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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.44 no.80 São Paulo jun. 2011

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

Virgínia Bicudo: uma história da psicanálise brasileira1

 

Virgínia Bicudo: a story of the Brazilian psychoanalysis

 

Virgínia Bicudo: una historia del psicoanálisis brasileño

 

 

Maria Helena Indig Teperman2 ; Sonia Knopf3

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo - SBPSP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Trazemos, neste texto biográfico sobre Virgínia Leone Bicudo, importantes aspectos e dados de sua vida, alguns ainda não divulgados, baseando-nos no material mantido pela Divisão de Documentação e Pesquisa da História da Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. O relato parte de um levantamento de suas raízes familiares, fala do ambiente em que ela vivia durante a infância, aborda a fase de sua formação e de seus estudos, tanto como socióloga quanto como psicanalista, trajeto que prevaleceu em um segundo momento; acompanha o significativo papel por ela desempenhado na constituição e no desenvolvimento da psicanálise no Brasil.

Palavras-chave: Psicanálise, Sociologia, Virgínia Bicudo, Durval Marcondes, Preconceito racial.


ABSTRACT

In this biographical text about Virgínia Leone Bicudo we bring major aspects and data regarding her life, some still not made public, based on the material kept by the Divisão de Documentação e Pesquisa da História da Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. The report starts from a survey of her family roots, goes on with her childhood environment, her majoring and studies both as a sociologist and as a psychoanalyst, career that prevailed in a second moment; observes her significant role in the constitution and development of psychoanalysis in Brazil.

Keywords: Psychoanalysis, Sociology, Virgínia Bicudo, Durval Marcondes, Racial prejudice.


RESUMEN

Tomando como base material de la División de Documentación e Investigación de la Historia del Psicoanálisis de la Sociedad Brasilera de Psicoanálisis de São Paulo, las autoras del presente texto biográfico sobre Virgínia Leone Bicudo describen importantes aspectos y datos de su vida, algunos de los cuales aún no divulgados. El relato parte de un estudio de sus raíces familiares y del ambiente donde ella vivió durante la infancia, las diferentes etapas educacionales incluyendo sociología y finalmente, psicoanálisis. También se ha relatado el rol significativo que ella desempeñó en la constitución y desarrollo del psicoanálisis en el Brasil.

Palabras clave: Psicoanálisis, Sociología, Virgínia Bicudo, Durval Marcondes, Preconcepto racial.


 

 

Em 2010, a SBPSP comemorou o centenário de nascimento de Virgínia Leone Bicudo, importante parceira de Durval Marcondes na construção da psicanálise em São Paulo.

Nascida em 21 de novembro de 1910, neta de escravos e imigrantes italianos, ao longo de seus 93 anos de vida Virgínia fará um percurso marcado por inquieta busca de compreensão da condição humana.

Em dezembro de 1897 desembarcam do navio Equità, no porto de Santos, vindos de Catania, na Sicília, seus avós maternos Pietro Paolo Leone e Agrippina Palermo Leone, já então com quatro filhos, sendo Giovanna a mais velha. São encaminhados para uma fazenda de café na região de Campinas, a Fazenda Mato de Dentro do Jaguari, de Bento Augusto de Almeida Bicudo.

Na mesma fazenda vive Theophilo Julio, filho da escrava alforriada Virgínia Julio, cuja história se perdeu, e de pai desconhecido. Seu padrinho e patrão, Bento Bicudo, percebe desde cedo a notável inteligência do garoto Theophilo e o recebe para morar no interior da casa − um empregado de dentro, como se dizia daqueles cujas atividades se davam na casa dos patrões −, favorecendo sua educação até a idade adulta. Mais tarde, Theophilo passa usar o nome Bicudo, talvez devido ao costume da época, pós-abolição, quando os ex-escravos, na falta de sobrenome de família, adotavam o de seus senhores.

Quando bem jovem, Giovanna Leone, a filha mais velha do casal imigrante, passa a trabalhar como ama da filha dos fazendeiros. É nessa circunstância que Giovanna e Theophilo se conhecem, apaixonam-se e vêm a se casar mais tarde, mudando-se para São Paulo, inicialmente no bairro de Santa Ifigênia e depois na casa número 14 da Vila Economizadora, na Luz.4

Pai de família atento e dedicado, Theophilo foi funcionário público federal dos Correios e Telégrafos durante toda a sua vida e, para completar a renda familiar, dava aulas particulares em sua casa à noite. Havia sonhado com uma carreira na medicina, mas suas tentativas foram frustradas pela recusa em recebê-lo, pois era negro.

