O desejo do analista, aquele que às vezes vem à luz no final da cura, quando vacila o brilho dos objetos-causa, quando a alteridade se parte, quando cai sua parte fantasmática e quando, com o laço transferencial, se dissolve o sonho da unidade egoica.
(Dumézil, 2005, p. 104)
Freud faz em 1926 uma afirmação definitiva sobre a condição de pertencimento ao campo psicanalítico. Ela pode ser parafraseada assim: é preciso descolar-se da rigidez identificatória. Em suas palavras, “[na psicanálise] os doentes não são como outros doentes, os leigos não são genuinamente leigos, nem os médicos são o que se tem direito de esperar de médicos”2 (1926/1976b, p. 172). Àquela altura, a psicanálise já havia se constituído como uma disciplina com seu método de investigação curativa que orientava sua prática e a criação de suas teorias, as quais revertiam sobre sua prática. Já era um sistema de pensamento com seus pontos de não inflexão bem caracterizados: ser psicanalista incluía necessariamente considerar o inconsciente, o recalcamento, a sexualidade, as resistências. Também a transmissão do saber psicanalítico adquirira sua configuração. A formação de um analista deveria ser feita através da análise didática e da supervisão. A defesa da peculiaridade da psicanálise e do psicanalista no campo dos saberes precisava, contudo, ser defendida, e é tal coisa que move Freud a escrever o texto do qual retirei a passagem citada no primeiro parágrafo deste artigo.
A novidade que a psicanálise trazia, seu modo absolutamente singular de abordar a mente humana arriscava ser obscurecido por conhecimentos orgulhosamente vinculados às ciências da natureza, e, como consequência inevitável, essa epistemologia iria se impor. Freud, em seu libelo, citado no início deste texto, a favor do direito de leigos exercerem a psicanálise, defendia Theodor Reik, acusado de charlatanismo, mas sobretudo defendia a disciplina que havia criado. Essa nova ciência nos punha diante do fato de que uma torção no plano da completude egoica deve se fazer presente, ainda que em germe, naqueles que se propõem a ser analistas aptos para tratar os que também apresentam essa condição. Falamos aqui de sujeitos cindidos.
A questão da formação tornou-se um terreno semovente, e a luta pela hegemonia de uma concepção deixou marcas e vestígios.
A análise didática é adotada pela ipa em 1925, quando certas regras são instituídas (Roudinesco, 1998, p. 19). Desde então ela tem sido objeto de permanentes polêmicas. Freud e Ferenczi e, posteriormente, após a Segunda Guerra Mundial, Balint e Bernfeld - dois espíritos combativos, criativos e inquietos - são os analistas que a tomam como foco de reflexão.
Balint (1948) e Bernfeld (1950) fazem uma crítica contundente ao dogmatismo da formação e às lutas aguerridas entre diferentes domínios psicanalíticos. Criticam o conformismo e a aceitação acrítica do autoritarismo pelos pretendentes a analistas. Chamam a atenção para a falta de produção teórica de real relevância decorrente dessas posturas. Balint aponta para a falta de uma teoria da formação. Lacan, anos depois, também aponta para essa lacuna.
O que vem a ser uma teoria da formação?
Para Freud era indispensável vivenciar o inconsciente na análise pessoal. E, obviamente, vivenciar as resistências, os efeitos do recalcamento, o papel determinante da sexualidade infantil. Era preciso, a seu ver, assegurar que novos analistas reconhecessem no plano vivencial a nova ciência e seu novo objeto: o inconsciente.
Nas palavras de Althusser, em seu clássico, belo e hoje desconhecido texto “Freud e Lacan” (1965), o objeto dessa então nova disciplina é assim escrito: “Os efeitos do tornar-se humano do pequeno ser biológico saído do parto humano: aí está, no seu lugar devido, o objeto da psicanálise, que tem por nome simplesmente o inconsciente”.
Uma teoria da formação deveria tratar do que transmitir, de como transmitir, para quem transmitir. Sendo esse último ponto citado o que hoje nos movimenta, nos sacode e nos acorda para o mundo social.
