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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. v.41 n.74 São Paulo jun. 2008

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

A análise didática: uma análise interminável?

 

Training analysis, and unending analysis?

 

¿El análisis didáctico: un análisis interminable?

 

 

Luis Carlos Menezes*

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo discute problemas clínicos relativos à prática da análise didática. Resultam estes do fato de que a psicanálise, um processo que envolve alguém em posição de analisando e outro em posição de analista, torna-se aqui complicada pelo fato de o analisando ser ao mesmo tempo aluno do instituto e postulante a tornar-se membro da Sociedade em que o analista, como didata, ocupa uma posição hierárquica bem estabelecida. O autor argumenta que isto pode afetar negativamente o processo analítico. Além do que, terminada a análise, ambos vão conviver por um tempo indefinido naquela instituição — ao contrário do que ocorre em uma análise —, e prolongamentos transferenciais inanalisáveis poderão contribuir fortemente para a constituição de um sistema de redes de poder, marcadas por uma influência abusiva do ex-analista. Mesmo mantido esse sistema, a instituição deve se interrogar constantemente sobre seus efeitos colaterais e considerar tal modalidade de análise na perspectiva da natureza dos processos analíticos e não numa aplicação não-modulada, burocrática, do regulamento.

Palavras-chave: Análise didática, Formação analítica, Transferência interminável.


ABSTRACT

In this paper the author discusses the clinical problems involved in training analysis. They result from the fact that psychoanalysis, a process which implicates in one person in the analysand’s position and another in the analyst’s position, becomes complex in this situation by the fact that the patient is at the same time a student in the Institute and a postulant to become a member of the Society in which the analyst, as training analyst, occupies a well established hierarchical position. The author believes this may affect the analytic process negatively. Another factor is that at the end of analysis, they will meet each other for an undetermined space of time in the same institution — as opposed to what occurs in an analysis — and prolonged unanalyzed transferences may strongly contribute to the constitution of a network of power, marked by the abusive influence of the ex-analyst. Even if this system is maintained, the institution should interrogate itself constantly about these side effects and consider this modality of analysis in the perspective of the nature of the analytic process instead of a bureaucratic and not modulated application of regulations.

Keywords: Training analysis, Analytic education, Unending transference.


RESUMEN

En este artículo el autor discute los problemas clínicos involucrados en la práctica del análisis didáctico. Los mismos surgen como consecuencia del psicoanálisis tornarse un proceso engorroso al envolver a alguien en posición de analista y otro en posición de analizando siendo éste, al mismo tiempo, alumno del Instituto y postulante a formar parte de los miembros de la Sociedad en que el analista, como analista didáctico, ocupa una posición jerárquica bien establecida. El autor argumenta que dicha situación puede afectar negativamente el proceso analítico. Además de que, una vez terminado el análisis, ambos van a convivir durante un tiempo indefinido en la misma institución — al contrario de lo que ocurriría en una análisis que está en curso — y prolongaciones transferenciales inanalizables podrán contribuir intensivamente para la constitución de un sistema de redes de poder, marcadas por una influencia abusiva del ex-analista. Manteniendo de todos modos este sistema, la institución se debe cuestionar constantemente al respecto de tales efectos colaterales y considerar esta aplicación no modulada y burocrática del reglamento.

Palabras clave: Análisis didáctico, Formación analítica, Transferencia interminable.


 

 

Regulamentos não são entidades inofensivas,
não são simples parâmetros, eles determinam uma
paulatina drenagem da essência para as regras formais,
sobretudo quando, como em nosso caso,
a essência da operação analítica é tão fugidia.

Fabio Herrmann

 

O sistema de formação analítica e sua peça decisiva, a análise da pessoa que se propõe a sustentar a função analítica em sua clínica, é um problema; um problema com o qual se confronta qualquer instituição — seja ela ou não da IPA — voltada para a psicanálise. Há um esforço para retomarmos em nossa Sociedade a discussão desse assunto essencial, na verdade o mais essencial de todos, se de fato levamos a sério a psicanálise que praticamos e o nosso propósito de ofer ecer condições favoráveis para que novos analistas se desenvolvam junto a nós. Como disse, com muita propriedade, um colega em uma discussão científica (refiro-me, de memória, a uma intervenção de A. Sapienza), a questão não é “que tipo de analista queremos formar”, como afirmava o conferencista, mas como assegurar na instituição condições favoráveis à formação de analistas. O que, a meu ver, muda totalmente a perspectiva em que o problema precisa ser considerado, colocando-o na justa direção.

