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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. v.42 n.76 São Paulo jun. 2009

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

Quando a psicanalista está grávida: facilitação de pesquisas sobre o interior materno e feminino1

 

When the psychoanalyst is pregnant: facilitation of the maternal and feminine inner world investigation

 

Cuando la psicoanalista está embarazada: facilitación de investigaciones sobre el interior materno y femenino

 

 

Ivonise Fernandes da Motta*

Profa. Dra. do Departamento de Psicologia Clínica, do Instituto de Psicologia da Universidade São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Pesquisa sobre os efeitos da gravidez da psicoterapeuta no processo psicoterápico. Os seguintes aspectos nortearam a investigação: possível facilitação e catalisação de vivências primitivas com a mãe; possível facilitação e catalisação de vivências referentes ao rompimento da simbiose com a figura materna, como quando nasce um irmão; presença inegável da sexualidade da psicoterapeuta, com possíveis interferências no processo psicoterápico. No total, foram acompanhados 24 casos, atendidos por três psicoterapeutas grávidas, cujo trabalho psicoterápico era de orientação psicanalítica. Uma das psicoterapeutas acompanhou três clientes adultas. A segunda psicoterapeuta forneceu dados de sete casos: cinco clientes adultas, um cliente adulto e um menino. A terceira psicoterapeuta, autora deste trabalho, acompanhou 14 casos: três clientes adultas e 11 crianças e púberes (seis meninos e cinco meninas). Os resultados comprovaram uma facilitação de fantasias e angústias relacionadas à sexualidade genital; facilitação de vivências depressivas; revivescência de abortos e irmãos mortos; facilitação de pesquisa em relação à sexualidade e ao interior feminino; vivências de rivalidade com irmãos.

Palavras-chave: Gravidez psicoterapeuta, Pesquisa interior materno, Pesquisa interior feminino, Repercussões gravidez-psicoterapeuta, Reações-gravidez psicoterapeuta.


ABSTRACT

This work discusses the effects of the psychotherapist pregnancy in the psychotherapeutic process. The following aspects lead this study: possible facilitation and catalysis of primitive experiences with the mother; possible facilitation and catalysis of experiences related to the rupture of the symbiosis with the maternal figure, such as when a brother is born; undeniable presence of the psychotherapist sexuality with possible interferences in the psychotherapeutic process. Twenty four cases assisted by three pregnant psychotherapists working with psychoanalytic approach support this study. The first psychotherapist assisted three adult female patients. The second one supplied data of seven cases, five of which were adult female patients, one an adult male patient and one a little boy. The author of this work being also the third psychotherapist of this study followed fourteen cases, three of which were adult female patients and eleven were children and teenagers (six boys and five girls). The results showed that fantasies and anguishes related to genital sexuality; depressing experiences; revivals of miscarriages and dead brothers; investigation into sexuality and the inner feminine world, and experiences of rivalry among brothers and sisters were all facilitated during the psychotherapeutic process.

Keywords: Psychotherapist pregnancy, Investigation into inner maternal world, Investigation Into inner feminine world, Psychotherapist pregnancy impacts and reactions.


RESUMEN

En este trabajo se estudió los efectos del embarazo de la psicoterapeuta en el proceso psicoterápico. En esa investigación se tuvo en cuenta: posible facilitación y catalización de vivencias primitivas con la madre; posible facilitación y catalización de vivencias referentes al rompimiento de la simbiosis con la figura materna, como por ejemplo cuando nace un hermano; presencia innegable de la sexualidad de la psicoterapeuta, con posibles interferencias en el proceso psicoterápico. Fueron acompañados 24 casos, atendidos por tres psicoterapeutas embarazadas, cuyo trabajo psicoterápico era de orientación psicoanalítica. Una de las psicoterapeutas acompañó tres clientes adultas del sexo femenino. La segunda psicoterapeuta otorgó datos de siete casos, de los cuales cinco de clientes adultos del sexo femenino, uno de cliente adulto del sexo masculino y el caso de un niño. La tercera psicoterapeuta, autora de este trabajo, acompañó 14 casos, tres de clientes adultos del sexo femenino y 11 niños y púberes (6 niños y 5 niñas). Los resultados comprobaron una facilitación de fantasías y angustias relacionadas a la sexualidad genital; facilitación de vivencias depresivas; reviviscencia de abortos y hermanos muertos; facilitación de estudio en relación a la sexualidad y al interior femenino; vivencias de rivalidad con hermanos.

