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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.50 no.92 São Paulo jun. 2017

 

TEMAS LIVRES

 

Comentários sobre o trabalho "Aurora e o processo de parentalização"

 

 

Marielle Kellermann Barbosa

Membro filiado ao Instituto de Psicanálise "Durval Marcondes" da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. Editora da IPSO, São Paulo. mariellekbarbosa@gmail.com

 

 

Aos que se interessam pela clínica contemporânea de crianças e de adultos, o artigo de Fátima Maria Vieira Batistelli (SBPSP) e Maria Cecília Pereira da Silva (SBPSP) vem acrescentar ao nos convidar a conhecer, por meio de um material clínico inovador, parte das sessões realizadas com a bebê Aurora e seus pais, o trabalho da Clínica 0-3 anos. As sessões são o resultado de um conjunto de consultas terapêuticas - no modelo das consultas terapêuticas de Winnicott e de Lebovici - na intervenção nas relações iniciais pais-bebê/criança pequena.

O artigo é essencialmente clínico e proporciona ao leitor uma participação especial nessas consultas. Aurora chega com os seus pais para atendimento quando está perto de completar 9 meses e, ao final do trabalho, conta com 2 anos. O texto nos convida a participar das cenas dos atendimentos, assim como o vídeo que foi apresentado na Jornada,1 no qual estão presentes na sala de atendimento duas terapeutas, os pais e Aurora. O trabalho das autoras tem seu ponto nuclear ao descreverem-se as sessões de forma direta no sentido de oferecer ao leitor as falas dos pais, as reações motoras de Aurora e as interpretações delas próprias, o que, de fato, nos convoca a estar junto com eles nas sessões. No vídeo apresentado, vemos Aurora, em uma das cenas, deitada no centro do grupo de adultos, e, mais para o final das consultas, quando ela já está caminhando, aparece se movimentando pelo espaço e brincando com a câmera.

Penso que o trabalho da Clínica 0-3 e suas reflexões interessam também à clínica de adultos, na medida em que o relevo dado às questões transgeracionais e às heranças familiares, presentes nas intervenções nas primeiras relações, aqui com Aurora e seus pais, pode ser transposto à escuta do paciente adulto em análise "convencional". Ou seja, a sessão na qual estão presentes na sala apenas analista e paciente, já que ao afinarmos nossos ouvidos às questões da herança psíquica, podemos dar lugar, em nosso divã, ao conjunto de objetos de identificação de nosso paciente e, assim, compreender os fenômenos transgeracionais que promovem ou obstruem o seu desenvolvimento.

O artigo "Aurora e o processo de parentalização" compõe, junto a outros trabalhos de Maria Cecília Pereira da Silva, um conjunto de reflexões teórico-clínicas a respeito da intervenção nas relações iniciais pais-bebê/criança pequena. A quem se interessa pelo assunto, os livros A herança psíquica na clínica psicanalítica (2003) e A construção da parentalidade em mães adolescentes (2014) são leituras pertinentes e dão notícia de que, mesmo pouco conhecida no contexto do consultório, tal modalidade clínica está presente em espaços como universidades e centros de saúde, com foco na prevenção no desenvolvimento de crianças.

Esse modelo de intervenção nas relações iniciais pais-bebê/criança pequena é pouco conhecido no Brasil, apesar de algumas colegas, por exemplo, Maria Cecília, trabalharem com ele há quinze anos. Sabe-se que na clínica Tavistock, em Londres, há uma certa tradição dessa prática e reflexão teórica a respeito.

Se considerarmos o interior de grupos psicanalíticos, veremos um ou outro que se debruça sobre o tema, estuda e debate; porém, se focarmos nos pacientes que poderiam se beneficiar de tal modalidade clínica, isto é, famílias com crianças pequenas, encontraremos certo desconhecimento da existência desse enquadre. Nesta perspectiva, o trabalho clínico com Aurora toma relevo especial, à medida que apresenta aos círculos psicanalíticos uma modalidade pouco conhecida na prática de atendimento e novas possibilidades de entendimento de questões familiares.

Tomo aqui a liberdade de traçar uma linha de comparação, com a qual não sei se os estudiosos da área concordariam, entre a observação de bebês e o modelo da intervenção nas relações iniciais pais-bebê.

A observação de bebês, método criado por Esther Bick, em 1948, na clínica Tavistock em Londres, propõe uma hora por semana de observação da relação mãe-bebê, no contexto familiar, com duração que pode variar de um a dois anos.

Parece-me razoável supor que a intervenção nas relações iniciais parte de uma premissa comum na observação de bebês: a de que observar o bebê real, em seu ambiente, traz elementos relevantes à escuta psicanalítica. Na observação de bebês, o observador vai até a casa da família, e existem variações desse modelo: a observação participativa, em que o observador faz intervenções pontuais, e a observação especializada, que pode ser com o bebê ou criança pequena, na casa da família ou numa instituição. Portanto, pode ocorrer uma mudança em relação ao setting tradicional do consultório. Na intervenção nas relações iniciais pais-bebê/criança pequena, o setting é também modificado ao incluir bebê, mãe, pai, avó ou outros cuidadores.

