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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.45 no.82 São Paulo jun. 2012

 

ARTIGOS NÃO TEMÁTICOS

 

André Green: o pai na teoria e na clínica contemporânea1

 

André Green: the father in contemporary theory and practice

 

André Green: el padre en la teoria y en la clínica contemporânea

 

 

Fernando Urribarri2

Associação Psicanalítica Argentina
Universidade de Buenos Aires
Universidade de Paris X

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este texto corresponde à conferência de abertura do colóquio em homenagem a André Green, "O pai na psicanálise contemporânea", por ocasião da comemoração dos seus oitenta anos. Propõe uma visão panorâmica da obra deste autor, seguindo o fio temático da questão do pai, do Édipo e da terceiridade na teoria e clínica psicanalíticas. Procura historicizar seu pensamento situando-o em relação a J. Lacan e ao movimento pós-lacaniano, finalizando com a elaboração de um novo modelo psicanalítico contemporâneo, contextualizando, assim, suas idéias mais originais. Destacam-se, nesta trajetória, seus estudos sobre as mudanças ocorridas na clínica psicanalítica das estruturas não-neuróticas (complexo da mãe-morta, posição fóbica central), e as suas idéias sobre a terceiridade, a triangularidade aberta com um terceiro substituível e a bi-triangularidade.

Palavras-chave: Pai, Édipo, Simbolização, Terceiridade, Trabalho do negativo.


ABSTRACT

This text is the opening lecture of a symposium in honor of André Green, on his 80th birthday: "The Father in contemporary psychoanalysis". It proposes a panoramic view through this author's works, following the thematic thread about the question of the father, Oedipus, and thirdness in psychoanalytic theory and practice. It aims at historicizing his thinking relating it with J. Lacan and the post-Lacanian movement, leading to the development of a new contemporary psychoanalytic model, to contextualize his most originals ideas. This overview highlights his study about the changes in psychoanalytic practice with non-neurotic structures (dead mother complex, central phobic position), and his ideas about thirdness, open triangularity with a replaceable third, and bi-triangularity.

Keywords: Father, Oedipus, Symbolization, Thirdness, Work of the negative.


RESUMEN

Este texto corresponde a la conferencia de apertura del coloquio de homenaje a André Green en ocasión de su 80 años: "El padre en el psicoanálisis contemporáneo". Propone un recorrido panorámico por la obra de este autor siguiendo el hilo temático de la cuestión del padre, el Edipo y la terceridad en la teoría y en la clínica psicoanalítica. Procura historizar su pensamiento situandolo en relación con J. Lacan y el movimiento poslacaniano, desembocando en la elaboración de un nuevo modelo psicoanalítico contemporáneo, para contextualizar sus ideas más originales. En este recorrido se destaca su estudio de los cambios en la clínica psicoanalítica con estructuras no-neuróticas (complejo de la madre muerta, posición fóbica central), y sus ideas acerca de la terceridad, la triangularidad abierta con tercero substituible y la bi-triangularidad.

Palabras clave: Padre, Edipo, Simbolización, Terceridad, Trabajo de lo negativo.


 

 

Sinto-me muito honrado pelo convite para inaugurar este Colóquio em homenagem a André Green sobre "O pai na psicanálise contemporânea". O assunto do pai na obra de André Green resulta ser – como espero mostrar – especialmente propício para dar conta da evolução e sentido da mesma. Acompanhando este eixo temático minha intenção não é fazer um resumo da sua vasta produção, senão, esboçar um percurso (ao mesmo tempo histórico e conceitual) que possa servir para pormos em perspectiva seu pensamento e orientar a leitura da sua obra.

A extensa obra de André Green pode definir-se como a busca de um pensamento psicanalítico contemporâneo capaz de superar os impasses e a fragmentação dos modelos pós-freudianos. Desde "O inconsciente freudiano e a psicanálise francesa contemporânea" (Green, 1960) até Orientações para uma psicanálise contemporânea (Green, 2002a) seus escritos podem ser lidos como estando direcionados e impulsionados pela questão do contemporâneo. O resultado desse percurso é a construção de um modelo teórico e clínico pessoal, que articula uma re-conceitualização dos fundamentos metapsicológicos e uma renovação do método psicanalítico.

Sabemos que depois da morte de Freud a psicanálise teve a sorte de ver surgir alguns autores originais que realizaram contribuições muito valiosas. Mas também teve o infortúnio de que cada um deles criara uma nova corrente militante que se proclamou a única herdeira legítima de Freud. Os "três grandes dogmatismos pós-freudianos", como são chamados por Laplanche (1987) – a psicologia do ego, o kleinismo e o lacanismo – repetiram o processo sectário de armar seu próprio modelo reducionista, convertê-lo em dogma, mecanizar uma técnica particular e erigir um líder idealizado como chefe de Escola. André Green escreveu que a crise da psicanálise pós-freudiana é uma crise melancólica: marcada pelo luto interminável da morte de Freud. Sintomaticamente cada autor pós-freudiano quis substituí-lo como a maior figura, cada movimento militante acreditou estar revivendo a situação originária dos pioneiros e do Pai (re) fundador.

Reconhecer, historicizar e superar os impasses teóricos e clínicos do pós-freudismo é o que define o projeto freudiano contemporâneo (pluralista, complexo e cosmopolita). Poderíamos dizer que este projeto funda uma posição histórica nova (e historicizante) de filiação a Freud, ao postular um distanciamento que é, ao mesmo tempo, iniludível e potencialmente fecundo, com o pai fundador e sua Obra. Dito de outra maneira: toda relação com a obra de Freud está necessária e irremediavelmente mediada por recortes e opções de cada modelo teórico. Existe um trabalho de luto e de criação, sem o qual a filiação é alienação e a paternidade um simulacro.