Palabras clave: Embarazo psicoterapeuta, Estudio interior materno, Estudio interior femenino, Repercusiones embarazo-psicoterapeuta, Reacciones-embarazo psicoterapeuta.


 

 

Você já conhece algumas das características do seu bebê, por causa dos movimentos que você habituou a esperar dele, no interior de seu ventre... De certo modo, eu diria que ele lhe conhece melhor do que você a ele, até ele nascer e até você ouvir o choro dele e puder olhá-lo, e acolhê-lo em seus braços.

Winnicott

 

Introdução

Assim como o homem, através da antropologia e de outras ciências, tenta entender a origem e as formas primitivas de pensamento, crenças, rituais religiosos, estruturas sociais, etc., a psicologia tem buscado conhecer cada vez mais profundamente a origem e o desenvolvimento da mente. Do início da vida e da mente até a formação simbólica, há um longo caminho que se perpetua em um perene vir-a-ser, como acontece com o homem em sua evolução através dos séculos.

Sabendo-se que na relação mãe-filho se encontra uma das raízes mais profundas da origem e desenvolvimento da mente, pareceu-nos ser uma situação extremamente privilegiada para pesquisa a gravidez da psicoterapeuta. Privilegiada por conter dois aspectos até certo ponto antagônicos, mas presentes ao longo da vida humana: o primitivo, a indiferenciação, a simbiose (gravidez); a discriminação, a integração e a identidade (psicoterapia &– nascimento).

Achamos interessante tentar entender se a gravidez da psicoterapeuta teria influência sobre o processo psicoterápico e que influência seria essa. Como os clientes perceberiam essa gravidez e que conflitos psíquicos mais arcaicos seriam especialmente transferidos nesse contexto. Pareceu-nos também proveitoso pesquisar se haveria uma facilitação em reviver determinadas situações psíquicas pretéritas ou até que ponto a gravidez da psicoterapeuta travaria o livre curso da psicoterapia.

Melanie Klein (1970b) fala da importância da pesquisa do interior materno feito pelas crianças para o desenvolvimento do impulso epistemofílico e da capacidade simbólica. Para essa autora, é vital que a criança possa se aproximar da mãe, tentando conhecer seu interior, podendo até atacá-lo, e que essa pesquisa possa se desenvolver de forma satisfatória, firmando-se aí o modelo de todo o processo de conhecer o mundo exterior e o mundo interior. Klein (idem, p. 325) afirma:

É essencial para um desenvolvimento favorável do desejo de conhecimento que se sinta que o corpo da mãe está bem e não machucado. Representa, no inconsciente, o tesouro de tudo o que é desejável e que só ali pode ser conseguido; por conseguinte, se não está destruído, se não está por demais em perigo e, portanto, se ele mesmo não é tão perigoso, é possível levar mais facilmente a cabo o desejo de extrair dele alimento para a mente.

Por meio da antropologia, verificamos que também para os povos primitivos o interior materno era revestido de significado. Segundo Bettelhein (1979), as pinturas de animais e de cenas de caça feitas pelos povos antigos sugerem uma relação do desejo de aumentar a provisão de alimento com a fertilidade e o parto. Essas pinturas foram escondidas em locais de difícil acesso. Segundo este autor, há a possibilidade desse fato ser a reprodução do local da procriação. Na página 68, ele nos diz:

Se é assim, rastejar através de canais estreitos e molhados, para penetrar, representaria o acesso ao lugar secreto da procriação. A saída deveria ser o processo de nascimento realizado simbolicamente. As pinturas eram, por conseguinte, executadas em lugares que podem ser vistos como representando o ventre onde os animais têm a existência. É possível que o homem primitivo tenha criado um novo animal, o animal pintado, num local para ele representando o ventre, de modo que o animal real pudesse ser induzido a fazer o mesmo.

Notamos então que, tanto no processo de desenvolvimento do homem primitivo e na sua luta por alimento suficiente e pela sua sobrevivência, assim como no processo de desenvolvimento da mente, o ventre materno reveste-se de significado. Constatação tal que nos sugere a importância de pesquisá-lo de maneira mais profunda.

