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Jornal de Psicanálise
versão impressa ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.48 no.89 São Paulo dez. 2015
PSICANÁLISES POSSÍVEIS
Um breve comentário sobre o "umbigo do sonho", de Freud
A brief comment on Freud's idea of the "dream's navel"
Un breve comentario sobre el "ombligo del sueño" de Freud
Un commentaire rapide sur le "nombril du rêve", de Freud
Ricardo Trapé Trinca
Membro filiado do Instituto de Psicanálise "Durval Marcondes" da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. Doutor em Psicologia Clínica pela USP. ricardotrinca@hotmail.com
RESUMO
O autor comenta dois trechos de Freud sobre o "umbigo do sonho" presentes em "A interpretação dos sonhos" e indica que eles revelam que há, no cerne da ideia de interpretação, a presença de um desconhecido diante do qual não há nada mais a ser dito, a não ser da permanência da própria presença do desconhecido. O autor faz relações entre a apreensão desse desconhecido, o método apofático da teologia negativa e com Maurice Blanchot, para quem a conversação permaneceria como uma forma de criação de uma presença que está na fala e que permanece sempre fora de alcance dos interlocutores.
Palavras-chave: interpretação, sonho, desconhecido, apofático
ABSTRACT
The author comments on two excerpts about the "dream's navel" from Freud's work, "The Interpretation of Dreams" (1900a). The author points out they reveal the existence of an unknown subject in the core of the idea of interpretation. And, he continues, there is nothing more to be said in the face of the unknown, except about the permanence of its presence. The author finds relations between the apprehension of this unknown, the apophatic method of negative theology, and Maurice Blanchot's ideas. Maurice Blanchot believed the conversation would remain as a way of creating a presence that stays in the speech, and something that always remains out of interlocutors' reach.
Keywords: interpretation, dream, unknown, apophatic
RESUMEN
El autor comenta dos fragmentos de Freud que tratan sobre el "ombligo del sueño" presentes en "La interpretación de los sueños" y apunta que revelan que en el núcleo de la idea de interpretación existe la presencia de un desconocido ante lo cual no hay más nada a decir, a no ser la propia permanencia de la presencia de lo desconocido. El autor relaciona la aprehensión de este desconocido, el método apofático de la teología negativa y Maurice Blanchot, para quien la conversación permanecería como una manera de crear una presencia que está en el discurso y que queda siempre fuera del alcance de los interlocutores.
Palabras clave: interpretación, sueño, desconocido, apofático
RÉSUMÉ
l'auteur commente deux extraits de Freud sur le "nombril du rêve", présente dans "L'interprétation des rêves" et il montre qu'ils révèlent qu'il y a, dans le sein de l'idée d'interprétation, la présence d'un inconnu devant lequel il n'y a plus rien à dire, sauf la permanence de la propre présence de l'inconnu. L'auteur fait des rapports entre la présentation de cet inconnu, la méthode apophatique de la théologie négative et avec Maurice Blanchot, pour qui la conversation resterait comme une manière de création d'une présence qui est dans la parole et qui demeure toujours hors de la portée des interlocuteurs.
Mots-clés: interprétation, rêve, inconnu, apophatique
Introdução
Gostaria de introduzir este trabalho explicando que, ao pretender relacionar um conhecido e interessante aspecto do pensamento freudiano com o método chamado "apofático", da teologia negativa, não procuro, com isso, fazê-lo por alguma excentricidade pessoal, mas para encontrar um modo de rever o pensamento freudiano e, assim, novamente iluminá-lo. Derrida (1995), em seu livro Salvo o nome, explica que a teologia negativa é um modo de abordagem de Deus que consiste em aplicar-lhe proposições negativas, ou seja, em vez de dar-lhe predicações ou fazer analogias para caracterizá-lo, o método apofático consiste em dizer aquilo que Deus não é e em recusar qualquer predicado, para que, com isso, possa haver a permanência de um sentido de transcendência, de algo que escaparia a qualquer forma de apreensão pela linguagem, muito embora possamos, pela linguagem, observar essa impossibilidade de apreensão. Não se trata, para nós, psicanalistas, do problema de Deus, mas de observar a correspondência de um método presente em Freud (1900/2006), de revelar que os sentidos interpretáveis podem suceder-se, mas esbarram naquilo que escapa à possibilidade de que, pela linguagem, possa ser apreendido seu fundamento.