Dentro do “para quem”, Balint se faz uma pergunta: a seleção de pessoas “normais”, bem-postas na vida, que aceitam sem problemas o tipo de formação proposta pelas organizações psicanalíticas filiadas à ipa, seria responsável por esse resultado? Deveriam então os analistas escolhidos ser grandes neuróticos? Houve um recuo diante dessa conclusão, escreve Millot em sua revisão da já mais que centenária controvérsia sobre formação. Chegou-se então à conclusão de que seria mais ponderado escolher candidatos entre pessoas levemente neuróticas (Millot, 2006, p. 37).
A não escolha das chamadas pessoas normais como postulantes à formação psicanalítica, pessoas que proponho chamar de normatizáveis ou normatizadas, soa em conformidade com a impossibilidade de transmitir pedagogicamente o inconsciente. O empuxo normalizante pode impedir de viver a ruptura na unidade egoica que nos vem quotidianamente do sonho, da estranheza que se insere no familiar, dos equívocos. A pessoa “normal” obtém ganhos ao curto-circuitar a interrogação ainda sem resposta, ao não encarar a vulnerabilidade, a fragilidade. E, certamente, perde, sem o saber, o acesso à imaginação criadora, à serenidade que vem de seguir o pulsar de seu desejo.
O psicanalista como postulante ou como “postulado”: alguém capaz de pôr-se em situação de busca no âmbito pessoal, no âmbito do conhecimento e no âmbito da abrangência social de sua prática e às possíveis repercussões sobre suas teorias. Na formação, processo contínuo para todo psicanalista, é importante pensar e não só acumular conhecimento.
É da elucidação e do desdobramento da torção daquele que se propõe a ser analista que Dominique Fingermann trata, segundo uma perspectiva lacaniana, em A (de)formação do psicanalista (2016). Mudando em seu livro decididamente a grafia (de)formação para deformação. A insistência inicial que faz a autora sobre a forma da qualificação de um analista provém de um princípio incontornável para Lacan e para seus fieis discípulos e continuadores. Nas próprias palavras de Lacan, que a autora cita, o princípio reza: “O analista só se autoriza de si mesmo. … Isso não impede que a Escola garanta que um analista depende de sua formação” (Fingermann, 2016, p. 21). Essa afirmação, citada pela autora, requer que a sigamos um pouco.
Com efeito, o que qualifica a sua eficiência específica não é a autoridade de sua teoria, o pertencimento a uma associação de pares ou a aplicação de uma cartilha técnica, menos ainda a conformidade à demanda de quem solicita sua presença e escuta. “Algo do analista”, que não procede de nenhum Outro e cuja certeza foi apreendida por ocasião de sua própria análise, “decide de sua posição”, autoriza a sua função “de” analista e sua intromissão na análise dos outros. (Fingermann, 2016, p. 21)
O psicanalista se autoriza com base em seu inconsciente
A deformação necessária virá de sua análise didática que deverá ser uma análise pura ou análise em intensão - análise em seu sentido inerente -, duas expressões de Lacan.
Lacan retoma dois pontos da controversa proposta de Ferenczi em que este afirma a não diferença entre análise didática e análise terapêutica, mas devendo a didática ser uma superterapia, uma análise que investigue e trate os mais entranhados modos de ser e de comportar-se - o caráter, a fortaleza defensiva mais pétrea.
Com Lacan a formação psicanalítica, isto é, tanto a análise didática quando a transmissão do conhecimento analítico e do fazer analítico, é pensada com base em uma teoria da formação, ou seja, é pensada com base no interior mesmo da experiência analítica, da experiência do inconsciente. Esse seria o antídoto contra o dogmatismo, a imposição de regras advindas de campos externos à psicanálise, como é, para ele, a formação que adquirimos na academia, cujo padrão teria sido importado pela ipa. É somente uma análise não condicionada pela temporalidade cronológica, medida em minutos na sessão ou em anos de duração, mas na temporalidade necessária para libertar o desejo de sua fantasia inconsciente nuclear. De tal forma se produzirá um desejo inédito, subsequente à destitituição subjetiva que marca para Lacan o fim da análise. Assim, o analista poderia se haver com a solidão, sustentar sua posição posta à prova a cada novo paciente e a cada nova sessão. E a partir daí exercer seu talento poiético em interpretações inventivas, não padronizadas.
Fabio Herrmann, ao falar da superterapia de Ferenczi (Herrmann, 1996, p. 225), pergunta-se sobre o analista enquanto homem concreto e sobre o que ele denomina fantasias. Fantasia de que o desejo de se analisar é o único que deve mover a análise didática, que a cura e o alívio do sofrimento não cabem em nossa prática, que o futuro analista só deve ser movido pelo amor à psicanálise.
