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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. v.42 n.77 São Paulo dez. 2009

 

EDITORIAL

 

Em 1999, no Collège de France, em cerimônia comemorativa dos seus 90 anos, Claude Lévi-Strauss confessou-se admirado de ter alcançado idade tão avançada: tinha naquele momento o sentimento de ser como um holograma que deixara de possuir uma unidade inteira. A partir da ideia de que cada parte de um holograma conserva uma imagem e uma representação completa do todo, ele disse:

“Assim, há hoje para mim um eu real, que não é mais que um quarto ou a metade de um homem, e um eu virtual, que conserva ainda viva uma idéia do todo. O eu virtual constrói um projeto de livro, começa a organizar os capítulos e diz ao eu real: ‘Você é que tem de continuar’. E o eu real, que não pode mais, responde ao eu virtual: ‘É seu trabalho. É só você que vê a totalidade’. Minha vida se desenrola na presença de tão estranho diálogo. Graças à presença de vocês e de sua amizade, eu sou muito grato de por alguns instantes fazê-lo cessar, permitindo por um momento que esses dois eus novamente coincidam”.

A metáfora do holograma - do grego holos (todo, inteiro) e graphos (sinal, escrita) -, na qual cada parte conserva uma imagem, uma representação do todo, nos parece útil para abordar o tema do qual nos ocupamos. Evoca a maleabilidade e a mobilidade dessa relação indissociável de posições masculinas e femininas nos sujeitos e nos remetem a esses conceitos de masculinidade e feminilidade que estão sempre nos escapando: constructos e fenômenos fugidios, paradoxais, de difícil apreensão, mas que por vezes podem ser apreendidos em uma totalidade, como em um holograma, dando sentido às suas especificidades.

Freud, Laplanche, Jacques André e outros se referem à origem da psicossexualidade a partir de uma sexualidade inconsciente implantada pelo adulto no corpo apassivado da criança, durante os primeiros cuidados da infância. Enfatizam a marca do fantasmático sobre o corpo, lembrando que a conformação dos órgãos genitais induz a diferentes fantasias. Natureza, cultura e momento histórico em contínua interação e indissociáveis na conformação do sujeito psíquico e de sua identificação sexual.

Embora a questão do enigma feminino, proposta por Freud, tenha ocupado e ocupe grande parte dos escritos sobre sexualidade, na ultima década vem surgindo na literatura psicanalítica um interesse crescente no estudo dos fatores que interagem na constituição da psicossexualidade masculina. Enfatizam as circunstâncias relacionais e da vida de fantasia, principalmente as que estão ligadas às experiências das relações pré-edípicas do menino com a mãe e o pai e que podem favorecer ou dificultar o satisfatório exercício dessa sexualidade.

As bases teóricas, solidamente plantadas pelas formulações freudianas e kleinianas, levando em conta o complexo de Édipo, passaram a receber na atualidade expansões que consideramos relevantes para a nossa prática clinica cotidiana.

Merecem destaque as ideias de Silvia Bleichmar, constantes de seu livro as Paradojas de la constitución masculina, que exploram o caminho da introjeção identificatória masculina. Sua perspectiva coloca ênfase em um movimento homossexual passivo do menino e a incorporação do pênis paterno na base da identificação ao pai. O investimento amoroso e erótico do menino ao pai pré-edípico pavimenta, assim, o caminho da identificação masculina, o que torna a masculinidade ligada para sempre ao fantasma paradoxal da homossexualidade e às angustias de castração.

O caminho da construção da psicossexualidade masculina passa pela relação fusional com a mãe, pela relação pré-edípica terna e erótica com o pai, pelo atravessamento edípico e integração dessas experiências na adolescência. Faz-se através de identificações e diferenciações sucessivas, sempre integrando qualidades femininas. Assim como na mulher, a construção da identidade sexual masculina no homem demanda um longo caminho. É um processo complexo, que envolve inúmeros fatores. Além disso, dependendo da época histórica e do meio sociocultural, os modelos de masculinidade vão se modificando.

Para a abertura deste número, convidamos dois renomados psicanalistas franceses, que têm dedicado vários de seus escritos ao tema do Jornal de Psicanálise e que nos concederam, nas respectivas entrevistas, preciosos momentos de troca criativa.

Jacques André aproxima as primeiras experiências passivas do bebê, na relação com o adulto que dele cuida, com a posição feminina precoce. Discorre sobre as variações históricas das práticas sexuais e a diferenças entre a sexualidade da criança e o Infantil. Fala sobre as dimensões narcísicas da sexualidade e o papel da alteridade na constituição do psiquismo e da psicossexualidade em geral. Ao refletir sobre homossexualidades, nos apresenta um relato de um instigante material clínico e expõe sua visão pessoal a respeito dos analistas que declaram publicamente suas orientações sexuais.

Florence Guignard - psicanalista internacionalmente reconhecida por suas teorizações sobre o materno primário e o feminino primário, concebidos como momentos ou posições estruturantes do sujeito psíquico - generosamente nos oferece algumas de suas reflexões sobre o tema. Retoma a teoria do feminino em Freud, sugerindo seu envolvimento em todos os textos freudianos sobre a histeria.

No debate, os colegas convidados, Cássia Barreto Bruno, Márcio de Freitas Giovannetti e Michael Harald Achatz, expandiram as questões abordadas. Existe um novo sujeito emergindo? Tal proposição foi assunto para uma troca de ideias que levou a outra indagação: estarão os analistas despreparados para os crescentes desafios da clínica contemporânea?

Sabendo que masculinidade e feminilidade se encontram distribuídas em homens e mulheres nas mais variadas combinações, procuramos nesta edição privilegiar o imprevisto, o inusitado, o estrangeiro em nós e em nossas teorias. Convidamos o leitor a construir seu próprio holograma a partir da riqueza dos textos aqui expostos: cada um se abrindo para um vértice desse complexo universo teórico-clínico, cuja visão de totalidade só pode ser discernida através da diversidade das abordagens.

 

 

Cândida Sé Holovko
Editora

Mirian Malzyner
Coeditora

Corpo editorial
Ana Maria Vieira Rosenzvaig
Daniela Sitzer
Eduardo Boralli Rocha
Eliana Rache
Marina Ramalho Miranda
Marta Úrsula Lambrecht
Richard Carasso
Silvia Lobo
Yeda Alcide Saigh

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