Para situarmos nosso autor é conveniente lembrar que o movimento psicanalítico contemporâneo teve suas origens na convergência e evolução de três movimentos antidogmáticos pioneiros, na Inglaterra, França e Argentina.3 Na França, na década de 1960, quando J. Lacan passa de autor renovador a chefe de Escola, seus principais discípulos (os mais destacados analistas da terceira geração da psicanálise francesa, segundo Elisabeth Roudinesco) rompem com ele. Foram eles J. Laplanche, J. -B. Pontalis, D. Anzieu, D. Widlocher, P. Aulagnier, F. Perrier, G. Rosolato, C. Stein e A. Green, entre outros. Este movimento freudiano, pluralista intelectual e institucionalmente transversal, inaugurou um "depois de Lacan": o pós-lacanismo, que fundado em uma espécie de "pacto fraterno", instituiu uma rede geracional antidogmática que evoluiu da crítica ao reducionismo pós-freudiano à constituição de uma nova síntese teórico-clínica e um novo paradigma contemporâneo.

Nesta apresentação gostaria de abordar alguns dos desenvolvimentos originais de André Green de uma perspectiva tanto histórica quanto conceitual. Para periodizar este retrospecto na obra do autor de Sobre a loucura pessoal (contextualizando-a no devir das suas relações intelectuais fraternas e de filiação) sugiro distinguir três etapas sucessivas: com Lacan (ou "Em nome do pai"), depois de Lacan (ou "O pacto fraterno") e mais além de Lacan (ou "Em nome próprio"). Em cada etapa, começarei por contextualizar o momento histórico do movimento psicanalítico, para depois focalizar as contribuições de André Green.

 

I. Com Lacan

A etapa "com Lacan" estende-se dos anos 1950 até meados dos anos 1960 e é marcada pelo "retorno a Freud". Os melhores psicanalistas da terceira geração da psicanálise francesa sentem-se convocados ao seu seminário: para seus discípulos é a oportunidade de ter acesso aos seus ensinamentos e, ao mesmo tempo, de colaborar ativamente na construção de novos horizontes para a teoria e prática psicanalíticas. É uma época em que a adesão a Lacan é – ou parece ser – compatível com a filiação freudiana. A aspiração de Lacan é ser "o leitor de Freud". O famoso Seminário concentra-se (de 1950 até 1963) em textos e noções freudianas que Lacan procura elucidar, importando noções de outros discursos (imaginário, simbólico etc.) e propondo alguns conceitos próprios, porém sem pretender "superar" nem substituir Freud – senão destacar sua profundidade e vigência. Sua distinção entre causalidade biológica e causalidade psíquica (ou seja, entre instinto e pulsão, necessidade e desejo) sua teorização do Édipo como estrutura (não apenas como fase), sua revalorização da linguagem na teoria e na cura, marcaram e inspiraram seus melhores discípulos. É o que constatamos, por exemplo, em Hölderlin e a Questão do Pai (Laplanche, 1961) de J. Laplanche, O desejo e a perversão (Aulagnier et al., 1964) de P. Aulagnier e outros, assim como em "O Édipo na tragédia" (Green, 1969) de André Green.

Nesta etapa já é possível destacar dois traços grupais significativos. O primeiro é que os principais discípulos de Lacan leem-no com atitudes heterodoxas, expressam suas críticas e apontam limitações. Trata-se para eles de testar suas ideias e formulações, resgatando o que há de mais valioso e consistente, criticando as insuficiências e incoerências e, às vezes, também propondo soluções alternativas. Se considerarmos o assunto do pai, veremos que, já em 1959, em Hölderlin e a Questão do Pai (Laplanche, 1961), Jean Laplanche examina criticamente a teoria da forclusão do significante do nome-do-pai (apontando a inconsistência de formulá-la/pensá-la em particular). Em 1960, no Colóquio de Bonneval sobre "O Inconsciente", André Green discute o artigo de J. Laplanche e S. Leclaire (designados como representantes de Lacan para esse colóquio): contrapõe-se à redução do inconsciente à linguagem, e à assimilação da repressão primária à metáfora paterna. Também estabelece posições que serão fundantes do seu futuro trabalho:

Observemos que enquanto Freud faz intervir o desprazer como motor dinâmico da repressão, em Laplanche e Leclaire este papel é outorgado à etáfora paterna, ao Nome do Pai ou a seus atributos simbólicos significantes, ao falo. Esta interpretação do texto não entra em contradição completa com Freud; o que é vivido como desprazer é significado como expressão do proibido imposto pelo pai enquanto encarnação da Lei, à qual se submete a mãe. Mas desse modo descuida-se da importância, na intervenção da repressão, dos efeitos de impotência (ou seja, do afeto, no nível narcísico) que a obstrução do seu desejo suscita na criança … Se sustentarmos com Freud a contemporaneidade do inconsciente e da repressão, é necessário estabelecer correlativamente a da atividade simbólica e pulsional discernível desde o acionamento das defesas primitivas (transformação em seu oposto e retorno sobre a própria pessoa, próprias do narcisismo primário).

"Contrariamente à posição de Lacan, a nossa inclina-se a valorizar mais os aspectos econômicos e as organizações básicas da pulsão e procura, sem deixar de considerar o papel estrutural da repressão, tomar as manifestações do sujeito em seu conflito entre a positividade (pulsões) e negatividade (defesas) … A reconstrução de Freud por Lacan, em realidade, situa-se sobre bases radicalmente diferentes das do fundador da psicanálise. Lacan parece seguir um anseio pessoal, que é a busca de um status ontológico da psicanálise sobre fundamentos de uma coerência filosófica, a partir da qual todo um aspecto do freudismo precisa ser reinterpretado: aquele que usualmente qualifica-se como biologista. Apesar dos impasses aos quais aparentemente pode nos conduzir, parece-me indispensável conservá-lo, pois esta perspectiva representa a – quase única – tentativa de dar corpo à realidade psíquica sem substantivá-la.

