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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.47 no.87 São Paulo dez. 2014

 

PSICANÁLISES POSSÍVEIS

 

Rupturas e continuidades: uma discussão sobre a vida, a obra e o legado do psicanalista Ronald Fairbairn1

 

Ruptures and continuities: a discussion about the life, work and legacy of the psychoanalyst Ronald Fairbairn

 

Rupturas y continuidades: una discusión sobre la vida, obra y legado de Ronald Fairbairn

 

 

Teo Weingrill Araujo

Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. São Paulo. teoaraujo@hotmail.com

 

 


RESUMO

O presente artigo se propõe a discutir o modo como o psicanalista escocês Ronald Fairbairn se situa na tradição psicanalítica. Para isso, chama a atenção para a condição de relativo isolamento em que ele produziu a sua obra e para a sua reivindicação insistente de ser o fundador de um novo modelo teórico. Sendo Fairbairn um autor que se propõe a discorrer sobre as bases esquizoides da personalidade, é possível afirmar que, em certa medida, a sua posição na tradição psicanalítica mimetiza o próprio objeto sobre o qual se propõe a discorrer. Como nos ensina Fairbairn, a esquizoidia se caracteriza justamente pelo isolamento, pela distância que se impõe em relação aos outros, pela reivindicação da posse exclusiva de um objeto interno secreto e original. No final do artigo, analisamos brevemente o modo como a obra do autor vem sendo utilizada pelos psicanalistas contemporâneos.

Palavras-chave: Ronald Fairbairn, teoria psicanalítica, relações de objeto, esquizoidia


ABSTRACT

This article aims to discuss how the Scottish psychoanalyst Ronald Fairbairn is situated on the psychoanalytic tradition. The article calls attention to the condition of relative isolation in which he produced his work and to his insistent claim of being the founder of a new theoretical model. As an author who intends to discuss schizoid factors in the personality, it is clear that, to some extent, his position in the psychoanalytic tradition itself mimetizes the object which he proposes to discuss. Fairbairn teaches us that schizoidism is characterized precisely by isolation, by the distance between the 'I' and others and by the subject's claim of being the owner of a secret and original internal object. At the end of the article, we briefly review how contemporary psychoanalysts are using the author's work.

Keywords: Ronald Fairbairn, psychoanalytic theory, object relations, schizoidism


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo discutir el lugar que el psicoanalista escocés Ronald Fairbairn ocupa en la tradición psicoanalítica. Para ello, llama la atención sobre la situación de relativo aislamiento en que produjo su obra y su insistente reivindicación en ser el fundador de un nuevo modelo teórico. Fairbairn argumenta sobre la existencia de factores esquizoides en la base de la personalidad, y podríamos decir que, en cierta medida, su posición dentro de la tradición psicoanalítica imita el propio objeto que propone discutir. Como nos enseña el autor, la esquizoidía se caracteriza, precisamente, por el aislamiento, por una distancia que prevalece en relación con los otros y por el reclamo de la posesión exclusiva de un objeto interno secreto y original. Al final del artículo, se revisa brevemente cómo la obra del autor viene siendo utilizada por los psicoanalistas contemporáneos.

Palabras clave: Ronald Fairbairn, teoría psicoanalítica, relaciones objetales, esquizoidía


 

 

Introdução

William Ronald Dodds Fairbairn, psicanalista que viveu de 1889 a 1965, foi o autor de uma obra densa, original e que, por muitos anos, permaneceu pouco conhecida. O autor residiu durante toda a vida em Edimburgo, na Escócia, e, portanto, produziu a sua obra em relativo isolamento, distante dos principais centros de formação psicanalítica da época.

Fairbairn propôs que a estrutura de personalidade se constitui em resposta às falhas e às faltas inevitáveis dos objetos primordiais durante o período de dependência inicial. Assim, para o autor, a personalidade se funda necessariamente em bases esquizoides.

Um aspecto que pretendemos destacar é que, em certa medida, sua teoria mimetiza o próprio objeto sobre o qual pretende discorrer. Como nos ensina Fairbairn, a esquizoidia se caracteriza pelo isolamento, pela distância que se impõe em relação aos outros e pela reivindicação da posse exclusiva de um objeto interno secreto e original. De alguma maneira, como veremos a seguir, há semelhanças entre a condição esquizoide e o modo como Fairbairn se situa na tradição psicanalítica.

No prefácio do livro de Fairbairn (1952), Ernest Jones faz a seguinte afirmação:

A posição do dr. Fairbairn no campo da psicanálise é especial e de grande interesse. Viver a milhas de distância dos seus colegas mais próximos, com os quais ele quase não se encontra, tem grandes vantagens e algumas desvantagens. A principal vantagem é que, ao não ser submetido a distrações ou interferências, ele se tornou capaz de se concentrar inteiramente nas suas próprias ideias à medida que elas se desenvolviam de sua experiência cotidiana de trabalho. Essa é uma situação que conduz à originalidade, e a originalidade do dr. Fairbairn é indiscutível. Por outro lado, abrir mão do valor das discussões com os colegas de trabalho requer poderes de autocrítica muito especiais, porque esses colegas são capazes de apontar para os aspectos negligenciados pelo trabalhador solitário ou de atenuar o risco de adotar um curso de pensamento unilateral. (p. v)

Podemos supor de quais interferências e distrações Fairbairn estava livre ao viver a milhas de distância de seus colegas mais próximos. As relações grupais são sempre marcadas por tentativas de cooptação, relações de fidelidade, receios, ataques, cobranças. Certamente, as controvérsias entre o grupo de Klein e o grupo de Anna Freud, que atingiram o seu ápice ao longo da década de 1940, tornavam esses movimentos grupais ainda mais pronunciados.

