Uma primeira conversa abre para mais uma conversa, que por sua vez suscita uma nova conversa… a cada novo diálogo, dissonâncias e ressonâncias, encontros e desencontros, e eis que nos pegamos já dançando, de improviso, guiadas pelos afetos.
Esperança (23 de janeiro, 00h55)
Você criou o grupo
Cris, esse post fala um pouco da minha história como judia sepharadi.
[…24-envia-25-troca-26-responde…]
Má… Incrível e doloroso…
Falando em esperança:
o talento e a força de Nina Simone…
Eu adoro ela, Má!
Eu também! [27… digitando… fevereiro… digitando… 02, 08…]
Cris, já estou aqui na parte de dentro… Oi Má! Falamos às 18h?
[março… alô? … envia-troca-pergunta-responde … e segue…]
Coisa silenciosa
Nada mais silencioso
do que os golpes que se abatem sobre os outros, não há ameaça mais inofensiva à nossa paz de espírito satisfeito.
É muda a derrota nos seus olhos, os seus braços permanecem imóveis. Que silêncio agradável.
A não ser por um ruído agudo, penetrante, que perturba sobretudo pela manhã, mas pode-se abafá-lo facilmente
com o sussurro relaxante das folhas do jornal.
Antes que se amontoem as ruínas sobre eles já estarão sepultadas sob o suplemento de variedades, a xícara de café pela metade, a batida de porta em nossa casa,
Encontro
Não era uma questão. De repente, virou uma questão!
É isso para nós duas: de repente, uma experiência nascida da ressonância mútua dessas palavras. Só por um instante. Na frase seguinte, o link se desfaz. Sincronicamente às piscadas dos olhos, as almas se fecham por um segundo [antissemitismo. antissemitismo. antissemitismo]. Mas, quando se abrem novamente - os olhos e as almas - nos vemos: ainda estamos aqui…
Data de nascimento da “questão”: 9/10/20234
É difícil… É muito complexo… Complexo? Como assim!?
Eu falo do traumático porque meus pais não falavam… Eu sabia, mas nunca se falou… Minha mãe conta… A gente não tinha raízes…
- Você se sente traída?, pergunta o analista. - Não… Sinto como quando se chega ao final de uma estrada e não há mais como seguir.
a língua, como desempenho de toda linguagem, não é nem reacionária, nem progressista; ela é simplesmente: fascista; pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer. … Infelizmente, a linguagem humana é sem exterior: é um lugar fechado. (Barthes, 2013/1980, p. 7, grifo das autoras)
As manifestações imediatas de amigos e companheiros de esquerda,
me emudeceu. Os cadáveres ainda não tinham sequer esfriado e
a insensibilidade em relação à infâmia ocorrida era exibida nas redes sociais…
Você condena o Hamas? (Morgan, 2024).
Aprisionadas na linguagem, como aponta Roland Barthes (1915- -1980), com tudo que nela é parasitado pelo poder e na qual ele se inscreve, atravessando a língua e a história inteira, de um e todos, com o passar dos dias testemunhamos o aumento da pesada artilharia usada na batalha campal pela hegemonia do discurso.
Na primeira reunião da Diretoria da Associação dos Membros Filiados (amf), após a ação armada do Hamas e o início da violentíssima ofensiva israelense, nós duas estávamos novamente reunidas. O “assunto” emergiu. Os demais colegas emudeceram.
Mas eis que não pudemos atirar… Falamos aqui de algo sentido mesmo como uma impossibilidade: entre nós, estávamos interditadas em nossos desejos de poder e destrutividade. O que nos barrava? E por que, já naquele instante, fomos tomadas por um sentimento ainda sem nome que parecia compensar um pouco da angústia que se espraiava até então?
Ali decidimos que queríamos entender: a perspectiva de cada uma sobre o conflito Israel-Palestina, os caminhos pelos quais fomos atravessadas por essa questão e o que operava para que, mesmo com ideias tão distintas, nos sentíssemos menos inseguras na companhia uma da outra.
Era uma vez…
As filosofias que tomaram a esperança exclusivamente como uma paixão e apontaram que, embora refletir sobre possibilidades criasse condições para que ela surgisse, seu caráter seria essencialmente involuntário. Daí os ideários religiosos imporem a esperança como exercício de “fé cega”, que, simultaneamente, antecede a emergência do sujeito, no dogma, e procede sua existência, na promessa da satisfação plena no pós-morte.
