpo sem imunidade, ela começou a vida como uma lutadora, com a esperança de vencer o destino. Foi perdendo as batalhas, uma após a outra, até desistir. É quando se descuidou, contaminando-se. Sua história de vida "pedia" um final precoce e trágico. A AIDS chegou sem surpresa, revolta ou ressentimento. Desta perspectiva, a doença faz mais sentido como desfecho desta vida — como os acordes finais de uma sinfonia, já esperados — do que qualquer desfecho feliz.

Na transcrição da entrevista, a fala da paciente aparece em itálico. A transcrição da entrevista é, tanto quanto possível, literal, mantendo-se o estilo e vocabulário da paciente.

 

A entrevista

A história de minha mãe com meu pai...

Para levá-la ao lugar em que deveria entrevistá-la, a entrevistadora foi buscar a paciente em sua casa; esta se despede da filha pequena com um beijinho na boca. Ao ligar o gravador, a entrevistada recebe apenas a instrução de contar sua história de vida.

Antes eu sabia contar minha vida inteirinha, dava até um livro. (Agora você não sabe?) Agora estou meio tontinha.

Você quer saber de quando eu era mocinha ou quando eu era criança? (Eu quero saber tudo da sua história, você vai contando o que quiser.)

A história de minha mãe com meu pai vem lá do sul. Eu nasci lá, e vim para cá com quatro anos de idade. Minha mãe se casou com quinze anos e teve quatro filhos. Teve quatro não, teve seis, porque dois gêmeos ela perdeu. Ela separou do meu pai depois de doze anos. Era testemunha-de-jeová e fugiu para cá com a gente. Largou casa e tudo porque meu pai era violento, bebia e batia nela.

Aqui, por incrível que pareça, minha mãe trabalhava muito, era só ela que trabalhava. Meus irmãos mais velhos ficavam levando turminha em casa, fazendo festinha, tudo quando minha mãe não estava. Usavam droga, maconha e tudo na frente das crianças — que era eu e minha outra irmã mais novinha.

Menina direita, igual a minha mãe

Quando eu tinha treze anos, um rapaz malquerido me roubou e eu fugi com ele. (Roubou? Mas você quis ir com ele?) Ah, eu quis, né. Dali uma semana meu irmão foi me buscar, e eu não quis ir, quis ficar com ele, mas aí eu era mocinha ainda, né, mas fiquei, mas minha mãe fez os papéis do casamento, fez eu passar pelo médico, mas os papéis caducou, nós não casamos. Eu tenho uma filha com este homem. Ele é dez anos mais velho do que eu. Quando eu fugi com ele eu tinha treze anos e ele tinha vinte e três. Aí a gente se separou quando eu tinha dezesseis anos, foi pouco tempo, eu estava grávida de uns três meses de vida, ele foi preso e larguei dele, eu já não gostava muito dele, eu queria largar dele, pois eu não gostava de drogas, destas coisas, né. Inclusive nesta época eu fumei até maconha com ele, mas quando fiquei grávida da minha filha eu comecei a passar mal e parei e eu falei esta vida não é para mim.

Eu sou menina direita igual a minha mãe, porque só eu puxei para minha mãe. Aí quando minha filha nasceu, com dois meses de vida eu fui na cadeia, mostrei para ele e peguei os documentos dele para registrar e disse que nunca mais ia querer ele. Olha, para você ver, ele roubava e levava para casa da mãe, a mãe dele escondia droga, escondia roubo dele, mexia com macumba, esta coisa horrível. Eu não, eu já gosto de Deus, eu sempre rezava, eu me escondia dela todo dia, lá fora, no banheiro, para rezar de tanto medo que eu tinha daquela mulher, de alguma macumba que ela pudesse fazer para mim. E parece que foi mesmo, quando eu vim embora para cá, ela rogou mil e uma pragas, disse que eu não ia dar certo, que eu não ia passar de uma prostituta, que se eu não ficasse com o filho dela eu não ia ficar com mais ninguém. Eu fiquei com medo... Eu não fiquei assim com medo, eu falei, Deus é mais forte, sabe?