Nosso autor valorizava muito a sua condição de isolamento. Uma prova disso é que nos seus textos ele quase só citava autores da psicanálise quando ia discordar deles. As milhas de distância se veriam perigosamente diminuídas caso ele fizesse um esforço de identificar os seus pontos de aproximação com os seus pares? Proclamar-se como fundador de um novo modelo não é só um outro modo de se manter a milhas de distância das relações de filiação?

Como bem observou Jones, o fato de estar, metafórica e concretamente, a milhas de distância de seus interlocutores criou para o nosso autor um lugar bem específico dentro da tradição psicanalítica. A nosso ver, Jones nomeou o caráter paradoxal dessa condição. Fairbairn gozava de uma liberdade muito especial, protegida das interferências e distrações. Isso fez dele um autor inegavelmente original. Por outro lado, as interferências e distrações, além de atrapalharem, também podem contribuir para desfazer a coerência excessiva do pensamento unilateral. Em outros termos, os interlocutores podem cumprir a função de fazer um chamado de volta à vida, com suas contradições, incoerências, imprevisibilidades e seus aspectos indizíveis.

Vemo-nos imerso em um labirinto de espelhos quando constatamos que Fairbairn, em seu isolamento, se dedica a discutir a condição esquizoide, que se caracteriza justamente pelas milhas de distância que se impõem entre eu e o outro, entre interno e externo. Nos termos do próprio Fairbairn, é essa distância que cria as condições para que o pensamento unilateral, com seus objetos absolutos e imutáveis, possa florescer à vontade. A condição esquizoide é aquela em que a vida, com suas riquezas e contradições, permanece constantemente negligenciada.

No presente artigo, apresentaremos brevemente a obra de Fairbairn e o contexto em que ela foi produzida. Em seguida, discorreremos sobre o modo como o autor concebe o processo de constituição e de consolidação das bases esquizoides da personalidade a partir da leitura de seus textos teóricos mais importantes, escritos ao longo da década de 1940. No final do artigo, propomo-nos a analisar o modo como as teorizações do autor vem repercutindo na psicanálise contemporânea. Quanto a isso, vale ressaltar que uma especificidade interessante do legado deixado pelo autor é que, como ele quase não deixou seguidores, foram congregados em torno de sua obra psicanalistas com perspectivas muito distintas, que chegaram até Fairbairn por conta de interesses também muito distintos. Então observamos esse interessante paradoxo em que o autor que sempre trabalhou em relativo isolamento e se propôs a ser o fundador de um novo modelo teórico agregou em torno de si psicanalistas das mais diversas matizes teóricas.

 

Vida e obra

Nascido em uma família de classe média na Escócia, filho único de pai escocês e de mãe inglesa, o menino Fairbairn passou a infância e a adolescência às voltas com os rígidos princípios religiosos de seu pai e sob as asas controladoras de sua mãe.

Quando ia completar 18 anos, nosso autor ingressou na faculdade de filosofia com o intuito de se tornar clérigo da Igreja Presbiteriana, a religião de seu pai. Depois de concluir o curso na Universidade de Edimburgo, ele se alistou como soldado na Primeira Guerra Mundial, para desespero de sua mãe.

Essa experiência de se ver longe dos pais durante a guerra foi um importante divisor de águas no percurso de Fairbairn. Depois dela, ele abandonou a pretensão de se tornar pastor e foi cursar medicina, já com o intuito de se tornar psicoterapeuta.

Em meados da década de 1920, após concluir o curso de medicina, Fairbairn começou a atuar como assistente na cadeira de psicologia da Universidade de Edimburgo, como psicanalista em um consultório particular e em hospitais.

Vale destacar a situação do nosso autor. Distante das principais instituições psicanalíticas da época, ele inventou para si a decisão de se tornar psicanalista. A partir da percepção de que as principais correntes de psicologia não eram capazes de discutir alguns temas centrais para a vida humana, ele resolveu se aproximar da teoria freudiana. Em meio a isso, começou a fazer análise com Connell, um psicanalista australiano que estava morando na Escócia.

No final da década de 1920, Fairbairn empreendeu um estudo minucioso da obra de Freud. Nessa época, ministrou cursos na universidade sobre textos de Freud publicados poucos anos antes, como o "Ego e o Id", e defendeu sua tese de doutorado em medicina, na qual realizou um estudo comparativo entre o conceito de dissociação, tal como proposto por Janet, e o de repressão, da forma como proposto por Freud.