A figuração (apresentabilidade) e o infigurável
Existem dois trechos em que aparecem referências de Freud ao "umbigo do sonho", e ambos encontram-se em "A interpretação dos sonhos" (1900/2006); o primeiro como uma nota de rodapé no capítulo 2 e o outro em seu capítulo 7, sendo um trecho um pouco mais abrangente. No primeiro trecho Freud diz:
Tive a sensação de que a interpretação dessa parte do sonho não foi suficientemente desenvolvida para possibilitar o entendimento de todo o seu sentido oculto. Se tivesse prosseguido em minha comparação com as três mulheres, ela me teria levado muito longe. Existe pelo menos um ponto em todo sonho ao qual ele é insondável - um umbigo, por assim dizer, que é seu ponto de contato com o desconhecido. (p. 145)
E no segundo trecho há, ao que nos parece, um aprofundamento essencial:
Mesmo no sonho mais minuciosamente interpretado, é frequente haver um trecho que tem de ser deixado na obscuridade; é que, durante o trabalho de interpretação, apercebemo-nos de que há nesse ponto um emaranhado de pensamentos oníricos que não se deixa desenredar e que, além disso, nada acrescenta a nosso conhecimento do conteúdo do sonho. Esse é o umbigo do sonho, o ponto onde ele mergulha no desconhecido. Os pensamentos oníricos a que somos levados pela interpretação não podem, pela natureza das coisas, ter um fim definido; estão fadados a ramificar-se em todas as direções dentro da intrincada rede de nosso mundo do pensamento. É de algum ponto em que essa trama é particularmente fechada que brota o desejo do sonho, tal como um cogumelo de seu micélio. (p. 557)
Nos dois trechos, Freud usa a palavra desconhecido (Unerkannten); palavra que se, por um lado, designa a característica de um inconsciente povoado por pensamentos oníricos inconscientes que poderiam tornar-se conhecidos, por outro, é a designação daquilo que, sendo insondável, não se deixaria desenredar e que "nada acrescenta a nosso conhecimento do conteúdo do sonho". Há, portanto, nesse trecho, uma visão de que o inconsciente seria tanto a possibilidade de que certos pensamentos oníricos tornem-se inteligíveis, como algo que, por alguma outra razão, manter-se-ia ininteligível. Trata-se, como pensamos, de uma dupla noção de inconsciente, ou seja, de um inconsciente que poderia tornar-se inteligível e algo desse inconsciente que seria sempre desconhecido.
Freud, também em "A interpretação dos sonhos" (1900/2006, p. 637), nos diz, em uma conhecida formulação, que o inconsciente é a verdadeira realidade psíquica, e é aquela que por nós é a mais desconhecida e que nos é apresentada de modo tão incompleto e transformado, que o que dela podemos saber sobrevém apenas por inferência, por meio de seus derivados, e que poderia ser compreendida através de uma interpretação que a fizesse inteligível; uma interpretação na forma de uma tradução. A apreensão do inconsciente, desse modo, dependeria da realização de uma transformação na forma de uma boa tradução. O problema da tradução passaria a ser, portanto, central para a interpretação de um sonho. A tradução, no entanto, não significaria a concordância exata com a sua fonte inconsciente. Esse pressuposto, como assinala Priel (2005), significa que entre a fonte inconsciente e o alvo consciente há, com a interpretação, uma significativa modificação. Uma modificação que também apareceria quando observados os problemas da condensação nos sonhos, em que uma única imagem onírica seria capaz de abrigar diversos pensamentos oníricos inconscientes, tornando a sua interpretação sempre mais difícil. Em seu trabalho, Freud usa o método associativo como um modo eficaz de se fazer aparecer um sentido inconsciente, ao seguir o curso, por meio da auto-observação, dos próprios pensamentos na forma de uma espécie de narrativa - e aqui daremos a esse termo uma ampla significação, incluindo imagens, sons, palavras esparsas etc. O método freudiano parece ser o da observação de uma narrativa, que favorece tanto o aparecimento de imagens e pensamentos em sucessão contínua como da ligação e da sucessão desses pensamentos e imagens por um observador; observador que estaria, no entanto e de algum modo, afastado da produção autônoma dessas associações entre os pensamentos ou entre as imagens. Parece ser exatamente esse o convite que ele faz aos que teriam o privilégio de deitarem em seu divã: observarem as manifestações do próprio inconsciente, que se expressa de modo independente e autônomo. Freud pensa que essa experiência deveria ser não só comunicada, mas transmitida por meio da própria experiência psicanalítica. Seu interesse pela associação livre residiria nessa experiência, comunicável ao paciente, para que ele pudesse, assim como Freud havia empreendido em sua autoanálise, realizar também suas auto-observações e comunicá-las durante as sessões.
