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Jornal de Psicanálise
versão impressa ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.43 no.78 São Paulo jun. 2010
REFLEXÕES SOBRE O TEMA
Transicionalidade e criatividade: rabiscos sobre o viver criativo
Transitionality and creativity: squiggle about the creative living
Transicionalidad y creatividad: garabatos sobre el vivir creativo
José Ottoni Outeiral1
Membro titular e didata da Sociedade Psicanalítica de Pelotas SPPel
Membro convidado da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro SBPRJ
RESUMO
O autor desenvolve comentários sobre o conceito de transicionalidade articulando-o com a criatividade e o viver criativo.
Palavras-chave: Transicionalidade, Objetos transicionais, Fenômenos transicionais, Criatividade, Viver criativo.
ABSTRACT
The author develops comments on the concept of transitionality in articulation to creativity and the creative living.
Keywords: Transitionality, Transitional objects, Transitional phenomena, Creativity, Creative living.
RESUMEN
El autor desarrolla comentarios referentes al concepto de transicionalidad articulándolo con la creatividad y el vivir creativo.
Palabras clave: Transicionalidad, Objetos transicionales, Fenómenos transicionales, Creatividad, Vivir creativo.
… e como conheci um pouco Winnicott, não muito, mas enfim vi que tipo de homem era ele, imaginei Winnicott na British Psycho-Analytical Society, com Anna Freud à sua direita, o tempo todo insistindo no objeto da realidade externa. E à sua esquerda Melanie Klein (risos), que enchia os ouvidos de todo o mundo com os objetos internos. Nisso, Winnicott disse: “Estou cheio destas mulheres! O externo, o interno … o interno, o externo… Não quero ter de escolher. Então eu invento um terceiro campo: o campo transicional (risos).
(Green, 1990, p. 54)
A noção de objeto transicional é uma das mais importantes
descobertas em psicanálise.
(Lacan, 1966, p. 414)
O objeto transicional teve como finalidade conferir significação aos primeiros sinais de aceitação de um símbolo pelo bebê em desenvolvimento. Este precursor símbolo é, por sua vez, parte do bebê e parte da mãe. Com freqüência é um objeto e a adição da criança a este objeto real é admitida e permitida pelos pais. Porém pode não ocorrer uma materialização; observamos que certo fenômeno tem a mesma significação; por exemplo, observar atentamente, pensar, distinguir cores, exercitar movimentos e sensações corporais, etc. A própria mãe pode converter-se em objeto transicional , ou o polegar da criança; formas degeneradas são entre outras, o balanceio, o bater a cabeça contra algo sólido, o chupar extremamente compulsivo, etc., e mais a pseudologia fantástica e o roubo. Em condições favoráveis este objeto cede gradualmente seu lugar a uma gama cada vez ampla de objetos e a toda a vida cultural.
(Winnicott, 1989, p. 387)
Por favor… desenha-me um carneiro
Quero começar este nosso encontro, pois o que é uma escrita senão o convite para um encontro, com uma referência a Antoine de Saint Exupéry (1971) e ao seu livro O pequeno príncipe, conhecido de todos nós e que fala de um menino.
Neste livro encontramos uma passagem muito significativa.
O Pequeno Príncipe está perdido numa encruzilhada, está só e é noite e – de repente – ele encontra um homem, cujo avião tivera uma pane naquele deserto. Pede-lhe, então, que ele lhe desenhe um carneiro. O homem assim o faz e o Pequeno Príncipe fica frustrado. Não é esse o carneiro que deseja. Repete o pedido. O homem desenha um novo carneiro. Novamente se frustra o menino. O piloto resolve, então, desenhar uma caixa com buracos e explica que ali dentro há um carneiro e que existe, inclusive, buracos para ele respirar. O menino, exultante, exclama: “Sim, este é o carneiro!”.
O Pequeno Príncipe queria não um carneiro, mas poder imaginar um carneiro! Todos nós necessitamos imaginar um carneiro, quando estamos perdidos e sós, como sempre acontece, e tantas pessoas só podem ver o carneiro quando ele é desenhado pela vida.
Transicionalidade e criatividade
Responda “sim’” ou “não”! Winnicott diz:
“Eu não respondo nem sim nem não: o objeto transicional é e não é o seio”.