 

Características da pesquisa realizada

Pareceu-nos privilegiada a situação da psicoterapeuta estar grávida, por nos possibilitar tentar entender como os clientes percebem o ventre grávido, a reprodução, a fertilidade, a feminilidade, sua própria origem.

Foi nossa hipótese que a gravidez da psicoterapeuta pode vir a facilitar a emergência de temas relacionados à pesquisa do interior materno e feminino.

Através da análise dos movimentos transferenciais e contratransferenciais ocorridos na psicoterapia, tentamos investigar a facilitação ou dificuldades que podem ocorrer sobre a pesquisa desses temas.

Utilizamos o material clínico de três psicoterapeutas grávidas que, trabalhando de maneira psicanalítica, acompanharam seus clientes durante suas gestações. Uma delas, a psicoterapeuta A., acompanhou três clientes adultas, com idades variando entre 19 e 28 anos. A segunda psicoterapeuta, que chamaremos de B., forneceu-nos dados de sete casos, com os quais trabalhou durante suas duas gestações. Cinco casos são de clientes adultas, com idades variando entre 22 e 32 anos; um caso de um cliente adulto, com idade aproximada de 26 anos; e um caso de um menino de 4 anos. Apenas dois dos sete casos foram acompanhados durante os dois períodos de gravidez: o de uma cliente adulta e do menino que, na segunda gravidez da psicoterapeuta, contava com 6 anos e meio.

Finalmente, utilizamos o material de 14 casos atendidos pela autora deste trabalho durante sua gravidez. Três dos casos desta psicoterapeuta C. são clientes adultas, com idades variando entre 19 e 27 anos. Onze casos são de crianças: cinco meninas entre 9 e 13 anos, e seis meninos entre 6 anos e meio e 11 anos e meio.

Os clientes tinham, em média, de uma a duas sessões semanais. Apenas uma das clientes da psicoterapeuta B., durante sua segunda gravidez, tinha três sessões por semana. Essa cliente foi acompanhada pela psicoterapeuta B. durante os dois períodos de gravidez da psicoterapeuta. É importante sublinhar também que uma das clientes da psicoterapeuta C., que quase interrompeu a psicoterapia durante o sexto mês de gravidez da psicoterapeuta, passou a ter nessa época apenas uma sessão semanal, no lugar das duas que vinha tendo.

Através das anotações, supervisões e discussões das sessões realizadas durante o período de gravidez das três psicoterapeutas, tentou-se verificar a emergência dos temas antes descritos: de que maneira surgiam no processo psicoterápico.

O referencial de análise do material clínico foi o psicanalítico. Este se relaciona, principalmente, aos ensinamentos de Freud, Melanie Klein, Winnicott e seguidores.

 

Temas encontrados na pesquisa sobre o interior materno e feminino

 

1. Pesquisa sobre sexualidade

Pesquisar a sexualidade é tentar ter maior conhecimento a esse respeito. A sexualidade desperta curiosidade na criança desde muito cedo. Segundo Freud, seria esta apoiada na observação da vida de animais e também no instinto sexual.

As crianças vão, no curso do desenvolvimento, tecendo teorias a respeito de sexo. Em um primeiro momento, há uma tentativa de negação da diferença entre os sexos, atribuindo-se a todas as pessoas um pênis. Outra crença frequente é de que a gravidez é concebida comendo-se alguma coisa ou por contato com outra boca (beijo). Ou ainda de que o bebê é expulso pelo ânus, como um excremento. Segundo Marie Langer, os vômitos na mulher grávida estariam ligados à permanência dessa teoria (bebê = fezes) no inconsciente. É importante sublinhar também que, com a teoria do parto anal, as fezes, além de serem sentidas como pênis, são equiparadas a bebês.

Existe ainda a fantasia de fecundação ano-uretral, ou seja, a gravidez seria produzida por se urinar ou defecar com outra pessoa. A fantasia da fecundação visual é aquela em que a exibição dos órgãos genitais seria responsável pela gravidez.

Outra fantasia relaciona-se ao ato sexual dos pais. Freud considera que a criança fantasia a relação sexual dos pais, o que ele chama de cena primária. Com base nessa fantasia, dá resposta à pergunta sobre a origem da vida e de si mesmo.