Eu sempre fui assim, uma venced... uma lutadora

Eu sempre fui assim, desde pequenininha fui uma venced... uma lutadora. Igual minha mãe. Quando eu vim pra cá com a criança, aquela mulher (sogra) me roubou a minha filha. Hoje minha filha mora lá com ela, ela tem doze anos. (Mas como roubou?) Eu tenho seis processos, de seis anos que eu lutei pela minha filha, agora eu desisti tem três anos. Eu morava sozinha, minha mãe quando eu vim com minha filha disse que eu poderia ficar dois, três meses com ela, depois arrumar uma casa e cuidar de minha filha, pois ela não queria mais criança lá. Eu teria que me virar, foi o que minha mãe disse para mim. No prazo de três meses, arrumei um emprego, arrumei uma casa e fui morar sozinha, com dezessete anos, eu e minha filhinha, mas aí eu tinha que deixar ela com os vizinhos para poder trabalhar.

A sogra veio de lá e pegou a menina para levar, e para eu pegar nas minhas folgas. E foi assim, eu deixei ela levar e pegava a menina de sábado e domingo, trazia para cá, ficava comigo, e na segunda ela vinha buscar a menina e levava para lá para eu poder trabalhar. Um fim de semana eu cheguei lá e ela não quis mais me entregar a menina, que já tinha quatro anos e meio.

Aí eu fui no fórum, conversei com uma juíza e a juíza falou para mim que eu deveria pegar a menina e vir embora, mas aí eles não deixavam. Aí, a mãe dele falou que eu só levaria a criança da casa dela com ordem do juiz, mas eu perguntei que ordem do juiz ela tinha para estar com minha filha. Não deixaram trazer a menina nunca mais e disseram que eu só posso ir lá ver. Eu lutei todos estes anos, mas todos os advogados que eu pegava largavam a causa.

Agora eu não vou mais lá, porque da última vez que fui elas queriam me bater. Não o pai dela, pois ele sumiu de casa, sumiu do mundo. Aí eu falei, ela ganhou a causa. Ela quer levar a menina para lá, ganhou, levou. Eu não perdi nem ganhei, não teve audiência, eu tenho seis advogados que trabalhavam para mim e não faziam nada, todos desistiram da causa. É macumba que a velha fez.

E ele desistiu de mim

Minha filha tem três anos e meio que eu tenho, esta. Eu estava cansada de trabalhar e morar sozinha e disse para minha mãe que ia arrumar um homem e casar, aí arrumei este namorado, que é muito bom, não fuma, não usa droga, não bebe muito, porque eu odeio homem que usa droga, peguei trauma por causa dos meus irmãos.

Este Juliano é um amor de pessoa, ele tinha um irmão, aí tudo bem, comecei namorar ele e com três meses de namoro engravidei e olha que faz tempo que eu tinha a outra menina, a outra tinha seis anos quando engravidei desta. E eu lutando, aí eu disse que estava no meio de um processo, e disse a ele que era melhor a gente se casar logo porque aí ele me dava uma força para eu entrar na justiça, porque casada talvez era melhor do que mãe solteira, por causa da condição de vida. Aí ele aceitou. De repente eu fiquei grávida e ele veio morar junto, só que a gente não deu certo por causa do processo, aí o irmão dele morreu de acidente, morreu esmagado numa ponte, aí ele muito triste e eu grávida, lutando para ter a outra menina e ele desistiu de mim. Por isso que sou mãe solteira.

A pior coisa que fiz na minha vida

Agora arrumei outro estes tempos atrás. De novo falei para minha mãe, disse que arrumaria um homem porque minha filhinha estava crescendo e queria arrumar um pai para ela, da outra eu desisti de lutar Aí minha mãe disse tá, você é quem sabe. Aí conheci um rapaz que não fumava nem usava droga, mas bebia pinga. Foi a pior coisa que eu fiz na minha vida. Este homem se instalou na minha vida, morou comigo uns seis meses e eu tentei largar, largar, largar, resultado de tudo, quando eu tentei mesmo largar dele, além de ele me tomar geladeira, fogão que compramos juntos, ele mandou eu ir na Marginal buscar um dinheiro e mandou uma mulher me matar, verdade, e ela me trancou no quarto e me deu um monte de garrafada, queria me matar, por isso eu tenho estas marcas.

Acho que foi ele que me passou a doença (AIDS). Eu peguei até gonorréia dele, tive que tomar dez injeções dolorosas.

Deu positivo duas vezes

Este homem ficava atrás de mim, interessado em meu dinheiro. Quando eu recebia pensão da minha filha, ele tomava de mim, gastava tudo, me dava só alguns reais para fazer compra, eu tive que misturar leite com água. (Pede para desligar e começa a chorar.)