Baruch Spinoza (1632-1677) apontava, porém, que a “verdadeira religião” estaria na vida mundana conduzida pela razão, de onde pode nascer a união pelos laços de amizade e, assim, a base da civilidade. Para esse filósofo, os afetos seriam ideias com objetos intencionais cuja análise pressupõe “conhecer o conhecimento” do qual eles se originam. A esperança e sua contraparte, o temor, figurariam num “terceiro nível” dentre os mais proeminentes afetos, apenas “atrás” dos primários (desejo, alegria e tristeza) e do binômio amor e ódio (Boros, 2009).
Esse terceiro nível estaria associado ao mais baixo dentre os conhecimentos possíveis, porque, embora relacionado a um objeto e a uma intencionalidade, não passaria de representação de ideias da imaginação: tanto esperança quanto temor estariam sempre associados, como resposta reflexiva, a um evento temporal e a como este nos afeta, enquanto as ideias realmente originadas da razão transcenderiam a temporalidade e a afetação.
Porém, a importância que Spinoza atribuía a esses dois afetos não estava vinculada apenas à “pureza” de sua derivação da razão per si, mas ao fato de que os sujeitos, sempre no limite entre razão e imaginação, “são instigados pelo temor e amparados pela esperança” (Boros, 2009, p. 15). Dessa condição humana, embora a esperança não pudesse ser considerada ativa (ou seja, seguisse considerada involuntária) poderia ao menos servir como um guia para a atividade. O autor então concluiu que “(…) a sociedade, na qual as leis são observadas por pessoas que esperam por recompensas, é preferível àquela na qual a maior parte das pessoas é motivada pelo temor de punições” (Boros, 2009, p. 16).
Marquês de Condorcet (Marie Jean Antoine Nicolas de Caritat, 1743-1794), revolucionário burguês, um século depois de Spinoza, também orientou sua filosofia às condições desejáveis para a sociabilidade humana, no caso para a sua emergente república francesa, operando com a noção de esperança não como um simples afeto, porque ela:
possui uma estrutura racional semelhante àquela que a moral e o direito utilizam a respeito da avaliação “da conduta dos homens mais sábios”. A esperança se sustenta na legitimidade de uma reflexão sobre o passado e na pressuposição do caráter unitário e teleológico da natureza e da razão humana.(Consani e Klein, 2014, p. 116, grifo das autoras)
Em última instância, para Condorcet, a esperança seria sempre “esperança no progresso” do grupo social e da humanidade como um todo, isto é, vinculada a um projeto político cuja “unidade básica” seria o sujeito “cidadão e virtuoso”, voltado ao trabalho pelo interesse comum.
Immanuel Kant (1724-1804) também buscou um lugar para a esperança em seu sistema da razão pura. Compreendia que ela poderia ser racionalmente fundada mas sem valor de Verdade. No entanto, enquanto “esperança no progresso”, estabeleceria:
um horizonte de sentido para o agir político, o qual o conceito de dever [imperativo categórico] por si mesmo não alcança de modo suficiente. Isso não significa que o dever cesse sem a esperança, mas que, para permanecermos na senda aberta pelo dever, também precisamos ter um horizonte de sentido que somente pode ser criado pela esperança em um progresso contínuo. (Consani e Klein, 2014, pp. 126-127, grifo das autoras)
Spinoza, Condorcet e Kant derivaram a esperança para o campo da razão, não como certeza teórica, mas como afeto que vislumbraria um horizonte de sentido, fator por eles considerado imprescindível à estabilidade mínima da sociabilidade humana.
Mais um século adiante Ernst Bloch (1885-1977) também afastou a esperança do messianismo e a correlacionou com as condições desejáveis para a sociabilidade humana, porém incorporando sua emergência e manifestação às contradições materiais, indicando que seria o passado histórico o único fornecedor das razões que mantêm em marcha o processo de cultivo do futuro desejado. Assim, dissociava da esperança qualquer aspecto de prescrição, colocando em seu lugar operativo a noção de “possibilidade” como aquilo que se apresenta como um desafio ao pensar.
Nesse sistema, o pensar voltado ao passado e ao “eu” (reflexão) distinguia-se daquele orientado para a proflexão, isto é, uma mirada do horizonte da ação que, como tal, só poderia ser do âmbito de um “nós”. Bloch apontava a esperança não como um “fator psicológico” mas como um princípio ontológico, o princípio do “ainda-não-ser”, manifestação do impulso de fome, dos desejos, que em sua busca de satisfação, despertariam a “consciência da carência” e projetariam o sujeito “para fora” de si mesmo, retirando-o de uma condição de indiferença e o prefigurando como “sujeito em expectativa” (Gniss, 2000).