Tem-se dito que a formação do analista além do clássico tripé — análise, supervisão, estudo de textos — depende de um quarto termo, que são as condições, o ambiente institucional e a qualidade do convívio “científico” e humano dentro dela. Afirmação também pertinente, mas que adquire um alcance bem maior se tivermos em mente que o quarto termo, as relações entre os analistas na instituição, não é isento dos efeitos residuais que possa ter o primeiro termo, a análise — e também as supervisões, mas, sobretudo a análise de uns pelos outros, praticada no decorrer da formação. Nesta, a condição, já em si complexa, analista-analisando, terreno no qual trabalha todo psicanalista, torna-se complicada por outra condição, introduzida na hierarquia estabelecida — com a marca de realidade, pela formalização institucional da formação, a do analista didata-analisando aluno do instituto.

Falso problema? Seguramente, para alguém que não tenha a experiência da análise, seja como analisando, seja como analista: nela, a menos que já tenhamos perdido toda sensibilidade para o que ali ocorre, sabemos o quanto cada detalhe — um atraso ou momento de distração do analista, um lapso deste, uma alteração sutil na maneira como recebe o paciente, uma interrupção para férias ou para uma viagem, uma palavra “fora do lugar”, etc. — pode ter repercussões surpreendentemente intensas. E sabemos como esses momentos de turbulência podem ser fecundos e reveladores num processo analítico, se o analista não ficar na defensiva ao tomar a queixa de forma puramente realística, e puder, ao contrário, tirar proveito dela no trabalho com seu analisando. Porém, como fazer com essa condição parasitária da análise requerida e feita sob a tutela da instituição, que produz efeitos — para ambos — já na procura do analista e em sua escolha, persistindo ao longo de todo o processo analítico, como um dado de realidade imposto de fora? Cada análise é uma análise, não há dúvida, mas estaremos falando de algo a ser negligenciado por aqueles que praticam a análise nessas condições — a análise didática? Falso problema ou ponto cego, para não dizer cegueira e lei do silêncio?

Em retorno, essa hierarquia, operando como dado de realidade no interior da análise poderá ter efeitos — e constatamos que tem — nas configurações em rede que vão compondo a arquitetura institucional; redes em cujo centro encontra-se o analista formador, ou um outro, referência exclusiva deste (Valabrega, 1979/1993). Num campo em que temos que navegar na incerteza, essas redes, ao propiciar reasseguramento, ao garantir certezas identificatórias pelo pertencimento grupal, desempenham função importante em razão de seu valor defensivo. Oferecem um forte convite à adesão. Adesão como aderência alienante, que tende a triunfar sobre o modo de ser muito mais elaborado, muito menos provável, sustentado por um maior grau de liberdade para pensar e decidir sobre o que se percebe, sobre o que se vive, apoiando-se mais nas particularidades e na ousadia das próprias opiniões. Essa condição, embora mais difícil, é conveniente para a prática da psicanálise, quando não, na verdade, essencial (Menezes, 2006). Mas o funcionamento em redes, nutrido pelos resíduos das análises didáticas, não favorece tal condição que só pode ser marginal, única para cada um e tão necessária para a atividade analítica.

Das análises didáticas, como se esperaria de qualquer análise, deve se esperar que favoreçam a afirmação singular dos modos de ser e de pensar de cada um na instituição, em sua vida e, sobretudo, no seu trabalho no consultório. Estamos, no entanto, considerando o risco de que, por estarem integradas e regradas pela vida institucional a que ambos pertencem — analista e analisando —, sejam análises que possam levar ao efeito contrário, ou seja, que possam facilitar a alienação do analisando no conforto soporífero dos funcionamentos em grupos, nas redes ou “grupos de afinidade” que permeiam a instituição com suas ideologias, com seus prefixados modos de pensar e de julgar. E, se é verdade que a instituição não pode impedir que tais efeitos nefastos possam acontecer, seria inconseqüente não pensá-los, ignorá-los, nada procurando fazer para restringir sua ocorrência.

A liberdade interior de pensamento e de capacidade de inquirição de cada analista é importante também porque aspiramos funcionar como comunidade “científica”, queremos naturalmente nos desenvolver em nossa capacidade de pensar, de ter idéias, em particular de nossa reflexão a partir de nossas experiências clínicas, e não nos limitarmos à importação do pensamento psicanalítico produzido em outras comunidades.