Existe, ao todo, um código imaginário de bom comportamento que tem mais peso na orientação ideológica de nossa prática do que os 24 volumes da obra de Freud juntos, e cujo selo distintivo é, sem sombra de dúvida, a abstração do homem concreto. (Herrmann, 1996, p. 225)
Além da análise didática e da supervisão, como deveria ser o ensino? Escreve Fingermann:
A questão, para nós, é como produzir, proporcionar, um ensino que seja coerente com a deformação exigida pela formação do analista. Como propor um “ensino verdadeiro”, isto é, “que não pare de se submeter à novação”? (Fingermann, 2016, p. 25).
As palavras e expressões entre aspas são citações extraídas pela autora do texto do próprio Lacan (1995, p. 437).
Dominique Fingermann nos conta que, quando criança, se via fascinada pelo anagrama de seu nome “Quinedimo”. Muitos de nós, quando crianças, brincamos com nossos avessos. Daí me vem a pergunta: em que gênero de instituição poderia se manter a presença do avesso, do anagrama no plano ontológico em nós e sua busca em nossos analisandos?
Certamente numa instituição em que, junto e além de seu percurso oficial, haja um percurso pessoal, uma escolha do que não escolher (Dunker, 2017).
Para Fabio Herrmann, a resposta à pergunta feita acima seria: em uma instituição onde haveria um instituto de ensino não escolástico (Herrmann, 1996, p. 225). É interessante acompanhar a “fantasia” que Fabio põe em palavras através de sua imaginação criadora ao expor o que seria um ensino “não clichê”. Nele, a pesquisa do psiquismo em áreas ainda desconhecidas e impensadas como objeto de estudo da psicanálise seria o ponto forte, sem com isso deixar de lado o exame do conhecimento já adquirido. Esse modelo de ensino não seria inédito, pois assim foi a psicanálise em seu início, nos lembra o autor. Seria uma utopia regressiva? Ou seria mesmo a retomada de um ímpeto que se perdeu?
A pesquisa do psiquismo nas novas patologias, nas patologias que aparecem em novas formas, a pesquisa de regiões obscuras do funcionamento psíquico e seu sucesso terapêutico na análise, a análise de sentimentos - a saudade, a dor de cotovelo, o amor, a vergonha -, a investigação, podemos dizer, continua vigorosa. Embora nem todo psicanalista queira se dedicar à pesquisa, haverá um psicanalista se a pessoa em questão abdicar de ser um pesquisador em sua clínica? Haverá um psicanalista que não queira compartilhar suas descobertas e o que está encoberto para ele na análise de seus pacientes?
Não temos outra escolha senão sermos um detetive bem particular.
Talvez a síntese mais poderosa do legado freudiano esteja em seu “Breve informe sobre a psicanálise”, escrito em 1923, em que Freud atribui à psicanalise uma conjunção inédita entre curar e investigar os processos psíquicos. Ele reconhecidamente atribui essa descoberta a Breuer que, contudo, escolheu não se manter psicanalista.
Freud em “Análise terminável e interminável” (1937/1976a) cogitou ser a análise uma profissão impossível, assim como confessou que uma conclusão assimptótica da cura não o perturbaria. Talvez possamos não repetir Breuer graças a nosso contato com nosso próprio inconsciente, com nossos sonhos, graças ao compartilhamento de questões de toda ordem que nos surgem com base em nossos pacientes e pelo contato com nossos pares nas trocas institucionais que visam manter a vitalidade, sempre em perigo, da instituição. O que em “dialeto” lacaniano seria expresso como não ficarmos neuroticamente submetidos ao horror à verdade.
Mas nem todo analista é um detetive bem particular, detetive do singular, do traço distintivo, da síntese essencial de seu analisando. A atração magnética de teorias (en)cobre possíveis descobertas.
