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Jornal de Psicanálise
versão impressa ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.44 no.80 São Paulo jun. 2011
REFLEXÕES SOBRE O TEMA
Apontamentos em torno das temporalidades na clínica psicanalítica1
Notes on temporalities in psychoanalytic practice
Apuntes al respecto de las temporalidades en la clínica psicoanalítica
Bernardo Tanis2
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo - SBPSP
Instituto de Psicanálise Durval Marcondes
Revista Brasileira de Psicanálise
RESUMO
O autor reflete sobre a heterogeneidade dos processos temporais que regem o psiquismo e a situação transferencial. São identificados dois modos de conceber esses processos: em termos de continuidade e em termos dos processos de ressignificação a posteriori (après-coup). Uma vinheta clínica e um conto de Julio Cortázar ilustram tais processos. Ambos os movimentos temporais articulam-se no processo analítico, criando condições para a temporalização, a historização e a simbolização do recalcado e do não metabolizado.
Palavras-chave: Temporalidade, Après-coup, Memória, Transferência.
ABSTRACT
The author proposes a reflection on the heterogeneity of the temporal processes which conduct the psyche and the transferential situation. Two ways of conceiving these processes are identified, in terms of continuity and in terms of the processes of re-signification a posteriori (après-coup). A clinical vignette and a short story by Julio Cortázar illustrate these processes. Both temporal movements are articulated in the analytical process, creating conditions for the temporalization, historicizing and symbolization of the repressed and of the nonmetabolized.
Keywords: Temporality, Après-coup, Memory, Transference.
RESUMEN
El autor propone la reflexión al respecto de la heterogeneidad de los procesos temporales que reinan en la vida psíquica y en la situación transferencial. Identifica dos modos de concebirlos: procesos continuos y procesos de resignificación a posteriori (après-coup). Una situación clínica y un cuento de Julio Cortázar ilustran estos procesos. Propone que estos dos movimientos se articulan durante el proceso psicoanalítico creando las condiciones para la temporalización, historización y simbolización de lo recalcado y de lo no metabolizado.
Palabras clave: Temporalidad, Après-coup, Memória, Transferência.
El tiempo es un río que me arrebata, pero yo soy el río;
es un tigre que me destroza, pero yo soy el tigre;
es un fuego que me consume, pero yo soy el fuego.
El mundo, desgraciadamente, es real; yo, desgraciadamente, soy Borges.
J. L. Borges (Nueva refutación del tiempo)
Ainda que Freud não tenha dedicado estudo específico à temporalidade, o tema se encontra presente em toda a sua obra. Dado que, fora do tempo, o humano é impensável, isso demanda o esforço de aproximação ao interrogante: como o tempo se inscreve no sujeito e como este historiza sua experiência de ser?
A discussão está distante de qualquer ingenuidade que se refira ao tempo como passado, presente e futuro ou como simples linearidade. Ainda assim, o desgaste, a finitude, a flecha do tempo são inexoráveis. A heterogeneidade do psíquico se faz presente na transferência que, teorizada a partir de Freud, corresponderá também a uma heterocronia – a saber, uma complexa rede mnemônica irredutível a uma modalidade de funcionamento temporal única.
As tópicas formuladas por Freud, a diferença entre os regimes temporais dos processos primário e secundário, o modelo regressivo do sonho, o après-coup e a dimensão pulsional que obedece ao desejo e à compulsão e repetição são modalidades que, a partir da psicanálise, questionam a ideia de tempo vivido como continuidade subjetiva.
A multiplicidade e complexidade dos objetos mnemônicos descobertos pela psicanálise, os ritmos inerentes aos encontros e desencontros com o semelhante, o registro dessas vivências, a complexidade do par objeto-pulsão e o potencial do traumático e do irrepresentável constituem o cenário com o qual o terapeuta opera e com o qual se confronta na experiência psicanalítica. Isso faz da clínica um campo fascinante para o estudo das diferentes apreensões da temporalidade.
Há alguns anos, movido por esse desafio, retomei o estudo do infantil na psicanálise, da perspectiva do entrelaçamento da memória e da temporalidade (Tanis, 1995). Desse trabalho, resultou um livro que atendia à convocação de duas fontes: de um lado, Pontalis (1979), em editorial para a edição da Nouvelle Revue de Psychanalyse, dedicada a l'enfant, no qual ele propunha uma interrogação sobre a natureza do infantil; de outra, André Green (2002), que no texto "Tempo e memória" sinalizava a necessidade de aprofundamento da compreensão dos processos da memória e da temporalidade − como futuramente patenteariam diversos trabalhos publicados em coletâneas (Green, 2000, 2002).
