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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.45 no.82 São Paulo jun. 2012

 

EDITORIAL

 

Autoria

Na esteira da reflexão sobre questões ligadas à publicação e à escrita em psicanálise – instaurada desde o primeiro número editado por nossa equipe – surgiu a inquietação referente ao tema da autoria. Quando e como se forma um autor, como este se situa em relação aos que lhe antecederam e frente à comunidade na qual se insere. Indagações como essas vieram à tona, e no decorrer das nossas discussões fomos descobrindo a constituição da autoria de todo o corpo editorial, que se enriqueceu com a participação da Associação dos Membros Filiados (AMF) e com a recepção dos diversos trabalhos que nos foram encaminhados e que permitiram a composição deste número.

Na nossa carta-convite recorremos a uma famosa frase de Goethe, muito citada por Freud e pelos psicanalistas que neste número comparecem: "O que hás herdado de teus pais, adquire, para que o possuas". Na entrevista que publicamos com Leopold Nosek, atual presidente da FEPAL, ele menciona T. S. Eliot que, em outro momento histórico, considera que "a tradição a gente não herda, a gente se apropria através de um trabalho muito árduo". E, em consonância com esse árduo trabalho, recuperamos outra citação de Goethe, referindo-se ao Fausto, obra de toda a sua vida: "Largos trechos do Fausto teriam brotado da pura inspiração (ou de fontes inconscientes e inatas), mas imprescindível para a conclusão da obra foi, antes de tudo, a imposição da mais rigorosa disciplina intelectual". Lembramos aqui a combinação da inspiração e disciplina necessária para o trabalho do analista, tanto na intensidade da prática clínica diária como na construção de sua identidade como autor.

Segundo nos relatou Nosek, a formulação de T. S. Eliot foi inspiração para o tema do próximo congresso da FEPAL, Tradição Invenção, que acontecerá em outubro em São Paulo. Nosek conversou conosco sobre a própria FEPAL, a revista Caliban, que deverá ser lançada no congresso, as relações institucionais que permeiam a psicanálise e a sua apreensão sobre o tema da autoria.

Neste número contamos também com a colaboração da AMF, que realizou uma entrevista sobre a formação do psicanalista na Alemanha e na Europa com o Dr. Peter Wegner, analista didata da Associação de Psicanálise Alemã, que esteve em visita à nossa Sociedade. Nesta ocasião Dr. Wegner proferiu uma conferência sobre "Trabalho psicanalítico processualmente orientado na primeira entrevista e a importância da cena de abertura". Publicamos também esta conferência, que muito se relaciona com o modo como se processa a formação na Alemanha, como vocês poderão ler na entrevista.

Organizamos um debate sobre o tema da autoria com colegas da nossa sociedade: Marcella Monteiro de Souza e Silva, Maria Thereza de Barros França e Milton Della Nina, participantes ativos da vida institucional e em diferentes momentos de inserção nesta. Como interlocutores, tornaram-se autores de uma conversa profícua, na qual ficou mais clara para todos nós a importância do Debate: a possibilidade discursiva e reflexiva propiciada pelo encontro ao vivo multiplica a potência de nosso pensamento, além de influenciar a própria construção do espaço editorial.

Em relação aos artigos temáticos, tivemos uma composição com várias vozes, criando uma harmonia complexa que esperamos que possibilite a você, caro leitor, associações, emoções e pensamentos, como quando somos tocados por uma música. "Tornar-se autor", de Liana Pinto Chaves, um texto apresentado na homenagem prestada ao psicanalista Ronald Britton, da Sociedade Britânica, por esta nossa colega, influenciou a escolha do tema autoria para este número. É com esse artigo afetivo e consistente que abrimos as Reflexões sobre o tema. A autoria de Sônia Curvo Azambuja nos é lembrada através do lindo artigo de Luís Cláudio Figueiredo, "Autoria, elaboração e criação em análise. Pensando com Sônia Azambuja", que generosamente nos apresenta o que seriam os traços, o estilo e o amplo leque de interesses e leituras dessa grande psicanalista que nos deixou saudades. Uma outra mulher importante para a história da psicanálise é indiscutivelmente Sabina Spielrein, contemporânea de Freud e Jung, e que vem sendo descoberta no Brasil através do trabalho de pesquisa de Renata Udler Cromberg, responsável pelo lançamento de suas obras completas. Renata enviou-nos um artigo sintético em face a todo o seu material de pesquisa: "A autoria de Sabina Spielrein".