Ora, só podemos discutir de uma maneira interessante idéias que, mesmo inspiradas em outros analistas e autores de livros e artigos, tenham se tornado nossas, tenham encontrado em nós a nossa maneira de pensá-las e, portanto, de modulá-las na troca com os colegas e com o que nos fornece a experiência. Sem isso, ficaremos afirmando, uns para os outros, verdades imutáveis, tornando todo debate de idéias inviável e improdutivo, porque de saída não passará de um tosco embate entre certezas. Como nota F. Perrier, “...a teoria psicanalítica (tomada) como totalidade é o homólogo de uma organização psicótica” (Perrier, 1978/1993, p. 103). Forçando as tintas, poder-se-ia dizer que psicóticos, com delírios diferentes, teriam poucas chances de avançar numa discussão baseada neles. Quem se preocupasse com a produtividade genuína das discussões “científicas” numa comunidade de analistas — a sua razão de existir — poderia desconsiderar esses funcionamentos em redes como desaguadouros naturais das análises didáticas, fábricas potenciais de adeptos?

Posto o problema, o leitor me permitirá que eu tempere agora um pouco tais afirmações, sem reduzir em nada a sua importância. Ele opera, de fato, de forma insidiosa, pois diz respeito à transferência, e sabemos o quanto esta pode muitas vezes ser imperceptível na análise, invisível a olho nu, como uma bactéria ou um vírus infeccioso, o que em nada diminui seu poder de determinar o curso da vida psíquica sob seu jugo; o mesmo vale para seu modo de ação na vida institucional. Mas há bactérias que são necessárias para nossa vida, e é preciso reconhecer que ninguém pode dispensar, e que ninguém dispensa, nos inícios e por um bom tempo de sua prática como analista, o apoio e a referência à própria análise, ao modo de trabalhar, mas também às particularidades do modo de falar e de pensar de seu analista — por exemplo, as entonações de sua voz, assim como outras particularidades no seu modo de ser e de se comportar —, seja ela inserida e prescrita num sistema institucional de formação ou não. Se, dessa maneira, pela imitação, temos a impressão de estar próximos de “como ele faz”, isso nos dá um chão, nos dá a sensação aliviante de estarmos no rumo certo, contrapondo-se à angústia da impressão de não sabermos o que estamos fazendo, de “não estarmos fazendo psicanálise”.

Precisamos todos, principalmente nos primeiros anos de nossa prática, desse suporte de natureza mágica, em que certo reasseguramento, pela imitação, é fonte de um mínimo de segurança, e sem o qual não conseguimos avançar em nossa prática e no desenvolvimento de nossas aptidões para a condição analítica. Esse suporte é de grande valor, além daquele oferecido pelas supervisões e pelo contato com outros analistas na vida institucional. E esta, a instituição, pode ter, de fato, uma função em propiciar a difração dos efeitos alienantes da transferência na própria análise e ser, além disso, de grande valor como retaguarda receptiva para que as angústias suscitadas no trabalho clínico sejam favorecedoras de capacidade analítica.

As identificações imitativas, cumprido seu papel, serão gradativamente abandonadas, na medida em que o analista tiver condições de apoiar-se bem mais na experiência com seus pacientes e, quanto à sua análise, estiver se beneficiando, imperceptivelmente, dos efeitos analíticos efetivamente produzidos por ela, inclusive no trabalho psíquico que prossegue em seu après coup, bem depois do término das sessões.

Tendo a pensar que se o analista não puder contar com essas identificações e referências — amorosamente alimentadas em seu íntimo, por um bom tempo, até que se tornem progressivamente dispensáveis — há o risco de que, em face da angústia na clínica, acabe por se instalar numa posição de constante desconforto, de auto-suficiência, de prepotência, mantendo uma relação pouco solta e pouco porosa com o pensamento psicanalítico, seja na sua prática clínica seja nas tentativas de teorizá-la. Daí a importância de sua análise. Em certas “formações”, que se limitam apenas a um percurso acadêmico, a pessoa que se propõe à prática clínica tende a responder às angústias que dela emanam com discursos em que a coerência do saber estabelecido e um vocabulário rebuscado não escondem — pelo contrário, deixam transparecer mais tais angústias — pela impotência em poder achegar-se a palavras que possam dizê-las mais de perto, em sua matriz de engendramento.

Em suma, a análise de alguém que esteja trabalhando como analista envolve tanto a face positiva, a que me referi, como os problemas da natureza e do destino das mobilizações transferenciais regressivas inerentes ao processo analítico, quer essa análise seja uma análise “didática”, requerida e tutelada por normas regulamentares e hierárquicas da instituição, quer ocorra fora da formatação estabelecida por qualquer instituição. Nas formações feitas fora de qualquer instituição, existe o risco de que o analista do analista — retomando uma observação de P. Fédida — venha se tornar ele próprio “a instituição”, o que, se acontecesse, seria ainda mais complicado.