Em 1931, nosso autor viajou a Londres para apresentar o caso de uma paciente atendida por ele para uma plateia em que estavam presentes, entre outros, Ernest Jones, James Strachey e Melanie Klein. A partir daí, ele foi aceito como membro associado da British Psychoanalytic Society mesmo sem ter conseguido, por conta da distância, cumprir o programa de formação usual.

Ao longo da década de 1930, Fairbairn esteve profundamente envolvido com as questões de sua época, como os totalitarismos que começavam a varrer a Europa, a ameaça de eclosão de mais uma guerra e o comunismo. A maior parte dos seus textos foi escrita para ser lida em palestras voltadas a públicos diversos, compostos por professores, profissionais de saúde e outros, e versava sobre vários temas socialmente relevantes com muita vivacidade. Em alguns desses textos, Fairbairn (1994a/1934, 1994b/1938, 1994c/1938) escreveu sobre as experiências de criar e de fruir a arte, além de ter dedicado alguma atenção à experiência do brincar. Por conta das posições muito avançadas do autor sobre esses temas, é possível afirmar que ele é o precursor de uma discussão que seria retomada por Winnicott alguns anos mais tarde.

Na primeira metade da década de 1930, Fairbairn trabalhou na Clínica para Crianças e Jovens da Universidade de Edimburgo, onde teve a oportunidade de atender muitas crianças que tinham sido submetidas a abusos sexuais e outros tipos de violência. Essa experiência fez com que ele se tornasse um profundo conhecedor dos diversos recursos defensivos dos quais as crianças lançam mão para tentar lidar com as experiências traumáticas.

A década de 1930, que foi marcada por tantas efervescências para o nosso autor, terminou de modo turbulento. No contexto mais amplo, a década terminou com a eclosão da Segunda Guerra Mundial. No contexto mais específico, Fairbairn e a psicanálise passaram a ser alvos de ataques incessantes dentro da Universidade de Edimburgo, até que ambos foram definitivamente banidos, acusados de proferirem ideias não científicas.

Nesse período, Fairbairn se viu imerso em perturbações. Connell, seu antigo analista, não morava mais em Edimburgo e não havia nenhum outro psicanalista por lá a quem ele pudesse recorrer. Na tentativa de lidar solitariamente com as suas perturbações, ele fez importantes anotações em seu diário pessoal com o intuito de decifrar as origens e o sentido de um penoso sintoma: ele não conseguia urinar em banheiros públicos. Esse sintoma, que o acompanhou até o fim da vida, fez com que ele tivesse que se privar de participar de muitos eventos sociais, e, por conta dele, a viagem de trem que separava Edimburgo e Londres, onde residiam os psicanalistas mais importantes da época, foi se tornando um obstáculo cada vez mais intransponível.

No início da década de 1940, Fairbairn estava às voltas com a experiência de ter sido banido da universidade. Nos textos da época, a abertura para os temas mundanos praticamente cessou, e ele passou a se dedicar quase que exclusivamente à construção de seu sistema teórico. Foi justamente nesse período que ele produziu os seus textos teóricos mais importantes e originais.

É importante destacar que, durante a Segunda Guerra, Fairbairn viveu a experiência de atender muitos soldados traumatizados. As histórias deles se repetiam: seres obcecados pela ideia de voltar para casa, assolados por pesadelos e por perseguidores reais e imaginários, sentindo-se humilhados e destratados pelos colegas e superiores. Na perspectiva do autor, os horrores da guerra minavam os recursos defensivos e faziam com que os maus objetos internos passassem a se manifestar sem os disfarces e contenções habituais (Fairbairn, 1952c/1943, 1952d/1943). Mais uma vez, nosso autor estava tendo a oportunidade de perceber, a partir do atendimento de muitos soldados em condições semelhantes, as repercussões das situações traumáticas no modo de funcionamento do psiquismo.

Fairbairn também aprendeu muito sobre o funcionamento do mundo interno com os pacientes esquizoides que atendia em seu consultório particular. Nos termos do próprio autor, esses pacientes eram capazes de ter "insights mais formidáveis do que qualquer outro grupo de pessoas, normais ou anormais - um fato devido, pelo menos em parte, a serem eles tão introvertidos (isto é, preocupados com a realidade interior) e tão familiarizados com os seus processos psicológicos mais profundos" (Fairbairn, 1952a/1940, p.3).

Enquanto ele produzia o seu sistema teórico em relativo isolamento, as controvérsias entre o grupo liderado por Melanie Klein e o grupo liderado por Anna Freud pegavam fogo em Londres. Fairbairn, assim como Winnicott, Balint e alguns outros, optou por não se alinhar a nenhum dos dois grupos e passou a fazer parte do que viria a ser conhecido como Middle Group.

No início da década de 1950, Fairbairn lançou o livro Psycho-analytic studies of the personality, o único que ele teve publicado em vida. Nele, foram reunidos, além dos seus textos teóricos mais importantes, escritos na década de 1940, alguns outros textos de décadas anteriores. O livro de Fairbairn e os textos escritos na década de 1940 tiveram alguma repercussão entre os psicanalistas que atuavam em Londres.