(Green, 1990, p. 72)
Uma das mais originais e difundidas concepções de Donald Winnicott (ou DWW, como o chamava Clare Winnicott) é o conceito de objetos e fenômenos transicionais. Suas contribuições ao tema da transicionalidade permitem entender não só o desenvolvimento humano como nos remete às raízes da criatividade e da cultura e abre caminhos originais à compreensão clínica. Embora esses conceitos percorram grande parte de sua obra, é em três artigos que ele os sintetiza e organiza: “Os objetos e fenômenos transicionais” (1951-1971), “O destino do objeto transicional” (1959) e “O uso de um objeto e o relacionamento em termos de Identificações” (1968).
A concepção de DWW de objetos e fenômenos transicionais parte do que ele considera a “hipótese original”.
Em seu artigo “Objetos e fenômenos transicionais”, publicado inicialmente em 1951, e depois, com pequenas modificações, em 1971, ele escreveu:
É sabido que os bebês, assim que nascem, tendem a usar o punho, os dedos e os polegares em estimulação da zona erógena oral, para a satisfação dos instintos dessa zona… É igualmente sabido que, após alguns meses, bebês de ambos os sexos passam a gostar de brincar com bonecas e que a maioria das mães permite a seus bebês algum objeto especial, esperando que eles se tornem, por assim dizer, apegados a tais objetos. (1971a, p. 32)
Em um primeiro momento, na “primeira mamada teórica”, a mãe suficientemente boa (ou mãe devotada comum ou ambiente facilitador) se adapta de tal forma, através da identificação primária, como escreveu Freud (1920), ao seu bebê que possibilita a experiência onipotente de que ele é quem criou o seio. Este é o momento em que o bebê “cria o mundo” e pode dizer “eu sou Deus”! Esta é uma experiência fundamental, de uma onipotência necessária, raiz da autoestima, da espontaneidade e da criatividade. (Figura 1)
Acontece que a mãe é “apenas” suficientemente boa e assim “falha”; esta falha permite que seja apresentado ao bebê, na medida de sua capacidade específica, o “princípio de realidade”. Até então o bebê estava no estágio de dependência absoluta, estágio de narcisismo primário como S. Freud descreveu, em um estado de fusão com a mãe constituindo uma “unidade” e, onde, paradoxalmente, sob o ponto de vista da mãe, há “dois” envolvidos. Temos então uma área de ilusão e desilusão.
Em um segundo momento a falha da mãe se expressa por percepções (é importante aqui o conceito de catalogação, uma memória sem representação, fundamentalmente de percepções sensoriais, anterior à representação de palavra) de que a separação (des-fusão) começa a se constituir. A mãe, em estado de preocupação materna primária, “adoecida sadiamente”, e o bebê, “criam”, então, um espaço transicional, espaço paradoxal, superposição dos espaços da mãe e do bebê, terceiro espaço, espaço potencial, espaço de criatividade, espaço de amorfia, espaço das primeiras experiências não eu. Ainda não há uma percepção de um outro, apenas de um não eu (not me). Este é o espaço dos objetos e dos fenômenos transicionais. (Figura 2)
Esta área intermediária é o espaço entre a criatividade primária e a percepção objetiva baseada no teste de realidade, como DWW. Na verdade, o que conta não é o objeto em si, mas sim o uso que o bebê faz do objeto.
No clássico texto sobre os objetos e fenômenos transicionais, DWW escreveu:
Introduzi os termos ‘objetos transicionais’ e ‘fenômenos transicionais’ para designar a área intermediária da experiência, entre o polegar e o ursinho, entre o erotismo oral e a verdadeira relação de objeto, entre a atividade criativa primária e a projeção do que já foi introjetado, entre o desconhecimento primário da dívida e reconhecimento desta (diga ‘bigado’). (Winnicott, 1971a, p. 34)
Estes conceitos introduzidos por DWW na psicanálise são conhecidos da filosofia, da literatura, das artes em geral, como ele mesmo reconheceu. Fernando Pessoa, o poeta, costumava dizer que quem aprecia uma paisagem está vendo, na verdade, duas: a paisagem verdadeira e uma outra, interna, e que a arte nasce da sobreposição destas duas imagens.