Gostaria apenas de assinalar neste trabalho alguns caminhos para a compreensão desse cruzamento: não tratarei aqui de um aprofundamento monográfico do lugar do temporal na obra de Freud e de seus sucessores. Sinalizo apenas que um dos eixos possíveis para leitura da obra freudiana implica um aprofundamento da intelecção da memória e do tempo (Tanis, 1995). Pode-se seguir as suas pegadas desde a famosa carta 52 a Fliess (1896), passando por "Sobre los recuerdos encubridores" (1899/1989l), "La interpretación de los sueños" (1900/1989d), "Recordar, repetir y reelaborar" (1912/1989j), e toda a conceituação da transferência e sua relação com o infantil, e pela compulsão à repetição, e a formulação do segundo dualismo pulsional em "Mas allá de principio del placer" (1920/1989f), incluindo a passagem pela "De la historia de una neurosis infantil (O caso do Homem dos lobos)" (1918/1989c), pela "Nota sobre la pizarra mágica" (1924/1989h), por "Moisés y la religión monoteísta" (1939/1989g) e por "Construcciones en el análisis" (1937/1989b). Diz Freud:
Dentro do id não se encontra nada que corresponda à representação do tempo, nenhum reconhecimento de uma secessão temporal, nenhuma alteração do processo anímico pelo decurso do tempo … . Somente é possível discerni-las … como passado, desvalorizá-las ou extrair delas investimento enérgico quando tenham chegado a ser conscientes por meio do trabalho analítico, e é nisso que reside o efeito terapêutico do tratamento analítico. (Freud, 1933/1989a, p. 69).
Será então na possibilidade dessa passagem, dessa transformação − que podemos chamar de temporalização e historização −, que reside em grande parte o potencial de mudança e de reordenamento que o processo analítico pode propiciar? Mas isso apenas coloca um grande desafio assinalado em O ego e o id (Freud, 1923/1989m): o devir consciente. Alude à ressignificação na transferência, à "tradução do inscrito", como assinala o modelo contido na referida carta3 52 (Masson, 1986, p. 208).
Assim, o que se chama de historização obedece, a partir de uma perspectiva metapsicológica, a complexos mecanismos psíquicos nomeados por vários autores: à retranscrição do traço, ao processamento psíquico dos "signos de percepção", produtos de experiências traumáticas não metabolizáveis (Laplanche, 1988), à transformação do vivido inscrito em experiência (Bleichmar, 2011). Comporta também as leituras dos processos de figurabilidade (Botella, 2002), transicionalidade e criatividade (Winnicott, 1975), simbolização (Bion, 1991a, 1991b; Green, 2000, 2002) e outros.
A complexidade dos signos integrantes da vida psíquica do ser humano (Tanis, 2009) vincula-se intrinsecamente à heterogeneidade dos processos mnemônicos e temporais, que são sustentados pelos processos defensivos, sejam eles da ordem do recalque ou da clivagem, e se fazem presentes no campo transferencial.
O pensamento psicanalítico abriga diferentes propostas relacionadas com o modo como esses processos de historização e temporalização ocorrem durante o processo analítico. As raízes de distintas considerações nesse campo brotam não apenas de determinadas leituras da obra de Freud, como dos diferentes contextos culturais em que foram produzidas e do impacto dos modelos clínicos acima citados. A rica contribuição do pensamento clínico pós-freudiano ampliou o campo de intervenção clínica, incorporando novas configurações psíquicas que revelam complexidade e diversidade nos modos de inscrição da temporalidade no sujeito.
De modo esquemático, essas abordagens podem ser dispostas em dois grandes grupos. (Minha exposição acompanha a clara discriminação realizada por Gondar (2006) em torno do assunto.)
a) Por um lado, perspectivas que focalizam o processo, a continuidade temporal, em um desenvolvimento progressivo, que pode ter-se interrompido ou congelado.
b) Por outro, abordagens que focalizam o instante, a descontinuidade e a ruptura na constituição da temporalidade e um reordenamento a posteriori (après-coup).