O prefácio do livro foi escrito por Ernest Jones, que reconheceu a originalidade das proposições contidas ali. Jones salientou que não cabia a ele julgar as posições defendidas por Fairbairn no livro, mas que ele tinha a convicção de que elas iriam se provar extremamente estimulantes para o debate psicanalítico.

Klein também teceu seus comentários sobre o nosso autor. Apesar de Fairbairn nunca ter feito parte do seu grupo de seguidores, a psicanalista reconheceu que, por influência da discussão dele sobre as bases esquizoides da personalidade, passou a chamar o modo mais primitivo do funcionamento psíquico de posição esquizoparanoide e não mais de posição paranoide. Além disso, Klein salientou que a descrição do desenvolvimento dos fenômenos esquizoides proposta por Fairbairn é "significativa e dotada de grande valor para o nosso entendimento do comportamento esquizoide e da esquizofrenia" (1982/1946, p. 316). "Também penso que é correta e importante a opinião expressa por Fairbairn de que o grupo de distúrbios esquizoides e esquizofrênicos é muito mais vasto do que tem sido reconhecido até agora" (1982/1946, p. 316). No mesmo texto, depois de reconhecer a pertinência das considerações do nosso autor, Klein salienta também os seus pontos de discordância. Para mencionar apenas os pontos mais básicos e importantes, ela afirma que discorda da revisão que Fairbairn propõe da teoria da estrutura mental e da teoria dos instintos.

Winnicott & Khan, na resenha que escreveram sobre o livro de Fairbairn, publicada no International Journal of Psychoanalysis, lamentaram que nosso autor se propusesse a fazer afirmações tão definitivas. Para eles, as omissões e imperfeições da estrutura teórica proposta no livro prejudicaram a apreciação que eles poderiam fazer dos lampejos do insight clínico presentes no texto. "Em diversas circunstâncias, nós ficamos com a sensação de que o senso clínico e intuitivo de Fairbairn o leva adiante enquanto a sua teoria atola algumas milhas atrás" (1992/1953, p. 420).

A relação de Fairbairn com os outros psicanalistas do Middle Group, como Balint e o próprio Winnicott, merece algumas considerações. Apesar das posições teóricas deles se aproximarem em vários aspectos e de todos nutrirem interesses comuns por determinadas temáticas, Fairbairn quase não os menciona em seus textos. O psicanalista escocês cita autores muito mais quando vai apresentar discordâncias do que quando vai propor aproximações. Como dissemos, em seus textos o autor não se furtava de proclamar a originalidade de seu pensamento e de reiterar as suas divergências com as proposições de Freud.

A partir dessas considerações, vale salientar as especificidades do lugar ocupado pelo nosso autor na cena psicanalítica da época. Alguém que vivia a milhas de distância de seus colegas, produzia sua obra em relativo isolamento, criticava a teoria freudiana aberta e reiteradamente e, mesmo assim, continuava sendo reconhecido como psicanalista pelas instituições oficiais.

Depois de lançar seu livro, Fairbairn ainda publicou, ao longo da década de 1950, alguns textos importantes que giravam em torno principalmente da discussão sobre o tratamento psicanalítico. Neles, Fairbairn (1994d/1957, 1994e/1958) expôs com muita franqueza as suas dúvidas e dificuldades em relação ao atendimento de pacientes que tinham um modo de funcionamento esquizoide e se perguntou várias vezes sobre o que afinal de contas faz um psicanalista e por que esse fazer produz (ou não) algum efeito nos pacientes.

Os textos inéditos de Fairbairn e os artigos escritos após a publicação do livro de 1952 foram reunidos em uma coletânea em dois volumes denominada From Instinct to Self: Selected Papers of W. R. D. Fairbairn, que só foi lançada em 1994, 30 anos depois de sua morte.

 

As bases esquizoides da personalidade

Fairbairn (1952b/1941) propõe uma teoria de desenvolvimento assentada nos modos como o indivíduo se relaciona com os objetos ao longo do processo de amadurecimento. Nessa concepção, desde o início da vida, há relação objetal, a qual, idealmente, evoluiria de uma situação de dependência infantil para uma situação de dependência madura.

A condição de dependência infantil, tal como postulada por Fairbairn, se caracteriza por uma predominância do receber em detrimento do oferecer e pela identificação primária do ego com o objeto. Em outros termos, diríamos que o bebê é uma grande boca que precisa do seio, ao mesmo tempo que é uma parte do seio e o seio é uma parte dele. "No que concerne ao infante, a boca é o principal órgão de desejo, o principal instrumento de atividade, o principal meio de satisfação e de frustração, o principal canal de amor e ódio e, mais importante do que tudo, o primeiro meio de contato social íntimo" (Fairbairn, 1952a/1940, p. 10).

A partir da experiência de amamentação, o bebê começa a diferenciar os estados de estar vazio nos momentos que antecedem a amamentação e os de estar cheio após ser amamentado. Aos poucos, ele estende essa capacidade de diferenciação para o seio, que, em situações normais, fica cheio antes das mamadas e se esvazia depois para, em seguida, encher-se novamente e assim sucessivamente. Segundo Fairbairn, "o seio da mãe e presumivelmente, da perspectiva da criança, a própria mãe estão normalmente cheios antes e vazios após a amamentação - condições maternas as quais a criança se torna capaz de perceber a partir de sua própria experiência de plenitude e esvaziamento" (1952a/1940, p. 11).