Se pensarmos em um formato clínico tradicional, a mãe do bebê poderia ir ao consultório do analista e contar a este o que ela vem passando, pensando e sofrendo, isto é, relatar suas experiências a respeito.

A questão que levanto acerca dessa inovadora e interessante maneira de trabalhar, incluindo os pais e o bebê nas consultas é: o que significa, de um ponto de vista metapsicológico, a modificação do setting na qual são incluídas as pessoas reais do bebê - pai, avó -, e não se escolhe trabalhar com elas do ponto de vista exclusivamente de objetos internos, por exemplo, no mundo interno da mãe?

Mais do que uma nova modalidade clínica, essa forma de trabalhar parece incluir uma ética e uma proposta metapsicológica própria.

Pensemos em um setting clínico tradicional, no qual o analista lida e interpreta as fantasias da paciente referentes a seu bebê, no caso de Aurora, uma bebê que tinha dificuldades para dormir e que tinha sido adotada em situação bastante singular, dadas as condições do casamento da mãe. Do ponto de vista de uma metapsicologia que priorizasse com exclusividade a realidade de fantasias internas, estaríamos lidando com uma concepção de psique como se esta fosse uma estrutura resultante de identificações com objetos primários e estes, tão somente, conferissem sentido e espessura emocional à realidade.

No referencial kleiniano, o mundo interno representa a multiplicidade de objetos internos, sendo o mundo o palco no qual eles ganham representação. Desse ponto de vista, a relação psique-mundo teria uma natureza fundamentalmente projetiva e caberia ao mundo entrar tão somente com as representações a serem escolhidas pelo sujeito (Minerbo, 2000).

Essa versão exclui qualquer consideração sociocultural, que remeta o sujeito e seu sintoma a um lugar no mundo real em que vive - e por real aqui, penso nas condições externas de filiação, de se viver em uma cidade, país, momento histórico, que tenham determinadas características próprias.

Convido-os a um breve passeio por questões da metapsicologia Freudiana, para pensarmos, do ponto de vista de nosso arcabouço teórico, como localizar a clínica da intervenção nas relações iniciais pais-bebê/criança pequena nos moldes trabalhados pelas autoras em relação às concepções de instâncias psíquicas propostas por Freud em "O ego e o id", texto de 1923-1925.

 

Id, ego e superego e a intervenção nas relações iniciais

De maneira simplista e avisadamente arriscada, pode-se dizer que Freud dividiu o sujeito, do ponto de vista de instâncias psíquicas, em id, ego e superego, sendo o ego parte do id modificada pela influência do sistema perceptivo (Freud, 1923-1925/1969) e o superego como a instância herdeira do complexo de Édipo,

O amplo resultado geral da fase sexual dominada pelo complexo de Édipo pode, portanto, ser tomada como sendo a formação de um precipitado do ego, consistente dessas duas identificações unidas uma com a outra de alguma maneira. esta modificação do ego retém a sua posição especial; ela se confronta com os outros conteúdos do ego como um ideal do ego ou superego. (p. 49)

A simplificação e a brevidade das exposições têm o sentido de não nos perdermos em vicissitudes indesejadas e irmos direto ao ponto deste argumento.

Se o ego é a instância que se diferenciou pela influência do sistema perceptivo, isto é, em contato com o mundo externo, concebe-se a ideia de que todo ego é formado a partir do mundo onde o sujeito está, da concretude do corpo, já que o ego é, inicialmente, corporal.

Se o superego é o precipitado das identificações com as figuras parentais, consequência da resolução do complexo de Édipo, aqui também é evidente que a constituição dessa instância se imbrica inevitavelmente aos objetos externos reais dos pais, ou substitutos destes, ou representantes simbólicos das leis, regras sendo, portanto, dependente de um certo contexto que excede o das fantasias exclusivamente individuais.

Resta o reino do id, apresentado por Freud como a instância constitutiva do sujeito, que é majoritariamente inconsciente, tendo-se acesso a ela apenas por meio de representações pré-conscientes e por intermédio do superego (Freud, 1923-1925/1969).

Pode repousar nesse reino desconhecido de cada sujeito humano uma ideia de que ali sim existe algo de absolutamente singular, único, individual, não passível de contornos ou influências externas (objetos reais, contexto cultural, ambiente), o reino das "fantasias puras".

Faz sentido se eleger o id como essa instância pura e inconsciente, como se ali a psicanálise se fizesse distinguir de outros campos do conhecimento que levam em consideração as relações sujeito-mundo, tais como a psicologia, a sociologia etc.