Ambos os modelos têm sua origem no pensamento freudiano, só que privilegiam certos aspectos de sua obra. O primeiro – dominante no desenvolvimento da psicanálise inglesa –, reconhece uma ordenação evolutiva do psiquismo, processos de estagnação que, por meio da intervenção analítica, poderiam recuperar o livre fluxo de circulação temporal. Embora existam diferenças entre autores (por exemplo, entre Klein/Bion e Winnicott), nota-se que a ideia do desenvolvimento tem importância para todos.
O segundo modelo toma como principal premissa a ideia freudiana de nachträglich, traduzida por Lacan, em 1953, por après-coup, e retomada com grande ênfase por Laplanche, contribuindo para transformá-la em marca da psicanálise francesa. Esse mecanismo não se confunde com uma fantasia retrospectiva, mas, caracterizando-o sinteticamente, constitui reordenação a posteriori do potencial inscrito T1 a partir de um segundo momento T2. Guarda vinculação com as primeiras ideias em torno dos dois tempos do traumatismo, já esboçadas no "Projeto" (Freud, 1895/1989i).
Vou recorrer a breves vinhetas clínicas e a material literário para ilustrar aspectos dessas diferentes modalidades de tempo que se revelam no fazer clínico.
Quero oferecer um exemplo clínico, pouco trivial, que permitirá a aproximação de uma modalidade de temporalização que, embora situada no primeiro grupo e focada no processo e na continuidade, instaura, a partir de um movimento criativo, uma discriminação espaço-temporal.
Um menino de seis anos, a quem chamarei João, encontrava-se em análise comigo quando um familiar próximo contraiu uma grave infecção e, em poucos dias, morreu. Sua família encontrou consolo para essa tragédia familiar numa perspectiva religiosa do acontecimento. O pequeno paciente continuou participando de suas sessões regularmente. Brincava com os objetos de sua caixa e também reordenava os móveis da sala.
Trabalhamos muito. Montamos e desmontamos as organizações do espaço físico, deslocamos os móveis, subimos, descemos. Com dificuldade, esses movimentos – que se prolongaram por várias sessões − apontavam algum sentido.
Parecia, às vezes, que estávamos construindo uma casa, colocando dentro dela o material lúdico de que dispúnhamos: cadeiras, almofadas, etc. Em outras, ele trazia algumas bolachinhas e algo para beber (suco ou refrigerante) durante a sessão: parecia que estávamos acampando ou em uma excursão. Em determinada ocasião cheguei ter a impressão de que estávamos construindo uma nave espacial, mas nada disse ao pequeno paciente.
Na sala em que trabalhamos há um quadro-negro: um dia, após lá desenhar estrelas, calmamente e com ar feliz, ele disse (referindo-se à pessoa que falecera): "Bernardo, vamos encontrar Flávia, que está em uma estrela distante".
Outorgar a esse menino tempo e espaço, sem saturá-lo com interpretações, possibilitou que ele construísse uma representação da ausência, da distância, da morte. Talvez uma imagem que lhe havia sido previamente oferecida por seus pais, mas que não tinha registro próprio. Havia uma ferida aberta, um processo de luto em jogo e a necessidade de dominar um afeto que, até então, encontrava-se difuso.
A partir de uma perspectiva estética, Pareyson (2001) chamou essa experiência de "formatividade", focando nos processos criativos por meio dos quais uma forma se constitui a partir de elementos intuitivos ou pouco organizados da experiência. Também penso que essa experiência, extremamente emotiva para ambos, pode nos ensinar algo sobre a noção de temporalidade com a qual trabalhamos e que podemos reconhecer a posteriori.
Gondar (2006) cita três ideias do filósofo Henri Bergson a respeito do tempo, que resumo a seguir, e que permitem uma interessante aproximação (visando futuros aprofundamentos) com o pensamento teórico-clínico de Winnicott.
1. Tempo é criação. A duração não é pensada como permanência do mesmo, mas como continuidade indivisível e criação permanente do novo. O que há de mais vital no desenvolvimento é a continuação imperceptível da mudança de forma.
2. A duração, como processo de diferenciação, não envolve um encadeamento sucessivo entre passado, presente e futuro, mas um processo no qual algo que se encontrava numa dimensão potencial, virtual, vem a se realizar no presente, a se atualizar. A isso ele chama de 'processo de diferenciação' ou de atualização, isto é, de passagem do virtual para o atual.