Esse sujeito em expectativa seria aquele que sonha, aspira, espera, mas não sem limites concretos, segundo o autor, dados pelas condições socio-econômico-culturais, havendo sempre o risco de uma redução do “horizonte de realidade”, daí a evocação do sonho como atividade imaginativa, trabalho que orienta o sujeito para o futuro, “mediante as condições virtuais do real” (Gniss, 2000, p. 122).
Mas agora…
Já não se pode falar de progresso, um elemento essencial para a Modernidade. Tampouco se pode falar com facilidade em utopias, especialmente no Ocidente onde tantas falharam. A conclusão é óbvia: a Modernidade fracassou. Emerge, portanto, a fruição, isto é, a visão fruicista da realidade contra o funcionalismo moderno. (Bernardes, 2020, p. 9) morte-da-fruição-louca-fruição-perversão-imagens-se-sucedem-valas-comuns-com-dezenas-de-corpos-em-sacos-plásticos-azuis um-corpo-reduzido-a-uma-massa-disforme-depois-de-ser-esmagado-por-um-tanque-de-guerra-homens-seminus-algemados-vendados-sob-guarda-de-homens-fardados-homens-fardados-dançando-em-frente-às-câmeras-enquanto-giram-no-ar-peças-íntimas-femininas-mães-urrando-sobre-poças-de-sangue-ossos-protuberantes-em-pequenos-corpos-infantis-estrondos-de-explosõesestampidos-de-tiros-peles-impregnadas-pelo-acinzentado-pó-de-concretoem-ruínas-a-fruição-da-morte
“Vivendo preso a um presente constante, a um presente supremacista e onipotente, que decretou o fim do tempo e da história”. (Bernardes, 2020, p. 9)
Ausência de tempo é solidão… Pesadelo.
Mas pesadelo também é sonho…
Sonho é trabalho…
Trabalho se dá no próprio tempo da existência.
Sem ar. Sufoco. AcÓrdo?
AcÔrdos-Sykes-Picot-Resolução-242-Camp-David-Conferência-de-Madri-
Oslo-Camp-David-ao-quadrado-Taba-Paz-Árabe-Mapa-da-Paz-Genebra-
Annapolis5 Acorde(m)!
Aqui, o sonho é evocado como alegoria de como colocar o pesadelo para trabalhar para além da solidão vivida neste sequestro congelante provocado pelo desamparo frente ao terror. Como sugere Emmanuel Lévinas (1906-1995) se a experiência de solidão coincide com a ausência-de-tempo, a desolação é rompida na experiência de transcorrência… do tempo… … no desenrolar da existência… … … no tempo… … … …
Sentir/Sentido-Temporal/Tempóreo que age sobre nós e sobre o qual agimos:
O ser humano, ainda que seja radicalmente inquieto, ainda que seja tempóreo e não somente temporal, não se vê achatado pelo tempo. O ser humano faz seu tempo: não é somente ator no tempo, mas autor e agente do tempo. Logo, no tempo não está a fatalidade, mas a possibilidade; não está a condenação, mas a salvação; não está o desespero, mas a esperança. (Bernardes, 2020, pp. 11-12).
Sem assumir a priori que, sobretudo em nossa sociabilidade ocidentalizada, o ser humano tenha de fato a autoria e a agência sobre o tempo, antes, podemos colocar a questão: a esperança deslocada do horizonte de futuro e de progresso, pode ser práxis? Pode ser uma ação, orientada para um determinado fim, capaz de realizar uma transformação material da realidade?
Maurice Blondel (1861-1949), reunindo a tendência à expansão, sempre dinâmica e subjetiva, sob a noção de “eu-encarnado-em-ação”, radicava a consistência do humano “nesta singularidade concreta, irredutível a um sistema de ideias, a uma lógica abstrata do universal-humano ou a uma argumentação nocional unilateral.” (Pignalitti, 2023, pp. 400-401, grifo das autoras).
Buscava uma superação do pensar enquanto estrita expressão racionalista e apontava que ação e ideia da ação não seriam idênticas nem conversíveis uma na outra. Assim já tomou o próprio pensar como uma ação: ponto de acesso entre “interno” e “externo” ao sujeito e não o pensar como processo que assimila o externo e lhe dá uniformidade abstrata em forma de conceitos (Pignalitti, 2023).
Nesse sentido, a esperança de que tratamos aqui não seria apreensível de nenhuma forma senão como registro de um afeto que se fez e dissipou no próprio exercício do diálogo a que nos propusemos. Não haveria um endereçamento possível da esperança para um depois; nada que perdure como aquisição permanente, nem com força de práxis, nem como certeza da razão, como aspiraram outros filósofos, em outros tempos.