Kusnetzoff (1982, p. 54) afirma:

Do que foi dito, pode-se concluir pela estreita vinculação existente entre descobrir a diferença sexual anatômica, com tudo o que isto implica, e a queda da onipotência narcísica da infância, queda esta que se relaciona com esse NÃO estruturante que impede à criança a consumação dos desejos naturais que conhecemos com o nome de desejos edípicos. Com efeito, até esse momento, e de modo geral, metaforicamente falando, os pais satisfizeram plenamente os desejos da criança. Este seria o SIM, base fundamental sustentadora da vida. Mas é por essa época, a partir do estágio fálico, que os pais passam a lhes negar a possibilidade de satisfação de desejos recentemente descobertos. Desde o momento que a criança descobre o sentido e a funcionalidade da diferença sexual anatômica, ela passa a desejar também ter filhos. Evidentemente, esse desejo é mera ilusão e está fadado ao fracasso. Daí que, para a criança, a “descoberta” da diferença começa com sua negação e culminará com toda a estruturação das funções do complexo de Édipo.

De uma maneira geral, diante da gravidez da psicoterapeuta, houve uma facilitação em pesquisar a sexualidade. Essa gravidez despertou maior curiosidade em relação à maternidade, ao mistério do nascimento, da concepção, da própria origem.

Para as crianças e, especialmente para as meninas, além da maior abertura em se pesquisar o tema, a psicoterapeuta serviu como um modelo para se indagar a respeito da questão sobre o sexo.

U., uma menina de 10 anos e meio, aproveita da gravidez da psicoterapeuta para pesquisar a sexualidade. Usa a psicoterapeuta como modelo para ter maior conhecimento sobre suas dúvidas. Algumas sessões centraram-se nessa temática. Quer saber sobre a diferença de sexos. Como se fica grávida. Se só se beijando se engravida. Traz um livro sobre educação sexual e vai tirando suas dúvidas com a psicoterapeuta.

T., uma menina de 9 anos, também aproveita da gravidez da psicoterapeuta para pesquisar as questões sobre sexo. Quer entender mais profundamente a diferença entre meninos e meninas, entender mais a respeito de como é um parto. Além disso, o contato com a gravidez da psicoterapeuta aumenta seu interesse pela feminilidade. Percebe a psicoterapeuta como alguém que pode ajudá-la a esclarecer suas dúvidas, além de ensiná-la a usufruir da feminilidade. Em uma das sessões, comenta que assistira a um parto na televisão e ficara impressionada ao ver o cordão umbilical. Comenta não saber que era daquele jeito que a criança se alimentava.

R., garota de 9 anos, fica muito curiosa e quer saber mais a respeito de variadas questões: o que são gêmeos; quem morre, quem vive (já que alguns bebês morrem e outros vivem); como se faz para evitar filhos (a exemplo de uma operação que sua mãe comentara, que tinha essa finalidade); como entender melhor um parto.

D., um garoto de 6 anos e meio, mostra curiosidade a respeito do casamento de seus pais. Em uma das sessões, comunica sua raiva dos pais e também da psicoterapeuta, pois lhe contaram que o Papai Noel e a cegonha existiam. Quer saber como o bebê entra, quando sai, com quem a psicoterapeuta fez o bebê. D. mostra surpresa ao perceber que tanto a psicoterapeuta como seus pais tinham sexualidade.

 

2. Pesquisa sobre o interior feminino

A pesquisa do interior materno é muito importante para o desenvolvimento da capacidade simbólica da criança. É a partir dessa pesquisa que a criança poderá ou não encontrar satisfação em tal conhecer. A criança realiza essa pesquisa, em um primeiro momento, com sadismo, sadismo oral, com desejos de devorar a mãe. A fantasia é a de se apoderar dos conteúdos internos da mãe e destruí-la.

Esclarece Melanie Klein (1970a, p. 297):

Tenho assinalado que o objeto do sadismo em seu zênite, e do impulso epistemofílico que surge simultaneamente com ele, é o corpo materno com seus conteúdos fantasiados. As fantasias sádicas dirigidas contra o interior do corpo materno constituem a relação primeira e básica com o mundo exterior e com a realidade.