3. Para Bergson, a duração é aquilo que nos permite escapar da determinação pura e simples entre estímulo sensório e resposta motora, para a determinação pura e simples de um arco reflexo. Há o estímulo, mas no lugar de sua resposta imediata abre-se um entre, um intervalo de indeterminação, uma experimentação de possibilidades: esse tempo permite que o ser vivo escolha criativamente uma resposta entre as possíveis.
A proximidade da proposta de Bergson com o vivido no relato acima em termos de temporalização é surpreendente. Conceber o espaço analítico em termos da sua potencialidade, em termos de uma transicionalidade abre a perspectiva de um acontecer criativo, que temporaliza o vivido que ainda aguarda por uma simbolização, uma forma prenhe de sentido por meio da qual o tempo eternizado da perda se reordena.
João apropriou-se de certo modo de sua saudade, que se materializou numa viagem simbólica ao espaço na busca do ser perdido. Busca que, em última instância, coloca novamente em movimento (tempo-espaço) uma subjetividade que poderia correr o risco de melancolização da perda.
A seguir, apresento uma narrativa literária como ilustração da segunda modalidade de apreensão da temporalidade, nachträglich,4 esperando que ela possa propiciar avanço na reflexão em torno dos desafios que suscita.
Nunca se saberá como isto deve ser contado, se em primeira pessoa ou em segunda, usando a terceira do plural ou se inventando continuamente formas que não servirão para nada. Se fosse possível dizer: eu viram subir a lua, ou: em mim nos dói o fundo dos olhos, e principalmente assim: tu a mulher loira era as nuvens que continuam correndo diante de teus seus nossos vossos seus rostos. Que diabo. (Cortázar, 2004, p. 301)
Dessa forma, colocando o problema do narrador, Julio Cortázar inicia um de seus mais fascinantes contos, "Las babas del diablo",5 cuja primeira edição data de 1959, publicado na coletânea Las armas secretas. Sabemos que toda narrativa contempla fissura e tensão entre o narrador e o narrado, entre o aqui e agora e o então, entre verdade, verossimilhança e persuasão (Arrigucci, 1998). Tem-se na ficção literária algo que vincula sujeito, memória, retórica e temporalidade. Ela conecta indiretamente com a problemática da linguagem, das modalidades da memória e da temporalidade na transferência.
O conto apresentado oferece, assim, inúmeras vias de leitura, tanto para análise literária como para o psicanalista. Privilegio um recorte que oferece elementos para o tema das temporalidades.
Tempo I
Após a citada discussão em torno do narrador, que dá início ao conto, Cortázar introduz as divagações do personagem principal. O conto trata de um fotógrafo e tradutor, que se dispõe a narrar uma situação acontecida quando perambulava pelas ruas de Paris em busca de uma cena para fotografar. Espera, passeia como um flâneur.
Michel sabia que o fotógrafo opera como uma permutação de sua maneira pessoal de ver o mundo por outra que a câmera lhe impõe insidiosa (agora passa uma grande nuvem quase negra), mas não desconfiava, sabedor de que lhe bastava sair sem a Contax para recuperar o tom distraído, a visão sem enquadramento, a luz sem diafragma 1/250. Agora mesmo (qual palavra, agora, qual estúpida mentira!) podia ficar sentado no parapeito sobre o rio, olhando passarem as vermelhas e negras, sem que me ocorresse pensar fotograficamente as cenas, nada mais que me deixando levar pelo ir das coisas, correndo imóvel com o tempo. E o vento já não soprava. (Cortázar, 2004, p. 304)
Até que um casal chama sua atenção. Um casal? Uma mulher e um adolescente. Ele, então, passa a especular sobre a natureza daquela relação, mãe e filho, sedução… Fantasia sobre a possível atração, em um relato maravilhoso de ternura e sensualidade que busca o clímax narrativo, o momento de entrega do jovem à mulher. Espera por um gesto que possa revelar a verdade da cena, algo que aluda à essência do que está acontecendo.