A importância central das pulsões, das dimensões econômica e dinâmica, são também ressaltadas em "Narcisismo primário: estado ou estrutura?" (Green, 1967). Artigo que por sua "excessiva originalidade" causou o ataque de Lacan ao seu autor, no famoso Seminário, provocando o rompimento da relação de ambos. O eixo desse texto é uma articulação da teoria do narcisismo com o segundo dualismo pulsional freudiano (sintetizado na oposição entre um "narcisismo de vida" e um "narcisismo de morte"). Porém a questão do pai também está em jogo, em vários planos. Um desses planos, de extrema importância, é o papel do pai na constituição do narcisismo primário: entendido como o resultado combinado da "alucinação negativa da mãe" (constituinte da estrutura enquadrante do ego) e da identificação primária com o pai. O outro plano é o da relação entre a pulsão de morte (entendida como força não-sexual e processo de desligamento normal, não reduzida à destrutividade) e o pai morto4 (fundamento simbólico da separação, da renúncia, da dessexualização e dos ideais). Green postula sua articulação no "trabalho da pulsão de morte" (antecedente do que depois será o conceito de "trabalho do negativo") como "fundamento estrutural da desfusão pulsional – que permite a renuncia e inibição da meta pulsional para poder criar investimentos duradouros, permanentes" (Green, 1967).

Por outra parte o Colóquio de Bonneval (que reuniu e confrontou Green, Laplanche, Leclaire e C. Stein dentre outros analistas de diversas pertinências institucionais, também nos serve para ilustrar o segundo traço grupal importante: o relacionamento e a troca entre pares; a possibilidade de diálogo e debate entre gerações; colaboração e rivalidade fecundas; em resumo, o desenvolvimento de uma trama vincular horizontal, fraterna.

 

II. Depois de Lacan

Sabemos que no contexto histórico da luta pelo poder travada entre a SPP e a IPA, Lacan, em 1963, optou por fundar uma instituição própria. Não foi coincidência que ao mesmo tempo tenha sido promovido da posição de mestre à posição de Chefe de Escola. Lacan tornou-se a máxima autoridade de uma instituição (vertical e personalista) e de um Discurso identificado com seu Nome, isto é, do dialeto de um novo movimento pós-freudiano militante. Podemos dizer que do seu ensinamento surge uma vertente "ortodoxa" ou dogmática, o lacanismo, e uma vertente "heterodoxa" ou pluralista, o pós-lacanismo. Entre 1963 e 1968 a maioria dos principais discípulos de Lacan irá romper com ele. Almejando continuar a renovação freudiana, um dos motes do projeto é "Nem sem Lacan, nem só Lacan". Desta forma inauguraram um movimento pós-lacaniano, alicerçado em um pacto fraterno, geracional: um espaço antidogmático e transversal.

Nessa etapa (que vai se estender até final dos anos 1980) esquematicamente podemos distinguir duas fases ou vertentes da produção científica. Uma é mais crítica e desconstrutiva dos reducionismos teóricos e impasses clínicos do lacanismo. Permite a descoberta de limitações, transformando-as em novos interrogantes e problemas a serem investigados. Vem acompanhada pelo resgate de assuntos e conceitos da teoria freudiana que a leitura lacaniana excluía (e anatematizava): o afeto, o corpo, a história, o ego etc. A outra vertente, em parte, é de inovação e abertura (a novos autores, como D. Winnicott e W. Bion, a novos campos clínicos, especialmente nos limites do analisável).

O resultado foi tanto o surgimento de produções pessoais de altíssimo nível e grande originalidade, quanto a criação de um espaço de intercâmbio e trabalho coletivo. Exemplos do primeiro são as destacadas obras (consideradas hoje clássicos contemporâneos) como o "Vocabulário da psicanálise" (1967) de J. Laplanche e J. B. Pontalis ou "O discurso vivo. Uma teoria psicanalítica do afeto" (1973) de André Green. O trabalho coletivo destaca-se em revistas como "Topique" (dirigida por Piera Aulagnier com colaboração de F. Perrier e J. P. Valabrega), "Psychanalyse à l'Université" (dirigida por Laplanche junto a G. Rosolato e P. Fédida), "Études Freudiennes" (Conrad Stein), "Confrontation" (René Major) e especialmente a "Nouvelle Revue de Psychanalyse" ("nave insígnia", dirigida por J. -B. Pontalis junto a Anzieu, Rosolato e Green à qual se somou depois Masud Khan). Estas revistas pós-lacanianas (das quais também participam os principais intelectuais da sua geração, como J. Derrida, J. F. Lyotard, C. Castoriadis e G. Deleuze), a partir dos anos 1970, se tornam o motor e a vanguarda de uma produção psicanalítica de excelência. Nelas foram publicados, por seus colaboradores, os principais textos que viriam a constituir seus mais conhecidos livros: Sobre a loucura pessoal de Green, Entre o sonho e a dor de Pontalis, Em defesa de uma certa anormalidade de Joyce McDougall etc.