Aí eu estava desnutrida e com sapinho na boca, diarréia, aí achei que fosse falta de vitamina. Aí o otorrinodisse que eu estava com AIDS, porque ou é neném ou idosos que tem sapinhos na boca. Fiz exame HIV em Ribeirão, deu positivo duas vezes, estava muito carregado, eles tentaram me ajudar de todas as maneiras, mas demorou um pouco minha internação, eu comecei a tomar o coquetel no mesmo dia que deu positivo. Em agosto eu já tomava, 15 de agosto. Eu vim embora para cá e passei junho e julho com ele, ele não queria me levar no médico, não queria que eu fosse em Ribeirão, ele queria que eu morresse, você acha?

Eu vim para Jaboticabal e pedi à minha mãe para pôr meus móveis na varanda da casa dela até eu arrumar uma casa e um serviço, aí falei que estava doente da barriga, ela achava estranho aquele tanto de remédio. Aí recebi oitocentos reais de seguro e desemprego, atrasado quatro meses, eu recebi de uma só vez. Aí fui no Córrego Rico, aluguei uma casinha lá, eu e minha mãe. Fui em Guariba e limpei a casa, pois tudo ali era meu. Aí eu trabalhava na roça e deixava minha menina com minha irmã que mora lá. Ela ia na escolinha.

Não sou depressiva, sou feliz

Com umas três semanas na roça eu fui em Ribeirão e fui internada. O médico disse que eu não podia trabalhar em uma roça nem em um sol e falou do meu peso, eu estava dez quilos abaixo do normal e tinha febre de quarenta e oito graus. Aí deixei minha menina com a minha mãe e me internaram, disse que já era para terem me internado, eu estava com octoplasmose, era manchas pretas. Aí fiquei dezoito dias lá, e eles não quiseram me deixar ocupando um quarto, a doença é no sangue e com o HIV, então, a pessoa morre mesmo. Aí pedi para uma enfermeira amiga minha para contar para minha mãe.

Meus irmãos dizem que sou depressiva, mas não sou, sou feliz, em vista do que eu estava com aquele monstro, porque estou melhor. Eles dizem para eu sair de casa, mas eu gosto de assistir televisão, de ficar em casa com a minha filha, eu me sinto bem, não sou depressiva. Para mim me divertir não é sair e beber, é ir a um churrasco, em um aniversário.

Eu não tenho só o vírus da AIDS, eu tenho a AIDS. Se eu não tomar cuidado, tomar chuva, eu passo mal. Se eu beber eu fico só vomitando.

(Seu companheiro não fez o exame?)Ele não quer fazer, ele diz se tiver o vírus ele morre logo ou vai para a Bahia e toma um chá, olha o que ele pensa. Ele diz que não tem, que não pegou. Mas ele tem sim porque ninguém escapa desta doença, se tiver relação com quem tem a doença, pega mesmo. Depois que eu arrumei este homem minha vida acabou, eu me arrependi até o último fio de cabelo.

O único apoio que tive foi você

(Percebi que você fala em Deus, você tem religião?) Sou evangélica, mas agora vou para a católica, só que tenho vergonha de ir porque não tenho roupa para pôr e as pessoas reparam. Eu tenho muita fé em Deus e o médico até se espantou com o tanto que eu melhorei. A carga viral abaixou de 3800 para 800. O vírus está dormindo.

Eu fico com a boca amarga, com vontade de deitar, cansada, se eu trabalhar é capaz de me dar um trem, não posso forçar meu corpo, nem para andar. Não consigo mais trabalhar do jeito que eu trabalhava antes. Nem na padaria da esquina eu não vou. Só quando estou animadinha vou comer lanche com minha filha. (Sua filha fez o exame?)Fez e acabou de dar negativo, demorou um mês para dar o resultado. Com a graça de Jesus.

O que mudou depois da doença foi que voltei a ser a menininha que eu era antes dos treze anos. Minha mãe agora me trata com o mesmo carinho de quando eu era criança. Minha mãe trabalhava e quando estava em casa fazia o que gostávamos de comer. Hoje, se estou dormindo ela nem abre a porta do quarto para não me incomodar. Sinto-me protegida com a minha mãe. Para minha mãe também foi bom, ela estava perdida, eu ajudei ela, dando força para ela psicologicamente. Ela me ajuda financeiramente e estou sendo mais forte que ela porque meus irmãos deram muito trabalho para ela. O mais velho esteve preso. Minha irmã mais velha ficou sem-vergonha. Bebe de bar em bar, e é casada ainda, hein. Ela dá dor de cabeça para minha mãe. Eu dei uns cacetes nela. Ela tem problemas e procura minha mãe. E ainda diz que não é alcoólatra.