Levantei a câmera, fingi estudar um enquadramento que não os incluía e fiquei à espreita, certo de que finalmente capturaria o gesto revelado, a expressão que resume tudo, a vida que o movimento mensura, mas que uma imagem rígida destrói ao seccionar o tempo, se não escolhemos a imperceptível fração essencial. (Cortázar, 2004, p. 309)
O fotógrafo também observa, relativamente perto da cena principal, um automóvel, com um homem ao volante, lendo um jornal (em sua narrativa ele alude a um possível vínculo entre as personagens). Voltando ao casal, quando percebe um gesto indiciário, captura a imagem ("a tempo de compreender que os dois haviam percebido"). A mulher aproxima-se desconfiada, quer o negativo da fotografia, eles discutem e o jovem escapa. O homem que lia jornal no carro dirige-se à mulher, eles parecem se conhecer. O fotógrafo identifica um rosto sinistro, uma expressão de palhaço e decide se afastar. Vira-se de costas no caminho e vê que os dois se aproximam e o homem de chapéu deixa cair o jornal. A cena parece inconclusa.
Tempo II
O fotógrafo retorna para sua casa e revela a fotografia, a qualidade do negativo parece-lhe excelente e resolve ampliá-la. Fixa-a, então, na parede, em um lugar em que ele pode contemplá-la de sua mesa de trabalho. Parece que uma atração particular o conduziu a esse ato.
Não era por boa ação que a olhava, entre parágrafo e parágrafo de meu trabalho. Nesse momento não sabia por que a olhava, por que havia fixado essa ampliação na parede; talvez aconteça assim com todos os atos fatais, e essa seja a condição de seu cumprimento. (Cortázar, 2004, p. 314)
Lugar do acaso ou de uma compulsão de determinação inconsciente. De repente, a imagem da foto começa a ganhar movimento, a cena segue outro curso que aquele do Tempo I, muito mais terrível e diabólico do que quando a havia fotografado.
Quando vi o homem vir, deter-se perto deles e olhá-los, as mãos nos bolsos e um ar entre enfastiado e exigente, padrão [?] que irá assobiar ao seu cachorro depois da folia na praça, compreendi, se isso é compreender, o que tinha que acontecer, o que tinha que ter acontecido, o que teria que acontecer nesse momento, entre essa gente, aí onde eu havia chegado para transtornar uma ordem, inocentemente intrometido-me nisso que não havia acontecido mas que agora ia acontecer, agora ia se cumprir. (Cortázar, 2004, p. 315)
De mim nada restou, uma frase em francês que jamais irá terminar, uma máquina de escrever que cai ao chão, uma cadeira que chia e treme, uma névoa. (Cortázar, 2004, p. 316)
A foto tinha sido tirada, o tempo havia corrido … Logo a ordem invertia-se, eles estavam vivos, movendo-se, decidiam e eram decididos … e eu deste lado, prisioneiro de outro tempo ... incapaz de intervir … Tudo ia se resolver ali mesmo, nesse instante. (Cortázar, 2004, p. 316)
Concluímos, a partir do relato, a morte do narrador/fotógrafo, assassinado pelo misterioso motorista. Podemos reconhecer na situação analítica apresentada pelo conto e, especificamente, nos trechos selecionados, a fecunda intuição sobre as temporalidades. O momento de olhar, o tempo de entender, e o tempo de concluir (assinalados por Lacan). Inicialmente, o fotógrafo capta o que está fora dele, os outros, num gesto aparentemente sem compromisso de um flâneur. Mas ainda não sabe sobre si mesmo, não sabe quem é. Deve-se lembrar aqui o problema do narrador e a dimensão inconsciente da transferência à qual se aludiu no início do relato do conto.
Em um segundo tempo, há o que Freud chama de trabalho de elaboração. Tratar de entender, de reconhecer quem é o fotógrafo, ainda que nesse processo possa hesitar, voltar novamente o olhar para os outros, buscar uma referência visível que o confirme. A foto pendurada e o olhar insistente não sabem justificar-se senão pelo apelo inconsciente.
Por fim, o tempo de concluir, no qual se renuncia à convicção e a personagem se lança sem garantias. Deixa-se surpreender pelo que se impõe après-coup, mas que somente foi possível pelo tempo anterior. A foto ganha vida e ressignifica a imagem presa, imóvel, captada no tempo primeiro. A vivência de vertigem toma conta do fotógrafo, que se desestrutura por efeito do golpe de sentido que a foto lhe devolve.