Quando o corpo da mãe torna-se um lugar terrorífico pelos ataques feitos a ele, a possibilidade de conhecê-lo e de conhecer fica alterada. Melanie Klein (1970b, p. 325) explica:

Mas esta angústia é também um fator básico de inibição do impulso epistemofílico, já que o interior do corpo da mãe é o primeiro objeto desse impulso; na fantasia, é explorado e investigado, e também atacado com todo o armamento sádico, incluindo o pênis como arma perigosa e ofensiva, e esta é outra causa da impotência subsequente nos homens: penetrar e explorar são, em larga medida, sinônimos para o inconsciente.

Nesse pesquisar, aparecem desejos de roubar o interior da mãe. Para Melanie Klein, uma das fantasias primitivas da menina é a de despojar a mãe dos conteúdos valiosos de seu corpo. Marie Langer (1978) assinala que uma fantasia frequente da mulher grávida é a de que roubou o feto da mãe ou o pênis do pai que estava dentro da mãe. Essas fantasias seriam responsáveis por vários transtornos na mulher grávida, incluindo os somáticos:

Expus as teorias da escola inglesa sobre a psicologia da menina de pouca idade. Descrevi como, em suas fantasias, quer destruir o corpo materno por todos os meios ao seu alcance e como teme ser destruída como represália por seu ódio. Vimos que ela desdobra as imagens e leva dentro de seu inconsciente, ao lado da “mãe boa”, que acaricia e tem peitos cheios de leite, a representação de uma “mãe má” e vingativa. (Langer, p. 57)

De uma maneira geral, a gravidez da psicoterapeuta aguçou a curiosidade dos clientes sobre o interior feminino. As crianças e púberes mostraram desejos de conhecer e sadismo sobre o interior feminino.

Os clientes adultos mostraram a fantasia de entender melhor a capacidade criativa, sentindo algumas vezes que a psicoterapeuta tinha essa capacidade e eles não. Aliado ao desejo de conhecer, também apareceram muitos ataques, até invejosos, a essa capacidade. Percebeu-se igualmente que os clientes tinham, em determinados momentos, a fantasia de roubar a capacidade de gerar da psicoterapeuta.

O., um garoto de 11 anos e meio, mostra fantasias sádicas em relação ao interior da psicoterapeuta. Quer abri-la, conhecê-la por dentro, queimá-la. Em uma sessão, brinca com vela. Comenta, com desânimo, que tem de fazer várias pesquisas para a escola. Queima alguns brinquedos. Pega um bebê de plástico várias vezes com a intenção de queimá-lo, mas acaba guardando-o intacto. Fala que já sabe abrir um rato. Descreve como é um rato por dentro. Comenta: “É gostoso pôr um ferro quente num monte de vela, vai queimando”. O. tinha dificuldades na escola, pois pesquisar era para ele um tormento. Denotava um sadismo exacerbado, que impedia a satisfação em conhecer. Com a gravidez da psicoterapeuta, houve uma catalisação dessas vivências, que puderam ser trabalhadas.

S., uma garota de 11 anos, é bastante hostil diante da gravidez da psicoterapeuta. Mostra curiosidade a respeito do interior desta, desejos de conhecê-la por dentro. Essa curiosidade, porém, era bastante hostil: queria atacar o interior e o bebê em gestação. Em uma sessão, ao se dirigir para a sala de atendimento, dependura-se em umas grades presas à janela de outra sala do consultório. Fica olhando para dentro da sala. Propõe o jogo de se atirar uma bola, mirando em uma bacia d’água. A água espirra por toda a sala. Percebe, em um canto, uma aranha pequena. Pega a aranha e a põe na água. Fica observando e, por fim, mata a aranha. O jogo prossegue até o final da sessão. Quando sai, fecha a psicoterapeuta na sala, batendo a porta com força.

X., 19 anos, quer ser como a psicoterapeuta, mas acha que não conseguirá engravidar. Em uma das sessões, um ano depois, diz que ela e o marido decidiram adotar uma criança. A par disso, comunica seus ataques à figura materna e como sente um terceiro no relacionamento, o bebê da psicoterapeuta ou um filho, como um rival. Comenta a fantasia de que sua mãe tinha uma ferida no útero causada pela gestação dos filhos. Fala, também, de ter muitas dúvidas sobre a possibilidade de ter filhos. Percebeu-se que, diante de seus ataques fantasiados ao interior materno, sentia-se perseguida, achando que o seu está atacado e, portanto, não poderia gerar.

