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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.57 no.106 São Paulo  2024  Epub 26-Ago-2024

https://doi.org/10.5935/0103-5835.v57n106.13 

Artigo

O método psicanalítico no texto acadêmico: Três exemplos e algumas observações

El método psicoanalítico en el texto académico: tres ejemplos y algunas observaciones

The psychoanalytic method in academic texts: three examples and some remarks

La méthode psychanalytique dans le texte académique : trois exemples et quelques observations

Renato Mezan1 

1Psicanalista, professor titular da PUC-SP e autor de diversos livros, entre eles, Escrever a clínica e Tempo de muda. São Paulo


Resumo

Baseando-se em sua experiência de 39 anos orientando teses de pós-graduação na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, o autor discute as diferenças entre uma “obra de caráter clínico-psicanalítico” e uma “obra acadêmica”. Esse fato tem consequências em diferentes níveis, desde as exigências de consistência lógica, metodológica e epistemológica até questões de retórica e ética. Como ilustração de suas ideias, o autor examina minuciosamente três exemplos de trabalhos que ele pessoalmente orientou. Em cada um deles, tenta demonstrar como os princípios que defende - e que espera que sejam seguidos por seus alunos - resultam em contribuições modestas, mas sólidas, tanto para a teoria quanto para a clínica psicanalíticas.

Palavras-chave: escrita acadêmica; padrões de rigor em ciências humanas; implicação pessoal do autor/a no que argumenta; epistemologia da Psicanálise

Resumen

Basándose en su experiencia de 39 años orientando tesis de posgrado en la Pontificia Universidad Católica de São Paulo y una “obra académica”. El autor sostiene que un texto de este tipo participa de dos categorías a la vez: es un ejemplo de “artículo psicoanalítico”, y también un “texto académico”. Este hecho tiene consecuencias en distintos niveles, de las exigencias de consistencia lógica, metodológica y epistemológica hasta cuestiones de retórica y de ética. Como ilustración de sus ideas, el autor examina con minucia tres ejemplos de trabajos que ha personalmente orientado. En cada uno de ellos, trata de demostrar cómo los principios que defiende - y que espera sean seguidos por sus alumnos - resultan en contribuciones modestas, pero sólidas, tanto a la teoría como a la clínica psicoanalíticas.

Palabras-llave: escrita académica; exigencias de rigor en ciencias humanas; implicación personal del autor; autora en lo que sostiene; epistemología del Psicoanálisis

Abstract

From his 39 years old experience directing graduate theses at the Pontifical Catholic University of São Paulo, the author argues that this kind of text participates of two different categories: it is both a psychoanalytic paper and an academic one. This has consequences on several levels, from the required logical, methodological and epistemological consistence up to rhetorical and ethical questions. To illustrate his argument, he examines closely three works he has personally directed, showing on each one how the principles he defends - and which he urges his students to abide by - lead to small but solid contributions to psychoanalytic theory and practice.

Keywords: academic writing; scholarly standards in social sciences; personal implication of the author in the views he/she defends; epistemology of Psychoanalysis

Résumé

En s’appuyant sur son expérience de 39 années en tant que directeur de thèses à l’Université Catholique Pontificale de São Paulo, l’auteur soutient qu’un texte de ce type participe à deux catégories différentes: il est un exemple d’“article psychanalytique” et aussi de “texte académique”. Cela a des conséquences à différents niveaux, allant de certaines exigences de consistance logique, méthodologiques et épistémologiques jusqu’à des questions de rhétorique et d’éthique. Comme illustration de cet argument, il examine de façon serrée trois travaux écrits par ses étudiants. Il montre sur chacun d’entre eux comment les principes qu’il soutient - et insiste pour que soient adoptés par ses étudiants - conduisent à des contributions modestes, mais néanmoins solides, à la théorie et à la pratique de la Psychanalyse.

Mots-clé écriture académique; standards de rigueur en sciences humaines; implication personnelle de l’auteur dans ce qu’il/elle soutient; épistémologie de la Psychanalyse

Trinta e nove anos como orientador no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da puc/sp2 me ensinaram que, se a expressão “tese de Psicanálise” está longe de ser unívoca, não obstante se refere a algo suficientemente preciso para que possamos distingui-la de outras espécies, tanto no gênero “tese acadêmica” quanto na categoria “escrito psicanalítico em geral”. Como procurarei argumentar (e ilustrar) neste artigo, ela consiste na combinação a cada vez única e original de aspectos pertencentes a esses dois campos, e isso independentemente do assunto tratado, do grau pretendido (mestrado, doutorado ou pós-doc), e da pespectiva teórico-clínica do autor.3

Do assunto tratado: entre os cento e sessenta e sete trabalhos de cuja elaboração pude participar até o momento (março de 2024), muitos se debruçam sobre temas clínicos propriamente ditos; outros abordam questões de cunho teórico, ou histórico; há os que empregam a lente psicanalitica para estudar fenômenos e processos sociais nos quais se inscrevem comportamentos e atitudes de certos segmentos da população, ou para aprofundar a compreensão de criações nas várias esferas da cultura (ciências humanas, literatura, cinema etc.). Do grau pretendido: são 113 mestrados, 49 doutorados e 5 pós-doutorados, sem contar os que atualmente se encontram em andamento. E da perspectiva teórico-clínica: há textos de inspiração freudiana, kleiniana, winnicottiana, lacaniana - até um baseado em Jung, em co-tutela informal com um especialista dessa corrente.

Diferentemente da tesi di laurea sobre a qual Umberto Eco escreveu em seu clássico Como se faz uma tese (1975), o objeto de que falamos aqui não resulta da obrigação legal imposta ao estudante para obter um diploma de graduação. É produto de uma escolha fundamente enraizada na vida psíquica do seu autor, que lhe imporá sacrifícios de várias ordens, uma disciplina de trabalho e um intenso esforço de escrita, que só podem ser aceitos se contrabalançados por motivações muito poderosas.

Entre elas, contam-se algumas compartilhadas por todos os candidatos a um título de pós-graduação, como o desejo de avançar na carreira acadêmica, ou de intervir nas discussões em curso no campo a que cada qual se dedica. Outras, porém, são específicas do psicanalista, que no mais das vezes não é nem quer ser professor universitário, e nascem do interesse em refletir sobre problemas teóricos ou clínicos que o intrigam enquanto praticante da terapia freudiana. Nessa qualidade, ele estará a par da existência de fatores menos evidentes, porém não menos determinantes - por exemplo, o valor narcísico de ter realizado um bom trabalho, que angarie o respeito e a admiração dos colegas e contribua em alguma medida para ampliar nosso conhecimento das possibilidades abertas à mente humana.

Não raro, a esses componentes subjetivos se mescla a vontade (por vezes, a necessidade) de lidar com resíduos contratransferenciais que permanecem ativos após a conclusão de um tratamento, ou de alguma atividade profissional desempenhada em âmbito exterior ao consultório. E, por fim, a tese é também a face visível de um objeto interno, portanto em parte inconsciente, que como toda entidade desse tipo concentra em si facetas pulsionais, entra em diferentes configurações conflitivas e defensivas, e participa de fantasias as mais diversas.

Esses são alguns dos aspectos que fazem da tese de Psicanálise uma variedade da categoria “escrito psicanalítico” - e tal afirmação não é em absoluto tautológica: trata-se de um trabalho que contribui em medida nada desprezível para que o analista compreenda melhor quem é e o que faz. Por outro lado, ela é também um texto acadêmico, e precisa se enquadrar nas regras desta categoria: deve investigar uma questão razoavelmente delimitada, demonstrar conhecimento da maneira como tem sido tratada na literatura científica, apresentar argumentos convincentes em favor da posição tomada a respeito dela, levar em consideração possíveis objeções, e - o que reputo essencial - estar redigida em boa prosa, clara, correta e agradável à leitura.

Nada há aqui de especificamente psicanalítico: trata-se de uma pesquisa que, como qualquer outra e em qualquer área do conhecimento, deve ser epistemológica e metodologicamente consistente, arquitetonicamente bem construída, e retoricamente persuasiva. Seria absurdo imaginar que, por ser ou para ser um trabalho de Psicanálise, a forma de exposição adequada seria por exemplo a livre-associação!