A condição ideal, talvez, fosse mesmo que o analista fizesse a(s) sua(s) análise(s) por conta própria, buscando, depois disso ou paralelamente, inserir-se em uma comunidade organizada de analistas, em busca de interlocutores consistentes para acompanhá-lo de perto nas perplexidades e angústias inerentes à experiência da clínica psicanalítica, e que estes pudessem, ao final de um tempo suficiente (com certeza, muitos anos seriam necessários), decidir se reconhecem ou não a sua prática e seu pensamento como válidos no campo da psicanálise e se desejam aceitá-lo como membro integrante da comunidade.

Sabemos como alguns analistas, cujas análises didáticas foram feitas com J. Lacan (penso em J.-B. Pontalis e J.-L. Laplanche, entre outros), se rebelaram contra este grande analista e pensador rigoroso que, no entanto, no plano pessoal, induzia, exigia que seus analisandos se tornassem seus adeptos, seus discípulos, numa caricatura do problema posto pela análise didática. Esse grupo de homens e de analistas, em uma votação que não foi unânime em sua Sociedade, a APF, conseguiu, em 1972, aprovar um sistema que se atinha da forma a mais estrita a essa “condição ideal”. Algumas gerações de analistas puderam fazer sua formação beneficiando-se dessa conquista, que continua orientando nos dias de hoje a prática formativa da instituição, bastante exigente no plano da clínica psicanalítica e das atividades supervisionadas.

Curioso que J. Lacan, que fizera críticas tão pertinentes às análises didáticas das Sociedades da IPA, denunciando seu uso burocrático no plano dos jogos de poder, a tenha usado sistematicamente a serviço de sua vontade de poder sobre os outros, sobre seus analisandos e que, quando teve que criar sua própria associação, a Escola Psicanalítica de Paris, descobriu que a análise didática era a forma mais pura de análise, porque seria livre de qualquer preocupação terapêutica, criando o polêmico sistema de passe e estabelecendo um poder pessoal tirânico dentro daquela Escola. A aprovação dessas regras para a formação, no final dos anos 60, suscitou uma reação de analistas, entre eles Piera Aulaigner, Jean Paul Valabrega e François Perrier que, revoltados, se retiraram da Escola de Lacan e formaram o chamado “Quarto Grupo”.

Neste, o respeito e o favorecimento da singularidade de cada analista e de cada analista em formação passou a ser objeto de grande cuidado e de constante reflexão. Levaram adiante uma crítica teórica enérgica contra as formulações de Lacan sobre a “pureza” da análise didática e contra a imposição dogmática de seu pensamento e da linguagem em que este era moldado. Naturalmente que o ideário institucional do Quarto Grupo, como na APF, não dava margem para a prática de qualquer forma de análise didática. Pelo contrário, levaram adiante uma reflexão de qualidade sobre os seus “efeitos colaterais”, tanto sobre a análise do analista “em formação” como sobre as relações de poder na instituição, na linha do que mencionei acima (Aulaigner, 1968/1986; Perrier, 1978/1993; Valabrega, 1979/1993).

A outra Sociedade francesa vinculada à IPA, a SPP, seguiu paulatinamente o caminho aberto pela APF e há cerca de duas décadas chegou a um sistema muito próximo. A Associação Internacional reconheceu essa prática formativa há três anos, no Rio, depois de vários anos de intensos embates no plano internacional. Batizou-o de “modelo francês”, que passou assim a ser “oficialmente” aceito pela IPA, posto agora lado a lado com o que foi chamado de “modelo Eitingon”, que corresponde ao sistema de exigências estabelecidas — sem maior fundamentação — por seus dirigentes para a análise didática. Era considerado até então como o único permitido, tendo sido estabelecido há algumas décadas, numa época em que poucos decidiam sobre tudo na Associação Internacional.

Este sistema foi sempre seguido à risca na Sociedade de São Paulo, assim como pela maior parte das Sociedades da Associação Internacional. Curioso que alguns colegas achem que ele corresponde à “nossa tradição”, como se tivesse sido engendrado em um processo interno, genuíno e fundamentado, ao longo da história e do pensamento em nossa Sociedade. Não é o caso. Várias soluções originais têm sido pensadas, tentadas, retocadas por nós tanto para a formação — tal como os seminários eletivos, as modalidades de avaliação dos relatórios, etc. — quanto, também, no respeitante ao funcionamento da instituição, o sistema que criamos para as qualificações de reconhecimento institucional, as passagens a membro efetivo e a didata, os grupos de estudo livremente propostos no seio da instituição, etc., todos congruentes com a natureza da psicanálise, no respeito e interesse pela diversidade de suas referências e fontes.