Fairbairn propõe que, junto à relação com o seio, já está constituída desde o início a capacidade de se relacionar com a pessoa inteira da mãe. Para o autor, o ímpeto primordial do bebê é o de estabelecer e aprofundar os vínculos amorosos com esse objeto que ele já é capaz de perceber rudimentarmente como separado. Nesse sentido, o paradigma da amamentação, de se ver na dependência de um outro que é capaz de restabelecer constantemente a sua capacidade de oferecer coisas boas, não se refere apenas à relação do bebê com o seio e com o leite materno, mas também à relação dele com a pessoa da mãe e com o amor que ela tem a oferecer.

Nesses processos, a sobrevivência física da criança e a sua sobrevivência enquanto um ser integrado dependem de objetos que são exteriores a ela. O seio/mãe, com a sua capacidade circular de se deixar esvaziar e de se encher novamente, é um objeto misterioso que se torna incompreensível e traumático para a criança quando a circularidade se rompe. Por outro lado, quando tudo vai bem, essa oscilação entre a condição ativa de buscar o seio e a condição passiva de aguardar que ele se encha novamente vão reforçando a confiança do bebê nos processos internos e externos e vão fortalecendo a experiência de ser alguém integrado.

Portanto, do ponto de vista do bebê, há algo exterior a ele, capaz de sobreviver aos seus ímpetos famintos e de se encher novamente até a próxima mamada. Em situações em que a mãe é capaz de sustentar essa circularidade e os fluxos podem se estabelecer normalmente, o caráter de alteridade do seio/mãe se torna quase imperceptível, e a criança pode se assentar na crença de que os processos que precisam acontecer realmente acontecem. Ela então se torna capaz de usar as coisas boas que recebe da mãe como matéria para as suas primeiras criações. "A excreção representa a primeira atividade criativa do indivíduo, e os seus produtos são suas primeiras criações - os primeiros conteúdos internos que ele externaliza, a primeira coisa que pertence a ele que ele dá" (1952a/1940, p. 14).

O ato de oferecer à mãe algo que é criado pela criança a partir do leite/amor recebido surge com o processo de excreção, em um primeiro momento, e depois se estende a outras formas de criação e de doação das quais a criança vai se tornando capaz. O significado desses processos de excreção/doação só pode se completar se houver do outro lado uma mãe capaz de aceitar esses gestos de amor.

Apesar de termos colhido aqui e ali algumas contribuições muito interessantes de Fairbairn (1952a/1940, 1952b/1941) sobre os processos intersubjetivos a partir dos quais o bebê se constitui, é preciso considerar que o interesse principal dele não é discorrer sobre o que acontece quando tudo vai bem. O objetivo principal de Fairbairn sempre é o de discorrer sobre os fatores esquizoides da personalidade, que se constituem como reação às experiências traumáticas de desencontro.

No que discutimos até aqui, salientamos a existência de três processos fundamentais que compõem o ciclo de relação da criança com a mãe. O processo de receber o leite/amor da mãe, o processo de fazer uso do leite/amor recebido e o processo de devolver a ela o amor/excremento. Fairbairn (1952e/1944) propõe que a situação traumática é aquela na qual a mãe não é capaz de amar a criança como um ser separado nem de se deixar amar por ela. Nessas situações, o ciclo de relação se rompe e a criança se vê obrigada a se proteger das experiências de receber e de dar. Em outros termos, o seu ímpeto libidinal é retirado do mundo externo e passa a hiperinvestir os conteúdos internos.

O esvaziamento da experiência de receber amor se dá por meio da substituição do objeto total por um objeto parcial. A criança deixa de se relacionar com a pessoa da mãe e passa a se relacionar com o seio enquanto fonte de gratificação. A relação de amor com o objeto dá lugar a uma relação meramente utilitária, interesseira, em que o prazer deixa de ser um componente da experiência de encontro e se converte em um fim em si mesmo.

Nessas situações, a experiência de amamentação deixa de ser vivida em todo o seu significado emocional e se torna apenas um meio para extrair/roubar ao máximo as coisas boas do mundo exterior e armazená-las no mundo interior, onde elas finalmente poderão ser amadas e manipuladas pelo sujeito a seu bel prazer. Assim, o ímpeto acumulativo se origina na sensação de que o leite que a mãe tem a oferecer é escasso. Como resultado, o sujeito se vê compelido a não só introjetar todo o leite/amor que conseguir, mas também a introjetar a própria fonte de onde jorra o leite/amor de modo a mantê-la sob controle onipotente.

O apego aos conteúdos internos e a preocupação com a realidade interior são os traços mais marcantes dos indivíduos esquizoides. Não é à toa, afirma Fairbairn, que muitos fanáticos, cientistas, intelectuais são reconhecidamente sujeitos esquizoides. "Esses indivíduos são mais inclinados a construir sistemas intelectuais bem elaborados do que a estabelecer relações emocionais com os outros em bases humanizadas. Há uma outra tendência por parte deles de fazer com que os sistemas criados por eles se tornem objetos libidinais" (Fairbairn, 1952a/1940, p. 21).