Cabe aqui uma breve ilustração do que tenho em mente: o primoroso mestrado de Maria Auxiliadora Arantes, Pacto Re-velado (1999). A autora se baseou em seus dez anos de clandestinidade política e em depoimentos de militantes com quem compartilhou essa condição, e começou por redigir suas memórias daquela época. Um relato comovente, por certo, mas que não bastaria para constituir uma dissertação. Por vários meses, ela e eu nos debatemos com a pergunta-chave: como transformar aquela narrativa num texto que pudesse ser arguido e defendido publicamente? O que faltava era, claro, uma questão capaz de ser focalizada com os instrumentos da Psicanálise. Até que um dia, refletindo sobre como fora possível suportar tantas dificuldades e tantos riscos, inclusive de vida, Maria Auxiliadora se deu conta de que os recursos emocionais para isso provinham da crença na importância do que ela e seus companheiros faziam: nada menos que contribuir, ainda que em pequena escala, para o fim da ditadura civil-militar no Brasil.

Traduzida em termos psicanalíticos, essa ideia sugeria que a força de um ideal de ego podia reduzir a usura do narcisismo exigida pela necessidade de manter em segredo a própria identidade, de comportar-se em cada minúcia da vida diária como se fosse outra pessoa, pois qualquer passo em falso podia levar à prisão, à tortura e à morte. Disso decorria uma hipótese metapsicológica a investigar: como, em certas circunstâncias extremas, se constitui um equilíbrio específico entre as instâncias ideais do psiquismo e os fatores egoicos que estruturam a autoimagem? E foi por este caminho que uma experiência pessoal dramática e traumática pôde simultaneamente ser melhor integrada à vida psíquica de quem a vivenciou, e permitir acrescentar um pequeno mas importante ladrilho ao vasto mosaico dos conhecimentos psicanalíticos.

É, pois, a reunião paradoxal de elementos de ordens diversas - uns subjetivo/afetivos, outros de natureza propriamente intelectual - que fará de um texto uma tese de Psicanálise. Contudo, o paradoxo é apenas aparente, pois a experiência comprova que é perfeitamente possível servir a estes dois senhores: está na casa dos milhares o número das que nas últimas décadas foram defendidas na puc/sp e em outras universidades pelo país afora, e na das centenas as publicadas como livros ou artigos nas revistas da área. Aliás, é precisamente na esfera da Pós-Graduação que se originou a maior parte da literatura psicanalítica escrita em nossa língua, à qual se soma um volume considerável de traduções. O que permite afirmar com tranquilidade: a biblioteca com que hoje contam os analistas brasileiros nada fica a dever às suas congêneres no Exterior.

“Está bem”, dirá talvez o leitor que me acompanhou até aqui. “Porém uma andorinha não faz verão: quero mais provas do que você está sustentando.” Pedido razoável, devo reconhecer! Proponho então examinar com mais detalhe alguns exemplos do que se pode fazer quando seguimos a linha de pensamento esboçada acima. Entre as várias opções possíveis, preferi concentrar-me em trabalhos de natureza clínica, e deixar de lado outros, igualmente bons, que focalizam temas de Psicanálise aplicada. Os três que escolhi comentar se dispõem ao longo de um gradiente: o primeiro é sobre um caso atendido em consultório, o segundo relata uma terapia em ambiente hospitalar, e o terceiro estuda algumas intervenções pontuais realizadas num abrigo infantil do serviço público.

1. Cassandra Pereira França (2016): Nem sapo nem princesa - terror e fascínio pelo feminino4

Alarmados com os comportamentos estranhos de seu filho de quatro anos e meio, os pais de B. procuram uma analista para que, “se der tempo”, reverta o que parecia estar levando a uma temida homossexualidade. Tais comportamentos - só gostar de brincar com bonecas, colocar uma calça na cabeça como se fosse uma peruca, fazer o papel de Cinderela em brincadeiras com uma amiguinha que gostava de ser o príncipe etc. - se incluem numa série de problemas que começam no choro compulsivo desde que era bebê, continuam com um agarramento excessivo com a mãe, e culminam no uso de um papel higiênico dentro da cueca para simular um absorvente íntimo.

Nas entrevistas com eles, Cassandra busca obter informações sobre a história de B. que possam dar sentido a esses fatos. A gravidez fora precedida por um longo tratamento de fertilização, e pela “certeza/expectativa” da mãe de que a criança seria do sexo feminino. No entanto, quando o marido lhe dá a notícia de que nasceu um garoto, ela não manifesta surpresa alguma - o que não deixa de intrigar a psicanalista. O relato dos pais vai revelando diversas circunstâncias que a conduzem a formar uma primeira impressão: eles não estão psiquicamente preparados para lidar com a existência de um bebê em casa, e reagem a essa “intrusão” com atitudes muito pouco adequadas - por exemplo, do choro interminável e irritante de B., a mãe infere que ele “tem fome”, e suspende a oferta do seio na sexta ou sétima semana de vida. Os problemas com a alimentação persistem, e, sem saber o que fazer, ela (e o marido) aceitam todo tipo de palpites de amigos, nunca o deixam sozinho, e assim por diante.

Como Cassandra interpreta o que ouve nessas conversas? Mediante o que podemos chamar de raciocínio clínico. Este consiste em tomar o relatado como decorrente de determinados processos psíquicos, e procurar, entre os descritos pela teoria, aqueles que têm boas probabilidades de ter parte na causação do que se está ouvindo. Entre os diversos fatos narrados pelos pais de B., os principais parecem ser as fantasias e idealizações tanto do marido quanto da esposa sobre o que seria seu filho (“antes de mais nada, uma prova da sua fertilidade”), a denegação pela mãe do choque recebido ao tomar conhecimento do sexo do bebê (“pouca diferença fazia essa criança ter nascido menino ou menina, pois seu lugar continuava demarcado: seria uma menina”), a incapacidade do marido de assumir seu lugar de pai, a possível crença dele de que a criança “estava à mercê do desejo da mae”… Os sintomas de B. surgem então como reação a esse ambiente extremamente desfavorável, e isso desde o início da sua vida:

O somatório dessas posturas do pai e da mãe leva-nos à hipótese de que a ausência de representação psíquica dessa frustração vivida pelo casal quanto ao sexo do bebê resultou em que, diante daquele bebê, não fosse assumido um desejo, ou sequer um não desejo, ou até mesmo uma rejeição, o que pode ter feito essa criança cair num vácuo criado pela ausência de desejos e de sonhos. Só restou a ela lançar mão de um dos meios preferenciais de transmissão da emoção entre os seres humanos …, o choro.5

Da mesma forma, o agarramento com a mãe e a exigência de B. de que somente ela o alimentasse são entendidos como tentativa de “impor uma precária diferenciação nos papéis” dos pais, uma vez que ambos se alternavam em todos os cuidados com ele: “foi este o modo que ele encontrou de protestar contra a indiscriminação que pasteurizava as relações familiares” (p. 49).

De onde a autora retira as bases para formular tais ideias? Na arquitetura da tese, é chegado o momento de recorrer às teorias psicanalíticas sobre o processo de constituição do sujeito nos primeiros anos de vida. Somos então remetidos a conceitos como o de desamparo (Freud), apego (John Bowlby), envelope psíquico (Didier Anzieu), angústias e fantasias projetivas (Melanie Klein), capacidade de continência delas por parte da mãe (Bion). O movimento da argumentação, como se vê, vai do imediato (o que os pais contam nas entrevistas) à interpretação do conteúdo latente presente nele (a situação psíquica do casal antes e depois do nascimento do filho), daí às noções teóricas que podem dar conta dessa situação, por sua vez selecionadas a partir da ideia de que ela produz um vácuo de algum modo sentido/ percebido pela criança. Os sintomas ganham então significação como maneiras de conviver com essa percepção aterradora, para a qual obviamente não existem palavras quando o bebê ainda é tão pequeno.