Os filhos vão chegando e em poucos anos já são seis. A segunda filha do casal, nomeada Virgínia como a avó paterna, desde pequena dá sinais de viva inteligência e profundo interesse pelo conhecimento, traços que conservará por toda a vida estudantil e profissional.

Virgínia Leone Bicudo inicia sua vida escolar na Escola Normal do Braz, concluindo os cursos primário e médio em novembro de 1921. Irá cursar depois a Escola Normal da Capital, futura escola Caetano de Campos. É dessa instituição seu diploma de habilitação para o magistério público no estado de São Paulo, datado de dezembro de 1930. Trabalha por muitos anos em vários órgãos municipais e estaduais, sempre na área da educação.

O diretor da Escola de Higiene e Saúde Pública do Estado do Instituto de Higiene de São Paulo, o médico sanitarista Prof. Dr. Geraldo Horácio de Paula Souza, funda então o Curso de Educadores Sanitários, que tem como objetivo ministrar cursos de conhecimentos teóricos e práticos de higiene aos professores para que eles os introduzissem, a partir de uma visão essencialmente preventiva − e decorrente do movimento higienista mundial −, em Centros de Saúde e nas escolas. Com isso, abria-se um novo e ampliado espaço de trabalho para as mulheres, que constituíam maioria quase absoluta dos professores primários na sociedade paulista da época. Em sua busca constante de conhecimento e ampliação de horizontes, vemos Virgínia, em dezembro de 1932, concluir o Curso de Educadores Sanitários da Escola de Higiene e Saúde Pública do Estado de São Paulo, iniciado em março de 1931. É então comissionada junto à Secção de Higiene Mental Escolar do Serviço de Saúde Escolar do Departamento de Educação, cargo que mantém até 1938, quando então é nomeada Educadora Sanitária do mesmo serviço.

Mas uma inquietação permanente, uma busca de alguma coisa a mais, que a acompanhou vida afora, vai levá-la em outra direção. É ela mesma quem relata, muitos anos mais tarde, em depoimento ao Projeto Memória: "Eu tinha sofrimento, tinha dor e queria saber o que causava tanto sofrimento. Eu colocava que eram condições exteriores. Então pensei que, estudando Sociologia, iria me esclarecer…".

A Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, instituição complementar da Universidade de São Paulo, foi criada em 1933 e teve como vocação contribuir de maneira decisiva para a imagem de um Brasil moderno. Foi para Virgínia de grande interesse a proposta oferecida por essa escola de estudar a realidade brasileira em seu processo de modernização. Em 1936, ela começa o primeiro ano do curso, fazendo parte da segunda turma.

Durval Marcondes, homem de grandes interesses intelectuais, também se volta para a possibilidade de estudar sociologia e, já médico, é aluno do curso; ao mesmo tempo, é professor de Psicanálise e Higiene Mental na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo. Assim se dá o encontro de Durval e Virgínia, também nesse período, encontro esse que irá se desenvolver no trabalho comum com a psicanálise.

Entre os oito bacharéis em Ciências Políticas e Sociais de 1938, Virgínia é a única mulher, revelando desde então essa face pioneira, que continuará se manifestando ao longo dos próximos muitos anos.

É de autoria de Virgínia a primeira dissertação de mestrado sobre a questão racial no Brasil – mais uma demonstração do seu pioneirismo. Aprofundando sua formação, faz o curso para obter o grau de mestre na mesma escola onde se graduara e onde, nessa época, é professora assistente de Psicanálise e Higiene Mental. Estudo de atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo é o nome do texto apresentado em 1945 por ela à divisão de pós-graduação da Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo.

Seu orientador, Donald Pierson,5 sociólogo americano doutorado pela Universidade de Chicago, é professor da mesma escola até 1959. Autor de importantes pesquisas realizadas no Brasil na área de Sociologia Urbana, influenciou toda uma geração de sociólogos e antropólogos. Em 1944 ele é o orientador que fornece cuidadosas observações a Virgínia quando esta escreve sua dissertação, a ser apresentada no ano seguinte.