Freud já havia explicitado sua tese de que a interpretação dos sonhos seria uma técnica que incluiria a possibilidade de compreender o sonho como uma espécie de escrita pictográfica, em que certas relações entre os pensamentos oníricos latentes seriam conjuntivas, ou seja, de associações ou ligações entre pensamentos conexos. Os pensamentos oníricos latentes seriam associados entre si e deformados nessa associação. A tradução dessa escrita pictográfica dos sonhos, ou a possibilidade de transformação dessa distorção ou deformação para um esclarecimento, haveria de ser, portanto, uma transformação das associações dos pensamentos oníricos, e não apenas de um único pensamento modificado. A aventura por realizar tal procedimento e a sua dificuldade residiriam na possibilidade de separação e distinção de diferentes espécies de pensamentos oníricos inconscientes transformados em imagens oníricas, entre as quais algumas delas sendo formadas por condensações de pensamentos reprimidos. Sobre essa dificuldade, Freud já havia dedicado seu capítulo 6, pelo menos uma boa parte dele, para pensar justamente sobre o problema da "apresentabilidade" (Darstellungmittel) dos sonhos, ou melhor, sobre os meios de possibilidade pelos quais os sonhos são apresentados e figurados, e nessa figuração apresentam-se por meio das relações entre os pensamentos oníricos inconscientes. Nesse capítulo, entre outras coisas, Freud demonstra como, na tarefa de transpor pensamentos em imagens, os sonhos apresentariam certas relações lógicas pouco perceptíveis, como a relação lógica pela simultaneidade do tempo, em que imagens seriam a composição de pensamentos de diferentes épocas, a relação lógica pela inversão da intensidade sensorial, em que algo destituído de importância ou valor psíquico ofuscaria aquilo que é essencial no sonho e que estaria em um plano de menor importância aparente, e a relação lógica pela relação causal, em que os pensamentos oníricos incluiriam pensamentos contraditórios entre si. Por sinal, um capítulo essencial para que possamos compreender como Freud demonstra não apenas haver uma lógica no inconsciente (e que, portanto, o inconsciente não é destituído de uma lógica), mas que sua lógica prescinde de temporalidade, da causalidade e da identidade, que, como sabemos, eram todos bastiões do pensamento filosófico pós-kantiano, agrupados nos denominados princípio de identidade e princípio da não contradição, ou nos chamados juízos sintéticos a priori do conhecimento (Kant, 1787/1994).
Diante da visão do "umbigo do sonho", Freud legou-nos seu testemunho de observar a fronteira de um desconhecido. O modo como ele caminha com seus leitores, conduzindo-os para isso, poderia, por si só, ser um tema dos mais intrigantes, já que seu leitor parece ser, ao longo de suas inumeráveis páginas, na verdade, um companheiro e, simultaneamente, alguém que poderia vir a refutá-lo sempre. Essa ideia da refutação parece, assim, ser o início daquilo que lembra ser um caminho para a constante revisão ou pesquisa sobre os fundamentos do sonho. Toda a interpretação dos sonhos parece girar sobre esta base: uma tentativa de encontrar os fundamentos do sonho.