Ao fim de três entrevistas ela diz à entrevistadora: O único apoio que tive foi você.

 

O processo de interpretação: o pulo do gato

Como dissemos, o texto original será desconstruído, desmontado, recortado, e reconstruído segundo certas linhas de força, tal como o faríamos na clínica de consultório. Começamos nosso trabalho de leitura recortando um trecho do início do material, uma observação que a entrevistadora registra antes mesmo de iniciar a entrevista. Diz respeito à sua própria reação emocional ao que observara.

A paciente estava no portão com a filha pequena e deu-lhe um beijinho na boca. O beijo na boca chama a atenção da entrevistadora. Ela imagina que este beijo poderia ser perigoso. Sem querer, a mãe poderia estar fazendo mal à filha.

Esta fantasia da entrevistadora — "sem querer, a mãe poderia estar fazendo mal à filha" — vai operar como eixo norteador da escuta de toda a entrevista. Funciona como os primeiros acordes de uma sinfonia: o tema nos é apresentado, e reaparece, com variações, ao longo da obra. Na atividade interpretativa, uma fantasia de forte conteúdo emocional dá o clima e o rumo ao que irá sendo descortinado. O intérprete já está em processo de transformação: afetado pelo que encontrou no material, ele já começa a se pôr em sintonia para empreender sua tarefa.

Embora a entrevistadora soubesse que a AIDS não se transmite pelo beijo, ficou alarmada com a idéia de que a mãe estaria fazendo mal à filha. Em lugar de descartar esta idéia, resolvemos tomá-la em consideração, não no campo da medicina, em que não faz sentido, mas em outro. Em que outro campo a idéia de um beijo perigoso faria sentido? Como veremos, as mães transmitem (pelo beijo) às filhas, não a doença, mas um modo de vida completamente contaminado, o que torna as filhas realmente vulneráveis a todo tipo de perigo. A história dramática que acabamos de ouvir tende a se repetir de geração em geração porque este modo de vida ultrapassa aquela mãe e aquela filha. Portanto, é no campo sociocultural que a apreensão da entrevistadora faz sentido: é o meio em que nascem, crescem e vivem estas mulheres que as torna tão vulneráveis.

Continuamos recortando a entrevista.

Antes eu sabia contar minha vida inteirinha, dava até um livro. Agora estou meio tontinha.

A vida é dividida entre antes e agora, agora que tenho a doença. Mas podemos dividi-la, também, entre antes e agora — agora, quando toma consciência de que já ter transmitido à filha um modo de vida contaminado. Antes, o beijinho é dado inocentemente, sem qualquer consciência deste fato. Agora, quando conta à entrevistadora que precisou colocar água na mamadeira da filha, ela chora. Chora porque sabe que transmitiu, desde a mamadeira, a desproteção (o leite aguado). Chora porque percebe que não tinha como evitar isto. Chora porque sabe que esta desproteção tornará sua filha tão vulnerável aos perigos da vida quanto ela mesma foi.

A menção ao livro revela o desejo de registrar sua experiência. A entrevista, como ela sabe, irá para um "livro", a monografia. Seu testemunho está sendo gravado. E o testemunho mostra, justamente, como antes ela era tontinha. Antes ela não tinha consciência de sua condição. Agora, graças à AIDS — sem a qual ela não estaria sendo entrevistada —, sua vida, seu sofrimento anônimo, tem um sentido. Ela poderá legar à filha — e às outras mulheres —, não um leite ralo, mas algo que poderá fortalecê-las: o conhecimento de como se transmite a vulnerabilidade feminina. Neste sentido, sua última frase (o único apoio que tive foi você) é curiosa. Que apoio teria recebido da entrevistadora? À primeira vista, apoio é sinônimo de ser escutada, por outra mulher, pela primeira vez na vida. Mas podemos entender este "ser escutada" como a construção de uma ponte com outras mulheres, como um apoio à sua "causa": as mulheres precisam lutar contra a mamadeira rala que a sociedade lhes oferece5.

Retornando ao beijinho na boca, além do amor, vimos que ele simboliza a transmissão de certo modo de ser mulher no meio sociocultural em que vive: desamparada, frágil, vulnerável, cumpridora passiva e solitária de um destino terrível. Sua história, portanto, começa com a história de sua mãe.

A história de minha mãe com meu pai vem lá do sul.

