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Jornal de Psicanálise
versão impressa ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.43 no.79 São Paulo dez. 2010
TRADUÇÕES
As delinquências secretas do analista1
The analyst’s secret delinquencies
Las delincuencias secretas del analista
Joyce Slochower2
Professora do centro de graduação da City University of New York (CUNY)
Membro e supervisora do Programa de Psicoterapia e Psicanálise de Pós Doutorado da NY University
Há alguns anos, minha supervisionanda, Dra. M revelou-me (muito constrangida) que estivera folheando revistas e catálogos silenciosamente durante uma sessão por telefone com seu paciente. O paciente ouviu o som das páginas sendo viradas e perguntou-lhe se ela estava lendo algo. Sentindo-se "pega" e culpada, a Dra. M mentiu, dizendo que estivera virando as páginas do seu caderno e tomando notas da sessão. O Sr. J aparentemente aceitou a explicação e voltou a descrever outras experiências.
Dentro em breve voltarei a esse momento e à sua complexa dinâmica. Porém, antes quero fazer um pequeno desvio descrevendo minha experiência de apresentação de situações de transgressão do comportamento analítico para plateias de profissionais. Já o fiz algumas vezes, principalmente nos Estados Unidos. Já falei em institutos tradicionais e menos tradicionais, tanto em cidades pequenas, quanto em grandes. Quando comecei a arrolar essas violações, a plateia psicanalítica, geralmente bem comportada, era tomada de forte emoção em que imperavam tanto dor quanto ansiedade. A princípio o silêncio era pontuado por risadinhas e/ou por expressões de consternação (por exemplo: "Oh! Meu Deus"). À medida que eu continuava, as risadinhas viravam gargalhadas; algumas pessoas gargalhavam divertidas, enquanto outras iam ficando cada vez mais chocadas, murmurando entre si.
Durante as discussões, alguns corajosos levantavam as mãos e descreviam suas próprias transgressões para o grupo; outros aproximavam-se privadamente ou acompanhados por um colega, logo depois da minha palestra; outros ainda deixavam mensagens telefônicas ou e-mails, alguns anônimos. Sem querer, tornei-me árbitro da consciência profissional.
Ficou mais do que evidente que minha supervisionanda nem de longe estava sozinha no que eu poderia chamar de sua delinquência ou mau comportamento secreto. Essas infrações do contrato analítico eram, na verdade, extraordinariamente comuns. No entanto, minha leitura cuidadosa da literatura revelou que, ao contrário do mau comportamento profissional grave, jamais foi escrito algo sobre contravenções analíticas (ao menos em meu conhecimento). Por que, apesar de uma florescente literatura sobre violações éticas graves, não examinamos sua dinâmica subjacente? Um manto de sigilo continua a velá-las apesar da frequência com que ocorrem.
Do meu ponto de vista, transgressões são uma categoria relativamente distinta de comportamento profissional, frequentemente secreto e geralmente encenado com culpabilidade. O analista momentaneamente, mas com intenção aparentemente consciente, descompromete-se deliberadamente do processo de tratamento para satisfazer uma necessidade pessoal. Ainda que algumas transgressões ocorram durante sessões frente a frente, tenho a impressão de que a maioria das transgressões profissionais é intencionalmente ocultada e cometida quando o paciente está deitado no divã ou durante sessões por telefone. De maneira mais ou menos flagrante, o analista aproveita a oportunidade secreta de afastar-se afetiva ou cognitivamente do paciente.
Gostaria de dar alguns exemplos esquemáticos de delinquências mais ou menos graves. Todos estão sem disfarce e relatados sob permissão. Alguns foram descritos por analistas a respeito de sua experiência enquanto pacientes. Outros, por analistas, ao seu próprio respeito. Essas delinquências incluem: tomar nota de uma tarefa esquecida, fazer listas de compras, planejar eventos, lixar ou pintar as unhas, pentear o cabelo, maquiar-se, usar a internet, comer algo escondido, folhear uma revista ou jornal, consultar e-mails, comprar passagens aéreas pela internet, ir ao banheiro, cozinhar, ler correspondência, bombear leite materno, conferir resultados esportivos on line, fazer a conta de pacientes, encurtar deliberadamente uma sessão em um minuto ou dois, cobrar pela falta a uma sessão durante as férias do analista (que o paciente não sabia). Surpreendentemente, só em alguns poucos casos os pacientes demonstraram ter percebido a violação do terapeuta. Uma pessoa me relatou que, enquanto estava deitada no divã, fungou diversas vezes e então perguntou: "estou sentindo cheiro de esmalte?" E estava.
Há um segundo grupo de transgressões que ocorrem abertamente em sessões frente a frente. Elas incluem longos telefonemas, usar a sessão para satisfazer necessidades pessoais (por exemplo, falar longamente sobre um assunto pessoal, pedir ao paciente para recomendar médicos, ações, lojas de desconto, restaurantes etc.). Um colega relatou que o analista anterior de um paciente jantava durante as sessões dele até que um dia o paciente explodiu comentando: "O que é isso, um piquenique, porra?"
Ao contrário das transgressões ocultas, as violações francas são mais visivelmente localizadas no campo relacional. Essas transgressões parecem refletir frequentemente aspectos implícitos da relação terapêutica, e podem representar uma forma de comunicação indireta (inconsciente?) com o paciente. Quando o analista age abertamente é mais fácil o paciente responder diretamente à transgressão. Contudo essas pequenas contravenções não fazem parte da conversa durante o tratamento, talvez porque o analista em interesse próprio tenda a pressionar muito para que o paciente não perceba ou, ao menos, não fale do que o analista está fazendo. Esta pressão silenciosa exclui contravenções do discurso terapêutico de tal maneira que contravenções "francas" podem, na realidade, funcionar mais como secretas à medida que o paciente sente-se incapaz (talvez inconscientemente) de abordá-las com o analista.
