À Supervisora (também) millennial,
Tudo bem? Fiquei pensando nas nossas últimas conversas e aproveitei para te escrever.
Você está certa em dizer que sou em cima do muro, crítica, avaliativa e numa constante procura por moderação. Você bem sabe que eu sou obcecada pelo Camus (e, ultimamente, pelo Tolstói).2 Eu também concordo que essa parte muito me atrapalha quando atendo. São todas as coisas que eu penso com muita frequência.
Mas veja, eu sou uma mulher com muitas dúvidas, trabalhando numa profissão que tem um poder de influência social enorme, num momento cultural em que tudo acontece ao mesmo tempo e que me parece contrário ao que eu intuitivamente faço: considerar o máximo de um pensamento antes de desconsiderar.
Você talvez já saiba, mas o Marshall McLuhan fala que o meio é a mensagem. Ele escreveu:
Este fato apenas serve para destacar o ponto de que “o meio é a mensagem”, porque é o meio que configura e controla a proporção e a forma das ações e associações humanas … A General Electric aufere uma boa parte de seus lucros das lâmpadas elétricas e dos sistemas de iluminação. Ela ainda não descobriu que, tanto quanto a A.T. & T., ela está no negócio da informação móvel e em mudança. (McLuhan, 1969/2007, p. 23)
Mas por que estou te dizendo isso?
Bom, porque isso significa que como analista eu sou o meio e mensagem.
E, se eu sou o meio então isso é ser alguém que teve muitos privilégios e é mulher. Alguém que sabe que existem preconceitos em todos e, que se é em todos, em mim também é. Alguém que também é capitalista e têm dúvidas sobre esse sistema; tem um fascínio por isso e não sabe para onde ir.
Querer é poder, me disseram. Imagina. Hoje em dia mal sabemos se querer é querer ou se é trabalho dos algoritmos.
Outro dia, eu considerei comprar um tênis da Nike, de mais de mil reais! Se a minha vida dependesse de qualquer habilidade esportiva eu não estaria aqui te escrevendo. Então, você consegue me explicar isso? O máximo que cheguei a considerar é que, como outros reles mortais, o que eu quero é status de “Just do it” e ser A melhor. Mas essa é uma interpretação tão banal que senti preguiça até mesmo enquanto escrevia essa frase. Quase apaguei.3
Enfim, ser o meio também significa ser alguém que pensa e repensa todos os dias sobre o feminino, o masculino, o dinheiro, o amor, a violência, a arte, o mercado imobiliário enlouquecedor de São Paulo (esse assunto eu deixo para te escrever outro dia), sobre a desigualdade de todo tipo de recurso, sobre o fato das escolas particulares do fundamental 1 estarem todas preocupadas em se tornarem bilíngues.
É pensar que tudo é muita coisa e sempre é o tempo todo incluindo o futuro.
E veja, eu quero acreditar no futuro.
Eu quero que exista espaço para isso. Mas, sendo sincera, eu não tenho acreditado tanto assim que eu vou conseguir me aposentar. Que as pessoas que eu atendo estarão seguras, que o que é humano em nós continuará a existir.
Você lembra aquele texto que me mandou no começo da pandemia? Sobre certas situações de exceção em que o analista e o analisando estão vivendo a mesma coisa? O da Janine Puget e do Leonardo Wender. Bom, eu vejo muito do mundo atual como um estado de exceção. Algo totalmente novo. Tal qual o domínio do fogo e a invenção da eletricidade (se eu fosse ousada mencionaria até a criação da psicanálise). Enfim, estamos todos no mesmo barco.
Mas, voltando um pouco para o que eu estava falando de McLuhan, ele escreveu que
Os efeitos da tecnologia não ocorrem aos níveis das opiniões e dos conceitos: eles se manifestam nas relações entre os sentidos e nas estruturas de percepção, num passo firme e sem qualquer resistência.
…
Cada produto que molda uma sociedade acaba por transpirar em todos e por todos os seus sentidos. (McLuhan, 1969/2007. pp. 34-37)
Aí está uma das minhas grandes questões. Não é, somente, que eu me formei psicóloga (e, talvez, psicanalista) numa sociedade pós-moderna, narcísica e consumista. É que me formei como pessoa nessa sociedade. E se o meio é a mensagem e se eu sou o meio, acho que não é à toa que estou preocupada.
Eu sou ao mesmo tempo uma pessoa, uma ferramenta tecnológica e um produto. Meus dados são vendidos para sei lá quem, sabe-se lá onde, para que eu compre sei lá o quê (Aliás, você me avisa se receber algum anúncio sobre os tênis da Nike depois de receber esse texto?).
Você já leu A rosa mais vermelha desabrocha, da Liv Strömquist? É um livro sobre os tempos do capitalismo tardio. É um ensaio - uma hipótese - do motivo do apaixonamento ser raro hoje em dia. É também (entre muitas outras coisas) um comentário sobre psicoterapia e, eu arrisco dizer, sobre psicanálise também. Ela escreve sobre
a crescente cientificação de tudo na sociedade; a moda da psicologia que nos incentiva à autoanálise; a nossa predileção por especialistas … a maneira racional de tomar decisões impede a capacidade de sentir um forte envolvimento emocional … a tecnologia, os métodos científicos podem ter o efeito contrário. (Strömquist, 2021. p. 27)
E qual é esse efeito contrário? A - cada vez menos possível - capacidade de amar. Mas, tem mais: “Hoje em dia, na cultura terapêutica de desempenho é comum que os traídos, os enganados e os nunca ‘escolhidos’ se responsabilizem a si mesmos” (Strömquist, 2021. p. 113), E, também: “Estamos numa época em que meu próprio eu é superimportante” (Strömquist, 2021. p. 124).