Sua história vem de longe, lá do sul, perde-se na noite dos tempos. Estas mulheres tentam fugir — minha mãe fugiu, largou casa e tudo. Fugiu de um marido alcoólatra que batia nela. Mas não há para onde fugir. A própria paciente, em sua terceira tentativa de reconstruir a vida, acabou com um marido alcoólatra, a pior coisa que fiz na minha vida, da qual me arrependi até o último fio de cabelo. É este homem que a contaminou com o HIV.

Eu sempre fui assim, desde pequenininha fui uma venced... uma lutadora. Igual a minha mãe.

A mãe fugiu do pai na esperança de ser uma vencedora, de conseguir driblar seu destino. O máximo que conseguiu foi ser uma lutadora. Coube-lhe criar, sozinha, quatro filhos, sendo que os filhos tornaram-se drogados ou bandidos, uma das filhas ficou "sem-vergonha", e ela mesma, que sempre foi direita, igual a minha mãe, está com AIDS.

Era só ela, minha mãe, que trabalhava. Meus irmãos mais velhos, que podiam ajudar, ficavam fazendo festinha.

É sua primeira experiência de violência social, da exploração da mulher pelo homem, dentro de casa. A garotinha é testemunha do esforço hercúleo e solitário da mãe, e começa a internalizar as representações do que significa ser mulher, e ser homem, neste meio social. Homem, segundo sua própria experiência, é aquele que pode se divertir de maneira egoísta e irresponsável. Para ela, os filhos homens "herdam" do pai uma atitude de desprezo e de exploração da mulher.

E eles usavam droga, tudo na frente das crianças.

Vai-se delineando um cenário tenebroso: em lugar de proteger, o homem expõe a mulher, ainda criança, ao perigo. A idéia, a própria noção de "proteção", não tem como se formar porque a experiência cotidiana não contém uma matriz simbólica para este significado. O significante "proteger" permanece vazio de experiência e de significação. Assim, não há como internalizar uma atitude de proteção e de autoproteção diante da vida, resultando numa vulnerabilidade que ela irá carregar para sempre.

Com mais rigor, pode-se dizer que a representação de proteção que ela traz é ambígua. Em outra entrevista (que não está transcrita neste texto), ela diz que, segundo a mãe (pois ela mesma não se recorda), o pai tanto a protegeu quanto a expôs ao perigo. Ele gostava mais de mim do que dos outros, porém era muito violento quando ficava bêbado. O mesmo irmão que usava drogas diante dela e da irmã menor esboça um frágil gesto de proteção quando, aos treze anos, ela é roubada por um rapaz malquerido.

Enfim, a idéia de proteção está atravessada pela ambigüidade quando ela conta que rezava para Deus, trancada no banheiro, para escapar à sogra. Ela está restrita a ocupar um único lugar no mundo: o banheiro. É ali que ela se sente a salvo, no lugar onde os seres humanos deixam seus dejetos, no lugar do sujo e do contaminado. É com os dejetos que ela se identifica, e, enquanto tal, sente-se a salvo, pois nem a sogra atacaria um dejeto humano. Ainda assim, espera que Deus a ajude, mas será que ele ouviria os apelos vindos de um banheiro?

Como vemos, a imagem paterna (Deus), geralmente associada à proteção, se constitui a partir da idealização (o puro, o sagrado), do sujo e contaminado (banheiro) e do persecutório (a sogra). Com relação à figura materna, há a mesma indistinção entre proteção e perseguição: a sogra começa por ajudá-la, mas acaba roubando sua filha. Esta confusão impede que se forme a idéia de proteção, o que exigiria uma cisão bem demarcada entre o limpo e o sujo. Embora não fosse nossa intenção no processo interpretativo deste material identificar a forma da constituição psíquica da entrevistada, parece claro que a ausência de uma noção de proteção, ou a ambigüidade da noção existente, são indícios de uma organização subjetiva extremamente precária e vulnerável. Poderíamos vislumbrar uma configuração egóica muito frágil, o que justifica a hipótese de que "ser escutada" e "ser levada a contar sua história", registrando-a em um gravador (para inclusão em um "livro"), possa ter o sentido de "receber um apoio", mesmo que nada mais lhe seja oferecido.

Passemos adiante.

Um rapaz malquerido me roubou e eu fugi com ele. Meu irmão foi me buscar e eu não quis ir.