Tivemos também trabalhos de reflexão sobre o tema em interface com outras disciplinas: "Uma aproximação da crítica literária à psicanálise na leitura de O filho eterno de Cristóvão Tezza: relações entre leitor, narrador, personagem", de Camila Lousana Pavanelli de Lourenzi. Trata-se de um artigo surpreendente, que demonstra o quanto o instrumental da crítica literária permite um olhar penetrante em relação ao trabalho do leitor na constituição da obra literária. Por sua vez, Sérgio Adorno, respondendo a uma solicitação nossa, revisita o texto de Foucault "O que é um autor?", produzindo um intrigante artigo intitulado "O autor nos escritos de Foucault: entre o discurso e a morte". O artigo situa, do ponto de vista social e filosófico, a obra, a escrita e o autor em nossa contemporaneidade. Para fechar os artigos sobre o nosso tema, temos a contribuição do nosso colega João Augusto Frayze-Pereira, com seu artigo "A questão da autoria: impensado das obras de pensamento – biografia artística, narrativa clínica e teoria psicanalítica", que, em diálogo com os outros artigos, permite colocar em questão os temas tratados tanto na filosofia como na crítica literária e nas artes, para nos debruçarmos sobre o "impensado", matéria prima também da psicanálise.

Abrindo o número para os artigos não temáticos, temos dois textos em homenagem à André Green, de Fernando Urribarri, seu colaborador por mais de vinte anos. São eles: "Legado de André Green: recordar, elaborar, assumir", texto lido por ocasião do funeral de Green, em 27 de janeiro de 2012, e "André Green: o pai na teoria e na clínica contemporânea". Com isso prestamos aqui a nossa homenagem com o que é o mais significativo no trabalho de um autor, a publicação não apenas de sua obra, mas da escrita de um discípulo, "filho" que toma como fonte de inspiração o legado deixado pelo seu mestre, constituindo a partir dele a sua autoria própria.

Temos, na sequência, três artigos aparentemente díspares, mas que têm em comum o trabalho das autoras nos limites da psicanálise: "Das Unheimliche no corpo: reflexões a partir da Crise Pseudoepiléptica", de Berta Hoffmann Azevedo, que nos possibilita retomar os casos clínicos que marcaram as origens da psicanálise, revelando sua atualidade; "Desapareceu a Margarida: notas sobre um caso de clínica extensa", de Claudia Amaral Mello Suannes, em que vemos a psicanálise saindo em campo, lançando hipóteses e permitindo uma apreensão muito delicada da realidade psíquica fora do divã – ao mesmo tempo lançando uma luz para aquilo com que nos deparamos também nos nossos consultórios; "Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade: ampliando o entendimento", de Maria Thereza de Barros França, é uma proposta de trazer o que seria um diagnóstico psiquiátrico para uma apreensão psicanalítica, através das formulações dos principais autores que se debruçaram sobre os aspectos primitivos da mente.

Consideramos, na seção Formação Psicanalítica, dois artigos: o do Dr. Peter Wegner, já mencionado, que acreditamos poder contribuir para reflexões sobre as primeiras entrevistas em psicanálise e sua concepção sobre a "cena de abertura", e o artigo de Ana Maria Loffredo, "Transmissão da psicanálise e universidade", uma reflexão sobre a interlocução da universidade com as instituições psicanalíticas, tanto como postulada por Freud, como na contemporaneidade, com as mudanças nas concepções que permeiam a formação do psicanalista.

Nos Breves Escritos temos ainda uma resenha de Denise Salomão Goldfajn, sobre o livro de Cynthia Peiter, Adoção – vínculos e rupturas: do abrigo à família adotiva, e uma poesia de Patrícia Nunes, "Um moinho como metáfora".

Com o término desta edição podemos dizer que nós da equipe editorial morremos como autores, assim como aqueles que assinam nossos artigos, pois agora é de vocês, leitores, a tarefa de revelação dos textos aqui inscritos. Que eles possam ressoar, vibrar em consonância ou dissonância, e quem sabe reacender a centelha inspiradora, geradora de uma nova autoria.

 

 

Eunice Nishikawa
editora