Naquela que ficou conhecida como sendo a vertente crítica da produção teórica pós-lacaniana, destaca-se inicialmente o esforço por reestabelecer a diferença entre o pensamento de Freud e o pensamento de Lacan. Um dos pontos de partida é recusar a fórmula "o inconsciente é estruturado como linguagem", reivindicando a tese freudiana da irredutibilidade do psiquismo à linguagem, em favor de uma concepção relativa à "heterogeneidade do significante psicanalítico" (Green, 1973) e consequentemente de uma teoria ampliada da representação. Os diversos autores pós-lacanianos enriquecem a teoria freudiana da representação elucidando e diversificando seus componentes (pictogramas, significantes de demarcação etc.), propondo novas lógicas ou modelos de funcionamento (o originário, o semiológico, o figurado, processos terciários etc.).

Quanto à questão do pai, a vertente pós-lacaniana procura desconstruir certos reducionismos lacanianos. Do processo de simbolização (heterogeneidade representativa) à ordem Simbólica (estruturada pelo "falo" enquanto significante universal da falta). Do complexo de Édipo à metáfora paterna. Do pai à função paterna, e deste, ao significante do nome-do-pai. Da castração freudiana (angústia e fantasma) à castração simbólica (limite estrutural e "insuperável" do devir subjetivo). Recupera-se a ideia freudiana de uma saída (ou mais além) do complexo de Édipo, graças ao reconhecimento da diferença sexual e da constituição do superego. É criticado o idealismo estruturalista que faz da "falta" um conceito mais metafísico do que metapsicológico: reduzindo toda simbolização da diferença à "castração", e fazendo do significante fálico seu único operador conceitual; e que deriva em uma exclusão do não verbal assim como em uma re-genitalização da teoria e da prática.

Laplanche aponta – não sem ironia – o deslizamento da própria teorização lacaniana para uma lógica fálico/binária e uma ideologia paternalista. Green assinala as consequências desta visão na prática lacaniana: a "técnica ativa" da sessão curta (ou seja, o poder ilimitado do analista) orientada pelo postulado da "castração simbólica" como meta da análise ("aceitar a castração"), deriva amiúde na exploração da transferência idealizada e em extravios sadomasoquistas (dos quais o livro Viagens Extraordinárias pela Translacânia, 1981, de F. Perrier, nos traz um testemunho desconsolador). Em contrapartida, como veremos a seguir, os pós-lacanianos interessaram-se desde cedo em introduzir e desenvolver o conceito de enquadre psicanalítico (através de Winnicott, Bleger e Baranger) entendendo-o como terceira instância e dispositivo simbolizante, fundamento e condição que possibilita o método e processo analíticos.

 

Green pós-lacaniano: novas fronteiras da clínica e da teoria

A obra de André Green ilustra a vertente da produção pós-lacaniana de abertura pluralista, investigação clínica de fronteiras e inovação conceitual. Suas investigações centram-se no estudo das situações e estruturas nos limites do analisável. Resultam na construção de um modelo teórico específico do funcionamento limítrofe, articulando as noções de narcisismo de vida / narcisismo de morte, o limite como conceito e a ideia de "loucura pessoal". Assim, distingue e propõe uma estrutura clínica que nem Freud nem Lacan reconheceram como tal (apesar de a obra de Freud conter intuições e aproximações importantes, enquanto o modelo estruturalista lacaniano – no qual a psicopatologia prima sobre o pensamento clínico – se inclina a excluir a própria possibilidade de sua existência). Ao mesmo tempo em que revê e problematiza a metapsicologia da subjetivação, simbolização e do complexo de Édipo.

Como parte de uma primeira aproximação panorâmica desta teorização das estruturas limítrofes, digamos que Green postula uma "fronteira dupla" ou frente de conflitos (simultâneos e escindidos): por um lado, um conflito pulsional entre o ego e o id; por outro lado, um conflito identificatório, entre o ego e o (os) objeto(s). Nessa encruzilhada o ego se vê especialmente afetado no nível da sua estrutura narcísica e da sua capacidade de simbolização (brancos de pensamento e sentimentos de vazio são duas das suas expressões sintomáticas). Em uma trama triangular falida, o objeto incestuoso do desejo inconsciente, o objeto da identificação primária e o escoramento egoico são insuficientemente diferenciados. Como consequência disso, a angústia de castração duplica-se em angústias de separação e intrusão, provocando um funcionamento paradoxal. As paixões (com fixações eróticas pré-genitais e funcionamento mais próximo ao id que ao inconsciente) têm um papel fundamental, que diferencia a "loucura pessoal" das psicoses. Diferentemente das neuroses, as paixões possuem em maior peso pulsões destrutivas e mecanismos de defesa primitivos (desmentida, atuações, desinvestimento etc.). Podemos dizer que – em oposição à perspectiva anglo-saxã, que privilegia as relações de objeto e a destrutividade – afirma-se a dimensão traumática da sexualidade, assim como também a consideração da potencialidade traumática do objeto (o "objeto-trauma") em relação com o narcisismo: oscilando entre o desejo do um e do zero, em suas vertentes positiva (de vida) e negativa (de morte).

A seguir, ocupar-me-ei mais detalhadamente de algumas contribuições relativas ao tema do pai, da mãe e do complexo de Édipo. É importante lembrar que Green recusa a ideia de uma relação dual ou diádica (mãe-bebê) como modelo teórico e clínico (dominante na psicanálise anglo-saxã). "Todo sujeito, seja qual for sua estrutura psicopatológica, alcança o Édipo. A centralidade do Édipo está dada pelo fato de a criança, antes de ter sua própria experiência, ocupar um lugar no Édipo dos seus pais. Além do mais, todo sujeito, como disse Freud, foi, em germe, um Édipo na sua infância" (Green, 1981a). Por mais evidente que seja que a relação principal do bebê é inicialmente com a mãe, a situação é triangular: o pai inscreve-se como figura de ausência. "Seu papel essencial na estruturação da relação mãe-criança está relacionado com o lugar que ocupa o pai na mente da mãe. Mais especificamente, depende de como é colocado a respeito dos fantasmas edípicos da sua própria infância" (Green, 1981a). Referindo-se à clínica das estruturas não-neuróticas, nosso autor argumenta que a questão principal não é a passagem do dois ao três, da díade à tríade, senão a transição do estado de terceiridade potencial (enquanto o terceiro está presente apenas na mente da mãe) à terceiridade efetiva, interiorizada e estruturante.