Mas em "A interpretação dos sonhos", Freud (1900/2006) nos ofereceu inúmeras descrições sobre a concepção de um inconsciente tópico, e suas descrições talvez nunca tenham obtido força mais significativa do que quando fala do "umbigo do sonho", daquele ponto em que o sonho mergulha no desconhecido e que, como afirma, não é um ponto capaz de ser transformado para um sentido com significação consciente. Isso porque há, inevitavelmente nesta descrição, uma ideia de lugar, de região e de fronteira. Mas, em vez de Freud enfatizar essa topologia, parece nos apresentar no capítulo 7 a ideia de que os pensamentos oníricos inconscientes emaranham-se de tal modo, que, em algum ponto na cadeia de associações entre eles, há uma espécie de falta de acréscimo na aquisição do conhecimento sobre o sonho; mas não sem que se perceba, simultaneamente, que a interpretação não tem também um fim definido. A primeira ideia que ele nos dá sobre isso é que as interpretações seriam, desse modo, intermináveis; sua descrição do psiquismo parece ser que ele seria formado justamente por um emaranhado de pensamentos oníricos que, como um entrelaçamento de fios, podem ligar-se uns nos outros e seguirem cadeias associativas das mais variadas. Mas o leitor atento talvez possa perceber que não se trata apenas da verificação desse caráter interminável, pois Freud diz explicitamente que não haveria um acréscimo de novos conhecimentos sobre o sonho. Há uma aparente contradição entre algo que não se acrescenta e algo que continuaria existindo como indefinível ou interminável; mas isso seria, na verdade, apenas a constatação de algo que escapa, algo que tem realmente um fim indefinido e que parece ser justamente a visão daquilo que ele pôde designar como o "umbigo".
Certamente Freud deu a essa percepção um caráter alusivo, mas essencial no que diz respeito à sua visão sobre o inconsciente. Um umbigo parece ter essa relação de necessidade com aquilo que, em certa altura, ou já nos alimentou, ou que ainda nos alimenta, como uma marca de uma relação de união e de contato essencial, que parece ser, justamente, aquilo que denomina "desconhecido".
Mas o que não se deixa desenredar não parece ser o que teria algo a mais a ser dito sobre o conteúdo do sonho, mas aquilo que se perde em certa indefinibilidade. Desse modo, nessa perda, nessa indefinição, também há um mergulho no desconhecido (Unerkannten),2 não no sentido apenas do não conhecido, como o que não pôde ser ainda conhecido, mas como o que não cessa de não ser conhecido. Entre um e outro, podemos entender que o que não pôde ser ainda conhecido guarda a ideia de algo que o poderá ainda ser alguma vez, em algum momento conhecido, algo próprio de uma possibilidade; enquanto aquilo que não cessa de não ser conhecido guarda em si a própria noção de um desconhecido que se mantém sempre não reconhecido, como um ponto ausente, inefável e que não se pode nomear ou descrever em razão de sua natureza.
Existe pelo menos um ponto em todo sonho no qual ele é insondável. Essa afirmação de Freud parece dizer-nos de uma presença ausente, da existência de um silêncio ruidoso, de um ponto ausente, a partir do qual um emaranhado de pensamentos oníricos não se deixaria desenredar, de um emaranhado de pensamentos que mergulhariam no desconhecido inconsciente (Freud, 1900/2006). As interpretações que traduzem esse inconsciente, nesse sentido, encontrariam enorme dificuldade em desenrolar esse emaranhado de pensamentos oníricos, pois, enquanto nos pensamentos oníricos todos podem estar juntos, mesmo que contraditórios, nossa atitude interpretativa procura traduzir cada um desses pensamentos emaranhados separadamente, diferenciando-os uns dos outros, de modo que nossa linguagem parece tornar-se incapaz de dizer aquilo que poderia ser essa realidade emaranhada, tal como ela parece querer se mostrar, ou seja, constituída por contradição e conjunção. Parece, assim, que somente com uma ruptura com o modo de pensar próprio do processo secundário, racional ou assimétrico, poderia ser possível encontrar modos de dizê-lo. No entanto, é esse o modo como pensamos, como escrevemos e como falamos em nossa linguagem comum, própria do cotidiano e do processo secundário. Em termos musicais, poderíamos dizer que Freud assinala que nossa escuta do inconsciente seria sempre polifônica, mas que nossas interpretações tenderiam a ser narrativas. Ou seja, enquanto interpretamos, falamos de cada conteúdo de um sonho, de modo que, na trama de associações possíveis, haveria uma tendência a descrever os pensamentos oníricos na forma de um relato narrado. Mas as nossas escutas e auto-observações do inconsciente tenderiam a ser a escuta e a auto-observação de uma polifonia, formada por ideias e por imagens das mais variadas, compostas e articuladas entre si e por vezes absolutamente deformadas (Entstellung).