Muitos desses indivíduos são apaixonados pelos sistemas de pensamento e, em alguma medida, desligados das coisas, dos processos e das pessoas. Em vez de se deixarem absorver pelas inesgotáveis relações cotidianas, ancoradas nos movimentos de dar e de receber, boa parte da libido se concentra e se fixa nos conteúdos internos, nos processos corporais que se convertem em processos de pensamento. Para Fairbairn, o sentimento de grandiosidade associado aos sistemas de pensamento surge do bloqueio dos processos de trânsito e da criação de verdadeiros bolsões internos inflacionados, entumecidos.

Se, acima, discorremos sobre o processo defensivo de esvaziar o significado emocional do ato de receber leite/amor, não é difícil concluir que o apego desesperado do indivíduo esquizoide aos conteúdos que são introjetados cria dificuldades também para que ele possa oferecer algo ao outro. O paciente esquizoide constitui, a muito custo, um objeto interno valioso - o pênis do pai, o seio da mãe. Ao fazer isso, ele diminui drasticamente a sua dependência em relação aos objetos valiosos que se encontram no mundo externo.

Em Fairbairn, o que confere sentido à vida é a possibilidade de se ligar aos outros. Fora disso, só há vazio. É para se defender do vazio que o esquizoide busca avaramente manter o seu objeto secreto e valioso. Ele o protege ciosamente de qualquer contato com um mundo exterior, que para ele é hostil e inóspito. Nada sobrevive a esse contato. Oferecer algo assume o significado de abrir mão de conteúdos que foram muito custosamente incorporados. Relacionar-se, nesse sentido, equivale a se depauperar. Por isso, uma das características mais marcantes dos indivíduos esquizoides é a de serem fechados em si mesmos, distantes, inacessíveis.

É importante reiterar que, na perspectiva de Fairbairn (1952c/1943), todos nós, em alguma medida, entramos em contato com a precariedade da nossa existência no início da vida, quando as relações de dependência são ainda mais vitais para a nossa sobrevivência física e psíquica. Para o autor, a personalidade humana se funda na tentativa de conquistar alguma autossuficiência, o que implica, em alguma medida, em esvaziar o significado emocional dos atos de receber e de dar. Na tentativa de conquistar essa autossuficiência, todos nós nos vemos obrigados a lançar mão dos três principais mecanismos esquizoides: a onipotência como resposta à impossibilidade de confiar, o isolamento e o hiperinvestimento nos conteúdos internos. Assim, apesar de se manifestar mais explicitamente em pacientes severamente traumatizados, não é correto atribuir os fatores esquizoides a uma classe específica de indivíduos. A diferença é que nos indivíduos neuróticos, essas bases estão mais distantes da consciência, e a capacidade de se relacionar com o mundo externo está menos comprometida.

 

As raízes clínicas da estrutura endopsíquica: entre a escassez e a maldade

Fairbairn (1952f/1949), inspirado pelas teorizações kleinianas, propõe que o psiquismo funciona segundo uma lógica animista. Nessa lógica, não existem as contingências, o acaso. As causas de toda a satisfação e de toda a dor são atribuídas aos pais todo poderosos. A frustração e a necessidade não satisfeita são sempre vividas como rejeição por parte dos objetos primários. É por isso que a criança concebe as experiências traumáticas como manifestações ativas de rejeição por parte do objeto.

Quando já está instaurada a capacidade de se diferenciar do outro, a criança sente que o objeto a rejeitou porque ele a odeia. Nesse momento, ela já constituiu a possibilidade de odiar o objeto que a odeia. Entretanto, quando a experiência traumática se abate sobre a criança em um momento muito precoce, ela não se sente odiada, ela se sente odiável. Desse modo, a criança, ao se deparar com falhas persistentes e precoces do objeto, passa a sentir que a sua ávida necessidade de se ligar a ele é má e o esvaziou. Com isso, ela passa a entender que foi o seu amor que destruiu a capacidade de amar da mãe. Assim, as falhas e as faltas do objeto instauram uma enorme desconfiança em relação aos conteúdos internos.

Didaticamente, poderíamos afirmar que a primeira cisão da qual o indivíduo lança mão ao se deparar com situações traumáticas é entre o interno e o ex- terno. A partir dela, ele esvazia o significado emocional de tudo aquilo que é exterior e passa a se relacionar com o agente causador das experiências traumáticas como se ele fosse interno.

Acima, vimos a descrição do processo por meio do qual o interior se torna o local que contém o que há de mais precioso. Entretanto, esse mesmo processo determina que o interior passe a conter também tudo aquilo que há de mais destrutivo. Tudo é, ao mesmo tempo, absolutamente maravilhoso e absolutamente terrível. Amor e ódio não se distinguem. Nessas situações, o indivíduo se vê confinado no caos de seus labirintos interiores, incapaz de dizer e de sentir.