Sobre a mãe, os escritos de Green revelam algumas insuficiências do modelo lacaniano do Édipo, que – segundo o esquema do estádio do espelho – concebe uma mãe sempre ativa, fusional, sedutora, erótica (no qual o conflito edípico praticamente é reduzido às formas e graus de separação/repressão da relação incestuosa operada pelo pai). Em contraste (e complementarmente), Green desenvolve, por um lado, uma concepção de mãe que a eleva também ao patamar de função: existe uma função materna estruturante do psiquismo (relacionada ao que ele denomina "função objetalizante"). Suas falhas são as que se revelam, por exemplo, na inconsistência dos limites da estrutura enquadrante do ego afetado por um trauma narcísico. Isto é o que Green teoriza e exemplifica através da figura paradigmática da "mãe morta": núcleo da "série branca", do vazio e desinvestimento, do luto impossível, da depressão invisível, do irrepresentável e da alucinação negativa. Figura paradigmática que (como ampliaremos daqui a pouco), além de seu aspecto "materno" ou "arcaico", se deixa conceber como determinada por uma paixão incestuosa e inscrita na triangularidade. (Triangularidade que – como também veremos – corresponde mais à fantasia da cena primária do que a do complexo de castração).

Vamos nos ocupar agora das questões do pai e a terceiridade. Em 1981 André Green publicou "Freud, Édipo e nós", um artigo fundamental no qual distingue o Édipo enquanto complexo, estrutura e modelo. Enquanto modelo, propõe a ideia do Édipo como um triângulo aberto com o terceiro substituível, e introduz a noção de "outro do objeto" (primeiro "terceiro" objeto, que pode ou não ser o pai) apontando a necessidade de um esquema triádico originário. Ou seja, que a função terceirizante não é atribuída exclusivamente ao pai: o terceiro entre a mãe e o filho pode ser um irmão, um tio, uma figura da infância da mãe. Este outro do objeto poderá assumir ou não a "função paterna" edípica – alternativas evidentemente grávidas de consequências. Consequentemente, propõe o reconhecimento de organizações triangulares, nas quais se inscreve um terceiro efetivo, onde existe separação primária e alteridade, mas não uma estruturação ou organização edípica (com reconhecimento estável da diferença entre sexos e de gerações).5

A fantasia da cena primária (como esquema de terceiro excluído) é teorizada como matriz triangular do psiquismo, anterior à fase Edípica, sobre a qual deverá articular-se o complexo de castração. A cena primária e o complexo de castração são postulados como dois núcleos da estrutura do complexo de Édipo. Das relações entre esses dois polos – montagem/integração – dependerá a posição do sujeito. Desta forma procura-se, por um lado, construir uma teoria da simbolização não "falocêntrica", capaz de distinguir e articular as noções de ausência, falta, separação, perda e castração; e, por outro lado, elucidar a dimensão estrutural e histórica do Édipo, evitando tanto a teologia negativa de uma estrutura simbólica transcendente quanto a cilada geneticista da relação dual.

 

A mãe morta

Este entendimento do Édipo como triângulo aberto com o terceiro substituível permeia e se desenvolve no artigo "A mãe morta" (Green, 1981b). É pouco lembrado que este artigo foi introduzido com o objetivo de estabelecer uma teoria estrutural da angústia, portanto, da simbolização. Uma teoria que, neste escrito, distingue e articula a "angústia vermelha", que corresponde à série da castração e uma "angústia branca", que corresponde à série do narcisismo primário. Escrito iluminador da triangularidade no funcionamento não-neurótico, que estabelece uma relação do trauma narcísico com o fantasma da cena primitiva: a impossibilidade de realizar o luto da mãe morta é inseparável da impossibilidade de renunciar ao objeto incestuoso (conservado através de um "amor gelado").

Vamos dar a palavra ao referido artigo: "Na referida estrutura, a incapacidade para amar não obedece à ambivalência, ou seja, à sobrecarga de ódio, senão que o primeiro é o amor gelado pelo desinvestimento (perante o desinvestimento inexplicável e traumático realizado pela mãe até então vital, que de repente parece "ausente" em sua relação com o sujeito). O objeto (primário, incestuoso) está em um estado de hibernação, conservado a frio. O sujeito se deparará com sua incapacidade de amar porque seu amor continua hipotecado à mãe morta … Um preconceito habitual nos leva ao que é mais profundo, ao seio primordial. É um equívoco; não está ali o fantasma fundamental. Não é atacando a relação oral que se extirpa o núcleo do complexo da mãe morta. A solução está no protótipo do Édipo, na matriz simbólica que lhe permite construir-se. O complexo da mãe morta revela então seu segredo: refiro-me ao fantasma da cena primária."