Susan descreveu sua experiência em um tratamento anterior. Como um aparte, ela mencionou que a analista trazia frequentemente café e bolo para as sessões e mastigava ruidosamente enquanto conversavam. Susan não ficara conscientemente perturbada, mas, provavelmente em resposta à minha expressão surpresa, acrescentou que a analista lhe oferecera bolo (mas ela recusara).
Como meu paciente Samuel (ver Slochower, 2006), Susan e sua analista encenavam uma gama de dinâmicas via essas sessões de café e bolo. Susan conscientemente desfrutava a disponibilidade da analista em partilhar comida com ela; fazia sentir-se especial. Só aos poucos foi ficando evidente que havia outros significados, mais perturbadores, embutidos nessa encenação. Apesar do prazer e da aquiescência de Susan à violação da etiqueta de sua analista, em outro nível ela estava inconscientemente "alimentando" a analista para tornar-se uma paciente mais importante. A posição autodepreciativa de Susan a impedia de perceber qualquer objeção ao comportamento da analista – de fato, a provisão de café e bolo dava à analista o alimento que ela necessitava para trabalhar com Susan.
Apesar de Susan e a analista trabalharem firmemente sua resposta passiva aos outros, bem como sua baixa autoestima, aparentemente não tomavam conhecimento de como esse tema era profundamente encenado em seus encontros de café e bolo.
Será que a analista de Susan trazia comida para essas sessões em particular porque era arrastada a uma encenação inconsciente com a paciente? Estaria a esforçada analista de Susan equilibrando seu próprio senso de tensão "alimentando-se" de maneira concreta enquanto tentava "alimentar" Susan? Ainda em outro nível, Susan pode ter assimilado uma mensagem diferente, mas também problemática dessa interação. Talvez a analista tivesse dificuldade de satisfazer suas próprias necessidades – no mínimo, não se permitia um intervalo suficiente, entre os pacientes, para poder tomar um café e comer algo. Será que Susan se identificava com a autoprivação implícita da analista, reforçando o que já era um tema difuso no seu próprio padrão relacional? Ou seria a analista de Susan que se identificava inconscientemente com a dificuldade de Susan assimilando-a, encenando e invertendo a dificuldade ao comer e trabalhar ao mesmo tempo?
Encenações analíticas, crimes e relação de objeto
Encenações, transgressões e crimes analíticos mais graves são só imprecisamente esboçados. Essas classificações quase sempre se sobrepõem: além disso, uma transgressão para nós pode ser um crime para nosso paciente ou colega, ou viceversa. E essas diferenças podem estar a serviço do nosso próprio interesse; ao atribuir nossas ações a dinâmicas relacionais e reencenações, podemos evitar o confronto com realidades desagradáveis que colidem com nossa autoimagem de analistas cuidadosos e comprometidos. Às vezes, o próprio ato de colocar um rótulo condenatório pode refletir uma posição defensiva, rígida, moralista que mais exclui do que abre o processo.
No entanto, apesar dessas complexidades, acredito que temas centrais diferentes caracterizem transgressões, encenações e violações graves de limites. Encenações que surgem no calor emocional ou erótico de um encontro terapêutico envolvem violações do enquadramento que desestabilizam por um tempo, mas não de modo permanente. Essas perturbações do "normal" são amplamente consideradas como onipresentes. As encenações frequentemente servem a uma função terapêutica essencial, permitindo que paciente e analista abordem dinâmicas relacionais previamente dissociadas ou reprimidas, e podem proporcionar um aprofundamento fundamental do trabalho.
As encenações são formatadas pela qualidade afetiva da relação analista-paciente. Tanto analista quanto paciente ficam aprisionados em uma dinâmica relacional que se explicita, e, esperamos, seja depois examinada. As encenações, então, envolvem ambos os participantes, cada um dos quais exprime aspectos da sua subjetividade no contexto da relação diádica. Em contraposição, violações importantes dos limites (por exemplo, dormir com pacientes, roubá-los, ou no mínimo, explorá-los em benefício próprio) não são apenas prejudiciais, mas provavelmente destruirão de maneira permanente a relação terapêutica e, às vezes, o analista também. Violações graves de limites (como encenações) frequentemente surgem do envolvimento emocional intenso do analista com um paciente; no caso, porém, o envolvimento do analista anula totalmente a consciência das necessidades distintas do paciente. No caso, o tratamento fica tão gravemente comprometido que o analista pode ficar sujeito a ação judicial, censura ética ou a ambas.
Gabbard e Lester (1995), ao detalharem a pré-história das violações de limites começando com Freud, descreveram transgressões tanto sexuais quanto não sexuais. Eles ressaltam que violações de limites refletem de maneira típica o deslize por um "declive escorregadio" em que o envolvimento emocional do analista com o paciente erode gradativamente a consciência da vulnerabilidade e das necessidades do paciente. Gabbard e Lester também descrevem diversos casos clínicos contemporâneos em que violações do contrato terapêutico por parte do analista resultaram em destruição da relação terapêutica.
O analista que comete um "crime" grave explora a vulnerabilidade emocional do paciente, transformando dessa forma o paciente de sujeito em objeto. O analista ignora ativa ou deliberadamente a subjetividade do paciente enquanto paciente à medida que inconsciente ou propositalmente transforma o paciente em objeto. 3 4
Transgressões: o analista enquanto sujeito
Coloco as transgressões em um contínuo marcado por graves violações de limites em um extremo e encenações no outro. Em oposição à "erupção" afetiva espontânea que caracteriza de maneira típica as encenações analíticas, fico com a impressão de que a maioria das transgressões é cometida deliberadamente e contém carga afetiva menor; o analista não está engajado em rêverie (Ogden, 1994, 1997), mas em desatenção proposital. Nesse sentido, as transgressões não são diferentes de violações graves de limites. Porém, quando as violações graves de limites envolvem exploração explícita do paciente, as transgressões envolvem de modo típico a retirada afetiva e de cuidado do campo da necessidade do paciente.