Nesta frase, temos uma adolescente que já se acostumou a desejar (no sentido psicanalítico) ser malquerida. Há também uma ambigüidade em ele me roubou e eu fugi com ele. Foi roubada ou fugiu? Gostava do rapaz ou ele era malquerido? Se antes ela era uma vítima passiva da falta de proteção, agora ela já a recusa abertamente: o irmão foi buscá-la, mas ela não quis ir. A mãe ainda tenta protegê-la, fez os papéis do casamento, fá-la passar pelo médico, mas os papéis caducou. Não adianta mais. Ela já está no mundo, sozinha, vulnerável, exposta aos perigos. O pai de sua filha está na cadeia, a sogra macumbeira acoberta os crimes do filho, a mãe diz lhe diz que tem que se virar sozinha. É na adolescência, aos treze anos, que começa a cumprir seu destino de vítima. Ela imagina que pode ser uma venced..., logo se corrige, é uma lutadora, e, quando as forças se esgotarem, sua vulnerabilidade fará dela uma perdedora.

Nunca mais ia querer ele.

Não existe nunca mais: uma vez entrando nesta vida que se passa no banheiro do mundo, ninguém sai limpo ou ileso. Seu destino está selado aos dezessete anos, quando volta para casa com a filha no colo.

Ao perder a filha para a sogra, tendo lutado durante anos na justiça — seis advogados que trabalhavam para mim e não faziam nada, todos desistiram da causa. É macumba que a velha fez —, temos a primeira metáfora para a AIDS. Os advogados e a justiça, que funcionam como sistema imunológico da sociedade, desistiram, corrompidos pela macumba. Ela lutou, lutou, e morreu na praia. A filha não a quis mais/ela desistiu da filha. É como um corpo esgotado que aceita, frágil e vulnerável, as infecções da vida. Estamos falando, aqui, de cidadania. Eu sou menina direita igual a minha mãe. De nada lhe vale ser direita. O mundo, de seu ponto de vista, é injusto, e quando ela se vê, de fato, abandonada pela justiça, fica claro que para ela não existe proteção. Os direitos básicos do cidadão, da mulher — educação, saúde, emprego, creche etc. — não são, nem jamais serão, para ela. Já temos, aqui, plenamente constituída, uma adolescente sem qualquer imunidade contra a vida: sem camisinha, sem abrigo, sem proteção, sem residência própria.

Ainda assim, não se entrega à doença social, e tenta recomeçar. Agora, apesar de jovem, já tem experiência de vida e pode escolher melhor seu parceiro. Este Juliano é um amor de pessoa. É muito bom, não fuma, não usa droga, não bebe muito. Pode inclusive ter outra filha. E, por um tempo, parece que a vida lhe sorri. Mas a sensação de fragilidade persiste, como um mau presságio. Eu disse que era melhor a gente se casar logo. Logo, quer dizer imediatamente, antes que o destino acorde, e que outra desgraça lhe aconteça. E acontece. O irmão de Juliano morre esmagado numa ponte. Um acontecimento tão absurdo como um aidético morrer de gripe, uma bobagem que coloca a vida a perder. O marido bom que ela poderia ter, seu primeiro protetor, também desiste dela. E ele desistiu, por isto sou mãe solteira. Ela solta no mundo, perdida sua segunda batalha.

Terceira tentativa. Este homem se instalou na minha vida.

A idéia que esta fala nos transmite é de algo ruim que se instala para sempre, como uma doença fatal, como o HIV. Desta vez o furo da camisinha estava num lugar novo para ela — ele não fumava nem usava droga, mas bebia pinga. Foi a pior coisa que eu fiz na minha vida. O homem lhe tirava todo o dinheiro, deixando-a, e à filha, desvalidas. O relato desta vida nos encaminha, como os acordes finais de uma sinfonia, para um desfecho precoce e trágico. A AIDS é quase uma decorrência natural da vida. Aliás, a morte entra em cena bem antes da doença. Ele mandou uma mulher me matar. Por isto tenho estas marcas. De fato, ela é uma mulher marcada, sobretudo por sua condição social que lhe fecha todas as saídas. Esta condição social se inscreve no plano intrapsíquico como uma ausência de recursos próprios e de espaços internos protegidos.

Finalmente, este homem lhe transmite a doença. Isto nos é dito sem grandes emoções, tanto ela como nós já o esperávamos. Há duas frases que passam quase despercebidas, mas, quando nos damos conta do que significam, são terríveis. Uma é a que mencionamos logo no início desta interpretação: ela pede que a entrevistadora desligue o gravador e chora quando conta que teve que misturar água no leite da mamadeira. E a outra é: Tive que tomar dez injeções dolorosas.