R., uma garota de 9 anos, além da curiosidade sexual que desperta a gravidez da psicoterapeuta, deseja também conhecer a capacidade criativa. Isto é, quer saber como se cria, como se gera. Acha que a psicoterapeuta tem esta capacidade, passa a imitá-la, pois deseja, ela também, ter a capacidade de criar. Quer saber mais sobre a maternidade, sobre a origem da vida.

U., uma menina de 10 anos, mostra desejos de roubar a capacidade criativa da psicoterapeuta. Tem fantasias de roubar o bebê da psicoterapeuta, roubar a capacidade da psicoterapeuta de ter bebês, de gerar. Sente-se perseguida, pois teme que a psicoterapeuta faça o mesmo com ela: roube seus recursos internos.

 

3. Revivescências de abortos

Observou-se, por parte dos clientes, uma facilitação em lidar com este tema. As clientes mulheres, que tinham passado por tal experiência &– quer tenha sido um aborto espontâneo ou provocado &–, reviveram-no com profundo pesar e dor. O cliente homem, cuja esposa passara por essa experiência &– durante as férias da psicoterapeuta para ter seu bebê &–, ao retomar as sessões, mostrou também depressão ante essa situação, comparando suas vivências com as da psicoterapeuta. Nesse sentido, foi interessante notar que os abortos tidos por mães de clientes, tanto adultos como crianças, foram trazidos para a situação analítica para serem trabalhados. Em ambos os casos, a vivência do próprio interior ou do interior da mãe, atacado ou destruído, mostrou-se importante para o trabalho das angústias daí decorrentes.

No decorrer deste trabalho, já foram apresentados casos em que o cliente trouxe o tema “aborto” para ser trabalhado. Outros casos podem exemplificar:

R., uma garota de 9 anos, conta que assistiu a um parto na televisão. Fala do irmão que teria, se a mãe não tivesse perdido uma criança (aborto com três meses). Dá mais dados sobre o assunto e continua fazendo perguntas sobre a maternidade e a origem da vida. Nesse caso específico, o aborto estava inserido em sua vontade de querer conhecer mais a respeito da sexualidade, não se percebendo nenhum outro significado.

E., 24 anos e meio, nas duas épocas em que a psicoterapeuta estava grávida, trouxe o aborto que fez para ser trabalhado na psicoterapia. Sentia bastante culpa por tê-lo feito, tendo então contrações por todo o corpo. Além da culpa pelo aborto, sentia também culpa pela relação sexual. Invejava a psicoterapeuta, começou a querer ter sessões extras. Telefonava muito para a casa da psicoterapeuta, bem cedo, pela manhã, ou à noite. Sentia-se rejeitada e a pior cliente da psicoterapeuta. Essa mesma cliente trouxe a culpa que sentia por dois abortos que a mãe tivera. Sentia-se responsável pelos abortos da mãe, achando que seus ataques teriam destruído seus irmãos.

 

4. Revivências de irmãos mortos

Com a gravidez da psicoterapeuta, alguns clientes trouxeram para a psicoterapia suas vivências sobre irmãos mortos. Fantasias, angústias relacionadas a essas mortes foram catalisadas pela gravidez da psicoterapeuta. Este aspecto foi benéfico para a psicoterapia, pois propiciou a integração de tais vivências.

F., uma moça de 26 anos, durante a gravidez da psicoterapeuta, traz a morte de dois irmãos para a psicoterapia e a culpa persecutória que tinha em relação a essas mortes, pelos seus ataques destrutivos. Tinha ela 6 anos quando nasceu uma irmã, que morreu de pneumonia, com quatro meses de idade. Lembra que, depois disso, voltou a usar o berço que era da irmã morta. Diz que na época gostou de usar aquele berço, porque era isso o que ela queria: ser a irmã caçula. Quando tinha 12 anos, nasceu um irmão que, com um mês, morreu de um problema cardíaco congênito. F. achava que a psicoterapeuta deixaria de trabalhar depois do parto de seu bebê, pois teria medo que ela (cliente) matasse o bebê, afastando-se para protegê-lo. Temia que seus impulsos fossem tão destrutivos a ponto de terem matado seus irmãos e, agora, na transferência, pudesse matar o bebê da psicoterapeuta.

 

Conclusões sobre a pesquisa realizada

Esta pesquisa vem mostrar que a gravidez da psicoterapeuta é elemento importante no trabalho psicoterápico, tanto em relação aos clientes quanto em relação à própria psicoterapeuta.