Em suma, temos nessas páginas um exemplo notável de como pensa um analista: atenta simultaneamente à “singularidade fantasmática” do menino - plano do estritamente individual, próprio somente a ele em virtude de ser filho destes e não de outros pais - e ao que essa singularidade expressa de processos psíquicos que não se resumem a ela, porque são típicos da vida emocional de todo ser humano -, Cassandra vai construindo um quadro de referência com o qual trabalhar nas sessões. O ponto de fuga deste quadro pode ser descrito, penso, como a percepção de que B. está enredado num double bind composto pela combinação entre o desejo inamovível da mãe de ter uma filha, a passividade do pai frente à esposa, e a intenção consciente de ambos de que ele abandonasse suas tendências “anormais”.

Por que considerar essa hipótese como o ponto de fuga do quadro? Porque para ela convergem, se não todas, ao menos as grandes linhas do que a analista vai descobrindo ao longo dos dois anos em que trabalha com o menino. São cerca de trezentas sessões: um vasto material clínico, que inclui centenas de desenhos produzidos por B. Deixando de lado por um momento o processo analítico enquanto tal - ao qual voltarei logo mais -, cabe indagar como ele se transforma num “caso clínico” no sentido definido acima. Como operar com semelhante volume de dados, de modo a extrair dele um escrito que tenha interesse para a comunidade analítica, e eventualmente para leitores de outros horizontes?

A solução foi dada por Freud em seus historiais clínicos: separar da “ganga” o “mineral precioso”, ou seja, buscar identificar o que é essencial, a “estrutura fina da neurose”, diz ele no Homem dos Ratos. Essa estrutura, comparável ao esqueleto de um indivíduo, é o que subjaz à carne, aos músculos e à pele que lhe dão tal ou qual aparência: os conflitos fundamentais entre pulsões, angústias e defesas, que, sem serem exclusivos daquela pessoa, nela assumem uma feição específica, que justamente faz dela esta pessoa.

Em se tratando de um processo terapêutico, isto é, das mudanças que foram ocorrendo na economia psíquica do paciente, uma boa estratégia de apresentação é se concentrar nos “pontos de inflexão”. Entendo por isso determinados momentos nos quais o efeito combinado das interpretações (pelo analista) e da perlaboração (pelo paciente) do que aparece nas sessões conduz a uma reorganização das forças em presença, reorganização essa que se evidencia de várias maneiras - por exemplo, pelo desaparecimento de um sintoma, ou pela substituição dele por outro mais benigno, por uma capacidade maior de introspecção e de insight, pelo surgimento de material mais arcaico, até então recoberto pela amnésia derivada das defesas etc. Por outro lado, o caráter mutativo desses momentos só fica claro quando colocado contra o pano de fundo do que os precedeu; por isso, é necessário apresentar ao leitor as grandes linhas desse percurso, e, na medida do possível, buscar discernir no que mudou como mudou e por que mudou.

Obviamente, durante o tratamento o analista vai refletindo sobre essas questões; porém, como ele ainda está em andamento, não lhe é possível ter diante de si o conjunto do processo. Isso só pode ocorrer uma vez terminado o tempo das sessões. Por esta razão, para mim o momento forte da pesquisa não é o deste tempo: nele se produziram fatos e surgiram problemas que constituem a matéria prima da investigação a que se vai proceder, mas é por meio da reflexão que precede e atravessa a escrita do texto, permeada como é pelo diálogo com as fontes bibliográficas, que tais problemas e tais fatos podem encontrar solução e explicação. E isso, repito, independentemente de o texto vir a ser publicado, e até mesmo ser submetido a uma banca. Se for escrito segundo as regras do jogo acadêmico, preencherá a função de permitir ao autor obter o título que pretende; se a forma for mais livre - embora sempre conceitualmente rigorosa - será mais um exemplo do que chamei acima de “escrito psicanalítico em geral”.

Voltemos ao que Cassandra nos oferece. Retrospectivamente, ela discerne no tratamento de B. três etapas: a da inveja intensa da figura feminina, a das tentativas defensivas para proteger seu pênis dos ataques da mãe-vampira, “alardeando o desejo de ser mulher”, e uma terceira, na qual - apesar de ser visível certo progresso na elaboração da angústia de castração - “a criança dar-nos-á a impressão de ter se identificado com o gênero feminino, pois o fascínio pelos adereços usados pelas mulheres ainda persistia.” (p. 27).

Somos introduzidos a cada uma dessas fases por meio de um grupo de sessões, relatadas e dissecadas de modo a permitir que o leitor vislumbre as fantasias, angústias e conflitos nelas predominantes. Além disso, a interpretação de vinte desenhos reproduzidos em fac-símile comprova ad oculos as hipóteses formuladas desde os primeiros encontros com o pequeno paciente: seu desespero frente à incapacidade da mãe tanto para refrear seus próprios desejos quanto para conter e processar os dele, e a tremenda angústia de desintegração que o leva a submeter-se ao roteiro prescrito por ela, o qual é invasivamente atuado em inúmeras circunstâncias da vida real (inclusive impondo à análise um término brusco e precoce).

É contra essa angústia - que reproduz sob outra forma o pavor do “vácuo” presente na primeira infância - que o fascínio pelos adereços femininos, beirando o travestismo, revela o seu sentido: uma defesa à qual B. se agarra para criar uma “pele psíquica”, manifestando no concreto do corpo como precisa simultaneamente separar-se da mãe-vampira-aranha e se identificar com ela, porque este é o único anteparo de que dispõe para se proteger contra um colapso no informe.

Nessa formulação mais precisa do “ponto de fuga”, reconhecemos a matriz kleiniana do pensamento de Cassandra, tarefa aliás facilitada pela referência a um belo artigo de Helio Pellegrino no qual se fala da situação psíquica do “bebê pouco protegido pela mãe, [que] se agarra a ela … numa última busca de refúgio” (1987). Vemos também como o recurso às noções da metapsicologia funciona por assim dizer em mão dupla, conferindo aos fenômenos um primeiro grau de coerência, e ao mesmo tempo sugerindo novas questões, que fazem avançar a compreensão da singularidade dessa criança.

Um exemplo entre outros: considerado apenas do ponto de vista do desenvolvimento psicossexual, o uso por B. das “perucas” e do absorvente poderia conduzir à hipótese de que ele se encontra às voltas com o problema da diferença sexual anatômica, portanto em algum momento da chamada fase fálica. Se assim fosse, sua angústia predominante seria a de castração, cujo evitamento o estaria conduzindo a uma identificação talvez irreversível com a figura feminina. Porém o material que emerge tanto das entrevistas com os pais quanto das primeiras sessões com o menino indica algo diferente: “o uso que fazia das “perucas” … fazia com que parecessem uma capa de contenção mental” (p. 52, nota 14). Ora, se ele precisa dessa “capa”, seu modo de funcionamento deve ser muito mais arcaico: faltam-lhe o que Silvia Bleichmar chama de “paredes egoicas”6, ou seja, uma membrana de continência cuja construção gradativa vai evidenciando a formação de um psiquismo mais solidamente estruturado.

A comprovação de que em B. este processo está longe de ter ocorrido vem logo na primeira sessão, quando ele se diz incapaz de fazer algo já comum em crianças da sua idade: desenhar uma casa. Outra prova disso atravessa toda a primeira fase da análise: a exigência de que seja Cassandra a pintar a pele das bonecas que desenha “freneticamente”, ou seja, de que ela forneça um continente para os seus impulsos (p. 103).

Essa interpretação de fundo se apoia igualmente na tônica dessa etapa, a saber a presença simultânea de inveja e de pavor em relação à mulher. Na novela “Vamp”, então passando na TV, e na apresentadora Angélica, tênue disfarce para a própria mãe, B. encontra elementos para figurar as fantasias sádicas de impressionante crueza e brutalidade que povoam seu inconsciente. O paciente trabalho clínico de Cassandra vai-lhe permitindo tomar contato com elas, e as reações frente à informação de que a analista está grávida as põem em cena, por vezes de modo dramático, como quando ele atira contra a barriga dela com uma espingarda de brinquedo, ou quando amassa, mastiga e come os papéis em que a tinha desenhado, e ao neném que carregava dentro de si.

Como explicar esses comportamentos? Cassandra abre um parêntesis teórico para falar da inveja, começando por Freud e se detendo na descrição kleiniana da inveja oral, cujos elementos nos são apresentados sob a forma de uma tabela que comenta as várias facetas desse sentimento. Retorna então à clínica, analisando em detalhe desenhos que revelam esses aspectos em ação no inconsciente de B.