Quando eu li esse livro eu senti alívio e ansiedade. O primeiro porque ela escreveu sobre o que eu estava me perguntando sobre o amor. O segundo porque eu faço parte da cultura psicoterapêutica que ela descreve para a qual sofrimento é quase um sinônimo para defeito e autonomia e independência se equivalem.
A mensagem psicoterapêutica, às vezes, pode ser algo como:
SINTA! (mas para parar de sentir logo e trabalhar mais)
VIVA SUAS emoções! (mas para aprender a controlá-las e trabalhar melhor)
FALE! (porque, supostamente, falar faz com que o sentir vá embora mais rápido) (mas só o sentir ruim)
E aqui - finalmente - cheguei onde eu quero chegar.
(Silêncio)
Honestamente, lá do fundo do coração, tem um lado meu que tem medo do que as pessoas que atendo sentem. Eu não tenho orgulho de ser assim. Entretanto, assim é. Eu sou o meio.
(Desculpa inserir mais parênteses, mas você já notou que, em muitas histórias do gênero de ficção científica, as distopias retratam sociedades que almejam o contínuo bem-estar dos seres humanos?)
Bom, eu certamente não quero viver dentro do Fahrenheit 451, mas caso seja necessário, eu quero ser o bombeiro que se transforma quando ele vê como a realidade sem sentimento é estranha e triste. Ainda que, muitas vezes, eu não seja essa pessoa.
Eu quero ser o personagem do Admirável mundo novo que é adaptado e, ainda assim, desiste daquela realidade porque sabe que existe outro mundo em que sentir é possível. Ainda que, muitas vezes, eu não seja essa pessoa.
Mas...
Como eu faço para analisar e existir nesse mundo em que nasci e que me diz algo diferente de como age?
Em que parece que tudo vira questão e interpretação até chegar ao ponto que as coisas parecem virar nada?
Só que nada também é muito. Entende?
Como eu faço para escutar e não julgar ou para só avaliar sendo compelida a avaliar e julgar?
Como eu faço para pensar o todo e o um ao mesmo tempo?
Como eu faço para ser o meio, mas sem ser esse meio?
Como eu faço para ser esse meio e mensagem (que eu sou) e outro meio e mensagem (que eu também sou)? Isso é possível?
Eu não quero (e talvez ser analista seja não querer tanto) que todas essas pessoas que eu conheço quebrem, caiam, fiquem desesperadas ou extremamente infelizes. Ou que elas fiquem paralisadas (embora seja um direito delas).
O que eu também não quero é cortar partes delas que são importantes para elas. Ou atropelar o direito de elas serem quem são. O que eu não quero é dizer sinta e, ao mesmo tempo, agir para elas não sentirem.
Ainda assim, de vez em quando, eu não consigo evitar pensar em todos esses riscos quando escuto alguém. E aí, fico irritada. E aí, eu paro de ouvir.
E que irritação é essa (você deve ter se perguntado)?
A irritação de não estar certa (ou será que é de não ter certeza?).
A irritação de sentir medo.
A irritação de não ter ideia do que fazer.
A irritação com as palavras (incluindo às que eu acredito) que são incessantemente reproduzidas.
A irritação de, convenhamos, ser uma grandessíssima chata. Mas, também, de me sentir perdida.
A irritação de não ser inteiramente quem eu sou. É essa sensação constante de não conseguir mais concordar e discordar totalmente de nada.
Acredite que isso não é uma provocação. E muito menos um discurso sobre achar necessário ver o outro lado. São as mais sinceras, íntimas e estranhas dúvidas que eu tenho (e espero, em geral, que outras pessoas também tenham).
Eu li uma crítica - escrita pela Shirley Li - sobre a adaptação televisiva de “Conversas entre amigos” da Sally Rooney. Uma frase me marcou.
Being a Millennial, Rooney posits, is being annoyingly aware of too much - of gender, of class, of dynamics that previous generations didn’t have the vocabulary to discuss - and then being unable to deal with it. (LI, 2022) 4
Como você lida com tudo isso? Às vezes, eu sinto que sei um pouco mais. Às vezes, eu sei que sinto um pouco menos. Às vezes, eu só não sei o que sinto ou o que eles sentem.
E o que eu sei não me parece bonito. Minhas indecisões em relação às minhas percepções. Meu medo de ser analista. Meu medo de não ter medo. Meu medo de saber de mais e de menos. E meu medo de falar.
Enfim, por isso que quero conversar com você. Para, talvez, só talvez, ficar um pouco menos perdida quando estou muito perdida. E, talvez, só talvez, viver a solidão das pessoas que eu atendo sem temer uma catástrofe. Na torcida que assim eles (e eu) nos sintamos menos sós e o futuro possa ser diferente.
Você me entende? O que você acha?
Grande beijo,
P. S. 1
Você já parou para pensar como nós, profissionais da saúde mental, costumamos dizer para as pessoas que tudo bem precisar, às vezes, de intervenções medicamentosas. Mas que ao mesmo tempo, se bobear, era mais fácil o Freud mencionar que mexia com cocaína5 do que hoje em dia um analista admitir que está tomando algum antidepressivo. Não é curioso?