Em 1965 Pierson, já de volta aos Estados Unidos, é quem pedirá a ela um comentário crítico sobre o relançamento que fará do livro Negroes in Brazil: a study of race contact at Bahia:

Venho por meio desta, Virgínia, pedir a sua gentil colaboração, transmitindo a mim qualquer comentário adverso (criticism) sobre este livro, ou seja, o do meu estudo de relações raciais na Bahia, que, por acaso, tenha ouvido, ou tenha lido, e que acha não tenha chegado à minha atenção. Será um grande favor (o qual reconhecerei com prazer) desde que me ajudará a pensar mais sobre o estudo em apreço e, caso ache necessário, modificar certas generalizações anteriores, ou indicar onde há mal-entendidos sobre o que escrevi ou tentei fazer, ou onde, na minha opinião, precisamos de mais pesquisas. Não deve ter medo de me magoar. Como sabe, sou estudioso mais interessado na verdade do que em elogios. Para esta razão, os seus próprios comentários serão muito bem recebidos. Peço-lhe a fineza de me escrever logo, contudo, desde que há certa pressa nisso. Ficar-lhe-ei grato, igualmente, se puder me indicar se está corretamente citada ou não aqui sua tese de mestre: Estudo de atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo.6

Como socióloga, além da dissertação de mestrado citada, Virgínia fez uma cuidadosa pesquisa sobre as atitudes dos alunos dos grupos escolares da capital em relação à cor de seus colegas, publicada no livro Relações raciais entre negros e brancos em São Paulo em 1955. Trata-se dos resultados de uma pesquisa patrocinada pela Unesco, em parceria com a Editora Anhembi, dirigida por Roger Bastide,7 e com a colaboração de Florestan Fernandes.8 O índice do livro (Figura 1) evidencia a importância dos participantes e é um bom indicador do prestígio desfrutado por ela junto a seus pares.

 

 

O fato de a questão racial ser tão predominante no trabalho sociológico de Virgínia sugere que, além do interesse intelectual despertado pelo tema nos cientistas sociais de sua geração, além da influência do celebrado pesquisador americano sobre a jovem aluna, poderia haver outro determinante extremamente poderoso nessa escolha: sua experiência pessoal com o preconceito de cor. Virgínia voltará a abordá-la em momentos diferentes de sua vida, referindo-se a ela sempre como uma grande experiência de dor.

Em carta a Francesca Bion (Figura 2), em outubro de 1975, quando já era analista de importância reconhecida dentro e fora do país, Virgínia está diante da questão do preconceito racial como fator intimidatório e limitante.

 

 

Em entrevista dada por Virgínia a Anna Verônica Mautner e Luiz Meyer, em outubro de 1983, fala do bullying que sofreu quando criança e que a fez, inicialmente, recolher-se no ambiente familiar procurando se proteger, mas que ela passou a encarar como um desafio, algo que precisava, a qualquer preço, superar. Encontramos nessa entrevista o seguinte relato:

Eu fui criada fechada em casa, quando saí foi para ir à escola e foi quando, pela primeira vez, na escola, a criançada começou: negrinha, negrinha. Quando eu estava em casa, eu nunca tinha ouvido. Então eu levei um susto. Saí de casa para a rua e a criançada que era colega de escola, tal, só batia palmas com: negrinha, negrinha, negrinha. Eu me fechava em casa, voltava para dentro, um susto, né? Ter nota boa… ser ótima aluna e ter nota boa é uma proteção para o negativo: negrinha é negativo, nota boa é positivo. Ser negrinha com nota boa…

E ainda, em entrevista ao jornal Folha de São Paulo: "O que me levou para a psicanálise foi o sofrimento que eu queria aliviar… Desde criança eu sentia preconceito de cor e procurei o curso de Sociologia para me proteger do preconceito".

Ela havia encontrado outro meio de conhecimento, nascido do seu interesse pela psicanálise. Participa de um pequeno grupo de pessoas voltado para o estudo das ideias psicanalíticas e formado em torno de Durval Marcondes. Em 1936 este grupo, convencido da necessidade de haver no país um analista didata, consegue, com a ajuda de Ernest Jones, trazer para São Paulo a Dra. Adelheid Koch, psicanalista alemã credenciada pela IPA como didata, que poderá iniciar aqui uma real formação analítica.