Não se pode dizer o mesmo da análise didática, que se tornou matéria de normas escritas não nas estrelas, mas num regulamento que seguimos com o zelo de pedagogos da velha-guarda. É assim porque é assim. Fabio Herrmann nota que “entre nós reina uma espécie de naturalização da idéia de análise didática”, chamando a atenção para o desconhecimento da perspectiva histórica e política de sua criação (Herrmann,1993, p. 59)1. Isto não era inevitável, pois o mesmo não aconteceu com as Sociedades argentinas nem com a Sociedade do Uruguai (APU), as quais, desde os anos 70, a par de intensos debates e reflexões, vêm introduzindo modificações importantes no sentido de atenuar o uso da análise didática para alimentar posições de poder e de influência ideológica dentro da instituição, bem como preservar tanto quanto possível a qualidade das análises, de acordo com suas práticas de transmissão da psicanálise. A IPA chegou a reconhecer agora um terceiro “modelo” de formação, a que chamou de uruguaio.

A Sociedade de São Paulo ostenta uma história de pioneirismo e de ousadia, e vive um momento em que pode passar de uma Sociedade grande, inflada, para uma grande Sociedade. Não é condizente com sua história e com seu porte, inclusive com suas potencialidades científicas, que tratemos de forma negligente e acanhada o tema mais crucial da formação analítica.

No lugar de uma reflexão que se nutra na natureza daquilo que está em jogo, a análise, o que é bem mais exigente, pode-se sair em sua defesa pela simples proposição de mais normas regulamentares, de imposições, de mais medidas avaliadoras e fiscalizadoras, em suma, de mais regulamento, de mais instituição — e isto sem perceber que cada detalhe regulamentado acaba requerendo mais e mais regulamentações. Na busca de se estabelecer uma impossível certeza sobre a “qualidade” da análise de formação, da análise didática, vai se asfixiando de fora para dentro as chances do transcorrer analítico.

Que sistema de normas poderá substituir aquilo que move em seu íntimo o analista e o analisando no trabalho analítico que fazem juntos? Se, motivados pela desconfiança — usualmente acompanhada de uma historinha escabrosa para justificá-la —, negligenciarmos esse fato incontornável e optarmos pela via regulamentadora, prejudicaremos aquilo que queríamos favorecer: a psicanálise. Agimos pelo princípio do “máximo institucional” e não, do que seria desejável, do “mínimo institucional”, na expressão de Valabrega (1979/1993).

A propósito, Fabio Herrmann afirma que “há duas posições em que pode se refugiar o burocrata psicanalítico: na periferia das escolas teóricas, transformando em certeza dogmática as inquirições do pensador e difundindo a ortodoxia resultante, e no centro das decisões administrativas, criando e operando regulamentos” (Herrmann, 1993, p. 33).

Pela via regulamentadora, instaura-se o jogo do gato e do rato entre alguém, com vocação educativa, que quer impor exigências, incluindo número de horas de análise (!) a um aluno (sem falar do próprio analista!) sempre suspeito de querer — a lei do mínimo esforço exige — burlar tanto quanto possível tais imposições. Isso seria esquecer que aquele que é visto como “aluno”, numa perspectiva regulamentar da instituição — transformada em escola de ensino —, é a mesma pessoa que, em seu consultório, se vê diariamente confrontado, como cada um de nós, com os desafios cotidianos e às angústias e incertezas sem fim da prática clínica da psicanálise.

Já a disposição de averiguar ou pedir confissões para analistas que, em seu consultório, não se atêm estritamente às normas regulamentares sobre as análises que conduzem para o instituto, usando da força da maioria — esta maioria existiria, se todos fossem consultados para se manifestar por voto secreto ? — me lembra outra passagem do livro de Valabrega, já citado, referindo-se ao problema deles, na época, às voltas com a hegemonia do lacanismo majoritário: “um número variável de analistas, às vezes também de candidatos, não pode aceitar o sistema imposto sem abdicar de uma parte de responsabilidade analítica” (Valabrega, 1979/1993, p. 63). Lembro também da observação do nosso convidado argentino, Abel Fainstein, na jornada de junho último, quando disse que “nos discursos das instituições a palavra inconsciente desaparece com facilidade...”. De fato, e fica apenas o discurso da ideologia dominante, que quer obrigar, pois não dispõe de uma argumentação convincente para fundamentar o estabelecido, exceto o argumento de que “é assim porque é assim... porque sempre foi assim e assim tem que ser.”