"Se o Édipo continua a ser a referência estrutural indispensável, suas condições determinantes deverão ser procuradas no fantasma isomórfico do Édipo, o da cena primária (fantasma triangular, com terceiro excluído, mas sem a dupla diferença dos sexos e das gerações do Édipo). Insisto em que estou referindo-me a um fantasma, não me refiro aqui à posição "realista" exposta por Freud no Homem dos Lobos. O que interessa no fantasma da cena primitiva não é o fato de tê-la testemunhado, e sim, ao contrário, que ela aconteceu na ausência do sujeito … Que papel desempenha o fantasma da cena primária no caso que nos ocupa? Por uma parte, o sujeito experimenta a medida da distância infranqueável que o separa da mãe. Esta distância faz com que experimente a ira impotente por não poder estabelecer o contato, no sentido mais estrito, com o objeto. Por outra parte, o sujeito mesmo sente-se incapaz de acordar esta mãe morta, de reanimá-la, de infundir-lhe vida. Desta vez seu rival não é o objeto terceiro que monopoliza a mãe no luto que ela está vivendo; ele próprio se converteu no terceiro, porém, não apto a dar-lhe o prazer de viver. Aí encontra-se alojada a situação insuportável que reativa a perda da onipotência do narcisismo e desperta um sentimento de invalidez libidinal incomensurável … Entre as consequências desta situação gostaria de destacar a identificação alternante com as duas imagos: com a mãe morta, quer permaneça na sua posição inalterável, quer se entregue a uma excitação erótica do tipo sadomasoquista. E com o pai, agressor da mãe morta (fantasma necrófilo) ou reparador através da relação sexual. O mais frequente é que o sujeito alterne conforme o momento entre uma ou outra dessas duas identificações".

 

A loucura pessoal: paixões de vida, paixões de morte

Devemos completar o acima citado com a perspectiva "programática" exposta em "As paixões e seus destinos". Nesse escrito (que abriu e definiu o 17° número da Nouvelle Revue de Psychanalyse, publicado em 1981) lemos: "Revogando o afeto, Lacan tende a matematizar a psicanálise, excluindo não apenas o mais interessante campo da clínica atual senão, inclusive, o das neuroses. É preciso proceder em sentido inverso. Voltar ao modelo de base, repensálo a partir dos casos fronteiriços para reencontrar ali o que Freud excluiu da neurose: a loucura. Desde esse novo conjunto de bordas imprecisas poderemos olhar em duas direções: para o lado das estruturas neuróticas e para o lado das estruturas psicóticas".

E, conclui: "O porvir da teoria, da clínica e da técnica psicanalíticas não passa pela substituição da problemática freudiana centrada em torno da castração por uma problemática moderna na qual outros referentes possam estar envolvidos (despedaçamento, fragmentação etc.), e sim pela articulação dessas duas problemáticas. Para construir uma ponte entre uma e outra, parece-me indispensável reestabelecer a loucura ali onde desde sempre seu lugar tem sido reconhecido: no coração do desejo humano".

Green opõe a "loucura pessoal" à psicose. Ambas denotam o avanço das pulsões sobre o ego. Na psicose há um predomínio das pulsões destrutivas, dirigidas contra o próprio psiquismo como último recurso para conjurar uma relação impossível com o objeto (e suas pulsões). Na "loucura pessoal" postula-se o predomínio das pulsões sexuais. É o reino da paixão: o objeto torna-se único e insubstituível (ainda que continue a ser deslocado e metafórico em relação ao objeto primário incestuoso). "O que é, afinal de contas, a força das pulsões ou a natureza das fixações? Não outra coisa que a intensidade da paixão e o apego a seu objeto. E se for preciso remeter o todo à sexualidade infantil, os objetos da paixão deverão ser procurados junto aos objetos parciais – tomados sobre o corpo da mãe ou do sujeito – ou junto aos objetos totais – as imagos parentais. O que são as angústias arcaicas das quais os autores modernos falam? São o efeito das paixões narcísicas lá onde não é possível nenhuma diferenciação entre ego e objeto, lá onde amor e destrutividade afetam ao mesmo tempo o ego e o objeto. São paixões no sentido estrito, amores que provocam um nível de sofrimento tal que obrigam o sujeito a defender-se delas através de um sacrifício alienante".

Ao falar em loucura, Green tem em mente "Neurose e psicose" (1924), onde Freud descreve as distorções em sua unidade, que o ego se vê obrigado a permitir, fissurando-se, escindindo-se, para resolver um conflito, acrescentando que talvez se deva entender que as extravagâncias e loucuras dos homens são para o ego o que as perversões são para a sexualidade. Propõe estudar os efeitos da sexualidade sobre os modos de pensar e funcionar do ego, como a bi-lógica que descobriu no Homem dos Lobos em torno de seu complexo de Édipo.

O autor de "O pensamento clínico" propõe que a loucura do Homem dos Lobos está atrelada a seu conflito bissexual e se relaciona com sua fixação à cena primária e sua ira por ver-se excluído do gozo dos pais, subtendida pela impossibilidade de decidir entre o desejo de gozar apaixonadamente como a mãe (pelo ânus) ou como o pai (com o pênis). Por sua vez, esta loucura erótica se desdobra em uma loucura por ciúmes: não sabe se deseja destruir a mãe ou o pai. Disso surgiriam as oscilações afetivas nos dois planos: erótico e agressivo. Por outra parte, sua psicose residiria na forclusão, em seu desejo de "não saber nada disso" (Lacan). Porém, mais ainda, residiria em seu duplo funcionamento (escindido) afetivo e intelectual: contradição oscilante dos afetos, lógica impecável do raciocínio. Em sua dupla lógica: uma afetiva, que tolera a coexistência dos contrários sem precisar escolher, e uma outra, que funciona conforme o princípio do terceiro incluído.

 

O enquadre: linguagem e terceiridade

Na trilha do Édipo e da terceiridade na obra de André Green, devemos considerar, ainda que brevemente, um importante desenvolvimento sobre o enquadre e a linguagem. Em A linguagem na psicanálise (Green, 1995a), seu autor apresenta uma elucidação metapsicológica dos fundamentos da prática analítica. Constitui um verdadeiro marco no percurso intelectual do seu autor, que "aspira a que esse trabalho inscreva-se como um Cenotáfio de Jacques Lacan". Como trabalho de filiação, constitui um ponto de inflexão – de continuidade e ruptura – com o autor do Discurso de Roma, que abre o caminho para uma obra com nome próprio.