Eis o que Fabio passa a descrever como sua utopia regressiva ou o modelo a reeditar na formação do psicanalista: uma espécie de “laboratório” de pesquisas
onde cada professor desenvolveria sua pesquisa sobre algum aspecto da psique. Investigaria algum sentimento como alegria, investigaria os jogos de poder no casamento, uma revisão crítica das metapsicologias para detectar qual seria mais apropriada para analisar pacientes com perversão… Os temas variariam com o interesse de cada um. Os estudantes acompanhariam as pesquisas, estudariam os textos clássicos pertinentes. Caberia um curso introdutório a Freud e as bases metodológicas. Alguém se interessaria por uma visão crítica das escolas … (Herrmann, 1996, p. 224)
Em sua “fantasia” pode-se ler a presença, a insistência do desejo de saber. A esse propósito Coutinho Jorge escreveu:
Em O seminário, Livro I: os escritos técnicos de Freud, Lacan propusera o amor, o ódio e a ignorância como as três paixões fundamentais do ser (Lacan 1953-4). A paixão da ignorância - que é, de fato, a novidade introduzida nessa trilogia das paixões - é estrutural da neurose e corresponde ao desejo de não saber ou ao horror de saber. Lacan, contudo, pondera que o amor do saber é algo comum ao humano. E difere do desejo de saber. A rigor, não há contradição entre o amor de saber e o desejo de não saber, pois o amor do saber é algo que consome o saber que está ali dado como algo imutável. Já o desejo de saber, próprio ao psicanalista, está ligado à produção, à invenção do saber, e não a seu consumo. (Jorge, 2010, p. 251)
Em seu texto sobre formação psicanalítica Fabio Herrmann “transcriou” - sem sabê-lo ou sabendo - a série de onze litografias de Pablo Picasso, El Toro. Através delas, Picasso buscaria o essencial do touro. Escreve Fabio:
O movimento de uma forma humana qualquer, seja a de ser humano, seja a de uma profissão, arte ou ciência, tem de atravessar um estreito e decisivo desfiladeiro. Nalgum momento, quando entre uma e outra geração há que se transmitir o como ser ou como fazer algo, é mister que se passe apenas a essência da arte em questão, num sentido lato, e não as idiossincrasias do sujeito transmissor. Mas como separar uma coisa da outra? Num texto recente (Herrmann, 1992, p. 105), procurei mostrar que, desde a Antiguidade mais remota e nas culturas ditas primitivas, o culto dos antepassados tem servido a esse propósito. Em poucas palavras, o processo funciona assim. Erige-se uma estátua ou qualquer outra forma de representação que fixa a forma mínima e essencial do aspecto humano a ser transmitido, que leva o nome de um ancestral prestigiado. Destarte, quando o mais velho e o mais novo prostram-se juntos diante do símbolo do antepassado, aquele transmite a este um como ser ou como fazer essencialmente algo, porém, sem reivindicar para si a autoria nem impor ao outro suas próprias peculiaridades … No caso … (Herrmann, 1996, p. 223)
Para o autor, a forma essencial de nossa disciplina reside no método, que visa a ruptura, uma interpretação que dê origem a um sentido inédito, desvelador de uma estrutura em que o objeto - um paciente, um fenômeno cultural, um momento da história humana - estava retido. Podemos então nos perguntar, onde ficam todas as nossas teorias? Nossas teorias, responderiam Bento Prado Jr. (1985, p. 10) e Fabio Herrmann, derivam da interpretação. Se nossas teorias são generalizações que têm base em interpretações, não as podemos tratar como leis universais do psiquismo e delas deduzir uma interpretação.
O “heureca” que entusiasma o psicanalista não seria encontrar a teoria no paciente, embora às vezes se grite “heureca!” nessa situação. “Heureca” seria, sim, encontrar o paciente com base no uso tentativo de uma teoria que nos seja sugerida pelas falas do paciente e que em sua resposta se renove.
No texto de Fabio Herrmann utilizado aqui, mais do que uma fantasia, temos também uma teoria da formação. Herrmann parece entender que, entre o passado e o futuro da psicanálise, entre quem ocupa o lugar de transmitir e aquele que ocupa o lugar de receptor, deve haver uma relação como aquela posta na representação iconográfica do ancestral.
quando o mais velho e o mais novo prostram-se juntos diante do símbolo do antepassado, aquele transmite a este um como ser ou como fazer essencialmente algo, porém, sem reivindicar para si a autoria nem impor ao outro suas próprias peculiaridades… (Herrmann, 1996, p. 223)
Para finalizar, uma pequena entrevista tendo, a meu ver, o mérito de nos pôr em contato com o que se passa em relação à formação e à pertinência a uma instituição psicanalítica ligada à ipa em outro continente. Nela podemos ver como a pertinência e o valor atribuído ao postulante e à formação são históricos, ou seja, suscetíveis a condições históricas. Não esquecendo que somos sujeitos da História e sujeitos à História.