Nossa função, como associação de analistas e, principalmente, como instituto que quer contribuir para a formação de novos analistas, deve ser, como já disse, a de sermos sensíveis às necessidades destes e de termos uma função de holding, de sustentação da angústia gerada pela prática clínica, de forma que esta possa ser canalizada pela via elaborativa e não exacerbada, a ponto de estimular e reforçar as saídas reasseguradoras pela adesão às redes oferecidas pela instituição. Esta é a pior via, pois segue na contracorrente daquilo que visa qualquer análise: possibilitar que o analisando encontre referências em seu próprio processo, em sua própria história, que lhe permitam situar-se, movimentar-se com maior grau de liberdade em relação ao desejo inconsciente que nele organiza sua relação com a vida, reconhecendo-se em suas escolhas e em suas idéias. Ao se tornar adepto zeloso da ideologia grupal, em uma dessas redes, o “novo analista” terá assimilado senhas feitas de um desde sempre já-pensado, senhas que são a garantia implícita da coesão. Sempre que o pensamento e a experiência aproximaram-se do terreno interditado pela senha, ele perderá a sua operatividade, tornando-se incapaz de chegar a conclusões e a formar opiniões que o indisponham com esse “desde-sempre-já-pensado”.

No último encontro de Atibaia, fiquei impressionado com situações nas quais relatos intensos, vívidos, na evocação da própria experiência, acabarem sendo postos de lado, na medida em que se começava chegar a conclusões ou, pelo menos, a interrogações, congruentes com as experiências evocadas, mas contrárias à “verdade/vontade grupal”. O que me pareceu é que, nos momentos de conclusão, triunfa a verdade grupal sobre a experiência pessoal, verdade afirmada de um modo monolítico, que desencoraja qualquer tentativa de ponderação ou de prosseguimento da convivência.

A impossibilidade de tirar conclusões ou ao menos dúvidas ante o percebido e o vivido me faz pensar na hipótese avançada por Luiz Meyer (Meyer, 2002). Ele postula que, em relação à análise didática, seria operante nas instituições o mecanismo radical descrito por Freud em seu artigo sobre o fetichismo, qual seja, o da recusa (Verleugnung), em que há uma percepção e, simultaneamente, a recusa da conclusão que ela implica. O esquema cênico seria o do menino que, ao olhar os genitais da mãe, e não ver o pênis que ele acredita que ela deva ter, se verá compelido a afirmar pelo resto da vida, no sintoma perverso, que, de toda maneira — apesar de que o que viu desminta a crença —, ela o tem. A proibição de pensar, quando se trata de análise didática, seria o nosso segredo fundador e, como tal, teria que permanecer intocável?

Acode-me, a propósito, a observação de uma colega, analista perspicaz e com longa experiência em nossa instituição, quando discutíamos sobre a oportunidade de abordar o assunto análise didática em nossa Sociedade. Isto foi desaconselhado por ela, ponderando que tocar nesse assunto levaria a uma fragmentação da Sociedade, já que poria em xeque a nossa identidade. A afirmação me deixou bastante intrigado e me levou à pergunta: a identidade desta Sociedade se fundaria na análise didática e em sua intocabilidade? Não em qualquer pressuposto sobre os objetivos da psicanálise, sobre o interesse pela sua prática, etc.? Não na dimensão dos ideais, dos valores, mas numa questão que concerne uma forma enviesada da manutenção de sistemas de poder que a permeiam, dissimulada como acordo sobre uma prática supostamente garantidora da qualidade?

Felizmente, a realidade, posteriormente, mostrou que essa maneira de ver, embora possa não ser necessariamente falsa, não corresponde a todos os recursos da nossa instituição. Foi possível discutir o assunto, com relativa amplitude de horizontes, num congresso interno, durante todo um final de semana. Tanto naquele congresso como na jornada, realizada seis meses depois, tivemos discussões animadas, nas quais não faltaram criatividade, lucidez e muitos momentos de falas bastante francas. Embora notemos, na contracorrente, também uma tendência em tentar minimizar o alcance e até a ignorar — de novo, a recusa? — que essas discussões tenham ocorrido.

Ficaram, no entanto, os sete relatórios e a última sessão plenária gravada, se alguém tiver realmente alguma dúvida sobre isso. Houve quem me perguntasse se aquilo era representativo da Sociedade: a função de um congresso interno nunca foi a de ser representativo, mas de oferecer ocasião para um brainstorming sobre um problema difícil da instituição. Os anteriores foram muito inspirados e a instituição se beneficia até hoje das idéias ali surgidas — claro que retomadas, desenvolvidas, retrabalhadas, modificadas pelos erros que a experiência revelou, sempre passando por propostas debatidas em assembléias gerais. O encontro em Atibaia, com a participação de cerca de 150 pessoas, que passaram um excelente fim de semana de trabalho juntos, num ambiente de entusiasmo e rico em idéias, acabará sendo silenciado, desconsiderado? Nenhum proveito será tirado daí? E por que mesmo?

Por que tocam em questões de poder, que derivam da superposição da relação analista/analisando e didata/aluno, este complicador da análise e complicador da organização social dos analistas em Sociedades?