Semelhante ao movimento argumentativo que a vimos realizar a propósito do vácuo suposto ter interferido negativamente no processo de constituição subjetiva de B. - ou seja, partir do sintoma ou do comportamento e recorrer à teoria para dar conta dele - o que faz Cassandra neste passo da tese demonstra a vantagem de optar, na arquitetura da exposição, por um raciocínio indutivo (do singular para o geral), e não pelo método oposto, que, neste caso, a levaria por começar por uma exposição da teoria e só em seguida apresentar o material clínico. Tal procedimento teria, a meu ver, dois inconvenientes. O primeiro é que não se sabe o quê nem quanto de teoria será apropriado mencionar, correndo o risco de encher páginas e páginas com informações finalmente desnecessárias para o argumento; o segundo é suscitar no leitor a impressão quase inevitável de que o material clínico está lá como uma quinta perna na mesa, mera ilustração e confirmação do já sabido.

Se incorrer neste equívoco, o autor se privará do que talvez seja o mais interessante numa tese de Psicanálise: a possibilidade de que os problemas revelados pelo estudo da “matéria-prima” conduzam a inovações no arcabouço teórico no qual se buscavam soluções para eles. Tais inovações podem ser de várias magnitudes: se pequenas, refinarão este ou aquele ponto da metapsicologia, da psicopatologia ou da teoria do processo analítico; se grandes, poderão resultar no que Thomas Kuhn denomina “revolução científica”, isto é, uma mudança no paradigma epistemológico/metodológico em vigor (em Psicanálise ou em qualquer outro campo do saber).

É evidente a inovação em sentido forte não pode ser exigida de todos os textos apresentados num programa de pós-graduação. De modo geral, é suficiente demonstrar que o autor sabe manejar com destreza as ferramentas conceituais da disciplina - e no trabalho de Cassandra há inúmeros exemplos disso. Antes de concluir o exame dele mencionando o que me parecem ser inovações de porte, e para que fique clara a diferença entre uma coisa e outra, convém comentar brevemente uma amostra do que nos termos de Kuhn seria a prática da “ciência normal”: a análise da evolução de B. rumo a uma estruturação psíquica mais individuada (capítulos “O canto da sereia” e “Nem sapo, nem princesa”).

Os dois têm como pano de fundo o emprego terapêutico de um desenho animado, essa versão contemporânea dos contos de fada. O enredo e os personagens de A Pequena Sereia povoam toda a terceira etapa do tratamento, porque oferecem ao menino um novo continente para organizar o seu drama - o que só foi possível graças ao trabalho clínico anterior, que permitiu a esse drama assumir uma feição nova, capaz de ser representada na e pela história.

No que consiste o avanço frente à situação precedente? No fato de o garoto se ver às voltas com a questão da diferença entre os sexos, à qual reage sob o modo da denegação (fantasia onipotente de poder ser ao mesmo tempo homem e mulher). Por seu lado, essa defesa pressupõe algum reconhecimento inconsciente da dita diferença, pois ninguém se protege contra algo de cuja existência sequer suspeita. Concomitantemente, a polva Úrsula vem encarnar uma versão mais diferenciada e secundarizada da imago materna aterradora, a qual suscita uma nova forma de angústia: a de castração. Esta, no entanto, convive com uma versão atenuada das de cunho mais psicótico (despedaçamento, aniquilação etc.). Por fim, ao Rei dos Mares é atribuída a função de salvar a filha dos tentáculos da bruxa. Assistimos assim a um esboço de triangulação edipiana, e ao surgimento de uma figura paterna capaz de fazer frente à mãe invasiva e dominadora, cujo poder castrador é dramaticamente ilustrado pelo sumiço da voz de Ariel.

Ainda que notáveis tanto clínica quanto literariamente, essas páginas não discrepam do que nos é familiar. A inovação do trabalho de Cassandra não está aí, mas sim na conclusão que extrai dele: a identidade de gênero precede a definição sexual e a escolha de objeto, porque faz parte das identificações estruturantes da personalidade. Resumo assim o conteúdo do capítulo final (“Redesenhando possíveis aberturas teóricas”), porém advertindo o leitor de que ele merece ser lido na íntegra, pois contém bem mais do que cabe nessa fórmula esquemática.

O que está em jogo diz respeito a uma série de problemas da Psicanálise atual, entre as quais o do uso a fazer da noção de gênero. É neste debate que nossa autora quer intervir, e sua posição não poderia ser mais clara:

o clássico modelo edipiano não responde mais por muitas construções identitárias. O Édipo não é a chave de leitura princeps para a identidade de gênero. A Psicanálise precisa reconhecer quanto ainda está despreparada para alavancar uma discussão sobre este assunto … Dentre os vários obstáculos a vencer, encontra-se o fortalecimento do estudo … sobre os conceitos de narcisismo e de identificação. (p. 180)

Independentemente de se concordar ou não com essas observações, é preciso reconhecer que o pós-doutorado de Cassandra demonstra de forma cabal a profundidade com que a Psicanálise, quando manejada por uma profissional do seu calibre, permite compreender a sutileza do funcionamento psíquico, e intervir positivamente no que dele pode ser modificado.

2. Andréa Chiarella (2019): Peter e o adoecimento silencioso

As condições ideais para uma psicanálise, como demonstra o caso de B., são as do setting clássico: atendimento individual, várias vezes por semana. Desde que sejam respeitadas as coordenadas essenciais da situação analítica, porém, nada impede que ele seja adaptado a condições em que, por uma razão ou outra, a configuração tradicional se revela impossível, ou contra-indicada.

Que coordenadas são essas? Resumidamente, e sem entrar no detalhe de por que são indispensáveis: regularidade das sessões num espaço protegido de interferências externas, possibilidade de estabelecimento de um vínculo transferencial manejável, interpretação do conteúdo latente visando a reduzir as resistências à mudança. Se respeitadas essas linhas básicas, a experiência de mais de um século comprova que é possível uma grande variedade no formato dos trabalhos clínicos: com grupos, casais e famílias, com pacientes de praticamente qualquer idade e organizações psíquicas muito diversas, intervenções de duração mais prolongada, por exemplo em instituições, ou mais breve, chegando até a uma única (como as consultas terapêuticas de Winnicott, ou, atualmente, as “rodas de conversa” sobre diferentes experiências traumáticas que têm lugar em São Paulo e outras cidades brasileiras).

Um exemplo desse gênero de atividade psicanalítica nos é proporcionado pelo mestrado de Andréa Chiarella. Tendo ela mesma se recuperado de uma leucemia, decidiu dedicar parte do seu tempo a atender pacientes atingidos por essa grave doença, e é deste acervo de experiências que escolhe o caso de Peter, que por dez meses pôde acompanhar no hospital em que estava internado.

“O principal objetivo deste livro foi mostrar que a Psicanálise está capacitada a colaborar nas equipes médicas de hospitais e clínicas”, diz ela nas “Palavras finais”. O termo essencial nessa frase é colaborar. Na visão da autora, a presença do psicanalista junto aos pacientes leucêmicos - mas também dos acometidos por outros tipos de câncer, assim como dos que sofrem de doenças psicossomáticas - não visa a se contrapor à do médico, à da enfermagem, do terapeuta ocupacional, do fisioterapeuta ou de qualquer outro profissional: incumbe-lhe lidar com os aspectos psíquicos do adoecimento, infelizmente ignorados (quando não abertamente negados) por muitos discípulos de Hipócrates.

Entre outras diferenças entre a Medicina e a Psicanálise (não antagonismos, apenas diferenças) há uma que é essencial: a primeira visa primordialmente a tratar a doença, isto é, uma generalidade da qual o paciente é um caso. Uma vez identificada pelo diagnóstico, essa doença é objeto de condutas que em princípio valem para todos os casos similares. As especificidades individuais também costumam ser abordadas pela via da classe a que pertence a pessoa: se for alérgica a determinada substância, gestante, criança, idosa, etc., o tratamento será adaptado tomando em consideração essa circunstância, que ela compartilha com outras.