Fernanda Sofio3 é membro efetivo da American Psychoanalytic Association (apsaa). Em sua recente vinda ao Brasil falamos sobre a formação lá e cá.
Fernanda - Minha formação psicanalítica foi iniciada e desenvolvida no Brasil, fora de qualquer instituição. Contudo, fiz análise com uma analista ligada à sbpsp, e supervisões e seminários abertos com membros da mesma instituição. Após meu pós-doutorado, por uma série de motivos, fui morar nos eua. Lá fui convidada a entrar como active member (equivalente a membro efetivo) na apsaa.
Entrevistadora - Convidada?
Fernanda - Convidada é modo de dizer. Uma pessoa membro do Board da apsaa foi muito insistente para que eu me apresentasse a membro pela via do “Expanded Pathway”. Essa via implicou montar um dossiê com meu percurso, ou seja, precisei documentar minhas supervisões, análise (considerada equivalente à didática) e estudos teóricos. A pessoa que me incentivou e me amadrinhou me deu algumas dicas. Por exemplo, frisou a importância de dizer que os analistas com quem estudei e me formei são todos ligados à ipa. O processo levou menos de seis meses. Aprovado o dossiê, fui incluída como active member da apsaa e, consequentemente, como membro da ipa.
Entrevistadora - Sem a necessidade de repetir a análise, a supervisão ou cursos?
Fernanda - Sem essa necessidade. Minha “madrinha” me disse depois que insistiu tanto na minha apresentação a membro porque gostou muito das minhas publicações. Ela não pode ler meus artigos que estão em português, mas dei para ela o Anotando a China,4 e ela percebeu que meu trabalho é sério. A ideia dela era que, se eu estava contribuindo para a psicanálise fora de qualquer instituição, então valia a pena me ver dentro da sociedade psicanalítica americana.
Além disso, eu tinha um percurso como membro psicoterapeuta da apsaa desde 2012. Acho que tudo isso contou para essa comissão que avaliou meu dossiê.
Entrevistadora - Membro psicoterapeuta?
Fernanda - Sim, existem várias categorias de membros na apsaa. Assim como aqui, há os candidate members, que estão fazendo formações nos institutos, e os active members, que concluíram essa formação. Mas há também os academic associates, psychotherapeutic associates, educator associates e research associates. A ideia é que pessoas com interesse em psicanálise e percursos os mais diversos na área participem da instituição e contribuam para ela das mais diversas formas. Enfim, também existem fellowships da apsaa, bolsas, tudo isso para quem ainda não é active member e provavelmente nem vai ser.
Entrevistadora - E me diga uma coisa, a apsaa teve sempre essa abertura toda?
Fernanda - Claro que não! Nos anos 1980, só médicos podiam fazer formação em psicanálise na apsaa, e a formação era no modelo Eitingon. A apsaa sofreu um processo enorme para aceitar psicólogos que também queriam se formar psicanalistas. Dizem que a apsaa teria morrido se não tivesse cedido. Era um processo muito grande, envolvia muito dinheiro. Naquele momento, a apsaa foi forçada a se abrir. Mas o fato é que continua se abrindo mais e mais, e isso não é imposição externa como nos anos 1980. É a mentalidade dos diretores da instituição que foi mudando.
Entrevistadora - Como é essa mudança da mentalidade de um grupo com a apsaa?
Fernanda - Olha, minha resposta só pode ser especulativa. Penso que tem a ver com o pragmatismo americano. A procura por formação psicanalítica caiu muito nos anos 1990, e eles precisaram se mexer. Também foram pragmáticos ao aceitar fazer um acordo com os psicólogos, em vez de prosseguir com o processo que eu mencionava. Como consequência, perderam o monopólio ligado à ipa. Hoje há sociedades e institutos ligados à ipa que não passam pela apsaa.