O enquadre é denominado "aparelho de linguagem", pois seu fim é a transformação, a mais radical possível, da produção psíquica em linguagem através da associação livre. Ao ser sobre-investida pela transferência, a linguagem funciona como mediadora para o que não é linguagem, para o inconsciente. A palavra muda de estatuto e se transforma ela própria em um objeto singular, "terceiro", nascido da comunicação entre analista e analisando: é o objeto analítico (objeto discursivo, constituído por representações e afetos que tecem a transferência e a contratransferência). Enquanto terceiro elemento (entre analisando e analista), é definido como matriz de simbolização transicional e terciária: "o enquadre une as três polaridades, a do sonho (narcisismo), a dos cuidados maternos (da mãe conforme Winnicott), e a da proibição do incesto (do pai conforme Freud). A palavra é, então, uma simbolização da estrutura inconsciente do complexo de Édipo, que o aparato psicanalítico (o enquadre) faz falar". "O enquadre psicanalítico contém em si a possibilidade de fazer surgir o que denominamos o outro do objeto – segundo uma teoria da triangulação generalizada com terceiro substituível". Por isso se postula que "a palavra analítica desenluta a linguagem".

Na secção "A ordem simbólica: os processos terciários", a questão central da simbolização é abordada. "Lacan equivocou-se ao relacionar o simbólico com a linguagem, já que é com a psique que em realidade o simbólico está consubstancialmente relacionado" – afirma Green. E continua: "O que Lacan tentou fazer foi superar Freud na conceitualização que este último ensaiou com a oposição dos processos primários e secundários. Porém semelhante "superação", através do Simbólico, excluiria não apenas o significado como também o afeto. Nós propomos uma solução diferente. Postulamos a existência de mecanismos de relação entre processos primários e secundários circulando nos dois sentidos: chamamo-los processos terciários e os atribuímos ao pré-consciente da primeira tópica e ao ego inconsciente da segunda. A ordem simbólica já não se baseia na linguagem, mas em um conjunto de ligamentos-desligamentos-religamentos que são operados nas três instâncias do aparelho psíquico. Os processos terciários constituem a ponte entre o aparelho da linguagem e o aparelho psíquico".

 

III. Mais além de Lacan: a psicanálise contemporânea

Considerar uma etapa "Mais além de Lacan" significa que Lacan deixou de ser uma referência (positiva ou negativa) central. Significa também ir mais além da crise dos modelos pós-freudianos. É a fase na qual o trabalho de filiação deixa de referir-se predominantemente ao passado para definir-se por sua projeção no futuro: o pós-lacanismo vem a ser a psicanálise contemporânea, projeto de um novo paradigma freudiano, pluralista, complexo.

Esquematicamente a matriz disciplinar contemporânea (na qual, seja dito de passagem, as correntes francesa e argentina coincidem) baseia-se em pelo menos quatro eixos: 1) Uma leitura pluralista de Freud (que Jean Laplanche define como crítica, histórica e problemática), que revaloriza a metapsicologia e o método freudianos como fundamento irredutível da psicanálise; 2) Uma apropriação crítica/criativa das principais contribuições pós-freudianas (especialmente de Lacan, Winnicott e Bion); 3) Uma extensão da clínica aos desafios do tratamento de quadros predominantemente não-neuróticos; 4) Um modelo clínico terciário (transferência, contratransferência, enquadre) escorado no enquadre interno do analista. O vocabulário freudiano se estabelece como "língua franca" e "common ground" desse espaço ou matriz disciplinar que não está definido por um novo discurso militante, mas por um amplo projeto de investigação, aberto às novas gerações.

Os autores pós-lacanianos escoraram-se nessa matriz contemporânea geral, à qual, por sua vez, enriqueceram e desenvolveram ao produzir suas obras pessoais "da maturidade". Nelas apresentaram muitas de suas originais e sistemáticas conceitualizações, uma vez que elaboraram uma síntese ou versão pessoal do modelo comum. Deram assim testemunho do valor desta como espaço potencial e plataforma para a imaginação teórica e clínica dos psicanalistas atuais. É o caso dos Novos fundamentos para a psicanálise de Laplanche, de Do eu-pele ao eu pensante de Anzieu, Teatros do eu de J. McDougall, e de O Trabalho do negativo de A. Green. Todas propostas de uma psicanálise que concebe e opera com um modelo do psiquismo complexo, fundado na articulação do intrapsíquico e do intersubjetivo; na qual a simbolização enquanto função básica do psiquismo está co-determinada pelas relações dinâmicas entre a força e o sentido, a representação e o afeto, a estrutura e a história; na qual se introduz a lógica da heterogeneidade, que põe ênfase no processual e poiético (neogênese, criação).

 

Green contemporâneo: a terceiridade e o trabalho do negativo

Nesse contexto, a conceitualização de Green sobre o pai e sobre o Édipo aprofunda-se e desdobra-se em duas linhas centrais de investigação, talvez as mais originais e distintivas dessa etapa: a terceiridade e o trabalho do negativo. Por motivos de tempo e espaço, estas serão apenas mencionadas, um pouco por cima, em relação ao tema do pai.