Os lugares de poder, quando submetidos a regras bem definidas, têm uma função indispensável no funcionamento de qualquer grupo humano. Há, pois, conveniência em se manter uma espécie de carreira no interior da Sociedade, com duas ou três categorias de membros, que refletisse o reconhecimento da comunidade pelos méritos e realizações dos colegas, por sua dedicação à instituição e à psicanálise ao longo dos anos. Mas essa hierarquia e as posições de poder, para não correrem o forte risco de se tornarem abusivas, teriam que estar dissociadas da prática da psicanálise, inclusive e, talvez, sobretudo, da análise de alguém em formação. Como não levar a sério o fato que “a análise não é possível senão no interior de um campo de suspensão, de renúncia ao exercício do poder” e que, “todos os analistas sabem ou deveriam saber que, pela própria situação analítica, eles dispõem potencialmente, sobre o sujeito que entra em análise com eles, de um poder exorbitante” (Valabrega, 1979/1993, p. 74).

Poderíamos não levar em conta essas observações somente se considerássemos que o que chamamos de psicanálise consiste num bem-comportado esforço de introspecção assistida, visando o autoconhecimento, e que ignoremos a insidiosa potência dos vínculos que se mobilizam nas condições de uma análise, feitas para favorecer tais regressões e atualizações arcaicas do inconsciente, como transferência. Ora, esta pode afetar o mais bem-intencionado analista, não somente em pontos sensíveis de seu narcisismo, mas também em sua vida pulsional, no sentido primeiro dado à contratransferência.

Somente ignorando ou negando as forças mobilizadas num processo analítico poderíamos subestimar a possibilidade de que se infiltrem — a serviço da resistência — na realidade institucional, nas posições de poder e de influência do analista dentro desta, com um peso irrealístico, dificilmente analisável, e que finalmente podem convir tanto para o (ex)analisando como para o (ex)analista.

Há, portanto, uma armadilha no complicador que estamos apontando na análise didática e que pode produzir, pela análise, um efeito colateral antianalítico. O analisando pode se colocar sob o refúgio alienante de um colega que permanecerá indefinidamente para ele o depositário da última palavra, aquela que o decide. Ambos permanecerão pelo resto de suas vidas na mesma instituição e poderão permanecer fixados na mesma modalidade de relação. O analista, ao contrário do que acontece em toda análise, no caso da análise didática poderá nunca “ir embora”, nem o paciente.

A análise, ou pela menos a transferência, poderá permanecer num impasse, em suspenso, interminável. O ex-analisando, nesse caso, poderá perceber muitas coisas, mas delas tirará sempre a conclusão que seja conforme aquela “última palavra”: a palavra de quem garante, mas que aliena o sujeito, em sua condição de integrante da rede societária à qual devotará absoluta fidelidade.

Herrmann afirma que não vê inconvenientes em uma análise didática, depois de ter se afastado toda ação regulamentadora, todo proselitismo, e com a condição de que “o desejo de analisar-se não seja imposto, mas só tomado em consideração” (Herrmann, 1993, p. 64). Claro, mas nessas condições o problema deixa de ser problema, pois ninguém discorda que uma análise suficientemente bem-sucedida seja de grande valor para a prática clínica do analista — naturalmente que não estou sequer considerando agora os ganhos que, como qualquer outro analisando, poderá ter para seu modo de se sentir e de estar na vida. Podemos nos perguntar sobre como farão os colegas que têm a difícil função de gerir o instituto quando tiverem que deliberar, com base no artigo “x” do regulamento, que estipula que ele terá um ano após sua admissão para iniciar a análise didática, ou seja, para ter “o desejo de analisar-se”, e que já tenham, digamos, transcorridos dez meses?

E se estiver saindo de um processo de análise decisivo para ele e que não esteja, no momento, tomado por “esse desejo”: deve ele aguardar uma outra ocasião para iniciar a formação, já que sua análise vale para ele, mas não vale para o que prescreve o regulamento, ou deve ele iniciar “uma análise”... sem “esse desejo”?