Andréa aceita que assim seja, porém pondera que - além de ser portador de tal ou qual condição - o paciente é uma pessoa singular, e é precisamente no terreno da singularidade que o psicanalista vai intervir, por meio da escuta e do trabalho com a dinâmica emocional tanto dele quanto dos seus familiares.

Tal dinâmica, sustenta ela escorada em Freud e em autores que se interessaram pela conexão entre a psique e o corpo - entre outros, Sándor Ferenczi, Pierre Marty, Donald Winnicott, Joyce McDougrall e Fátima Marques - integra o conjunto de determinações que conduzem ao adoecimento e/ou às recidivas. Longe de ser desprovida de fundamento empírico, essa convicção se apoia na observação - é frequente que tanto um como as outras sejam precedidos por “importantes acontecimentos psíquicos”.

Precedidos não é o mesmo que causados”, diria o cético: estaríamos diante da falácia lógica do post hoc, ergo propter hoc (depois disso, então por causa disso). Sem dúvida, poderia se tratar somente de coincidências, mas neste caso - o que nosso cético deixa convenientemente de lado - seria preciso provar que tais acontecimentos não têm qualquer relação com a eclosão da doença. De onde a necessidade de investigar a fundo se, em que medida e de quais maneiras os ditos “acontecimentos psíquicos importantes” podem ter desempenhado algum papel na causação dela.

Nenhuma disciplina do seu currículo - e certamente não a Psiquiatria como é hoje ensinada e praticada - prepara o médico para enfrentar esse problema, que simplesmente não é da sua alçada.7 Mas negar a priori que tal possa ser o caso é no mínimo uma atitude anticientífica, pois desde os gregos se sabe que o psíquico pode influir sobre o corporal, e vice-versa. Dois séculos de Medicina como a entendemos na atualidade não alteraram este fato: fala-se de úlceras ligadas ao estresse, de pessoas que renunciam a lutar contra uma moléstia grave por estarem deprimidas etc. Inversamente, se tal relação não existisse, as pesquisas de Oliver Sacks sobre a determinação recíproca de certos fenômenos físicos e mentais teriam sido acolhidas com gargalhadas. “Há mais coisas no céu e na terra do que sonha a sua filosofia”, diz Hamlet a Horácio - e a advertência não vale apenas para o racionalismo um tanto raso do estudante dinamarquês.8

Repitamos mais uma vez: o fato de a Psicanálise não ser uma ciência experimental - condição que compartilha com muitas outras, da Astronomia à Matemática, passando pela História, pela Antropologia ou pela Economia - não a desqualifica para formular teorias consistentes, nem para, baseada nelas, gerar hipóteses testáveis pela observação metódica, que uma vez confirmadas dão origem a generalizações plausíveis; se não o forem, são reformuladas ou descartadas.

Para dar um exemplo entre muitos, a hipótese adotada por Freud no início do seu trabalho segundo a qual a histeria seria motivada por um abuso sexual no mais das vezes cometido pelo pai não se revelou verdadeira, e ele a abandonou - porém sem jogar fora o bebê junto com a água do banho: a frequência com que suas pacientes pensavam ter sido molestadas “por uma irritação real nos genitais” o levou a postular a existência de fantasias incestuosas, e a partir delas formular uma das teorias centrais da Psicanálise, a do complexo de Édipo. Por sua vez, o vínculo estabelecido entre este e a identificação de gênero (Três Ensaios para uma Teoria Sexual, 1905) foi por muito tempo tido por verdadeiro, mas, como vimos acima, hoje se vê questionado de dentro da Psicanálise: segundo Silvia Bleichmar, Jean Laplanche, Cassandra França e outros autores, essa identificação se situa num momento anterior da história pulsional, e está relacionada ao narcisismo dos pais, assim como aos desejos e expectativas deles quanto ao seu filho.

O mestrado de Andréa, assim, se apoia numa série de hipóteses derivadas de conhecimentos psicanalíticos solidamente estabelecidos, que vão sendo apresentados ao leitor à medida que o trabalho clínico as convoca: entre outros, as diferentes formas de manifestação do sofrimento psíquico, que incluem os vários tipos de somatização, a importância do ambiente familiar (que neste caso específico envolve certos elementos transgeracionais), o papel dos traumas precoces na organização psíquica do indivíduo, em particular nas esferas narcísica e do ideal do ego. Como vimos no caso de B., quando a organização egoica é pouco consistente, a autoimagem tende a ser inflada na proporção direta da impotência em lidar com as dificuldades da vida real, o que, por sua vez, pode dar origem a defesas de tipo maníaco, que visam precisamente a negar tal impotência. É igualmente o caso de Peter, que precisava ser “o cara” em tudo.

Um dos indícios dessa hipercompensação aparecia na “exuberância exagerada” do seu comportamento no hospital, sempre rindo, fazendo piada de tudo e se mostrando invariavelmente alegre, mesmo diante de momentos difíceis. Por baixo dessa aparência esfuziante, porém, revela-se logo no começo do tratamento - iniciado após uma recidiva que se mostrará fatal - um grande vazio (p. 29). Ao mesmo tempo, Peter era muitas vezes tomado por emoções “densas”, que Andréa descreve com grande sensibilidade:

nossas sessões se concentravam em sua busca por compreender o que se passara em sua vida, em fazer associações entre o que sentia e o que pensava … Transferencialmente, pude senti-lo em vários momentos como uma criança, incapaz de compreender o mundo adulto, emburrado, inacessível e bravo … [Em outros momentos], o rapaz charmoso e sedutor dava lugar ao menino sonhador …, [ou] ao rapaz conquistador e “pegador”, [ou ainda] a alguém com uma alma mais feminina, conhecedor das temáticas que afligem as mulheres. (p. 33-34).9

Assim como B. com a sereia Ariel, Peter vem a se figurar numa imagem à qual recorrerá muitas vezes: a “aranha com uma pata manca”. Nesta pata, interpreta a analista, “estava concentrado tudo o que para ele era inominável e assustador”; as outras simbolizavam o que via como “positivo” na sua vida, como a família, os amigos, a equipe de cuidadores, e também a presença da analista (p. 34).

Mas nem tudo nesse “positivo” era tão idílico quanto ele gostaria de crer, e em particular a pata “pai”. Relembrando sua infância, Peter menciona um grave trauma que lhe fora imposto por ele. Com base no que vai contando em diferentes momentos, Andréa formula uma reconstrução do que possivelmente se passara na infância deste homem, cuja atuação durante o tempo em que durou o tratamento foi marcada por inúmeros incidentes. O desenvolvimento emocional da criança que ele era teria sido afetado muito negativamente pela maneira como o seu próprio pai lidou com uma tragédia familiar ligada ao falecimento da esposa: silenciando a respeito, e proibindo qualquer menção a ela. O mistério em torno da morte da mãe foi, ao que tudo indica, decisivo para a conformação da personalidade adulta, contribuindo para o surgimento de traços de caráter e de comportamentos rudes e autoritários com todos à sua volta, inclusive com seu filho - “ele foi um trator que passou por cima de mim”, como o avô impusera a ele “passar por cima” do segredo familiar.

Não se trata de mero jogo de palavras, mas de uma metáfora que condensa a experiência mais decisiva na vida de Peter, como fica claro à medida que a análise avança. Ela está na raiz da fragilidade narcísica do rapaz, e das suas tentativas desesperadas de lhe fazer frente, ora se impondo tarefas inexequíveis e destinadas ao fracasso, ora se refugiando numa paralisia que Andréa compara a um congelamento. Ela sugere que são estas as pré-condições do seu adoecimento, e as interpreta como uma maneira - paradoxal, é verdade, mas conforme ao que aprendemos com a prática analítica - de exercer alguma autonomia em sua vida, ainda que pela via de “organizar a própria morte”. Se tanto a atitude quanto a hipótese podem parecer lunáticas, nem por isso deixam de ser possibilidades abertas ao funcionamento psíquico em determinadas situações, como ilustram dois casos evocados brevemente (Rosa e João).