A pesquisa sobre a literatura existente mostrou serem bastante limitados os trabalhos encontrados sobre o tema. A essa limitação na literatura, associa-se uma tendência, por parte das psicoterapeutas grávidas, a negar as repercussões da gravidez, em si mesma e em seus clientes.

No entanto, nos casos aqui estudados, pudemos verificar uma facilitação em se pesquisar a sexualidade. Principalmente as crianças e, especificamente, as meninas, aproveitaram para pesquisar mais as questões sobre sexo, sobre a origem da vida e da morte. No caso de adultos, foi facilitada a revivescência de abortos, de irmãos mortos.

Uma maior curiosidade sobre o interior feminino foi também observada, ao lado de uma facilitação na emergência de desejos sexuais e da curiosidade sexual.

De maneira geral, a facilitação em se tentar conhecer mais as questões sobre sexo, sobre a origem da vida e sobre a morte (abortos, irmãos mortos) foi bastante proveitosa. Socialmente, a sexualidade e a morte são temas difíceis de serem conhecidos. Mesmo na psicoterapia, a morte pode apresentar obstáculos para ser trabalhada, por dificuldades dos clientes ou dos próprios psicoterapeutas.

A esse respeito, explica Aberastury (1978, p. 163):

As incógnitas que vão nos acompanhar por toda a vida, às quais damos respostas influenciadas por situações individuais, culturais e religiosas, estão já presentes desde a infância e giram em torno da origem da vida e da morte. Penso que, em última instância, o problema que a morte apresenta para uma criança é a da separação definitiva do corpo.

Se foi observada uma tendência a negar a gravidez da psicoterapeuta na literatura (e por parte das próprias psicoterapeutas), observou-se, também a tendência a negar a morte: percebeu-se em relação à morte uma catalisação de vivências desse tipo. As mulheres que tiveram experiências de aborto, espontâneo ou provocado, reviveram-nas com a psicoterapeuta grávida. Abortos sofridos pela própria mãe ou a morte de irmãos foram também trazidos para a psicoterapia.

A gravidez da psicoterapeuta pode ser um momento de grande valor para o trabalho psicoterápico. Apesar das dificuldades que podem aparecer na psicoterapia, tanto com respeito às psicoterapeutas, quanto aos clientes, mostrou-se uma ocasião proveitosa pela facilitação e catalisação de revivescências bastante primitivas. E a intensidade de emoção, que acompanha as revivências primitivas, se fez presente nessa situação. Trabalhadas na psicoterapia, houve um grande benefício para o tratamento em curso.

Malcapine e Greenacre são citados por Spitz (1956, pág. 381), quando estuda a transferência: “...a matrix da transferência assenta-se grandemente na quase união original mãe-criança dos primeiros meses de vida”. Este autor postula também que, quando o cliente é exposto ao setting analítico, que seria semelhante aos primeiros tempos de vida do bebê, haveria gradualmente uma regressão. A capacidade para a transferência estaria baseada na formação das primeiras relações objetais.

Quando a psicoterapeuta engravida, ocorre uma interferência no setting analítico (o que pode ter influenciado a falta de literatura sobre o tema). Essa interferência, porém, reporta também o cliente à união e à separação mais primitiva com a mãe, o que a caracteriza de uma forma singular.

A gravidez da psicoterapeuta foi utilizada como uma tela sobre a qual os clientes projetaram suas angústias, fantasias, idéias e pensamentos. As revivescências facilitadas pela gravidez da psicoterapeuta apareceriam no processo psicoterápico mesmo sem essa facilitação &– isto é, mesmo que a psicoterapeuta não estivesse grávida. Mas essa situação especial possibilitou uma facilitação e catalisação, que podem influenciar benéfica ou prejudicialmente à psicoterapia.

Valendo-se da situação específica, representada pelo fato de a psicoterapeuta estar grávida, algumas questões se colocam: quando e como contar ao cliente que a psicoterapeuta está grávida; que informações complementares devem ou não ser dadas ao cliente; que informações devem ser dadas sobre o parto e o bebê; que repercussões teriam sobre o cliente se o bebê morresse ou houvesse alguma complicação no parto ou com o bebê; que medidas devem ser tomadas quando o cliente interrompe a psicoterapia nas férias para o parto da psicoterapeuta. Estudos mais amplos podem trazer a essas indagações melhores possibilidades de aproveitamento, em benefício da psicoterapia em curso.