Virgínia conta: "Eu fui a primeira pessoa a deitar no divã da Dra. Koch. E ela com seu chapéu preto de abas largas era muito elegante, uma jovem e linda mulher".

Daí em diante, desenvolverá paralelamente, por alguns anos, as carreiras de socióloga e de psicanalista; depois, abraçará integralmente a psicanálise. Com Durval Marcondes, Adelheid Koch, Flávio Dias, Darcy de Mendonça Uchoa e Frank Philips integra o Grupo Psicanalítico de São Paulo, embrião do que virá a ser, dentro de alguns anos, a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.

Na noite de 5 de junho de 1944, às 21h30, esse grupo encontra-se reunido no número 42 da rua Siqueira Campos, residência de Durval Marcondes, para ouvir, por meio da leitura de uma carta de Ernest Jones, o comunicado de seu reconhecimento oficial por parte da IPA, da qual Jones é então o presidente.

Nessa mesma noite, elege-se uma diretoria assim composta:

Presidente – Durval Marcondes

Comissão de Ensino – Durval Marcondes e Adelheid Koch

Secretário – Frank Philips

Tesoureiro – Virgínia Leone Bicudo.

Assim, no momento do reconhecimento oficial do Grupo Psicanalítico de São Paulo – que irá gerar a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo – e da constituição da primeira diretoria, Virgínia é escolhida como tesoureira, a primeira de todas as funções exercidas por ela na vida societária: foi secretária, tesoureira, supervisora, analista didata, professora e diretora do Instituto Durval Marcondes em várias gestões.

No ano seguinte, uma antiga colega sua no Instituto de Higiene, Lygia Alcântara do Amaral, junta-se ao grupo. Passa a existir uma dupla muito unida, que assim permanecerá enquanto ambas viverem. São duas mulheres de personalidades e origens muito diversas, que se colocam no mundo de maneira diferente: enquanto para Virgínia a vida é uma batalha e ela sente a necessidade de se impor e se fazer respeitar, Lygia parece ver o mundo e as pessoas de maneira mais plácida, menos aguerrida, provavelmente por ter mais autoconfiança.

É sintomática a diferença de relatos das duas sobre a mesma experiência, em episódio ocorrido no Congresso de Saúde Mental de 1954. Agredidas verbalmente por um grupo de psiquiatras opositores da psicanálise, e acusadas de exercício ilegal da medicina e charlatanismo, chegam a ser ameaçadas de prisão. Cada uma reage ao seu modo. Para Virgínia, o fato foi de uma violência inominável: "… foi horrível … eu quis morrer …". Para Lygia, aquele episódio desagradável não chegou a causar problemas: "… quando cheguei em casa, meu marido quis saber como havia sido o Congresso e eu lhe respondi que tinha ficado sabendo que eu era uma charlatã!".

Essa dupla será fundamental na construção da psicanálise no Brasil.

Unindo-se ao crescente interesse na divulgação de atividades das instituições científicas por intermédio dos meios de comunicação, e já com conhecimentos teóricos e clínicos ampliados e se consolidando, Virgínia, que tem uma grande facilidade de se expressar e comunicar com paixão o que pensa e sabe, dedica-se a divulgar a psicanálise e também se preocupa em transmitir conhecimentos básicos que possam auxiliar pais e educadores na compreensão das necessidades emocionais da criança em seu desenvolvimento. Seu programa Nosso Mundo Mental, na Rádio Excelsior, é antológico: na técnica de radioteatro, monta episódios com temas do cotidiano das famílias, que ficam assim conhecendo conceitos como inconsciente, agressividade, inveja, ciúme, culpa, fantasia, amor, ódio, de maneira compreensível para elas, e recebem noções sobre como lidar com a dinâmica desses fatores. Ela é, então, uma grande comunicadora, precursora na utilização de recursos da mídia. Para o inovador programa de rádio, tem o apoio irrestrito e corajoso de José Nabantino Ramos, na época dono da Rádio Excelsior. Da mesma forma, ele a apoia na publicação dos textos no jornal Folha da Manhã. Em 1955 eles são reunidos em livro, Nosso mundo mental.