Para tentar organizar um pouco esse caos, ele lança mão novamente do mecanismo de cisão, dessa vez para promover a separação entre, de um lado, os aspectos rejeitados e rejeitadores do mundo interno e, de outro, os conteúdos valiosos que foram introjetados e os ímpetos libidinais dirigidos a eles. Essa é a ideia básica que está por trás do modelo de estrutura endopsíquica proposta por Fairbairn (1952e/1944): o amor e o ódio inicialmente dirigidos à mãe passam a imantar um mundo interno composto por objetos maravilhosos e excitantes, de um lado, e destrutivos e rejeitadores, de outro.

Para Fairbairn, a organização de uma estrutura endopsíquica é a maneira possível de se constituir às voltas com os desencontros traumáticos que caracterizam a situação de dependência infantil. Nessa estrutura, o indivíduo conquista alguma estabilidade ao descolar do ego central as suas partes traumatizadas e ao estancar a busca pelos objetos do mundo exterior por meio de um intenso investimento libidinal nos objetos maus internalizados.

Para Fairbairn (1952e/1944), o registro dos pais infantis e de seus aspectos traumáticos são introjetados e se consolidam como objetos internos de intensa devoção e ódio. As partes do ego que permanecem devotadas a esses objetos maus se destacam do ego central e ganham uma certa independência. Assim, o mundo interno, nessa concepção, é a encenação de uma tragédia estática na qual os personagens permanecem capturados. Os objetos internos, à medida que são resquícios das falhas na relação de dependência infantil, permanecem sempre assombrosamente maus, ao passo que as partes do ego devotadas a esses objetos permanecem na condição eterna de crianças traumatizadas.

No momento de dependência infantil, a maldade não tem limites estabelecidos, é infinita. O que se instaura, portanto, é uma maldade infinita sem a qual eu não sobrevivo. Toda a tentativa é a de circunscrever essa maldade. Para isso, lança-se mão dos mecanismos defensivos. A cisão do ego visa descolar-se das partes traumatizadas para que o ego central possa seguir em frente sem olhar para o tamanho do estrago. A repressão visa mantê-la longe, sob controle. Sob efeito dos mecanismos defensivos, a maldade ganha algum contorno, pessoaliza-se. O objeto mau ganha personalidade.

Também é importante destacar que, no modelo de estrutura endopsíquica proposta por Fairbairn, a ambivalência em relação aos objetos primordiais permanece congelada. A devoção a esses objetos convive lado a lado com um grande ressentimento, com um grande ódio. Esse ódio, por sua vez, é dirigido aos objetos que foram internalizados e, ao mesmo tempo, à própria condição de fragilidade.

Como vimos, a mãe é o objeto primordial com quem se estabelecem as primeiras relações de dependência emocional e física, porque é com ela que se vive a experiência da amamentação. O pai entra logo depois, mas a relação com ele só envolve a dependência emocional. Assim, para Fairbairn (1952b/1941), o pai é uma figura parental sem seio com quem a relação se dá apenas no plano emocional, ao passo que com a mãe a ligação também é física.

De qualquer modo, em ambas as situações, há traumatismos inevitáveis e a tentativa de se proteger deles por meio da introjeção dos aspectos maus. O conflito edípico é uma encenação externa de uma situação interna na qual a condição de objeto libidinal é projetada no genitor do sexo oposto, e a condição de objeto rejeitador é projetada no genitor do mesmo sexo.

A partir dessa redescrição da rivalidade edípica proposta pelo autor, podemos compreendê-la em três dimensões distintas. No nível mais superficial, aparece o amor ao genitor do outro sexo e o ódio pelo genitor do mesmo sexo. Entretanto, se formos mais a fundo, percebemos que há ambivalência na relação com o genitor do sexo oposto e há uma ambivalência primordial em relação à mãe.

A estrutura endopsíquica proposta por Fairbairn é composta por seis partes distintas (ego central, objeto ideal, objeto rejeitador, ego antilibidinal, objeto excitante e ego libidinal), que estabelecem umas com as outras várias modalidades de relação. A aparência desumana dessa obra de engenharia mental, feita de peças, engrenagens e interações repetitivas, se justifica pela própria natureza do objeto a que o autor se dedica. Ele está se propondo a discutir o aspecto desumano de nós mesmos, que se constitui como resposta aos traumas precoces inevitáveis.

Entretanto, é preciso fazer a ressalva de que, ao olhar para o aspecto não humano que nos constitui, que tende ao fechamento, à repetição, Fairbairn encontra lá, exilados, inacessíveis a nós mesmos, os nossos aspectos mais humanos. Para o autor, o funcionamento mental é feito das relações de amor, de ódio e de dependência que não podem mais ser vividas no mundo exterior e passam a ser encenadas no mundo interior.

 

Considerações finais

Como dissemos, a obra de Fairbairn é, em comparação com a de outros psicanalistas, relativamente pouco conhecida. O autor viveu certo isolamento, o que fez com que muitos de seus contemporâneos conhecessem as suas contribuições apenas por meio dos seus artigos. Desse modo, Fairbairn, em seu isolamento escocês, teve poucas oportunidades para apresentar e debater as suas ideias. Além disso, ele quase não tinha interlocutores ou seguidores que pudessem cumprir a função de disseminar as suas proposições na Europa e, menos ainda, nos Estados Unidos e na América Latina, locais em que ele permaneceu praticamente desconhecido por muitos anos.