Este estudo veio comprovar que a gravidez da psicoterapeuta deve ser trabalhada desde o seu início, à medida que apareçam repercussões no processo psicoterápico, a fim de que não interfiram ou bloqueiem, de forma negativa, o tratamento. Quando contar ao cliente sobre essa gravidez pode depender da reação individual de cada um e do que for comunicado &– negar essas repercussões pode dificultar o andamento da psicoterapia.

Outra questão aqui se coloca: por que procurar uma psicoterapeuta grávida para iniciar um tratamento psicoterápico? Não estaria a gravidez influenciando essa escolha? Em caso afirmativo, que influências seriam?

A relação diádica primitiva, mãe-bebê, está ligada à transferência (Spitz, 1956), ao viver criativo e ao existir (Winnicott, 1975a). A partir da hipótese de que a gravidez da psicoterapeuta poderia facilitar revivescências primitivas com a figura materna, a importância de desenvolver pesquisas sobre o tema fica assinalada. Desde que a psicanálise, além de técnica psicoterápica, é um método de investigação do inconsciente e de suas origens, tentou-se, neste trabalho, utilizando-se da técnica psicanalítica, investigar a gravidez da psicoterapeuta em suas influências sobre o processo psicoterápico.

Não estariam os entraves em explorar este tema relacionados à dificuldade em pesquisar os próprios fantasmas da investigação do ventre materno? Bettelheim, quando estuda os rituais dos povos antigos e, especificamente, o da fertilidade, ressalta a representação da dificuldade de ter acesso ao local da procriação.

Nota-se através da antropologia que, paralelamente, parece existir certa dificuldade em pesquisar assuntos relacionados ao tema. Um dos propósitos deste trabalho foi o de facilitar ou de focalizar algum interesse sobre este assunto.

A facilitação de revivescências bastante primitivas com a figura materna mostrou-nos a importância dessas experiências mais primitivas para o desenvolvimento emocional de cada indivíduo &– daí a necessidade de serem trabalhadas na psicoterapia. Vários autores expuseram suas posições sobre o tema, dentre os quais destacamos Winnicott (1975a, pág. 161):

O vislumbre do bebê e da criança vendo o eu (self) no rosto da mãe e, posteriormente, num espelho, proporciona um modo de olhar a análise e a tarefa psicoterápica. Psicoterapia não é fazer interpretações argutas e apropriadas; em geral, trata-se de devolver ao paciente, a longo prazo, aquilo que o paciente traz. É um derivado complexo do rosto que reflete o que há para ser visto. Essa é a forma pela qual me apraz pensar em meu trabalho, tendo em mente que, se o fizer suficientemente bem, o paciente descobrirá seu próprio eu (self) e será capaz de existir e sentir-se real. Sentir-se real é mais do que existir; é descobrir um modo de existir como si mesmo, relacionar-se aos objetos como si mesmo e ter um eu (self) para o qual retirar-se, para relaxamento.

Eis, então, um ponto de contato entre a função de uma maternagem suficientemente boa e de uma psicoterapia suficientemente boa. A investigação sobre a gravidez da psicoterapeuta, com todas as implicações que pode trazer para o trabalho psicoterápico, pode auxiliar esse contato. O cliente, a psicoterapeuta e a própria psicoterapia seriam os grandes beneficiários.

 

Referências

Aberastury, A. et al. (1978). La percepción de la muerte en los niños y otros escritos. Buenos Aires: Kargieman.        [ Links ]

Bettelheim, B. (1979). Feridas simbólicas (M. A. Miguel, trad., 2ª ed.). Lisboa: Moraes.        [ Links ]

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Endereço para correspondência
Ivonise Fernandes da Motta
R. Guarará, 529/62 &– Jardim Paulista
01425-001 São Paulo, SP
Fones: (11) 3887-6867/1516
E-mail: ivonise@usp.br

Recebido em: 18/03/2009
Aceito em: 02/04/2009

 

 

* Profa. Dra. do Departamento de Psicologia Clínica, do Instituto de Psicologia da Universidade São Paulo.
1 Este trabalho é parte dos resultados de pesquisa realizada e apresentada na Dissertação de Mestrado sobre o tema.

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