Mas o que Freud parece assinalar - muito embora, como saibamos, não seja um termo de seu uso - é que o inconsciente desconhecido é, em parte, o que não cessa de não se figurar; ou seja, é a condição da figuração ou daquilo que não cessa também de ser figurado, como os pensamentos oníricos e o conhecimento deles. O sentido do sonho, quando pensamos sobre o "umbigo do sonho" é justamente esse duplo aspecto: a perda de um sentido a mais e, com essa perda, a indefinibilidade. Há na indefinibilidade apenas a existência de um ponto ausente, que se mantém não figurável, enquanto o que poderia ser dito sobre o sonho já foi formulado pela interpretação. Ainda em termos musicais: é pelo espaço entre as notas que escutamos a melodia. Lacan (1972/1985), ao discutir as fórmulas modais de Aristóteles, apresentou o necessário, o que não cessa de não se inscrever, como uma das suas fórmulas modais, diferenciando-as do possível, do contingente e do impossível. O espaço entre as notas seria equivalente ao necessário.
Notamos que essa assertiva lacaniana parece encontrar eco também em Blanchot. Em seu conhecido trabalho A conversa infinita, Blanchot (2007) parece demonstrar como na conversação há o aparecimento de um centro fugidio, algo que se furta a qualquer tentativa de apreensão e controle. Como ele diz:
O que está presente nessa presença de fala, tão logo ela se afirma, é precisamente aquilo que não se deixa nunca ver nem alcançar: algo está lá, que está fora de alcance (tanto daquele que diz quanto daquele que o escuta); isso está entre nós, mantém-se entre, e a conversa é a abordagem a partir desse meio-termo, distância irredutível que é necessário preservar caso se queira manter a relação com o desconhecido, que é o dom único da fala. (p. 197)
A preservação dessa distância irredutível, preservada, parece também ser o que não cessa de não ser conhecido ou figurado, um ponto ausente, fugidio, que, por outro lado, mantém-se como aquilo que faz com que uma investigação possa sempre manter-se capaz de se desdobrar e seguir adiante, numa tarefa ininterrupta, nem tanto porque exista algo a mais a ser dito sobre determinado assunto, mas porque é possível manter a distância que nos faz apreender o ponto ausente como o que é, sempre, inefável.
Além disso, Freud nos faz pensar com essa imagem do "umbigo" se esse desconhecido seria um lugar onde os pensamentos oníricos estariam assentados, como na imagem do cogumelo, ou se esse desconhecido, tal qual uma fronteira, não estaria posto no emaranhado de pensamentos oníricos inconscientes, justamente como aquilo que faz deles o inconsciente figurável, diante daquilo que não poderia ser jamais figurado ou figurável; ou seja, como algo que não se situa exatamente como um outro território, mas como uma dimensão não figurável intimamente associada à figuração, sendo ambas inconscientes, mas de naturezas distintas. Uma delas, figurável, e a outra, também inconsciente, sempre a se manter como aquilo que não cessaria de não ser dito, não apenas por sua impossibilidade de ser ainda pensada, mas por sua impossibilidade de ser figurada; um inconsciente não figurável presente sempre como sua vizinhança, como seu duplo, como seu necessário.