É importante considerar que DWW desenvolveu uma “teoria de objetos” que, além dos objetos transicionais, inclui os objetos subjetivamente concebidos e os objetos objetivamente percebidos.
O destino do objeto transicional
Em um trabalho publicado em 1959, com o título significativo de “O destino do objeto transicional”, DWW escreveu que os objetos transicionais se encontram em diversos processos de transição: um deles vincula-se às relações de objeto e outro à passagem de um objeto que é subjetivamente concebido pelo bebê a outro que é objetivamente percebido ou externo (passagem ao uso do objeto).
1. André Green desenvolveu seu conceito de negativo a partir destas diferenças entre as versões deste artigo.
2. Ilusão se origina do latim ludere, lúdico. É importante distinguir ilusão, onde existe um objeto externo, de alucinação, onde o objeto externo não existe.
3. É interessante lembrar que André Green considera que, para pacientes que sofreram falhas ambientais importantes nas etapas iniciais do desenvolvimento, as modificações do setting introduzidas por DWW são uma metáfora de cuidados maternos e não nos esqueçamos que não existe mãe sem a participação de um pai, ainda que presente apenas no imaginário da mãe. Quando ausente o pai será, paradoxalmente, uma presença marcante.
Ao comentar sobre o destino do objeto transicional ele aborda dois enfoques.
O primeiro teria o destino dos “velhos soldados que nunca morrem e somente desaparecem”; o objeto transicional seria progressivamente descatexizado e “suplantado, mas conservado” ou “gasto” ou “entregue, o que não resulta satisfatório” ou, ainda, “conservado pela mãe no fundo de uma gaveta, como uma preciosa ‘relíquia’ de uma época de sua vida”. O segundo correlaciona o objeto transicional com a base do simbolismo e considera, então, que um destino seria possibilitar uma terceira zona, zona dos objetos e fenômenos transicionais, uma “terceira tópica”, área da vida criativa e cultural do indivíduo.
O uso do objeto transicional
O conceito de transicionalidade, função derivada dos objetos e dos fenômenos transicionais, possibilitou ao pensamento psicanalítico reavaliar o papel da cultura como um elemento positivo e construtivo na experiência humana, como um constructo da criatividade, e não apenas como um acontecimento ligado aos mecanismos repressivos.
O desenvolvimento posterior nesta área do conhecimento levou DWW a fazer a diferenciação entre a relação objetal e o uso do objeto. Em seu trabalho “O uso do objeto” (1989) ele descreve resumidamente suas concepções, colocando importantes questões tanto para o desenvolvimento como para a psicopatologia e a teoria da técnica psicanalítica. Ele escreveu:
Apresento como tema para discussão os motivos pelos quais, na minha opinião, a capacidade para usar um objeto é mais elaborada que a capacidade para se relacionar com objetos; o se relacionar pode ser com um objeto subjetivo ao passo que o usar implica que o objeto faz parte da realidade externa. Pode-se observar a seguinte sequência: 1) o sujeito se relaciona com o objeto; 2) o objeto está em processo de ser colocado no mundo pelo sujeito; 3) o sujeito destrói o objeto; 4) o objeto sobrevive à destruição e 5) o sujeito pode usar o objeto. O objeto está sempre sendo destruído. A destruição passa a ser o inconsciente pano de fundo do amor por um objeto real, isto é, um objeto fora da área de controle onipotente do sujeito. O estudo deste problema envolve uma afirmação do valor positivo da destrutividade. A destrutividade, acrescida da sobrevivência do objeto à destruição, coloca o objeto fora da área dos objetos criados pelos mecanismos mentais projetivos do sujeito. Deste modo, nasce um mundo de realidade partilhada, que o sujeito pode usar, e a qual podemos enriquecer o sujeito com uma substância-outra-que-não-eu (other-than-me-substance).
Esta citação, algo extensa, é necessária pela clareza com que DWW expõe um conceito que, na verdade, é bastante complexo e nem sempre bem compreendido, como se deu na exposição, feita por ele, do tema na Sociedade Psicanalítica de New York. Trata-se, assim, de um ir-e-vir, não apenas um conceito desenvolvimental, que fundamenta e de – certa maneira – representa uma síntese de suas ideias sobre o tema.