Dessa época é grande a quantidade de matérias e textos de Virgínia Bicudo e sobre ela. Dá cursos, palestras, entrevistas, aparecendo frequentemente como notícia com o intuito de apresentar e divulgar a psicanálise no Brasil. Utiliza-se, então, das ferramentas mais importantes daquele momento: o rádio, os jornais e as revistas.

Fiel à sua necessidade de ampliação de horizontes e ao desejo de dar continuidade a seu desenvolvimento, somados à imbatível determinação, em 1954 Virgínia escreve a Winnicott apresentando-se como analista didata e consultando-o sobre a chance que teria de aprimorar sua formação nos cursos fornecidos pela Socidade Britânica. Também visando inserir-se em cursos, entra em contato com Paula Heimann, no Institute of Psycho-Analysis, e com Esther Bick, na Tavistock Clinic.

Em setembro de 1955 vai estudar em Londres. Além dos cursos na Tavistock Clinic e da formação na British Society, Virgínia tem contato com os analistas mais significativos da época: Melanie Klein, com novas e surpreendentes formulações psicanalíticas, Ernest Jones, Elliot Jaques, Clifford Scott, Michael Balint, Donald Winnicott, Money-Kyrle, Hanna Segal, Emilio Rodrigué, Anna Freud, Rosenfeld, Betty Joseph, Wilfred Bion, Paula Heimann e Esther Bick.

Mesmo durante o seu período londrino, não diminui a sua disposição de divulgar a psicanálise: transmite para o Brasil, pelas emissoras de ondas curtas da BBC, algumas palestras; no programa No Mundo das Ciências, por exemplo, fala sobre uma entrevista que fez com John Bowlby, na época diretor do Departamento de Crianças da Tavistock Clinic.

Outra razão para a mudança é dada pela própria Virgínia em uma entrevista, da qual não se tem o registro de data: aponta como um dos motivos de sua ida para a Inglaterra certo esgotamento, certa saturação com o trabalho que estava realizando no Brasil naquele momento.

Há, ainda, o fator da mágoa que nela havia ficado pelo episódio da acusação de charlatanismo, tão pesado para ela e tão pouco significativo para a amiga Lygia Amaral.

Esses fatores, possivelmente acrescidos de outros que desconhecemos, fazem com que Virgínia se decida corajosamente a rumar para a Europa e absorver o máximo possível da efervescência do conhecimento psicanalítico que existia em Londres e toda a atmosfera cultural do momento. Lá, muito a atraiu também o contato com alguns nomes de vanguarda nas artes, que tinham vínculos com o movimento psicanalítico – James e Alix Strachey, que haviam sido analisados por Freud e que serão os tradutores da obra dele para o inglês, a Standard edition; Alix, também paciente de Karl Abraham, convivera intimamente com Melanie Klein em Berlim; Leonard e Virgínia Woolf, proprietários da Hogarth Press, que publicou a Standard Edition e trabalhos de Wilfred Bion.

Virgínia Bicudo é bem recebida por Melanie Klein, a quem admira intensamente. Ao lado do bom contato profissional, convive com ela socialmente e é convidada por Mrs. Klein para o chá em sua casa. Em 1958 escreve a Durval Marcondes:

Estou seguindo um seminário particular de Mrs. Klein e cada vez mais admiro a personalidade dela; é simpática e profundamente honesta, inteligente e realmente interessada na psicanálise. Ela tem outro livro no prelo! O fato é que o sucesso de Mrs. Klein tem feito mal a muitos analistas menos dotados que ela…

Vemos como interessante a ser citado a visão que outra Virgínia, a Woolf, deixa em seu Diário sobre a mesma Melanie Klein:

uma mulher com personalidade e força … não uma astúcia … uma sutileza submersa; algo que age ocultamente. Uma tração, uma torsedura como uma ressaca: ameaçadora. Uma mulher de cabelos grisalhos, expansiva, com grandes olhos brilhantes e imaginativos. (Woolf, 1979)

Quando chega a Londres, Virgínia Bicudo encontra ainda presente repercussões das grandes controvérsias dos anos 1940, e uma Melanie Klein que, ainda vigorosa, irá romper com Paula Heimann, liderar um grupo de importantes psicanalistas, organizar seu trust e publicar Inveja e gratidão. Mrs. Klein pode ainda nesse período acompanhar o crescimento de Bion, seu ex-paciente, no panorama psicanalítico londrino.