Para fundamentar as escolhas clínicas e teóricas que vai relatando, nossa autora elenca uma série de trabalhos sobre um aspecto da vida emocional que Winnicott designou como “medo do colapso” - uma angústia de desintegração abissal e paralisante. Há também referências detalhadas às teses da escola francesa de Psicossomática, contraposta à visão de outros autores por meio de uma revisão da ampla bibliografia sobre o tema.

Mesmo essa apresentação necessariamente breve do trabalho de Andréa permite, creio, demonstrar como pode ser redigido um texto acadêmico a partir de experiências clínicas exteriores à do consultório. A escrita cuidadosa, o rigor no emprego dos conceitos, a modéstia de quem não quer impor a sua “verdade”, mas apenas fazer ouvir o que tem a dizer - como vemos, nada trivial - fazem deste pequeno livro uma grande contribuição aos estudos brasileiros sobre a interface Medicina/Psicanálise. As recomendações técnicas nele contidas serão de grande valia para quem atende casos como o de Peter, mas também para médicos e outros membros de equipes terapêuticas, para administradores de convênios, para juízes chamados a julgar ações ligadas à saúde, e, principalmente, para os próprios doentes e suas famílias, cuja dor e cuja perplexidade frente a um inimigo insidioso e frequentemente letal são raramente acolhidas no ambiente hospitalar.

Sim - “a Psicanálise está capacitada a colaborar em equipes clínicas”. E por que? Porque oferece uma “escuta diferenciada à doença, que poderá ser circunscrita e transformada num objeto simbólico”, isto é, incluída numa “trama significativa” graças a um trabalho cuja finalidade é diminuir a rigidez das barreiras inconscientes erigidas para sobreviver psiquicamente, que no entanto acabam por tornar a vida invivível.

Peter veio a falecer, mas o desejo que expressou várias vezes - que sua história ajudasse outros a sofrer menos - foi realizado pela sua analista. Sejamos gratos a ele, pela generosidade, e a ela, pela dedicação e competência com que nos faz conhecê-la.

3. Larissa de Paula Cagnani (2016): O trabalho do psicólogo no abrigo institucional

“Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia”: a recomendação de Tolstoi com a qual Larissa de Paula Cagnani conclui seu mestrado resume bem o que nele o leitor irá encontrar. A “aldeia” em questão é o abrigo público para crianças e adolescentes onde se desenvolveu o trabalho que lhe serviu de base; o “universal” é a série de contextos nos quais ele se inscreve, e cujo imbricamento determina a forma que o texto tomou.

Por que falar em série de contextos? Porque, como em qualquer situação humana, eles são múltiplos - e a consideração atenta do modo como se interpenetram é essencial para compreender tanto o que ela tem de específico quanto os aspectos em que se revela típica de um gênero. Esse princípio epistemológico e de método, seguido à risca por nossa autora, torna seu trabalho um modelo de pesquisa bem pensada e bem conduzida: ao interesse intrínseco do conteúdo soma-se assim uma valiosa contribuição para quem, no curso de suas investigações, se deparar com problemas similares.

Contratada como psicóloga no que ela denomina Abrigo (com maiúscula, para distingui-lo da instituição “abrigo” em geral), Larissa entra num universo estruturado por várias condições: o sistema público de assistência social, a rede municipal de proteção à infância (Juizado de Menores, Conselho Tutelar etc.), a organização do serviço na instituição, as relações no seio da equipe cuidadora e entre esta e os internos, as questões de cada uma das famílias cujo filho está abrigado, e assim por diante.

A mais ampla destas condições é a legislação que disciplina a assistência social no Brasil, a qual passou por grandes transformações ao ser adaptada aos mandamentos da Constituição de 1988. O primeiro capítulo do livro apresenta portanto as principais normas que o regem na atualidade, materializadas na Política Nacional de Assistência Social (2004) e na Norma Operacional Básica (2005), que organizam o Sistema Único de Assistência Social. Delas consta a que inclui nas equipes multidisciplinares atuando nas diversas instâncias a presença de um psicólogo; esta é requerida sobretudo nos casos de “média” e “alta” complexidade, ou seja, quando os vínculos familiares estão muito fragilizados, porém ainda não rompidos (primeiro caso), ou se encontram em frangalhos (segundo caso).

O que se espera do psicólogo no contexto da Assistência Social? Basicamente, algo chamado “acompanhamento psicossocial” do menor e dos seus parentes, visando à reinserção dele no ambiente familiar, à preparação para adoção caso a reinserção não seja possível, ou, se a adoção estiver fora do horizonte, a oferecer-lhe instrumentos para uma vida “autônoma” quando sair do abrigo. Por outro lado, documentos do Conselho Federal de Psicologia recomendam que a atuação do psicólogo neste âmbito não tenha como foco a “psicoterapia”, reservando esta para os que trabalham no campo da Saúde Mental.

Essa orientação, aparentemente clara no plano abstrato, tem no entanto um efeito paradoxal, cuja existência atrapalhou o início do trabalho de Larissa no Abrigo, e ao qual dedica uma bela análise no capítulo 2: muitos profissionais se sentem inseguros quanto aos limites legalmente permitidos para suas intervenções na esfera da Assistência Social. Ao procurar atender às demandas e necessidades que surgem no trabalho prático, estarão fazendo “psicoterapia” ou “acompanhamento psicossocial”?

Tal inquietação nada tem de absurda, pois, se ultrapassar a fronteira entre os dois, o psicólogo pode ser ver advertido, ou até punido. Por outro lado, é evidente que identificar dinâmicas familiares patológicas e conversar sobre elas com os parentes do menor, ou com ele mesmo, é um trabalho terapêutico. Da mesma forma, se perceber que certos aspectos do relacionamento de um membro da equipe com determinada criança estão sendo prejudiciais a ela, e intervier junto ao dito membro no sentido de modificar sua atitude, como dizer que tal procedimento não é terapêutico (caso de Iara, que comentarei mais abaixo)?

A solução proposta por nossa autora para o dilema é simples e brilhante. Ela a constrói em duas etapas: primeiro, lembra que qualquer intervenção psicológica é, em sentido estrito, psicossocial, porque precisa levar em conta as circunstâncias do paciente, inclusive se for realizada em consultório privado. Na realidade da vida e do trabalho clínico, esfuma-se - digo bem, esfuma-se, não desaparece - a distinção formalística entre o “estritamente psíquico” e o “externo histórico-social”.

Isso, porém, não conduz à “noite em que todos os gatos são pardos”, porque o segundo movimento é definir “psicoterapia”, de modo claro e correto, pela presença de um setting estruturado em termos de tempo e espaço, a partir da demanda de ajuda formulada por alguém que se compromete a observar o contrato psicoterápico enquanto o julgar útil para minorar suas dificuldades. Ou seja, embora num ambiente diverso do que serviu de cenário ao trabalho de Andréa, estamos diante de uma variante legítima da atividade psicanalítica, que Fabio Herrmann denominava “clínica extensa”, e Jean Laplanche “Psicanálise extramuros”.

Quer se deem em atendimentos brevíssimos ou isolados - Freud escutando Catarina no hotel em que se hospedava, as consultas terapêuticas de Winnicott, atualmente as “rodas de conversa” propostas a quem aparecer no encontro - quer sob a forma de intervenções institucionais, quer ocorram em situações declaradamente não terapêuticas (como as entrevistas de perícia judicial narradas por Claudia Suannes (2011),10 o trabalho com as costureiras descrito por Liz Mirim (2011), ambos citados por Larissa), ou, ao contrário, num ambiente dedicado a restaurar a saúde do corpo (como no belo livro de Rubens Hazov Coura, A Psicanálise no Hospital Geral,1996), o fato é que o psicólogo pode perfeitamente utilizar seus conhecimentos para incentivar a produção de efeitos psicoterapêuticos - o que significa simplesmente mudanças para melhor na vida psíquica de quem atende - sem por isso precisar fazê-lo num setting formalmente psicoterapêutico.

O trabalho realizado por Larissa no Abrigo é um exemplo notável de como a noção de clínica ampliada pode trazer benefícios tanto para o profissional que se tiver preparado para exercê-la quanto para as pessoas a quem se dirigem suas intervenções. Insisto no item “preparação”, pois sem ela o psicólogo não tem condições de agir (nem, de resto, de não agir) com base em hipóteses bem fundamentadas sobre os processos psíquicos em jogo naquela dada situação. São estas hipóteses que lhe permitem decidir se, quando e como abordá-la, o que dizer e o que - embora o tenha percebido - deve conservar para si, como avaliar os resultados do que fez etc.