Seguimos com Freud no texto "O ego e o id" com a pergunta, que também parece simplista: do que é feito o id? Nas palavras de Freud, nem tudo o que é id foi reprimido, "Mas o reprimido também se funde com o id, e é simplesmente uma parte dele" (p. 38).

Além disso, não se deve tomar a diferença entre ego e id num sentido demasiado rígido, nem esquecer que o ego é uma parte especialmente diferenciada do id. As experiências do ego parecem, a princípio, estar perdidas para a herança; mas, quando se repetem com bastante frequência e intensidade suficiente em muitos indivíduos, em gerações sucessivas, transformam-se, por assim dizer, em experiências do id, cujas impressões são preservadas por herança. Dessa maneira, no id, que é capaz de ser herdado, acham-se abrigados resíduos das existências de incontáveis egos; e, quando o ego forma seu superego a partir do id, pode talvez estar apenas revivendo formas de antigos egos e ressuscitando-as. (p. 53, grifo meu)

O id, portanto, como concebido por Freud, não é constituído de uma espécie de fundo do mar psíquico, intocado pela luz e livre de vestígios de vida (tal qual uma caverna psíquica submarina). O id é o precipitado de egos anteriores, e, dessa forma, tocado pelas percepções externas, constituído a partir de objetos reais, concretos, participando de um ambiente sociocultural, de uma época, de um momento histórico.

Parece-me que essa digressão, simplista, pela constituição do id, pode nos levar por uma trilha consistente ao conceito de herança psíquica e questões transgeracionais, que aparecem ao vivo e em cores no trabalho de Maria Cecília Pereira da Silva e Fátima Maria Vieira Batistelli.

A observação de bebês parte de um pressuposto teórico de que a casa, seus ruídos, a maneira com que o observador é recebido, a presença ou ausência da mãe, o nome que a família dá ao bebê, enfim, tudo o que o cerca, tem validade na escuta de construção daquela mente. A intervenção nas relações iniciais pais-bebê/criança pequena recebe esse entorno no consultório, dando voz aos fenômenos transgeracionais, que podem ser pensados, a partir da compreensão a respeito da constituição do id, como um precipitado de incontáveis egos anteriores.

A intervenção nas relações iniciais pais-bebê, como a trabalhada com Aurora e sua família, oferecem um lugar privilegiado de espectador/participante na reencenação e na atualização de traumas e fantasias ancestrais, desta vez, acompanhadas, observadas e transformadas pela presença e interpretações dos terapeutas.

Na intervenção nas relações iniciais com Aurora e seus pais, pôde-se interpretar que a dificuldade de dormir de Aurora era uma resposta da bebê ao medo que os pais tinham de que ela pudesse morrer, visto seu início de vida conturbado e frágil, por Aurora ter nascido prematura e ficado um período na uti neonatal. Sua condição precária de nascimento adveio da tentativa de sua mãe biológica de abortá-la.

Ao final das consultas, a mãe exclamou surpresa que não sabia como esse trabalho podia ter efeitos tão rápidos, já que, no transcorrer dos encontros, grandes avanços foram alcançados referentes à possibilidade de Aurora dormir bem e em seu quarto, o que, para essa família, significava uma relativa diminuição das projeções de ansiedade de morte dos pais na filha.

Para finalizar, consideramos então que o arcabouço teórico de cada analista o instrumentaliza tecnicamente e que a clínica de intervenção nas relações iniciais pais-bebê/criança pequena traz consigo uma compreensão do sujeito psicanalítico enquanto um emaranhado de identificações trangeracionais, que podem ser mais bem escutadas com os personagens sendo bem-vindos ao setting analítico.

Esse modelo clínico, que o trabalho de Fátima Maria Vieira Batistelli e Maria Cecília Pereira da Silva nos convida a conhecer de perto, apresenta-se como uma clínica engajada no seu tempo e no seu mundo, reconhecendo a validade dos aspectos transgeracionais tanto em relação ao momento histórico cultural, isto é, à realidade externa, quanto à constituição das instâncias psíquicas de cada sujeito, o fundo do mar, infinito, particular de cada um, tocado por luz, calor, histórias, naufrágios de outros tempos.

 

Referências

Freud, S. (1969). O ego e o id. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (Vol. 19, pp. 23-80). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1923-1925)        [ Links ]

Silva, M. C. P. (2003). A herança psíquica na clínica psicanalítica. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Silva, M. C. P. (2014). A construção da parentalidade em mães adolescentes. Um modelo de intervenção e prevenção. São Paulo: Escuta.         [ Links ]

Minerbo, M. (2000). Estratégias de investigação em psicanálise. Desconstrução e reconstrução de conhecimento. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 30/4/2017
Aceito em: 1/5/2017

 

 

1 III Jornada da Clínica 0 a 3 - Intervenção nas relações pais-bebê: a clínica contemporânea da parentalidade: vínculos e desenraizamento, nos dias 17-18 de março, 2017, na cidade de São Paulo.

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