Em lugar de usar explicitamente o paciente para satisfazer suas necessidades, o analista que comete uma delinquência afasta-se do paciente para um estado solipsista, perdendo temporariamente o contato com a realidade do paciente enquanto sujeito. Voltando-se para seu próprio desejo e afastando-se do desejo do paciente, o analista torna-se o único sujeito na sala.
As transgressões surgem com mais frequência em períodos de quietude analítica do que sob intensa pressão analítica. Imagino se é exatamente a ausência de exigências emocionais intensas da parte do paciente que dá espaço ao analista explicitamente experimentar ou, em todo caso, encenar seu próprio interesse. Essa retirada do campo relacional para um estado de autoenvolvimento é, com certeza, um abandono do paciente e da tarefa analítica. Mas, as transgressões são menos abusivas do que crimes analíticos (ou muitas transgressões cometidas em sessões frente a frente) porque estes últimos transformam o paciente de sujeito em objeto em uma forma explícita de exploração.
Ideais e maus comportamentos profissionais
Em grande medida, a comunidade analítica amplamente definida compartilha um consenso a respeito do enquadramento analítico. Temos o compromisso de colocar as necessidades dos pacientes em primeiro lugar e deixar de lado nosso próprio interesse quando este colide com este compromisso. Ainda assim, embora tanto o tipo de violação quanto a frequência com a qual os analistas a cometem sejam muito variáveis, só o analista pouco habituado, ou talvez muito jovem seja totalmente inocente a esse respeito.
Tenho a impressão de que grande parte dos lapsos éticos não é cometida por profissionais psicopatas. Ao contrário, os maus comportamentos representam momentos circunscritos que contrastam com o alto nível habitual de compromisso terapêutico responsável e trabalho analítico sólido. Não surpreende que a necessidade de negar as violações profissionais seja bastante intensa, e também não é surpresa que quase não se fale a respeito de maus comportamentos, quanto mais que sejam levados para supervisão. Quando terapeutas transgridem furtivamente seus próprios padrões profissionais, tanto colegas quanto supervisores podem representar a "polícia" moral cujo julgamento precisa ser deixado de lado.
Como a maioria dos analistas investe muito na manutenção da autoimagem de profissional cuidadoso e comprometido, até pequenas violações podem ser uma ameaça dolorosa para a autoestima. É muito mais fácil estudar e trabalhar encenações, sob grande pressão emocional, que ocorrem durante as sessões, do que violações evidentes do ideal terapêutico. Na verdade, o impacto entre esses pequenos atos de psicopatia e o ideal analítico é frequentemente tão doloroso que resulta em negação quase consciente da transgressão tanto da parte do analista quanto do paciente. Essas ações tendem a ser cada vez mais banidas do processo de autoexame e consequentemente do discurso analítico. Nas ocasiões em que uma delinquência é detectada, os analistas podem cometer uma segunda violação ao racionalizar ou mentir em um esforço de encobrir sua ação. Em última análise, essa negação pode resultar em transgressões tão mais flagrantes que podem ultrapassar o limite permeável entre delinquências e crimes analíticos graves.
Os analistas não estão sozinhos em sua resistência a examinar situações de falha profissional; os pacientes parecem considerar que é muito difícil abordá-las diretamente com o analista, talvez porque, ao fazê-lo, expõem ambos os membros da díade à realidade do lapso profissional do analista. Transgressões ocultas aparentemente protegem o paciente das ações do analista, e a maioria dos analistas com quem falei tinha certeza de que os pacientes não tinham consciência da sua desatenção. Nos poucos casos em que a infração do analista foi exposta, os pacientes surpreendentemente exprimiram pouca angústia em resposta às falhas do analista. Certamente, é impossível saber em que medida essas respostas silenciadas refletem negação, a tentativa de aliviar a culpa do analista, ansiedade a respeito de expressar raiva, e assim por diante.
A capacidade de o analista tolerar a ruptura da autoimagem profissional positiva aos seus próprios olhos e aos do paciente cria espaço para os pacientes perceberem e falarem desses momentos. Ao reconhecer, refletir a respeito e trabalhar o impacto de uma violação, o que foi banido se reintroduz no campo terapêutico no qual pode ser examinado e discutido.
Voltemos à Dra. M. Ela confessara a leitura da revista com muito constrangimento e preocupação acerca da minha reação de censura, mas com surpreendente falta de curiosidade acerca do seu comportamento. Embora eu concordasse que não se deve ler revistas durante sessões por telefone, acrescentei que ouvira falar de transgressões piores e conjecturei em voz alta se poderíamos examinar a ação dela com curiosidade em lugar de apenas censura. Sabíamos que o paciente dela, o Sr. J era um jovem intelectual e sério, com grande dificuldade de acesso à sua vida emocional. Profundamente comprometido com o tratamento, ele mantinha uma postura amistosa ainda que um pouco distante. O estilo intelectualizado do Sr. J o fazia falar com voz um pouco monótona, a Dra. M tinha consciência de que às vezes lutava contra o tédio durante as sessões; o que acontecia mais ainda durante os contatos por telefone. Eles concordaram em usar o telefone para manter a continuidade durante as longas viagens de negócios dele e, ao menos conscientemente, a Dra. M sentiu-se à vontade com essa adaptação.5
Indaguei se a Dra. M cometera essa delinquência de ler revistas para lidar com o distanciamento emocional do seu paciente. Será que a Dra. M teria se voltado para as revistas a partir da falta de esperança de fazer contato com seu paciente emocionalmente distante? Estaria a Dra. M exprimindo o ressentimento negado em relação ao Sr. J devido às suas frequentes viagens de negócios distanciando-se emocionalmente enquanto folheava as revistas? A Dra. M sentia-se especialmente privada do contato na ausência da estimulação visual da sessão "pessoa a pessoa". Talvez ela tenha respondido a essa privação voltando-se para as revistas para preencher o elemento visual que faltava. Sua intensa necessidade de fazer contato, intensificada pelo estilo esquizoide do Sr. J, pesaram durante essas sessões por telefone emocionalmente mais remotas.