O método apofático freudiano
O caminho empreendido por Freud em "A interpretação dos sonhos" (1900/2006) parece não se distinguir, em última instância, de um caminho apofático. E com isso pretendemos dizer que Freud não estabelece, em nenhum momento, uma clara intenção de dar ao recalcado o estatuto da verdadeira realidade psíquica ou do fundamento último dos sonhos. A verdadeira realidade psíquica é o inconsciente, mas isso não significará que o recalcado seja a totalidade dessa realidade. Ou seja, os pensamentos oníricos inconscientes que, sob a forma de um palimpsesto - camadas de escritos sobrepostos e apagados -, juntam-se e conglomeram-se uns nos outros, articulando-se como uma cadeia associativa, que formam a chamada "mobília de um sonho", e parecem não encontrar um término claro. Ao longo de uma interpretação, inúmeros pensamentos oníricos são passíveis de serem descobertos, e Freud não assinala em nenhum momento que isso poderia ter um fim; essas seriam as bases das interpretações intermináveis. É nítido em toda "A interpretação dos sonhos" o árduo caminho que Freud faz e o quanto ele exige de seus leitores. Pois, como leitores de Freud, somos convidados a permanecer em um vai e vem ininterrupto, entre afirmações e refutações, em que por horas somos levados por ele a perscrutar o que seria um pensamento onírico essencial e no momento seguinte a desistirmos de encontrá-los. Freud, nessa espécie de "Bateau ivre",2 para usar o famoso título do poema de Rimbaud (1998/1871), cambaleia de um lado para o outro, sem que possamos saber ao certo qual será sua resolução, até lançar âncoras naquilo que, no capítulo 7, apresentará mais detidamente como sendo o desejo; um desejo que nada tem a ver com uma figuração ou um pensamento essencial, mas sim como a expressão de uma verdadeira força motriz.
A presença do desconhecido do sonho e a sua indefinibilidade são, em última instância, o mesmo. O caráter apofático do método freudiano reside em sua constante negação dos predicados para a apreensão daquilo que seria o inconsciente que permaneceria além das suas predicações ou apresentabilidade. O apofático, nesse sentido - e aqui precisamos dizer que se trata de uma aplicação desse pensamento à psicanálise, já que originalmente ela nada tem a ver com a psicanálise e sim com a teologia, já que é uma expressão da teologia negativa3 -, é a negação de cada predicação sobre o que é o inconsciente e, assim, a permanência, ao término desse exaustivo método, de uma indefinibilidade; indefinibilidade que poderia também ser expressa como um centro vazio (ou um ponto ausente) não porque é um nada, mas porque é dele que surge justamente a possibilidade de serem reinvestidas as cadeias dos traços mnêmicos infantis por meio do desejo. Não se trata de dizer que o indefinível é um nada, do qual nada vem.4 Mas da presença de um ponto infigurável que se figura sob a forma de traços mnêmicos infantis.
As camadas de pensamentos oníricos inconscientes, desse modo, seriam expressões do desejo ou do reinvestimento do desejo, que se faz aparecer ou ser figurado nos sonhos sempre por um novo reinvestimento, assumindo o seu sentido inconsciente. O desejo, nesse sentido, precisaria ser distinguido da apresentação do desejo, do desejo figurado, daquele desejo que é realizável pelo sonhar, por meio dos pensamentos oníricos inconscientes, que se tornam imagens de pensamentos reprimidos. O desejo como uma corrente presente no interior do aparelho mental, que parte do desprazer e aponta para o prazer, é aquilo que põe o próprio aparelho em movimento, em curso (Freud, 2006/1900), mas como um aspecto do inconsciente infigurável em sua totalidade, é o que não cessa de não se dizer. A realização desse desejo, no entanto, é sempre uma figuração dessa corrente energética, dessa excitação, que assumirá, como sabemos, por meio de uma lógica própria, ou seja, uma lógica inconsciente, conjuntiva, os mais variados sentidos; isso porque, como sabemos, em um sonho podem estar associados mais do que um pensamento onírico inconsciente, e uma imagem de um sonho pode ser a combinação, de uma forma condensada, de diversos pensamentos oníricos inconscientes deformados (Entstellung).