É neste ponto que a Psicanálise pode fornecer instrumentos preciosos para a atuação do psicólogo no quadro da Assistência Social, e em particular nas condições específicas do abrigo para menores. E por que? Nas palavras de Larissa, “porque o inconsciente está na fala, para quem sabe e se dispõe a ouvir.” O corolário dessa afirmação - que me permito extrair por extenso - é que o dito inconsciente continuará a produzir efeitos, mesmo se nenhum dos envolvidos, inclusive o psicólogo surdo a ele, se aperceber da sua presença. É como na célebre resposta de Niels Bohr a Einstein, que se admirava de ver na porta da casa de campo do amigo uma ferradura pendurada: “Mas como?! Um cientista como você acredita nos poderes dessa coisa?” “Claro que não, mas dizem que funciona mesmo se você não acreditar…”

Para que o leitor não pense que se trata de uma posição que Larissa e eu compartilhamos apenas “porque nos gusta”, convém relembrar: na perspectiva psicanalítica, o imediato - queixa, conflito intrapsíquico ou interpessoal, insegurança, comportamento problemático - é compreendido como sintoma, isto é, como resultando de um jogo de forças cuja existência e cujo sentido permanecem ocultos para o sujeito. É à escuta disso que se dedica o analista, e, uma vez identificados os elementos que podem estar determinando aquele imediato, a reuni-los numa interpretação, que orientará sua atitude quanto a ele.

Em todas as variedades da prática analítica, é importantíssimo distinguir a construção da interpretação da comunicação dela ao interlocutor. A primeira nasce da atividade psíquica do analista, que começa por sua percepção do fenômeno, continua pela filtragem do que percebeu pela rede dos conceitos e hipóteses psicanalíticos (“isso é uma manifestação da ansiedade de castração”, “este sonho sugere que o sujeito se defende contra tal impulso”), e resulta num quadro razoavelmente coerente dos processos que possivelmente estejam determinando aquilo que atraiu sua atenção: foi o que vimos Cassandra fazer a propósito das atitudes bizarras de B. Outra coisa, completamente diversa, é dizer isso em voz alta - e um dos aspectos mais difíceis na aquisição do nosso ofício é aprender a avaliar quando convém comunicar ao paciente a nossa interpretação, e quando é preferível abster-se disso.

O livro de Larissa está pontilhado de exemplos que comprovam sua sensibilidade a esses fatores: a disposição de “abrir espaços” para ouvir as demandas explícitas (e também as implícitas) dos abrigados e dos educadores, a discrição e despretensão (presentes igualmente no seu estilo de escrita) com que identifica em diferentes situações do dia a dia os modos de atuação do inconsciente, seu esforço para buscar referências que a ajudem a pensar psicanaliticamente sobre elas, e, last but not least, o tato com que chama a atenção dos colegas e dos inquilinos do Abrigo para a maneira como, à sua revelia, estão contribuindo para gerar ou agravar o problema.

Entre os três episódios a partir dos quais se estrutura a “tese da tese”, isto é, as ideias de cuja consistência e utilidade ela almeja persuadir o leitor, o que me parece ilustrar de modo mais nítido o vigoroso trabalho de interpretação que torna tão boas as suas intervenções é o caso de Iara. Vamos então nos deter com algum detalhe na análise dos seus diversos momentos.

Após alguns meses no Abrigo, essa garotinha de cinco anos dá sinais de uma preocupante piora em suas condições emocionais: torna-se ansiosa e introvertida, e começa a urinar na cama. Larissa compreende tais fatos como indicando uma regressão, e busca os motivos que poderiam tê-la provocado. Um deles é algo frequente na instituição: a reticência da equipe em falar com as crianças das vivências dolorosas que as levaram até lá, como se o silêncio tivesse virtudes curativas, e a menção a elas induzisse somente tristeza e angústia. Eis o plano do particular, pois Iara compartilha essa situação com seus companheiros. O que singulariza sua reação a ela é a enurese, e, nela, um aspecto intrigante: só ocorre quando um educador homem, Lúcio, está no plantão noturno. Compreensivelmente, ele fica perplexo, e chega a se sentir um pouco ofendido, pois toma muito cuidado no trato com Iara - justamente por ser homem, e haver suspeitas de que ela tivesse sido sexualmente abusada no ambiente familiar. Fosse isso verdade ou não, o fato (o que chamei atrás de “imediato”) é que quando o rapaz ia acordá-la para ir ao banheiro ela já havia molhado a cama, o que nunca acontecia com as plantonistas mulheres.

Conversando com Iara, Larissa fica sabendo que ela pensava que Lúcio “ia ficar bravo” se precisasse acompanhá-la ao banheiro. Tal ideia é interpretada recorrendo a uma teoria da Psicanálise: seria consequência de contatos anteriores com “homens violentos”, o que parece confirmado pela reação da menina a outro episódio, o ataque de fúria de um adolescente admitido pouco tempo antes no Abrigo. Apavorada, Iara perguntou a uma cuidadora: “ele vai nos matar?”: presença no inconsciente, portanto, de um personagem masculino agressivo, e da fantasia de ser atacada/machucada/ invadida por ele. É essa fantasia que, por deslocamento ou transferência, a faz ver em Lúcio uma nova encarnação do personagem temido, e é para evitar esse ataque que ela se previne urinando antes que ele apareça para a levar ao banheiro.

Vemos aqui, claramente, como o raciocínio clínico se move entre os planos do singular (esta menina, este sintoma), do particular (é a reação dela a uma realidade presente no Abrigo, o silêncio sobre o que dói), e do universal (a inerência do passado no presente, as angústias de agressão e retaliação típicas da infância, a defesa contra elas sob a forma igualmente comum da enurese noturna etc.).

O cenário está então preparado para que Larissa dê início a uma das mais argutas intervenções entre as que nos relata: percebendo que é de Lúcio que deve vir a iniciativa de alterar a dinâmica do seu relacionamento com Iara, chama-o para uma conversa e lhe fala do “projeto institucional” do Abrigo, do qual faz parte a autorização para que, como educador, ele se aproxime da menina. Parece-me evidente que ela interpretou o comportamento “frio” do funcionário como sintoma da sua ansiedade de parecer intrusivo, e assim repetir algum trauma infantil de Iara. Porém, ciente da diferença entre construir uma interpretação e comunicá-la, não diz nada do gênero “você está com medo de se aproximar dela porque…” etc., o que, naquelas circunstâncias, provavelmente só aumentaria a aflição de Lúcio.

Em vez disso, servindo-se de outras teorias psicanalíticas (por exemplo sobre o papel do superego e do ideal do ego, ou sobre a importância de um terceiro que representa a Lei, e nessa condição autoriza a manifestação dos afetos temidos pelo educador), “coloquei que ele poderia se aproximar de Iara …, mostrando-se disponível para cuidar, educar, conversar e atender às suas necessidades.” (p. 82)

Ou seja: uma intervenção admiravelmente terapêutica, e perfeitamente de acordo com a diretriz do “acompanhamento psicossocial”, pois leva em conta os conflitos que, sendo um homem na sociedade brasileira atual, Lúcio pode vivenciar em relação à sua própria sexualidade - em termos mais claros, as dúvidas sobre o que significa “ser homem” num momento de tantas transformações na relação entre os gêneros, e também o conhecimento por parte dele sobre as consequências psíquicas e jurídicas da pedofilia, mesmo se disfarçada.

Tudo isso subjaz, penso, à forma com que Larissa se dirige ao educador. Quanto ao conteúdo do que lhe diz, sugiro que esteja baseado numa série de interpretações concatenadas:

  1. a enurese da garota é um sintoma que se origina em fantasias, lembranças e angústias relativas a uma figura masculina agressora;

  2. o distanciamento de Lúcio, além de expressar sua angústia de vir a fazer mal à menina se se mostrasse mais carinhoso, poderia estar intensificando - e não reduzindo, como ele pensava - o temor dela de ser agredida por um homem (“ele vai ficar bravo”);

  3. se Lúcio pudesse entender a diferença entre “carinhos de pai” e “carinhos de homem”11, não precisaria temer tanto sua própria sexualidade, porque poderia sublimá-la em ternura e atenção (esta parece ser a interpretação-chave em que Larissa se apoiou na situação aqui esmiuçada).