Pensemos, esquematicamente, convidando ao leitor, se ele assim o desejar, a ler o artigo a que estamos nos referindo, os seguintes elementos envolvidos neste processo; a passagem da relação de objeto ao uso do objeto.
A passagem da relação de objeto ao uso do objeto se dá pela constituição do espaço potencial e da transicionalidade e, particularmente, pela circularidade da destruição e da sobrevivência do objeto.
Comentários sobre a criatividade, a saúde e o viver criativo
É através da apercepção criativa, mais do que qualquer outra coisa, que o indivíduo sente que a vida é digna de ser vivida.
(Winnicott, 1971a, p. 44)
Espero que o leitor, caso tenha me acompanhado até aqui, esteja motivado para retomar a leitura dos textos de DWW que oferecem uma visão, dentro da tradição freudiana, fundamental para a compreensão das patologias contemporâneas e da teoria da técnica.
DWW foi sempre um clínico, criado dentro da tradição empirista britânica, onde a clínica, soberana, permite a formulação da teoria. Ele nos adverte em relação “aos filósofos de poltrona”, em O brincar e a realidade, que nunca sentaram no chão com seus pequenos pacientes. É necessário viver a experiência clínica.
A criatividade e o brincar (como sinônimo do gesto espontâneo) são elementos da saúde. Sigmund Freud falou da saúde relacionando-a com a capacidade de amar e trabalhar e DWW acrescentou à questão o viver criativo. Quando não encontramos o viver criativo de maneira predominante na vida, é frequente a existência de um esforço para existir baseado em um relacionamento com a realidade externa fundamentado na submissão ou no desejo do outro (como no falso self); pode ocorrer, também, de alguém ficar “preso”, de forma tantalizante, à criatividade de um outro. Nestes casos teremos aquilo que é identificado como doença (em termos psiquiátricos), como o oposto da saúde.
A cultura contemporânea nos permite observar pessoas que adoeceram pelo fato de estarem demasiadamente presas na realidade objetivamente percebida e que perderam o contato com o mundo subjetivamente concebido e, por consequência, com o viver criativo.
É possível, assim, compreender porque William Skakespeare escrevia, ele que “cria” o humano contemporâneo ocidental, para dizer que “tu és”, “thou art” e não “you are”… Para concluir estas ideias, ou rabiscos, sobre o tema deste artigo, considero importante que os que estão lendo este texto intervenham fazendo seus próprios rabiscos para que juntos, seguindo o modelo do jogo dos rabiscos, possamos desenvolver um brincar criativo e espontâneo.
Agradeço os comentários e as sugestões de Eloisa Valler Celeri (Unicamp), Julio de Mello Filho (SBPRJ) e Raquel Zak de Goldstein (APA).
Referências
Green, A. (1990). Conferências brasileiras: metapsicologia dos limites. Rio de Janeiro: Imago. [ Links ]
Freud, S. (1974). Beyond the pleasure principle. In S. Freud, The standard edition of the complete psychological works of Sigmund Freud (Vol. 18, pp. 93-147). London: Hogarth Presse. (Trabalho original publicado em 1920) [ Links ]
Lacan, J. (1966). Le acte psychanalitique. Le séminaire de Jacques Lacan. Livre 15. Paris: Seuil. [ Links ]
Saint Exupéry, A. (1972). O pequeno príncipe. São Paulo: Agir. [ Links ]
Winnicott, D.W. (1971a). Playing and Reality (pp. 32-48). London: Tavistock. [ Links ]
Winnicott, D.W. (1971b). Through Paediatrics to Psycho-analysis. In D.W. Winnicott, Collected Papers (pp. 78-92). New York: Basic Books. [ Links ]
Winnicott, D.W. (1989). Psycho-analytical explorations (pp. 129-153). London: Karnac Books. [ Links ]
Endereço para correspondência
José Ottoni Outeiral
Rua 24 de Outubro 838, 302 | Moinhos de Vento
90510-000 Porto Alegre, RS
Tels: 51 3222-4906 | 51 3346-6123
E-mail: joseouteiral@hotmail.com
Recebido em: 11/05/2010
Aceito em: 07/06/2010
1 Membro titular e didata da Sociedade Psicanalítica de Pelotas SPPel. Membro convidado da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro SBPRJ.