Mas o gatilho disparado nos anos 1980 e 1990 continua tendo efeitos hoje, apesar de a procura ter aumentado bastante novamente. Ou seja, não foi só o pragmatismo ligado ao decréscimo de pacientes e ao processo que sofreram que foi decisivo. Houve uma virada mesmo, e hoje é tudo muito diferente.
Entrevistadora - Pode contar mais?
Fernanda - Hoje são 35 institutos de psicanálise ligados à apsaa. Muitos deles têm uma formação muito estrita, provavelmente comparável à daqui. Por outro lado, a apsaa, em particular, enxergou a necessidade de incluir membros diretos, que estão igualmente ligados à ipa, mesmo sem estarem ligados a um instituto, como é o meu caso. Para que isso tudo fique mais claro, podemos pensar na apsaa como mais ou menos equivalente à Febrapsi. O que a apsaa permitiu e tornou parte de seu estatuto seria como se a Febrapsi se abrisse para aceitar membros diretos, não ligados a sociedades brasileiras, e isto fosse aprovado pela ipa, de tal forma, que um psicanalista de São Paulo, por exemplo, pudesse estar ligado à Febrapsi e à ipa, com título de membro efetivo, sem estar ligado a uma sociedade.
Entrevistadora - Trocando de pato para ganso. Você havia comentado comigo que, se, por um lado, teve sorte no campo da psicanálise, por outro, teve azar no campo da psicologia.
Fernanda - Sim. Tendo em vista a facilidade com que me tornei membro da apsaa, não quero dar a entender que os americanos não têm regras. Pelo contrário! Vivendo lá descobri que são muito mais burocráticos do que nós. Respeitam cada vírgula de cada contrato, mesmo aquele que nos pareceria o mais banal. Por falar em banal, um exemplo banal: não tente cortar fila nos eua, mesmo se estiver com pressa ou tiver alguma outra desculpa excelente para fazê-lo. Você estaria infringindo várias regras, de personal space (espaço pessoal), respeito ao tempo alheio, ordem, e por aí vai. O que aconteceu quando me apresentei à apsaa foi que o meu percurso em psicanálise se encaixava muito bem nos requisitos americanos. It crosses all the t’s and dots all the i’s, como dizem eles. Por esse motivo, foi possível haver unanimidade na hora de me aprovar. Já na aquisição da carteira profissional de Psicologia, que também é necessária, está sendo muito mais difícil, pois meu percurso não se encaixa exatamente nos requisitos americanos.
Entrevistadora - Quais requisitos, por exemplo?
Fernanda - Atualmente estou tendo que fazer uma supervisão com uma analista para obtenção da carteira profissional de psicóloga em Nova Jersey, estado onde vivo.
Entrevistadora - E como é sua experiência com essa supervisora?
Fernanda - Preciso ter muito jogo de cintura. Sei que preciso da supervisora, e minha relação com ela é muito boa. Mas preciso dela não para me ajudar com a paciente, e sim, simplesmente, para obtenção da carteira profissional.
Entrevistadora - Como é isso?
Fernanda - Estamos discutindo semanalmente o caso de uma paciente que, por exigências institucionais, necessitou mudar de analista. Então, eu precisava ouvi-la sobre essa experiência. O choque foi ver minha supervisora insistindo decididamente para que eu “encontrasse” a transferência negativa na minha relação com a paciente. Senti isso como uma demanda que, se eu acatasse, impediria que eu a ouvisse. Ao mesmo tempo, essa supervisão está sendo uma experiência muito interessante, porque eu lia sobre a questão do interpretante único nos textos do Fabio Herrmann, mas minha formação nunca esbarrou nisso. Sempre trabalhei com pessoas ligadas à Teoria dos Campos, que possuem muita liberdade na clínica e um excelente manejo teórico. Então, eu lia e entendia o que Fabio dizia, criticando psicanalistas que tentam encaixar a teoria no paciente, mas jamais tinha vivido isso na pele até agora.
Entrevistadora - Relembrando o amor pelo saber que consome o saber, que o quer imutável poderíamos dizer que sua supervisora ama esse interpretante, que, todavia, pode ser tão útil na clínica? Fernanda - Sim, espero que seja isso.
Entrevistadora - Como assim?
Fernanda - Espero que ela realmente ame esse interpretante mais que os outros. Meu temor é que ela não conheça nenhum outro interpretante. Nem, muito menos, que permita uma hipótese interpretativa emergir na relação com cada paciente.