Sentindo que fizéramos um bom trabalho de supervisão, fiquei surpresa ao escutar a Dra. M dizer com muito constrangimento que ela duvidava que sua ação pudesse ser totalmente explicada dessa maneira porque ela geralmente olhava revistas durante sessões por telefone. Embora a Dra. M soubesse que essa atividade comprometia sua atenção, ela esperava ansiosamente as sessões por telefone, pois estas lhe davam a chance de relaxar um pouco. A Dra. M tinha certa consciência de que estava fazendo algo errado, mas evitava pensar a respeito de suas ações.
Assim, apesar dos aspectos singulares da resposta da Dra. M ao Sr. J, ficou evidente que suas transgressões envolviam expressões de oportunismo bastante crônicas. A Dra. M tirava vantagem de muitas sessões por telefone e, às vezes, do fato de seus pacientes usarem o divã para folhear revistas bem como outras pequenas maneiras de se satisfazer enquanto ainda "desempenhava o papel" de boa analista. Como ela disse, em sessões terapêuticas que a faziam se sentir entediada, destituída, ou afastada, a Dra. M usava sua posição oculta para "roubar" algo para si. É importante notar que a Dra. M não cometia essas violações ao telefone com pacientes mais difíceis ou perturbados que "exigiam" sua atenção. Nesses casos, seu self habitual de boa analista assumia, e ela funcionava bem, apoiada pelo contato afetivo e estímulo intelectual do trabalho.6
Ao enfrentar esses fatos pela primeira vez, a Dra. M exprimiu intensa culpa, vergonha e ansiedade acerca do que ela identificava como falta de profissionalismo e abandono de seus pacientes. Enquanto tentávamos deixar o julgamento de lado e investigar a dinâmica subjacente às suas delinquências, a Dra. M tomou consciência de um até então negado senso crônico de esgotamento e tensão que impregnava sua vida profissional. A necessidade de sustentar sua família a levara a assumir um número máximo de sessões e, a seguir, a contrabalançar essa tensão com pequenos subterfúgios. A Dra. M começou a questionar se os pacientes que ela considerava mais fáceis de trabalhar, reconhecendo as próprias dificuldades dela de cuidar abertamente de suas necessidades, perceberam sua tensão e de algum modo lhe "permitiram" esses períodos de pausa emocional. A Dra. M também estava ciente que não havia muito que pudesse fazer a respeito da tensão constante em sua vida. Finalmente, ela decidiu precaver-se contra o perigo de levar vantagem dos seus pacientes por meio de maior vigilância em relação à sua tendência de esconder suas necessidades. Concretamente, decidiu não marcar mais sessões por telefone a não ser em emergências reais. Tendo consciência da sua tendência a afastar-se dele, a Dra. M intensificou aos poucos seu envolvimento emocional com o Sr. J e começou a abordar a encenação sutil que vinha acontecendo entre eles.7
As transgressões da Dra. M, ao refletirem a pressão de necessidades não satisfeitas, pareciam aglutinar-se em grande parte fora do campo relacional. Porém, com certa frequência as transgressões ocorrem como resposta às dinâmicas de uma díade específica. Depois de me ouvir em uma palestra a respeito do tema de delinquências profissionais, o Dr. L confessou que geralmente lia e-mails no celular quando seu paciente mais "impossível" estava no divã porque: "Não aguento ficar ouvindo suas queixas intermináveis". Ainda que o Dr. L tivesse plena consciência de que estava enganando o paciente ao não lhe dar toda a atenção, não tinha consciência da dinâmica pessoal subjacente ao ato. O Dr. L duvidava profundamente da sua capacidade de ajudar os pacientes e confiava no reasseguramento deles. Esse paciente muito difícil não conseguia dar o reasseguramento que o analista necessitava, e, ao retirar sua atenção e envolvimento emocional, o Dr. L encenava tanto a dúvida negada a seu próprio respeito quanto sua raiva em relação ao paciente. O que a princípio parecia um grande desrespeito ao direito de cuidados do paciente mostrou evidências de algo impulsionado por uma dinâmica muito mais complexa.
Transgressões e o tédio do analista
Os analistas ficam mais vulneráveis a cometer infrações em tratamentos caracterizados por constantes sentimentos de tédio ou de afastamento emocional. Ao se retirar momentaneamente da vivência do tratamento, o analista alivia-se do tédio e faz algo por si próprio. Sua retirada pode até dar apoio ao tratamento dando grande espaço e talvez sustentação ao paciente (Modell, 1975; Bach, 1985). Nesse processo, o analista pode tentar inconscientemente amparar a função terapêutica enquanto se recupera de forma a poder voltar à relação terapêutica de maneira mais plena.
Os pacientes voltados para si próprios podem não ter tanta consciência do autoenvolvimento do analista quanto têm do seu próprio impacto (Bach, 1985). Quando os pacientes precisam isolar-se do contato afetivo, há maior probabilidade de negarem a consciência das violações analíticas. Seja por desatenção seletiva (Sullivan, 1953) ou por deixar sem expressão essas experiências (Stern, 1997), o paciente ignora os aspectos da desatenção do analista que perturbariam a vivência de sintonia (Slochower, 1996). Fazendo assim, paciente e analista, protegem e até entram em conluio para manter a relação terapêutica (Jacobs, 1991).
Transgressões no contexto profissional
Em certa medida, o que constitui uma transgressão é definido de maneira pessoal e relacional; cada relação terapêutica estabelece ou, de qualquer modo, modela as especificidades dos limites profissionais e das regras de comprometimento. Ainda assim apesar dos fatores subjetivos e contextuais que definem regras de comportamento profissional, o contexto normativo mais amplo de uma dada cultura psicanalítica cria um padrão ético abrangente que exerce muita pressão tanto no paciente quanto no analista.