A referência ao “projeto institucional” do Abrigo tira o atendente de uma posição dual (ele e Iara como indivíduos em enfrentamento narcísico) e o instala na de agente de uma instituição, com os direitos e deveres atinentes ao cargo que ocupa. Entre estes, o contato físico com Iara não apenas é permitido, mas ainda exigido, por ser parte essencial da sua função de educador. Confortado pela referência a um ideal nobre e valorizado, e pela legitimação por parte da psicóloga (enquanto representante da Lei que organiza o serviço) de uma postura menos defensiva, ele vai conversar com Iara - e, pouco depois, esta cessa de fazer xixi na cama.

A sutileza com que Larissa agiu nesse caso aparece igualmente nos outros dois relatados por ela. Não é um dos menores méritos do seu livro o fato de trazer e analisar essas histórias, que expõem as dificuldades dos educadores no exercício da sua missão. Estas são intensas e variadas, porque os confrontam com os pontos cegos da sua própria personalidade, ou com representações sociais fundamente arraigadas sobre o que é certo e o que é errado no comportamento de uma criança. Uns e outras mobilizam afetos contratransferenciais, que, como se pode imaginar, afetam negativamente a vida no Abrigo. Analisar serenamente tais fatores contribui para evitar que se transformem em bloqueios para fazer o que precisa ser feito em benefício das crianças, argumenta Larissa com toda a razão - e é parte integrante da missão do psicólogo que atua no meio assistencial.

As “Considerações Finais” retomam o que ela aprendeu no ano e meio em que durou sua atividade no Abrigo, e também no percurso reflexivo cujo resultado nos apresenta em seu livro. Neste trajeto, deparou-se com vários autores, entre os quais sobressai a figura de Françoise Dolto - e a maneira como dialoga com eles é sinal da sua maturidade como pesquisadora.

Se fosse preciso ainda uma vez ressaltar a importância de que o mestrado corresponda a um nível elevado de exigência - como tem sido a postura do nosso Núcleo de Método Psicanalítico e Formações da Cultura no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da puc/sp - o de Larissa cumpriria muito bem essa função. Porque se empenhou a fundo na redação de um texto exemplar pela riqueza de informação, pelo uso criterioso da bibliografia e pela finura das análises, ela tem todo o direito de o considerar como “o início de novas indagações e de novas caminhadas”.

Como dito no início deste artigo, seria possível demonstrar a fecundidade do método psicanalítico para conduzir a bom termo trabalhos de pós-graduação tomando como exemplo qualquer um dos muitos que tive o privilégio de orientar, assim como de outros tantos - dirigidos por colegas na puc/sp e em uma dúzia de Universidades no Brasil e no Exterior - de cujas bancas participei ao longo das últimas décadas.

Sem dúvida, a Psicanálise não explica tudo, nem tudo do que lhe cabe investigar. Mas daí a supor que seja uma visão “superada” pelos “progressos atuais da ciência” vai uma longa distância: a que separa preconceitos arrogantes, venham de onde vierem, da consideração imparcial da sua consistência epistemológica e metodológica, que lhe permite servir de instrumento eficaz tanto na compreensão de quanto na intervenção sobre inúmeras situações de sofrimento emocional.

Quer estejamos envolvidos em atividades acadêmicas ou não, cabe a nós psicanalistas levantar a luva desse desafio, e defender junto aos praticantes das hard sciences o caráter científico da nossa disciplina. Certamente muitos deles, se apresentados a argumentos sólidos e a exemplos convincentes, não se furtarão a admitir que há mais de uma maneira de obter conhecimentos sobre o que é - e que, se existe uma realidade psíquica diferente da realidade material, ela só pode ser investigada com instrumentos que permitam reconhecer suas leis e eventualmente modificar certas modalidades do seu funcionamento.

Frente aos que afirmam que tal esforço seria em vão, que nessa batalha já teríamos deixado para trás o point of no return, prefiro me associar aos que se perfilam sob o estandarte da Esperança. Talvez me arrisque a parecer demasiado otimista. Seja: ainda assim, estaria bem acompanhado. Afinal, foi Freud que escolheu concluir O Futuro de uma Ilusão com uma frase nada resignada: “a voz da razão é suave, porém não descansa enquanto não se faz ouvir. Ao final, apesar de inúmeros e repetidos fracassos, ela o consegue.”12

2 O presente texto foi originalmente um capítulo na coletânea Pesquisas em Psicologia Clínica: Contextos e Desafios, organizada em 2019 por Ida Kublikowski, Rosa Maria Tosta e Edna M. Kahhale com trabalhos dos professores do Programa. Divulgado exclusivamente online pela educ, para essa primeira publicação em formato impresso ele foi revisto e atualizado. À equipe do Jornal de Psicanálise, meus agradecimentos pela oportunidade de o publicar nessa edição, dedicada a refletir sobre as diferentes figuras da Esperança.

3 Desde os anos 1990, venho abordando este tema. Cf., entre outros trabalhos: Renato Mezan, “Que significa ‘pesquisa’ em Psicanálise?”, in A Sombra de Don Juan (1993), 3ª edição revista e atualizada, São Paulo, Editora Blucher, 2023; “Psicanálise e pósgraduação: notas, exemplos, reflexões”, in Interfaces da Psicanálise (2002), São Paulo, 2ª ed. Editora Blucher, 2019; “Caleidoscópio”, in Figuras da Teoria Psicanalítica, 2ª ed. ampliada, São Paulo, Casa do Psicólogo, 2011.

4 O livro amplia e reelabora um pós-doutorado realizado no nosso Programa.

5Nem sapo, nem princesa…, p. 38. Meus grifos visam a sublinhar a função causal, em sentido estrito, atribuída aos fatores elencados, ou seja, a concepção da causa como aquilo em cuja ausência um fenômeno ou processo não se dá, e, inversamente, desse processo ou fenômeno como produto necessário da presença dela, isoladamente ou associada a outras.

6 Além de uma interlocutora perspicaz para os aspectos clínicos da história, Cassandra encontrou no pensamento de Silvia Bleichmar ideias de grande valor para validar certas conclusões que o caso lhe sugeria, mas que hesitava em admitir, porque pareciam contradizer formulações clássicas da Psicanálise acerca da relação entre sexualidade e identidade.

7 A Psicologia Médica, além de ser pouco valorizada pelos estudantes, tampouco costuma se aprofundar na questão, limitando-se no mais das vezes a tratar da relação entre o paciente e o médico enquanto fator auxiliar na adesão ao tratamento.

8 Contrariamente ao que faz crer a tradução mais comum da sua famosa réplica, Hamlet não fala em “vã filosofia”: “there are more things in heaven and earth, Horatio, than are dreamt of in your philosophy” (Hamlet, ato I, cena 5, versos 159 ss). Cf. “Hamlet-e-as-vãscitações-de-quem-não-leu-Shakespeare”, https://blogdomaximus, 01.02.2011.

9 As partes entre colchetes foram introduzidas por mim para dar fluência à citação, composta por frases retiradas de diversos parágrafos do texto da autora.

10 Assim como os dois que menciono a seguir, esse livro se originou em teses cuja orientação esteve a meu cargo.

11 Embora não empregada no texto de Larissa, a distinção proposta por Renata Udler Cromberg em Cena incestuosa (2001) aplica-se com pertinência ao caso. Este livro, aliás, será lido com proveito por todos os envolvidos com a assistência social a menores, vítimas ou não de abuso, porque vai fundo no exame da sexualidade infantil, e também no da psicologia do abusador.

12Die Stimme der Vernunft ist leise, aber sie ruht nicht, ehe sie sich Gehör verschafft hat. Am Ende, nach unzähligen oft wiederholten Abweisungen, findet sie es doch.” (Freud, 1927/1975, p. 186).

Referências

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Recebido: 16 de Maio de 2024; Aceito: 16 de Maio de 2024

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