Não haveria uma maneira, por exemplo, de que entrevistas com o postulante nessas condições, feita por colegas nomeados pela comissão de ensino, pudessem dar um parecer sobre a situação, levando em conta o que ouviram dele sobre a análise que está terminando ou que terminou? Será que não poderiam chegar à conclusão se aquela análise não-didática foi uma experiência satisfatória e que o postulante estaria, sim, em condições de iniciar com proveito a formação, sem entrar em análise didática? Ou que, se estiver em análise com um analista não-didata, o ouvisse com muita atenção e cuidado se dissesse que se acha profundamente implicado no processo analítico em que se encontra e que não queria interrompê-lo? Um analista não lhe diria: então, prossiga sua análise e vá começando a formação (seminários, supervisão)? E, de novo, que, na dúvida, colegas indicados pela comissão de ensino pudessem entrevistá-lo e opinar? Abordagens dessa natureza seriam condizentes com a nossa condição de analistas que se propõem a estimular o desenvolvimento de novos analistas, não levando os colegas com responsabilidade institucional ao constrangimento de ter que agir como meros aplicadores de um regulamento, a ser visto mais como um balizador flexível, mas não contraditório com a psicanálise. Práticas dessa ordem tornam as coisas mais delicadas e mais difíceis, mas mais de acordo com a natureza da prática psicanalítica, sempre delicada e difícil em sua natureza e, seguramente, não propícia para pessoas que precisam do terreno sólido das certezas. O terreno das certezas, fornecido pelo que consta no regulamento, é a maneira burocrática de tratar de questões que dizem respeito à psicanálise e sua transmissão.

E o estabelecimento da duração da análise por cinco anos: alguém trabalha assim em sua clínica? Análise com duração preestabelecida? Pode-se argumentar que os cinco anos são apenas um mínimo, que poderia ser mais. Acho que os nossos colegas deveriam tentar isso com os pacientes que os procuram para análise em seus consultórios: dizer-lhes, desde logo, que ela deve durar no mínimo cinco anos. Isso asseguraria que boa parte dela teria sido feita, pelo menos uma parte essencial, um mínimo. Depois, poderiam prosseguir por mais tempo, que poderia até ser desejável. Poderiam nos apresentar em reuniões científicas como se desenrolaram as análises iniciadas com base num contrato feito nessas bases. Qual a dúvida, se dúvida nenhuma existe quanto a estabelecer isto para os analistas que nos procuram para formação? O que vale para a análise deles não valeria para a análise de outros pacientes?

Para concluir: o problema da análise versus instituição não tem soluções prontas. Considerei a da APF como ideal. Mas não é perfeita e aquela instituição tem seus problemas: os que puderam, no entanto, fazer a(s) sua(s) análises fora da instituição, sem qualquer interferência, como qualquer análise, certamente foram e são todos profundamente gratos por não terem sido obrigados a se submeter às imposições e percalços da análise didática. Em psicanálise sempre temos que nos haver com problemas que podem se reorganizar, para os quais não há solução definitiva ou certa, mas remanejamentos que trazem grandes benefícios. Assim é o problema que nos ocupou neste artigo.

Insisto, pois, que importa muito que não o ignoremos, mas que possamos discuti-lo em suas raízes, sem deixarmos que os regulamentos nos intimidem em detrimento da experiência viva da psicanálise. Que ousemos mais, que ousemos pensar e inventar soluções condizentes com a nossa condição de analistas e a nossa sensibilidade naquilo que nos propomos fazer ao longo do dia em nossos consultórios: psicanálise.

Por que, à noite, na comissão de ensino, teríamos que virar tímidos e medíocres burocratas? Quem nos condena a isto? A Sociedade não pode existir em função de si mesma e de sua “dinâmica própria”. O nosso compromisso criativo com a psicanálise deve estar em primeiro plano para que possamos avançar nestas questões fundamentais.

 

Referências

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Herrmann, F. (1993). A análise didática: Uma história feita de críticas. Jornal de Psicanálise, 26(50), 29-68.         [ Links ]

Meyer, L. (2002). Análise subalterna. Revista Brasileira de Psicanálise, 36, 145-159.        [ Links ]

Menezes, L. C. (2006). Preservem as flores selvagens. Revista Brasileira de Psicanálise, 40(2), 73-81.        [ Links ]

Perrier, F. (1993). A formação do analista. São Paulo: Escuta. (Trabalho original publicado em 1978.)        [ Links ]

Safouan, M. (1991). A transferência e o desejo do analista. São Paulo: Papirus. (Trabalho original publicado em 1988.)        [ Links ]

Valabrega, J.-P. (1993). A formação do psicanalista. São Paulo: Escuta: (Trabalho original publicado em 1979.)        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Luis Carlos Menezes
R. Deputado Lacerda Franco, 300/134
05418-000 Pinheiros, São Paulo
Fone: 3030-9382
E-mail: luismzes@hotmail.com

Recebido em: 30/05/2008
Aceito em: 20/06/2008

 

 

* Membro efetivo da SBPSP e membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
1 Observa ele, a propósito: “As Sociedades latino-americanas foram formadas já sob o impacto da morte de Freud e no terceiro período de institucionalização; vem daí que entre nós pareça tão natural a forma presente do ensino: nunca conhecemos outra”(Herrmann, 1993, p. 39).

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