Muitos psicanalistas norte-americanos agendam suas sessões (um pouco mais curtas) uma após a outra, conduzem sessões por telefone, usam e-mail e assim por diante. Os analistas europeus contam-me que não agem assim. Nos Estados Unidos, incorporamos os avanços tecnológicos ao espaço terapêutico, provavelmente a favor da eficiência. Em outras culturas psicanalíticas, essas mesmas mudanças são vistas como violações do contrato terapêutico. E alguns tipos de comportamento analítico vistos agora com ceticismo eram permitidos durante períodos anteriores na história da psicanálise. Por exemplo, os analistas geralmente faziam tricô, crochê, permitiam que seus gatos e cachorros ficassem na sala de consulta, supervisionavam e socializavam com os pacientes. Contudo, na maior parte dos outros aspectos, o ideal psicanalítico afrouxou com o tempo. A noção de analista enquanto pessoa é muito mais aceita hoje e essa mudança modificou nossa visão da relação terapêutica em uma direção mais pessoal, menos formalizada. Em muitas, mas nem todas, comunidades profissionais, um pouco de autorevelação e mutualidade é vista como aceitável e até terapeuticamente importante. As encenações são consideradas inevitáveis, até aspectos essenciais do processo analítico. Estamos mais propensos a ver as violações profissionais à luz da dinâmica relacional, a estudar o que está sendo repetido em lugar de meramente condenar o analista por seu delito.
Nesse contexto complexo, pode ser difícil definir exatamente o que é infração profissional. Darei um exemplo pessoal. Moro e clinico em Manhattan, e estava aqui durante os ataques terroristas de 11 de setembro. Nas semanas seguintes, houve grande ansiedade na cidade. Minha ansiedade era a respeito da segurança dos meus filhos ao irem e voltarem sozinhos da escola. Percebi-me ansiosa a cada vez que o telefone tocava. Na tentativa de administrar essa ansiedade, combinei um "código" com meus filhos. Em caso de emergência eles ligariam e desligariam três vezes seguidas e eu atenderia ao telefone, mesmo estando em sessão. Ao fazer isso, suspendi minhas próprias regras terapêuticas (nunca atendo ao telefone durante as sessões)8. Avisei meus pacientes acerca desta mudança.
Em algumas ocasiões o telefone tocou repetidamente e eu atendi. A maioria dos meus pacientes aceitou isso como questão de necessidade e pouco disseram a respeito. Alguns, porém, reagiram com raiva e angústia. Ao permitir que minha vida externa invadisse a sessão, eles sentiram que eu os abandonava e também o meu papel como analista. Minha responsabilidade era encontrar um modo de proteger o espaço terapêutico e não permitir que minhas urgências pessoais o invadissem. Ainda que pudéssemos fazer um bom trabalho a partir das suas reações, alguns pacientes ficaram genuinamente perturbados. (E, evidentemente, não consegui prever a possibilidade de que três pessoas diferentes me telefonassem em seguida; nenhum desses telefonemas foi, de fato, dos meus filhos)
Há menos evidência de como os pacientes que de modo manifesto aceitaram essa mudança a assimilaram realmente. Alguns se identificaram comigo e falaram de suas preocupações com a segurança dos familiares e seus próprios planos de emergência. Com certeza a crise de realidade criou muita pressão para não reagir de maneira negativa – afinal de contas, como qualquer pessoa poderia objetar à preocupação de um genitor a respeito da segurança dos filhos numa época em que toda Nova Iorque estava em estado de choque e de terror? Mas essa análise racional não exclui a possibilidade que também tenham vivenciado minhas ações como uma violação.
Um colega que leu este capítulo não achou que minha decisão de atender ao telefone fosse sequer uma violação. Afinal, eu respondia a um perigo real ao mesmo tempo em que tentava conter minha ansiedade e me concentrar em meus pacientes. Será que eu não estaria tentando negociar e administrar minha preocupação e o que eu sentia estava a favor do interesse dos meus pacientes? Mas outra colega considerou a questão de modo muito diferente. Ela achou que eu tinha abandonado meu compromisso de colocar meu paciente em primeiro lugar e rompido o enquadramento terapêutico. Será que eu não poderia ter encontrado outra forma de lidar com situações de emergência que protegesse melhor meus pacientes?
Concordo com os dois pontos de vista. O fato de eu atender ao telefone era muito perturbador para alguns pacientes, e eu gostaria de ter conseguido achar outra maneira menos perturbadora de conter minhas preocupações. Contudo, não tenho plena certeza de que teria conseguido fazê-lo. Nas primeiras semanas depois de 11 de setembro, a ameaça à realidade da existência colocada pelos ataques terroristas suspendeu meu senso de "continuidade habitual da vida". A vida parecia "um verdadeiro caos" e talvez eu estivesse fingindo se agisse de outro modo.
Acting Out, corrupção, exaustão?
As delinquências profissionais representam, às vezes, uma expressão de exaustão, excesso de trabalho, ou de intensa tensão pessoal. Seja lá o que mobilize o analista, interesse profissional, necessidade ou ganância de atender mais pacientes e trabalhar mais horas, é quase inevitável um aumento do senso de pressão interna. E quando o analista não se permite ou não consegue criar outras condições para recuperação pessoal, o esgotamento emocional ou físico pode tornar-se crônico. Ao cometer uma infração, o analista tenta inconscientemente reaver algo para si e pode simultaneamente exprimir a hostilidade negada em relação aos pacientes. A natureza assimétrica da relação analítica (Aron, 1996) coloca o analista inevitavelmente em posição de maior poder. Ao cometer delinquências, tiramos partido desse poder e expomos a fragilidade maligna em relação à posição analítica que Hoffman (1998) descreve.9
Racionalizando que "todos os analistas têm maus comportamentos", o Dr. F parecia não sentir culpa alguma quando ignorava regras terapêuticas e atuava de diversas maneiras em interesse próprio. Rejeitando conscientemente a estrutura de orientação profissional, o Dr. F cometeu uma série de ações que foram ficando cada vez mais psicopáticas e racionalizadas. Quando o Dr. F se viu ameaçado por uma provável ação legal de um paciente, ele abriu mão da sua licença em lugar de encarar a perspectiva de uma batalha legal. Só então deu-se conta da sua falta de ética e de profissionalismo.10
Ainda que a maioria dos analistas provavelmente jamais sucumba a esse tipo de violação flagrante do seu papel profissional, minha experiência ao apresentar este artigo sugere que ao longo do tempo muitos profissionais terão uma atitude um pouco mais realista em relação a essas infrações. Na realidade, o único grupo profissional que não respondeu de forma divertida foi um grupo de psicoterapeutas psicanalíticos em formação em Genebra, Suíça. Esses jovens colegas responderam unanimemente com indignação e choque à ideia de os analistas cometerem esses atos. Eles creditaram as infrações à exaustão, à perda de padrões éticos, ou a ambos, e diversos declararam que encerrariam o tratamento se seus analistas cometessem a mínima violação desse tipo. Como Chessick sugere, a camada de cinismo que se infiltrou no profissionalismo dos colegas mais velhos talvez ainda não tenha comprometido o idealismo desses terapeutas mais jovens.