No entanto, o método apofático freudiano presente em "A interpretação dos sonhos" (1900/2006), caso pudéssemos usar esse termo, parece assinalar que, ao serem interpretadas certas imagens de um sonho, certamente restarão outras a serem interpretadas; e que, após findarem essas últimas, pelo menos para a compreensão do sonho que estiver em questão, restaria ainda uma certa indefinição, um desconhecido que não cessaria de sê-lo e de não se dizer, como um ponto ausente, embora sempre presente, de uma conversação. Em certo sentido, parece que Freud dá a isso o nome de desejo.
Referências
Blanchot, M. (2007). A conversa infinita - A experiência limite (J. Moura Jr., trad.). São Paulo: Escuta. [ Links ]
Bowker, J. (1997). The Oxford Dictionary of World Religions. Nova York: Oxford University Press. [ Links ]
Derrida, J. (1995). Salvo o nome (N. A. Donatti, trad.). Campinas, SP: Papirus. [ Links ]
Freud, S. (1973). Die Traumdeutung. In S Freud, Gesammelte Werke. Londres: Imago. (Trabalho original publicado em 1900) [ Links ]
Freud, S. (2006). A interpretação dos sonhos. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., vols. 4-5, pp. 39-649). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1900) [ Links ]
Kant, I. (1994). Prefácio da segunda edição. In I. Kant, Crítica da razão pura (pp. 15-35). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. (Trabalho original publicado em 1787) [ Links ]
Lacan, J. (1975). Respuesta a una pregunta de Marcel Ritter el 26 de enero en Strasbourg. Lettres de l'École Freudienne (18), Paris. [ Links ]
Lacan, J. (1985). O seminário (Livro XX: Mais, ainda). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1972) [ Links ]
Priel, B. (2005). Interpretações psicanalíticas: palavra-música e tradução. In R. D. Medina Ponce, Livro anual de psicanálise (Vol. 19, pp. 245-255). São Paulo: Escuta. [ Links ]
Rimbaud, A. (1998). Le bateau ivre. In O rapaz raro - Iluminações e poemas (M. G. Llansol, trad.). Lisboa: Relógio D'Água. (Poema original de 1871) [ Links ]
Recebido em: 4/8/2014
Aceito em: 11/11/2014
1 Essa palavra, tal como podemos observar no comentário de Marcel Ritter a propósito de sua intervenção no Congresso de Estrasburgo no dia 26 janeiro de 1975, também poderia ser traduzida por não reconhecido, tal como o faz ao responder sobre o sentido de algumas palavras que, em alemão, começam por Un, como Unbewuste,Unheimlich e Unerkannte (Lacan, 1975). Pensamos que esse sentido, no entanto, enfatiza que há um entendimento que não pôde ainda ser reconhecido, e não que no desconhecido há necessariamente seu aspecto impossível de ser conhecido, tal como apresentamos neste trabalho.
2 Não há como não deixarmos de citar as belas estrofes deste belo poema, em que Rimbaud (1871/1998) diz: La tempête a béni mes éveils maritimes./ Plus léger qu'un bouchon j'ai dansé sur les flots/ Qu'on appelle rouleurs éternels de victimes, / Dix nuits, sans regretter l'œil niais des falots! (A tempestade abençoou os meus acordares marítimos./ Mais leve que uma rolha, dancei de vaga em vaga, / Também chamadas eternas baloiçadoras de vítimas, / Dez noites inteiras, sem saudades do olho tolo dos faróis).
3 Podemos dizer também que a teologia negativa é um outro nome para a teologia por meio da negação, ou da teologia apofática, de acordo com o fato de que o que Deus é só pode ser indicado por meio da eliminação dos conceitos que podiam ser aplicados a ele, e assim se destaca a inadequação da linguagem humana e dos conceitos usados para descrever Deus (Bowker, 1997).
4 Como na tradição escolástica, dizia-se: "ex nihil nihil fit", ou seja, "do nada nada vem".