Os psicanalistas Sutherland e Guntrip cumpriram um importante papel de manter vivo o legado de Fairbairn. O primeiro foi o seu fiel seguidor e responsável por escrever sua biografia, enquanto o segundo foi seu paciente e sempre teve em Fairbairn uma de suas mais importantes referências. O livro Personality Structure and Human Interaction, publicado por Guntrip em 1961, foi fundamental para que a teoria de Fairbairn pudesse se tornar mais conhecida, sobretudo nos Estados Unidos (Sutherland, 1989).

Apesar de ter sido relativamente pouco mencionado durante várias décadas, a influência de Fairbairn no pensamento psicanalítico não pode ser desconsiderada. As discussões do autor em torno dos mecanismos de cisão do ego e do objeto tiveram e continuam tendo grandes implicações clínicas e são especialmente úteis para a compreensão de pacientes severamente traumatizados. Além disso, a centralidade que o autor atribuiu ao mecanismo de cisão na constituição da personalidade, o modo como recriou a noção de repressão, os questionamentos em relação ao conceito de pulsão, o modelo de mente que propôs, tudo isso exerceu uma influência mais ou menos silenciosa no pensamento psicanalítico, sobretudo entre os ditos teóricos das relações de objeto.

Esse silêncio foi parcialmente quebrado nas últimas décadas, quando foram lançadas algumas coletâneas de artigos que se propuseram a discutir a obra e o legado de Fairbairn (Pereira & Scharff, 2002; Skolnick & Scharff, 1998; Grotstein & Rinsley, 1994). Além dessas coletâneas, alguns outros textos sobre o autor, escritos por importantes psicanalistas da cena contemporânea, foram publicados recentemente (Ogden, 2010; Mitchell, 2000; Pontalis, 2005). No Brasil, há referências muito esparsas à obra de Fairbairn. Recentemente, Celes, Alves & Santos (2008) fizeram uma discussão sobre os textos teóricos do autor, escritos na década de 1940. Figueiredo (2003) fez uso de suas contribuições para discutir algumas características e questões da sociedade contemporânea. O mesmo autor publicou, com a colaboração do autor do presente artigo, um livro no qual se propôs a ler e discutir as proposições de Fairbairn de modo mais detido (Figueiredo & Araujo, 2013).

Vale ressaltar que, mesmo que Fairbairn tenha sido redescoberto como uma das referências mais importantes da psicanálise do século XX, estamos longe de poder identificar a existência de uma escola fairbairniana. Isso torna o debate em torno das suas ideias especialmente rico, porque congrega pontos de vista muito distintos. É possível identificar a existência de pelo menos quatro grupos de psicanalistas contemporâneos que se reúnem em torno do interesse comum pela obra de Fairbairn.2

O primeiro deles é composto pelos autores pós-kleinianos, que veem no pensamento de Fairbairn muitos pontos de aproximação com o pensamento kleiniano, mas também algumas inovações específicas que os permitem problematizar determinadas questões a partir de um ângulo novo. Entre esses autores, poderíamos mencionar Thomas Ogden, James Grotstein, Otto Kernberg e Jeffrey Seinfeld.

O segundo grupo é formado por psicanalistas que se deparam com a obra de Fairbairn na tentativa de lidar com questões da clínica com determinados tipos de pacientes. Desse grupo, faz parte, por exemplo, o psicanalista David Celani (1998), que usa as considerações do autor para discutir o atendimento de mulheres constantemente violentadas pelos maridos. Também poderíamos mencionar David Scharff (1998), que se baseia no autor para discutir a terapia com casais e famílias, e Cristopher Bollas (2000), que usa as contribuições de Fairbairn como uma das referências para pensar a questão da histeria.

O terceiro grupo é composto por psicanalistas que têm interesse especial pelas contribuições dos autores do Middle Group, do qual o próprio Fairbairn fez parte. Esses autores se utilizam das contribuições de Fairbairn como uma das referências importantes para se pensar sobre o processo de constituição do self na relação com os objetos primordiais.

Finalmente, o quarto e mais coeso grupo é composto pelos psicanalistas da Relational Psychoanalysis, que levaram a proposta de ruptura de Fairbairn com o modelo freudiano às últimas consequências, a ponto de terem constituído uma concepção de psicanálise que prescinde totalmente do conceito de pulsão.

A partir disso, podemos perceber a diversidade de interlocutores que foram atraídos para a obra de Fairbairn, o que fez com que os insights clínicos presentes em sua obra ganhassem relevo e que as reivindicações tão exclusivas quanto à originalidade de seu modelo teórico fossem para o segundo plano.

 

Referências

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Recebido em: 28/5/2014
Aceito em: 12/8/2014

 

 

1 Este trabalho contou com o financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e foi derivado da tese de doutorado defendida pelo autor no ipusp em 2014.
2 Luís Claudio Figueiredo (comunicação pessoal, março de 2014) foi quem chamou a minha atenção para a existência desses quatro grupos.

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