O ideal analítico e seus excessos
Em contraste ao efeito sutil, ainda que generalizado, da tensão profissional sobre a tendência a cometer delitos com muitos pacientes, certas delinquências são incitadas por fatores exclusivos às configurações específicas do tratamento. O analista reage ao momento do tratamento ou à dinâmica relacional vigente com uma associação a necessidades e obrigações não resolvidas, um senso de rebelião contra sua teoria própria ou até contra o ideal analítico.
Ainda que a grande maioria obtenha bastante gratificação do papel analítico, é igualmente verdade que, às vezes, nos sentimos muito privados – concreta ou simbolicamente – enquanto lutamos para permanecer totalmente presentes para cada um de nossos pacientes, para pôr de lado nossa agenda pessoal, preocupações e estados emocionais em favor do nosso trabalho analítico. Inevitavelmente, a luta para estar presente para cada paciente, às vezes, mostra-se incompatível com nossas necessidades. Pequenos "roubos" analíticos podem ser motivados pelo esforço inconsciente de equilibrar esses dois desejos – um compromisso interno bastante insatisfatório entre o desejo de ser um bom analista e o desejo de satisfazer necessidades pessoais.
Suspeito que a maioria dos delitos contenha esse elemento de negociação interna da parte do analista (Pizer, 1998). Essa negociação, uma tentativa de equilibrar ou de regulamentar necessidades conflitantes é, ao mesmo tempo, camuflada e incorporada em atos de delinquência. Há alguns anos, enquanto eu trabalhava neste material, peguei-me cometendo um lapso momentâneo que acredito ilustrar um desses momentos de negociação interna. Muitas negociações, talvez a maioria, passariam despercebidas, e suspeito que esses momentos específicos talvez continuassem fora da minha consciência se eu não estivesse escrevendo sobre transgressões.
Eu encontrara uma foto antiga, aos 10 anos, da minha filha já adulta. A foto a mostrava muito sorridente e adorável, e eu a enfiei em uma pilha sobre minha mesa até poder colocá-la em um álbum. Durante uma sessão analítica com um paciente calmo, difícil de trabalhar e pouco engajado comigo, puxei a foto, e sorri para a beleza jovem e a vivacidade da minha filha. Por dez segundos, talvez, fiquei imersa no sentimento de calor e de prazer pessoal enquanto retornava ao passado e me imaginei abraçando-a e partilhando sua alegria. Foi um prazer roubado. De modo rápido, mas quase deliberado, eu me afastara afetivamente do meu paciente, ainda que não tivesse perdido totalmente o contato com seu processo.
Reagi à minha retirada momentânea com uma pontada de culpa, mas também com certa curiosidade. Por que eu fizera isso? Teria usado inconscientemente esse momento de contato com minha filha intensamente afetivo para contrabalançar a afetividade muito calma, triste, e em certo nível, menos gratificante entre meu paciente e eu? Mas essa explicação implica que minha ação tenha surgido exclusivamente do meu próprio estado de necessidade e ignora o elemento de reencenação que estava provavelmente envolvido nela. Como os pais do meu paciente, fiquei momentaneamente preocupada; ele não conseguiu prender minha atenção assim como ele não prendera a deles.
Em certo nível, minha retirada pode ter representado uma forma de rêverie (Ogden, 1994) da qual eu emergi com uma consciência renovada da dinâmica da relação terapêutica (Frankel, 2003) e com uma intensificação do meu comprometimento com ele. Quero ressaltar, porém, a intencionalidade com a qual eu me dirigi para a foto em comparação com o sabor mais inconsciente de encenações ou dos fenômenos periféricos cognitivos e emocionais que Ogden descreve, nos quais percebemos nossa atenção vagando em outro lugar. Nesse caso, eu me retirei momentaneamente de um encontro emocional difícil e busquei um momento afetivo mais simples e mais feliz com minha filha.
Essa vinheta ilustra um compromisso inconsciente – um esforço de autoregulação por intermédio de uma delinquência que tomou a forma de afastamento momentâneo do compromisso terapêutico. Conforme minha suspeita, esses breves lapsos são muito mais onipresentes do que tendemos a reconhecer. Quando esses esforços fracassam de modo mais evidente é que podemos nos perceber cometendo violações flagrantes do contrato analítico.
Transgressões como rebeldia
Frankel (2003) propôs que um elemento subversivo – a recusa em submeter- se à autoridade – pode ser expresso em transgressões. Ao resistir à tendência de nos submetermos a um ideal psicanalítico, lutamos para integrar identificações profissionais discrepantes. Preservamos nossa capacidade de fazer nossos próprios julgamentos sobre o uso de qualquer posição teórica e escolher as regras da clínica às quais aderimos e as que rejeitamos.
Subversão é um conceito complicado; implica em rebeldia contra a autoridade. Quando se tenta minar a autoridade, não se busca apenas sair da dinâmica de poder, mas revertê-la; o controlado se torna controlador. A alternativa à submissão não é necessariamente oposição, esta última pode contornar em lugar de se empenhar na busca genuína de autodefinição, por uma posição própria, integrada, não simplesmente uma reação contra o ideal.