Nestas duas frases ela parece entrar em contato, pela primeira vez, com a dor. Quando o corpo sente dor, adota uma posição antálgica, que protege o local dolorido. Sua vida é, do começo ao fim, uma dor só. Mas é na ponta da agulha que entra na carne que se condensam todas as dores. A dor psíquica e a doença lhe trazem, paradoxalmente, um alívio para as dores da vida. Meus irmãos dizem que sou depressiva, mas não sou, sou feliz, em vista do que eu estava com aquele monstro.

Os pequenos prazeres são mencionados pela primeira vez, nesta longa entrevista. Para mim me divertir é ir a churrasco, em um aniversário. Foi preciso que ela chegasse ao fundo do poço para que seu pedido de ajuda fosse escutado. Ela relata que recebe atenção dos médicos e remédios; recebeu seguro-saúde e passou a ter sua própria roça; a irmã cuida da filha, a mãe agora a trata com carinho. Se estou dormindo ela nem abre a porta do quarto para não me incomodar. Sinto-me protegida com a minha mãe. Deus está cuidando dela: a carga viral baixou de 3800 para 800, o vírus está dormindo, e sua filha não foi contaminada, com a graça de Jesus. Concluindo, graças à doença a idéia de proteção, antes um significante vazio, ganha um sentido nesta história de vida. Em contrapartida, é apenas no processo da entrevista que uma história de vida chega a se constituir.

 

Considerações finais

A conclusão — a interpretação psicanalítica da transcrição da entrevista — foi apresentada no início do trabalho interpretativo para que agora possamos discutir a idéia de pesquisa em psicanálise.

Como ficou ilustrado, o que pode ser apresentado como "método psicanalítico" — guardadas as ressalvas já esboçadas — consiste em efetuar certos recortes que não são arbitrários, pois vão sendo solicitados pela própria análise em andamento e se transformam à medida que a análise transcorre. No caso, foi a contratransferência da entrevistadora diante do beijo da mãe aidética na boca da filha — uma sensação forte de perigo e falta de proteção — que instalou o horizonte e o espaço por onde os recortes e costuras interpretativos caminharam. A partir daí, eram os achados que determinavam os rumos das invenções, e vice-versa. Ou seja, é a própria interpretação, à medida que tramita, que funciona como eixo para a escuta/recorte de novos fragmentos, os quais, quando interpretados, terão a mesma função com relação ao material que virá.

O primeiro recorte, como vimos, foi efetuado a partir da sensação contratransferencial de "beijo perigoso". Mesmo sabendo que AIDS não se transmite por beijos, o psicanalista toma em consideração o impacto emocional experimentado diante da cena, sabendo que há de fazer sentido em algum outro campo. É então que se abre — em uma espécie de lance antecipatório — o campo da interpretação.

Cabem algumas considerações sobre o alcance do "método psicanalítico". Este pode ser usado para interpretar qualquer fenômeno que faça parte do universo simbólico do homem: sessões de psicoterapia, entrevistas, qualquer tipo de material apresentativo-expressivo (projetivo), fenômenos sociais ou institucionais, material clínico colhido de grupos de pacientes (colostomizados, fóbicos etc.). Por outro lado, não é adequado para descobrir relações de causa e efeito, nem para transpor descobertas feitas num campo para outro. Nem é preciso dizer que investigações feitas por meio deste procedimento não se prestam para tratamento estatístico. Com relação à verdade da interpretação, ela é sempre relativa ao processo que a produziu e este processo — como qualquer estratégia — é irrepetível e singular. No caso, ele teve início com a escuta do "beijo perigoso". Mas pode haver outra interpretação igualmente verdadeira, e uma pode ser mais útil do que a outra, dependendo do contexto, e do uso, que se venha a fazer dela. De qualquer modo, a verdade de uma interpretação não pode ser tomada como definitiva, mas sempre provisória. Nem como totalizante, pois é sempre uma verdade parcial, uma perspectiva selecionada do seu objeto.