É um período difícil para ela, que chega a Londres com um inglês ainda pouco fluente e com escassez de recursos para se manter em uma cidade muito cara na época. Havia tentado obter uma bolsa de estudos, mas acaba indo apenas com seu salário de funcionária pública acrescido, por um tempo, dos pequenos vencimentos de professora da Escola de Sociologia e Política. Não consegue a efetivação de uma das bolsas patrocinadas pelo Governo do Estado de São Paulo, mas obtém da Associação Brasileira de Assistência, através do embaixador do Brasil em Londres, Assis Chateaubriand, a quantia de 2 mil dólares, na época uma quantia significativa, a ser dividida com os dois outros estudantes brasileiros que faziam os cursos do Instituto de Psicanálise de Londres. No final de cada ano há a dúvida sobre se consegue ou não a renovação de sua licença com vencimentos, que felizmente sempre acaba obtendo. Ajudas eventuais, que permitem que ela prossiga os estudos na Inglaterra e se mantenha em contato com as personalidades do mundo psicanalítico. Virgínia é uma batalhadora, essas dificuldades econômicas e de comunicação no inglês não a fariam desistir ou esmorecer.

Bion é quem recebe Virgínia calorosamente no London Institute of Psycho-Analysis, por meio de uma carta em que se diz "very glad to see you at the seminars as you suggest". Os dois se aproximam e mantêm forte amizade até a morte de Bion, amizade essa que se revela na correspondência que mantiveram durante tantos anos. Virgínia usa de sua influência para trazê-lo ao Brasil por várias vezes, hospeda-o e promove suas conferências e supervisões em São Paulo e em Brasília. Bion deixa uma forte marca na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.

Também é decisiva para trazer de volta Frank Philips ao Brasil, segundo ele próprio. Em Londres, Virgínia havia retomado sua análise com ele, além de ser supervisionada por Rosenfeld.

Mais segura, e munida de uma consistente formação na área da psicanálise, Virgínia retorna ao Brasil em fins de 1959. Em 23 de março de 1960 participa de reunião clínica coordenada pela Dra. Koch, então presidente da SBPSB, apresentando seu trabalho Inveja e fetichismo.9 Volta para participar de todas as decisões importantes, a consolidação societária, enfim, o desenho da Sociedade Brasileira de Psicanálise.

Retoma sua atividade clínica iniciada em 1944, após cinco anos de análise didática. Passa a trabalhar em sua própria casa e, nos seus últimos trinta anos de vida, reside e trabalha em um grande apartamento da Avenida Nove de Julho, em edifício projetado pelo importante arquiteto e urbanista Rino Levi10, um dos participantes da criação do Instituto de Arquitetos do Brasil e do Museu de Arte Moderna de São Paulo.

A partir de 1955, Virgínia havia se tornado analista didata e supervisora, função na qual marcará profundamente, de modo direto, pelo menos duas gerações de profissionais; de modo indireto, suas marcas continuam a ser transmitidas por intermédio dos psicanalistas que ela analisou, formou ou supervisionou, que por sua vez analisam, formam ou supervisionam novos membros da SBPSB. Sua influência é também marcante no âmbito da América Latina, tendo se tornado correspondente assídua de vários colegas da região.

O espírito pioneiro se manifesta novamente após dez anos de atividade em São Paulo. Virgínia embarca no projeto de Brasília e passa a dividir-se por doze anos entre as duas cidades, trabalhando em São Paulo e, paralelamente, lecionando na Universidade Nacional de Brasília onde, com outros colegas paulistas, constitui a sede de Brasília do Instituto de Psicanálise da SBPSB, que irá gerar mais tarde a Sociedade de Psicanálise de Brasília. Nos anos seguintes permanece somente em Brasília, consolidando a entidade e formando novos analistas.

Mesmo tendo voltado a São Paulo no início dos anos 1980, continua mantendo parte de seu trabalho na Capital Federal, onde costuma permanecer cerca de uma semana por mês. Despede-se de Brasília apenas em 1993, satisfeita com o trabalho realizado: "Despeço-me feliz e agradecida, vendo-os emancipados para o desempenho de um trabalho que alcança limites além do espaço geográfico".

Só vai se despedir do trabalho clínico em São Paulo no ano 2000. Morre em 2003, pouco antes de completar 93 anos de idade.