Nossa teoria e nosso (mau) comportamento
Bernstein (2003) sugeriu que algumas teorias analíticas, mais do que outras, aumentam nossa vulnerabilidade a cometer delitos.11 Eu discordo. É provavelmente verdade que os modelos winnicottianos e da psicologia do self pressionam especialmente o analista a não excluir sua subjetividade mais do que outros modelos (abordei essa questão complexa em outro lugar; Slochower, 1996; 2006). A idealização da posição analítica maternal pode levar o analista a encenar, por meio de violações profissionais, os aspectos do seu interesse pessoal que pareçam incompatíveis com o papel maternal.
Isso significa que se houver permissão para ser menos maternal não cometeremos delitos? E o que dizer do problema inverso? Por exemplo, analistas kleinianos ou lacanianos (ou, para o tema, analistas interpessoais ou relacionais) podem ter a autoexigência de resistirem a gratificar a aparente necessidade de seus pacientes por uma resposta maternal. Será que eles não se encontram em um tipo de enigma diferente, mas afinal similar? Será que a luta para deixar de lado o desejo de exprimir sentimentos maternais provoca suas próprias delinquências? No caso, as violações do analista podem ser uma resposta ao sentimento de deprivação emocional ou ao desejo de mais afeto ou calor do que o papel prescrito permite.12
Não creio que seja possível resolver a tensão entre o ideal analítico e o autointeresse do analista por meio da concordância a qualquer modelo teórico específico (Slavin, 2000). Há regras inerentes a cada teoria e técnica que o analista pode achar difíceis de cumprir. Embora a teoria possa dar apoio a uma postura profissional de autodisciplina (Aron, 1998) e se opor à pressão das necessidades pessoais, esse equilíbrio é inevitavelmente imperfeito. Diferentes teorias provavelmente minimizam nossa oportunidade de expressar diferentes aspectos da nossa personalidade no trabalho; elas nos inclinam para tipos específicos de contravenção e nos afastam de outros. Porém, nenhuma teoria fornece solução para o embate do autointeresse do analista com o compromisso de se concentrar exclusivamente em seus pacientes.
O imperativo moral e o analista moralizador
Minha intenção tem sido examinar a natureza e a dinâmica das violações analíticas. Porém, é uma empreitada complexa; já que sempre somos culpados de algo, por mínimo que seja, este artigo provavelmente incita culpa ou ansiedade no leitor. Sentimentos que interferem em lugar de facilitar o autoexame. É possível abordar a presença ubíqua de nosso autointeresse sem intensificar a voz censuradora do superego? Se meu artigo representar um firme lembrete a se comportar bem, pode também encorajar mais a externar, minimizar ou negar do que a autoinvestigar. E se o artigo for lido como moralizador dificilmente atrairá curiosidade e sim autocensura.
Advogo uma postura de autoreflexão e não de autojulgamento. Necessitamos ideais profissionais; eles criam uma visão de qual deve ser nosso esforço para funcionar como analistas. A ética profissional deriva de uma teoria moral subjacente em que certos tipos de comportamento são proscritos por serem considerados eticamente inaceitáveis pela vasta maioria dos profissionais. Está implícita a ideia de que há uma "confluência ética" (Wallerstein, 1990) que os analistas compartilham. Na realidade, a ética profissional transcende amplamente as especificidades de teorias psicanalíticas diferentes. Temos consciência da vulnerabilidade de nossos pacientes e nossa obrigação é ir ao encontro das necessidades deles dentro dos códigos de outros profissionais de saúde (por exemplo, o Juramento de Hipócrates).
Há uma posição analítica básica que secções teóricas transversais separam. Diz respeito ao nosso compromisso, durante a sessão analítica, de por as necessidades de nossos pacientes acima das nossas e que aborde quaisquer resistências que interfiram nisso. Ainda que com intenção de autoregulamentação, algumas infrações que cometemos ultrapassam este objetivo e na realidade nos afastam de nossos pacientes. Ao cometer infrações, não estamos cometendo um ato de abandono? Se nos concentrarmos apenas na maneira pela qual essas ações nos humanizam, inserem uma encenação, ou protegem o tratamento, não corremos o risco de deixar de lado o complicado e frequentemente silencioso impacto desses momentos?
Não uso as palavras transgressões e delinquências em sentido legalista, mas por caracterizarem a autoexperiência analítica. Aderimos a um código de conduta ético e temos a desagradável consciência dos momentos em que cruzamos a fronteira e revertemos esse compromisso básico. Nos defrontamos com nossas próprias vozes de censura quando quebramos as regras e escondemos parte do que fazemos de nós mesmos, de nossos pacientes, ou colegas.
A responsividade idealizada do analista
Há algo irônico na ideia de que para fazer bom trabalho analítico precisamos estar presentes como pessoas totais e afetivas na relação terapêutica e, ao mesmo tempo, com o objetivo de usar nossa humanidade a serviço das necessidades dos pacientes. Certamente, a década passada testemunhou uma alteração dramática em nossa visão desse ideal analítico. Atualmente reconhece-se amplamente que existimos enquanto pessoas que lutam para funcionar como analistas no encontro terapêutico e, além disso, que nossa subjetividade enriquece e aprofunda o trabalho analítico. No entanto, enquanto há uma infinidade de maneiras pelas quais somos "pegos" emocionalmente enquanto trabalhamos sem cometer delitos, às vezes nossas necessidades podem estar insuficientemente satisfeitas dentro dos limites do nosso papel analítico. Apesar dos benefícios terapêuticos potenciais de nossa subjetividade, há momentos também em que essa subjetividade se transforma em desejos, necessidades e vulnerabilidades pessoais e em respostas idiossincráticas que colidem com e suplantam nosso compromisso profissional.
Todos nós vivenciamos a pressão interna de negar a invasão de nossas necessidades próprias, mais ainda de nossos interesses egoístas, em nosso profissionalismo. Analistas podem responder a diferentes dimensões do ideal analítico com o aumento da sensação de pressão. Mas todos lutamos contra a intensidade das exigências emocionais implícitas nesse trabalho, especialmente durante períodos de tensão vital, doença, ou outras crises.