O trabalho do negativo se ocupa daquilo que diz "não" à descarga pulsional, do que se opõe à destrutividade e à sexualidade, abrindo espaço para um trabalho psíquico de transformação. Não apenas em relação à proibição e à lei, a figura paterna aparece como uma das fontes primárias do trabalho do negativo: pois a relação primária com a imagem do pai (em contraste com a relação direta com o corpo da mãe) é uma relação indireta, mediada pela representação, pela significação (après-coup) que tece os signos da sua imagem e sua ausência. Existe, então, uma linhagem paterna do trabalho do negativo que vai desde a identificação até a sublimação, passando pela função do ideal: processos e funções que permitem renunciar ao objeto, mudar ou inibir a meta pulsional, criar satisfações e objetos substitutos; em resumo: que permitem ampliar a liberdade do sujeito em relação às pulsões e ao objeto.

Aprofundando-se em sua "teoria da triangularidade generalizada com terceiro substituível", Green adota (de Charles Pierce) a noção de terceiridade como matriz triádica do sentido e da simbolização. A Terceiridade é, mais do que uma noção, um eixo conceitual ou um meta-conceito. Assim o descreveu o autor das Orientações para uma psicanálise contemporânea (Green, 2002): "Aprofundando-me nas reflexões de Lacan, dei-me conta de que as relações triangulares tinham sido arbitrária e negligentemente restringidas ao complexo de Édipo. Foi, então, quando a obra de C. S. Pierce me trouxe uma luz decisiva, através da sua noção de relações triádicas que desemboca no conceito mais geral de terceiridade. Foi assim que tentei aplicá-la a ideias que havia expressado sem referir-me a uma teoria em particular, e a casos que não havia analisado sob esse ângulo". Entendendo-o como eixo conceitual, Green fala de "configurações da terceiridade", nas quais podemos observar a natureza triádica das relações. Nesse marco podemos colocar triângulo Edípico (Freud), a tríade Imaginário-Simbólico-Real (Lacan) e os fenômenos transicionais (Winnicott).

Para concluir podemos dizer que, investigando o complexo de Édipo à luz da clínica nos limites do analisável, a psicanálise contemporânea desenvolveu um modelo teórico-clínico terciário. Nesse modelo desempenham um papel essencial determinadas ideias, algumas das quais temos esboçado até aqui, e outras que poderemos mencionar agora. Por exemplo: a triangulação (aberta com terceiro substituível), estruturante de todas as relações humanas; a terceiridade como matriz primordial outorgante de sentido e subjetivação; a representação, função de base do psiquismo, fundada na estrutura enquadrante como terceira dimensão entre a pulsão e o objeto; o esquema triádico ligamento/desligamento/ religamento como fundamento econômico-dinâmico da simbolização; o objeto analítico, terceiro objeto formado pela relação analítica; o enquadre, terceiro elemento, de estatuto transicional; o tripé do processo analítico: enquadre / transferência / contratransferência; o enquadre interno do analista, fiador da terceira dimensão, analítica, quando o campo analítico se inclina a uma dinâmica dual, bidimensional; os processos terciários, núcleo do trabalho psíquico do analista.

Ainda resta muito a se dizer sobre nosso assunto. Especialmente foram abreviadas as contribuições desta última e fundamental etapa. Em vez de ver isto apenas como uma limitação circunstancial da minha exposição, gostaria também de aproveitar para evocar o caráter inacabado e aberto do modelo contemporâneo. Pois como André Green, entre outros autores, nos faz ver, a apaixonante aventura de construir uma nova psicanálise freudiana contemporânea, inaugurada pelos movimentos pluralistas, está em curso. Temos a fortuna de estar convidados a participar dela. Concebê-la (e praticá-la) como uma matriz disciplinar aberta, como um novo e renovador programa de investigação, é talvez uma das melhores maneiras de inscrevermo-nos subjetivamente nela e de enriquecê-la coletivamente.

 

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Endereço para correspondência
Fernando Urribarri
Av. Callao 1960, 4º
1021-Recoleta, Buenos Aires
E-mail: zonaerogena@yahoo.com

Recebido em: 10/6/2012
Aceito em: 27/6/2012

 

 

Tradução: Abigail Betbedé
Revisão: Beatriz Helena Peres Stucchi e Suzana Kiefer Kruchin
1 O artigo é uma versão desenvolvida a partir da Conferência de abertura do Colóquio, "O pai na psicanálise contemporânea", realizada em Paris, em 2007.
2 Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica Argentina, professor de pós-graduação da Universidade de Buenos Aires, "Maitre de conference associé" na Universidade de Paris X.
3 Em UK o Middle-Group de D. W. Winnicott inaugurou um espaço independente ao militantismo annafreudiano e kleiniano. Na Argentina a renovação freudiana pluralista foi impulsionada na Asociação Psicanalítica Argentina, por J. Mom, W. Baranger e M. Baranger.
4 O estatuto simbólico do "Pai morto" precisa ser instituído pelo pacto fraterno. Assim, à lei, prefere-se – teórica e ideologicamente – a visão freudiana, essencialmente igualitária e democrática; em lugar da derivação quase religiosa da associação da Lei com o nome-do-pai" e o grande Outro.
5 Um exemplo apropriado encontra-se na descrição da "psicose branca" ("L'efant de Ça", Green& Donnet, 1971): a estrutura do complexo de Édipo tem a forma de uma "bi-triangularidade", na qual o sujeito se relaciona com dois objetos idealizados, um deles absolutamente bom (e impotente) e outro absolutamente mau (onipotente). "Neste quadro psicótico sem psicose aparente as relações do sujeito não são duais mas sim triangulares. Contudo, o que diferencia esses dois objetos não são as distinções de sexo nem suas funções. A diferença está dada por dois critérios: por um lado, o que é bom e o que é mau, e por outro lado, a inexistência (ou vacuidade) e a presença dominante. O bom se torna inacessível, e o mau é onipresente e invasivo". É uma triangularidade fundada em uma relação entre o sujeito e dois objetos simetricamente opostos. Daí a expressão bi-triangulação. Ambos produz.