Uma mensagem que deixa à família (Figura 3) é bastante ilustrativa de sua atitude destemida e lúcida, não só diante da vida, como também da morte:11

 

 

Referências

Bastide, R. & Fernandes, F. (Orgs.). (1955). Relações raciais entre negros e brancos em São Paulo. São Paulo: Anhembi.         [ Links ]

Bicudo, V. L. (1956). Nosso mundo mental. São Paulo: Instituição Brasileira de Difusão Cultural.         [ Links ]

Bicudo, V. L. (1955). Atitudes dos alunos dos grupos escolares em relação com a cor dos seus colegas. In R. Bastide & F. Fernandes (Orgs.), Relações raciais entre negros e brancos em São Paulo (pp. 227-310). São Paulo: Anhembi.         [ Links ]

Bicudo, V. L. (1947). Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo. Revista Sociologia, 9(3), 195-219.         [ Links ]

Campos, C. (2002). São Paulo pela lente da higiene: as propostas de Geraldo Horácio de Paula Souza para a cidade (1925-1945). São Carlos: Rima.         [ Links ]

Woolf, V. (1985). The diary of Virgínia Woolf (1936-1941) (Vol. 5). New York: Barnes & Noble.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Maria Helena Indig Teperman
Rua Jericó, 255, cj.118
05435-040 São Paulo, SP
Fone: 11 3815-2416
E-mail: mhelena.teperman@yahoo.com.br

Sonia Knopf
Rua Guilherme Bannitz, 90, cj. 72
04532-060 São Paulo, SP
Fone: 11 3846-7666
E-mail: soniak@weba.com

Recebido em: 23/05/2011
Aceito em: 1/06/2011

 

 

1 O Fundo Virgínia Leone Bicudo, da Divisão de Documentos e Pesquisa da História da Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise (DDPHP-SBP), guarda documentos de várias sortes: correspondência, convites, fotografias, manuscritos, assim como entrevistas, notícias, reportagens e artigos; ao mesmo tempo que nos restitui aspectos de uma vida notável, traz-nos informações importantes sobre a história da psicanálise no Brasil.
2 Psicanalista, membro filiado ao Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise da SBPSP.
3 Psicanalista, membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise da SBPSP.
4 Vila Economizadora: conjunto residencial operário da cidade de São Paulo, exemplar tombado, representativo do primeiro ciclo industrial e documento arquitetônico ligado à imigração italiana em São Paulo.
5 Donald Pierson (1900-1995), representante da chamada Escola Sociológica de Chicago no Brasil, interessou-se especialmente pelas relações raciais afro-brasileiras.
6 Excerto de carta de Donald Pierson a Virgínia Bicudo, DDPHP-SBP, 1965.
7 Roger Bastide (1898-1974), participante da missão francesa que veio ao Brasil na época da fundação da Universidade de São Paulo. Bastide chegou à capital paulista em 1938, para substituir Claude Lévi-Strauss na cátedra de Sociologia I, no Departamento de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo. Sua enorme contribuição para as áreas de Sociologia, Antropologia e Psicologia Social prolonga-se até às áreas da Psicanálise, da Psiquiatria, da Filosofia, da Literatura e das Artes. Retornou à França em 1984, onde passou a lecionar na Universidade de Paris.
8 Florestan Fernandes (1920-1995), sociólogo, professor, político, graduado em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Iniciou a carreira docente como assistente do Prof. Fernando de Azevedo; mestre pela Escola Livre de Sociologia e Política e doutor pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, substituiu interinamente Roger Bastide na cadeira de Sociologia até 1964, quando se tornou efetivo. Aposentado compulsoriamente pela ditadura militar em 1969, foi professor visitante na Universidade de Columbia, professor titular na Universidade de Toronto e professor visitante na Universidade Yale. Retornou ao Brasil em 1978, tornando-se professor na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, retomando, mais tarde, sua cátedra na Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo.
9 Esta informação foi colhida em Ata da SBPSP, período de abril de 1957 a novembro de 1965.
10 Rino Levi (1901-1965), arquiteto e urbanista formado pela Escola Superior de Arquitetura de Roma, professor da FAU-USP, também autor de projetos de residências, prédios comerciais e complexos hospitalares.
11 Bilhete encontrado na mesa do consultório de Virgínia Bicudo, 1993.

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