Ainda com relação ao alcance deste método, é importante enfatizar que toda investigação psicanalítica tem algum efeito terapêutico, no sentido ampliado do termo. Recordemos que esta investigação partiu da observação de uma mulher que, apesar de ter todas as informações sobre prevenção da AIDS, era HIV positivo. Ora, o efeito terapêutico da investigação deste fragmento da realidade só pode incidir diretamente sobre ele, e não sobre a moça entrevistada. Daí, a idéia de efeito terapêutico no sentido ampliado do termo, pois, neste caso, o efeito terapêutico se dá com/pela descoberta de que uma campanha meramente informativa tem seus limites; de que estes limites se relacionam com a ausência de certas matrizes simbólicas, tornando a informação inoperante; e de que as estratégias em saúde pública não podem fazer a economia da construção destas matrizes simbólicas. Instrumentando-se o efeito terapêutico obtido, o ideal seria que estas informações fossem passadas aos poucos, em grupos terapêuticos. Estes grupos ofereceriam, no aqui-e-agora do campo transferencial, criado entre agentes de saúde e participantes, a experiência emocional de "serem cuidados", fundando-se, assim, esta matriz simbólica compartilhada. Espera-se que, por meio deste processo, as informações "técnicas" possam vir a se tornar realmente operantes.

Nada impede, porém, que, saindo do campo próprio a esta investigação, pensemos no efeito terapêutico de que se beneficiou a moça entrevistada. Em certo momento ela diz: "O único apoio que tive foi você". Ao sentir-se escutada, e, principalmente, sabendo que sua narrativa dará "um livro", ela está expressando, à sua maneira, que a sua vida e a sucessão de seus sofrimentos passaram a ter um sentido — passaram a se constituir em acontecimentos de sua história. Nesta condição, podem vir inclusive a beneficiar outras mulheres que, como ela, não puderam contar com um ambiente suficientemente bom. Poderíamos ainda dizer, avançando para a dimensão intrapsíquica da moça entrevistada, que a incapacidade de conceber um espaço protegido desfalcara este psiquismo de uma função egóica fundamental e, assim, privara o eu desta pessoa da capacidade de se apropriar de recursos e usar em seu proveito informações cruciais. Uma certa dimensão destas falhas de constituição subjetiva parece ter sido tocada na entrevista, o que se expressa no agradecimento pelo "apoio".

De todo modo, em termos de pesquisa psicanalítica, convém que o investigador não pretenda mais do que sua investigação permite. Quando investiga na clínica, suas conclusões valem para a clínica. Quando investiga um fragmento da realidade, suas conclusões valem para o fragmento estudado. E isto já é o bastante para tornar a atividade de pesquisa em psicanálise perfeitamente respeitável.

 

Referências

Green, A. (2002). Idées directrices de la psychanalyse contemporaine. Paris: PUF.         [ Links ]

Mezan, R. (1979). A trama dos conceitos. São Paulo: Perspectiva.         [ Links ]

Mezan R. (1985). Freud, pensador da cultura. São Paulo: Brasiliense.         [ Links ]

Minerbo, M. (2000). Estratégias de investigação em psicanálise. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

 

 

 

Endereço para correspondência
Luís Claudio Figueiredo
Rua Alcides Pertiga, 65
05413-100 São Paulo, SP
Fone: 3086-4016
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Recebido em: 11/04/06
Aceito em: 11/05/06

 

 

* Psicanalista, professor da PUC-SP e da USP.
** Psicanalista, Membro Efetivo e Analista Didata da SBPSP.
1 Uma parte do presente texto, assinada por LCF, integrou uma resenha publicada na Revista ide; outra parte, escrita por MM (que agradece a interlocução de Cintia Buschinelli), foi publicada, em co-autoria com Giuliana Gouveia (responsável pela realização da entrevista), no livro Adolescência e violência, organizado por David Léo Levisky. Ambas foram transformadas para compor o presente trabalho e a elas se acrescentaram partes novas escritas a quatro mãos.
2 Nas relações entre o texto e seus leitores, há transferência a partir dos dois lados: o leitor atribui saber ao texto a que se dedica e o escritor atribui, antecipadamente, o poder de leitura e decifração aos leitores que, eventualmente, ainda nem existem, vindo a ser criados e inventados pelo próprio escritor através dos textos que oferece. No caso da entrevista apresentada a seguir, nos termos de André Green (Green, 2002), é nítida a transferência da depoente sobre as palavras e sobre o objeto (a entrevistadora, profundamente afetada pelo que vê e ouve). A transferência sobre as palavras é a condição precisa da análise psicanalítica deste material, mas a transferência sobre o objeto é o que abriu — na forma de uma contratransferência — o horizonte da interpretação.
3 Giuliana Gouveia.
4 No caso, como se verá, algo que a entrevistadora observou antes de começar a entrevista a afetou profundamente. Esta forte impressão passou à intérprete e instalou o horizonte antecipado de interpretação em que os recortes do material foram sendo efetuados e as novas costuras foram ocorrendo.
5 Mais adiante, retornaremos a esta mesma passagem da entrevista agregando novos elementos.

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