Winnicott (1947) sugeriu que o analista exprime seu egoísmo ou ódio do paciente de maneira simbólica encerrando pontualmente a sessão, por exemplo. Ele acreditava que essa expressão sustentava o tratamento e o analista e lhe permitia trabalhar com mais eficácia. Mas e se essas expressões simbólicas de necessidade pessoal não forem suficientes? Seremos capazes de permanecer concentrados no paciente, na maior parte do dia de trabalho, de maneira mais total do que o exigido, talvez, por qualquer outra profissão? A não ser que nos apropriemos e lutemos conscientemente contra nossa voracidade, sentimento de deprivação ou egoísmo (Kraemer, 1996; Slavin e Kriegman, 1998), será quase inevitável que esses sentimentos acabem afinal sequestrados, e por isso, expressos ilicitamente.
O ideal analítico contém em si um desrespeito pela dimensão da humanidade do analista que não seja parte integrante da relação terapêutica. As infrações são virtualmente onipresentes exatamente por acharmos tão difícil reconhecer francamente e trabalhar com o conflito entre nosso egoísmo tão humano e as ainda excessivas exigências desta "profissão impossível".
As infrações analíticas rompem o contrato terapêutico e desse modo representam um falha real da função analítica. Contudo elas também representam nossa permanente e imutável humanidade, os limites da nossa capacidade de suspender totalmente as necessidades pessoais no contexto da exigência de fazê-lo. Como analistas, devemos lutar contra a necessidade paradoxal de simultaneamente adotar o ideal analítico, sua colisão inevitável com nossa própria humanidade tão real e limitante, e a necessidade de manter uma luta constante e consciente contra o abandono desse ideal.
Referências
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Endereço para correspondência
Joyce Slochower
15 West 75th street
New York,NY 10023
E-mail: slochow r@aol.com
Recebido em: 2/8/2010
Aceito em: 6/10/2010
Tradução: Tania Mara Zalcberg
1 Uma versão anterior deste artigo aparece em Slochower (2006) Psychoanalytic Collisions. Hillsdale, New Jersey: The Analytic Press.
2 Ph.D, ABPP. Professora do centro de graduação da City University of New York (CUNY); membro e supervisora do Programa de Psicoterapia e Psicanálise de Pós Doutorado da NY University; publicou mais de 50 artigos sobre vários aspectos da teoria e técnica psicanalítica; autora dos livros Psychoanalytic Collisions e Holding and Psychoanalysis, ambos pela The Analytic Press.
3 Sue Grand (2000) ilustrou de forma vigorosa a dinâmica dessa relação de exploração em sua discussão sobre a malevolência humana.
4 Usando casos que envolviam pacientes culpados de grave improbidade, Goldberg (2000) explorou o papel das violações a partir da perspectiva analítica.
5 É interessante questionar se o uso do telefone contém a possibilidade de o analista atuar de forma delinquente. Com certeza, em tempos psicanalíticos mais antigos, a própria modalidade estaria sujeita a questionamento. Será que o analista ao usar o telefone sente-se inconscientemente menos analista, liberado das restrições e obrigações profissionais? Será que analistas com tendência a encenações delinquentes sejam levados a essas modalidades de tratamento devido às oportunidades que isso propicia?
6 Um colega que leu este artigo comentou que o fato de a Dra. M querer se revelar para mim no contexto da supervisão era pouco habitual. Eu concordo. Suspeito que por ser uma relação de supervisão fora da estrutura do instituto de formação esse fato desempenhou um papel na criação da atmosfera que lhe permitiu aproveitar a chance. Além do mais, essas "confissões" ocorrem com maior probabilidade em relações de supervisão duradouras e íntimas do que ao contrário. Certamente não é surpresa que essas questões entrem tão raramente nos processos de supervisão e de supervisão entre pares, pois essas confissões exigem um elevado grau de confiança entre colegas.
7 A Dra. M decidiu não confessar sua transgressão ao Sr. J. Ainda que seus sentimentos de culpa pudessem ser aliviados por uma confissão, a Dra. M sentiu que o paciente não só se sentiria traído, mas iria se agredir intensamente por ter sido incapaz de manter a atenção da analista. Nos meses subsequentes, a Dra. M buscou evidências, através da escuta, de que o Sr. J estivesse subliminarmente ciente desse período de desatenção. Não encontrou nenhuma.
8 O que parecia um plano razoável complicou-se devido a um fato que eu não previ: em mais de uma ocasião, várias chamadas em sequência levaram-me a responder aos chamados de inúmeras pessoas menos dos meus filhos.
9 Esse "lado negro" do enquadramento analítico pode ser expresso, por exemplo, na exigência potencialmente exploradora de o analista publicar material acerca de um paciente específico.
10 É interessante notar que apesar de meus colegas usarem frequentemente o "roubo" como metáfora para descrever suas infrações, apenas um analista mencionou uma delinquência financeira. Será a área de roubo financeiro tão profundamente inaceitável, sem mencionar o aspecto legal, que os analistas não atuam (act out) desse jeito? Ou será que os analistas podem deixar de reconhecer que cobram excessivamente ou mesmo roubam dos pacientes devido a essas graves implicações?
11 Bernstein (2003) ilustra especialmente a pressão que os modelos winnicottianos colocam sobre os terapeutas.
12 É importante notar que diferenças teóricas que influenciam a técnica (por exemplo, quanto expressivos vs. inexpressivos tentamos ser) podem nos levar a atuar de maneira bastante diferente com nossos pacientes. Assim, um freudiano pode ficar chocado com a tendência de auto-revelação de um profissional de relações de objeto; um winnicottiano, com a recusa de um kleiniano a responder perguntas. Esse tipo de diferenças não é, porém, reflexo de mau comportamento ou mesmo necessariamente de acting out ou de acting in. É importante, penso, limitar o conceito de violações profissionais para os momentos em que violamos um código ético que suplante as diferenças técnicas entre teorias.