Diz Cortázar:
Sempre pensei que o fantástico não aparecesse de uma forma áspera ou direta, nem fosse cortante, e sim se apresentasse de uma maneira intersticial, que se desliza entre dois momentos, dois atos no mecanismo binário típico da razão humana a fim de nos permitir vislumbrar a possibilidade latente de uma terceira fronteira, de um terceiro olho, como tão significativamente aparece em certos textos orientais. (Julio Cortázar, 1994, p. 70)
Assim, para Cortázar (apud Albarracím-Sarmiento, 1971), a motivação da literatura é o descobrimento do insólito que exige, demanda ser contado. Isso faz referência ao Unheimlich (Freud, 1919/1989e). No instante em que uma brecha se abre, o fotógrafo captura, ou é capturado, por uma imagem da qual desconhece o sentido e que irá se desdobrar (Tempo 2) em uma realidade não menos verossímil que a captada originalmente. Essa brecha ficcional é análoga à que se abre para a função interpretativa do analista em um determinado campo transferencial e viabiliza a ressignificação e reorganização.
Tempo de concluir
Ainda que se tenha falado inicialmente na ausência do registro temporal no inconsciente, aproximando-me do território discutido na metapsicologia freudiana, retomo uma consideração. Como conceber o paradoxo fenomenal de inscrições significantes, traumático-vivenciais, não historiáveis, atemporais, condenadas à repetição pela relação com a história que as constitui? Trata-se também da possibilidade de instaurar uma temporalização ante o "traumáticopulsional" (Dayan, 1985, p. 380), vínculo que se encontra condenado a uma repetição "para além do princípio do prazer".
Trata-se de proporcionar as condições para uma recomposição ou ressimbolização para aquilo que não pode encontrar possibilidades metabólicas em outro tempo (Bleichmar, 2011). Essa recomposição implica conceber o aparato psíquico aberto ao après-coup, concedendo espaço para a reordenação que o presente inaugura sobre o passado. Diz Schnaider (apud Tanis, 1995, p. 54): "O efeito da posterioridade não deveria ser visto como um fenômeno parasitário: vem ao encontro da vacuidade inscrita no interior de toda vivência inicial, na medida em que esta se impõe como desconcertante".
Concluindo, a complexidade do psíquico contempla uma multiplicidade de registros temporais, corolários de uma história passível de simbolização há tempos inscrita. Os traços mnemônicos, o rastro, obedecem a um regime pulsional indissociável, o que torna a temporalidade um componente encarnado, não transcendental de nossa condição subjetiva. Para Freud, há o tempo da Anhelung, do apoio − é o tempo da emergência do desejo, é o tempo do originário da experiência da satisfação; e há o tempo do a posteriori, da apropriação e da ressignificação, um redimensionamento, da fantasia, do vivido inscrito.
A própria condição do processo constitutivo oferece como alternativa a recomposição no contexto transferencial. No entanto, para que as diferentes temporalidades inerentes à constituição do psíquico, assim como as diferentes expressões do sofrimento humano, possam encontrar seu espaço no contexto analítico, serão determinantes os ritmos e alternâncias entre presença e ausência e o tempo da espera, corolário da experiência de ilusão e dos fenômenos transicionais.
Referências
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Endereço para correspondência
Bernardo Tanis
Rua Capote Valente, 432/142 | Jardim América
05409-001 São Paulo, SP
Tel: 11-3062-1855
E-mail: tanis@uol.com.br
Recebido em: 30/5/2011
Aceito em: 23/6/2011
1 Este trabalho foi apresentado no painel "Transferência e temporalidades", no XXVIII Congresso da Federación psicoanalítica de América Latina – Fepal (Bogotá, 2010).
2 Psicanalista. Doutor em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP. Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo – SBPSP e docente do Instituto de Psicanálise "Durval Marcondes". Editor da Revista Brasileira de Psicanálise.
3 Carta 52 corresponde à edição da SE. Carta 112, na edição de Masson (1986), aqui citada.
4 Para aqueles menos familiarizados com esta noção na obra de Freud, sugiro a leitura de Jacques Andre (2008).
5 Este conto inspirou o filme Blow-Up (1966), dirigido por Michelangelo Antonioni, ganhador do Grand Prix do Festival de Cannes. Utilizou-se a versão original em espanhol (Las babas del diablo, 1959/2004). Os trechos citados foram traduzidos por Ana Tanis.