Instabilidade incontornável. Impermanência inescapável. Com o léxico de Blondel:
a ação tem um caráter instrutivo enquanto manifestação vital de uma vida subjetiva que o sujeito não chega nunca a possuir de modo total. Assim, a práxis é o âmbito próprio da revelação da dialética de inadequação que move a vontade necessariamente, colocando-se em jogo com a liberdade em cada realização concreta. (Pignalitti, 2023, p. 402, grifo das autoras)
Com a revelação da dialética de inadequação da ação, Blondel conferiu à práxis uma dupla dimensionalidade: aquela do pensar como ação que liga interno e externo e a do ato que expressa/manifesta nossos instintos e intenções. Com tal estatuto duplo, atribuiu à ação (e não ao pensamento racional) a legítima expressão da “tomada de posse sobre si mesmo”, sempre fugidia, nunca sustentável para além do momento em que se executa:
a ação é a mais sólida e irredutível via de acesso ao sujeito e à totalidade dos fenômenos que constituem o “mundo” do ser humano, porque fixa em seu ponto de realização o dinamismo da vontade em sua dialética intra e extra subjetiva, manifestando, confirmando e, também, produzindo a vontade. Nesse sentido, a ação entendida como mediação, aparece como uma via privilegiada de acesso ao sentido do ser… (Pignalitti, 2023, pp. 402-403, tradução livre e grifo das autoras)
Assim, já não estaríamos mais no terreno da pura temporalidade passado-presente-futuro. A dialética da esperança já não se apoiaria, como um dia desejou Walter Benjamin (1892-1940), no binômio memória-utopia, segundo o qual “a única forma de não repetir a tragédia do passado se dá mediante a memória e a única forma de superar a tragédia do passado é mediante a utopia…” (Bernardes, 2020, p. 13). Entre memória e utopia não estaria mais a tempestade do progresso nos impelindo para o futuro. Entre memória e utopia, a expressão da fome, da carência, o projetar-se para fora de si mesmo, para além da reflexividade. Ação.
A esperança poderia operar por meio da práxis de dupla dimensão:
expressiva e transformativa. E mais, não poderia ser relegada ao âmbito da individualidade restrita à sua atividade reflexiva, visto que: a ação é a mediação humana por excelência e sua função … é ativa e performativa: ‘não somente a ação manifesta o que já éramos, senão que também nos faz crescer e, por assim dizer, sair de nós mesmos’. Este é o sentido do caráter performativo da práxis, tanto o que entra dentro do âmbito da ação desejada como o que é deixado de fora são constitutivos do sujeito. A performatividade da ação é outra cara do próprio caráter sintético que lhe atribui Blondel, a inatividade é dissolutiva e a morte, decomposição; por outro lado, a ação é organizadora e geradora de vida. “Porque em uma ação há algo mais que a ação; estão também a coesão, a solidariedade, a união real de tudo o que emprega e tudo que com ela colabora”. (Pignalitti, 2023, p. 403, tradução livre e grifo das autoras)
Operando com a dupla dimensionalidade blondeliana, podemos trabalhar não com uma noção binária, no sentido de “via de mão dupla” (o que entra e o que sai), mas com aquilo que Paul Ricoeur (1913-2005) nos ajuda a vislumbrar sob a denominação de “intersubjetividade”:
O “si” (…) o que ele afirma não é um “penso, logo existo”, mas sua capacidade de agir, de ter sido prático, razoável e responsável. Trata-se de uma nova subjetividade confiável, porque justamente razoável no mundo vital. (…) O “si”, como subjetividade é, a partir disso, uma intersubjetividade. (Dentz, 2022, pp. 235-236).
Ricoeur complementa a noção de intersubjetividade apontando seu caráter simultaneamente racional e irracional:
Trata-se de um anúncio da ruptura inesperada de um acontecimento que está além da razão. É a ruptura com uma antiga ordem e a inauguração de uma nova criação, possibilitando um novo horizonte na história, um novo ser. Por outro lado, esse novo irracional faz pensar de forma diferente, desvelando-se em signos que podem ser pensados. (Dentz, 2022, p. 241, grifo das autoras)
Entre a tomada de posse sobre si mesmo, de Blondel, e a intersubjetividade, de Ricoeur, dá-se um ponto de consonância: o si mesmo como efeito da manifestação racional/irracional, objetiva/subjetiva, por meio da ação no mundo vital. É a essa condição humana que chamamos, aqui, de práxis, nunca desacompanhada dos afetos que suscita, esperança ou temor, como registros do processo de instauração da experiência tempórea, descongelamento da solidão frente ao terror e inauguração do si mesmo.
E “praquê”?
Por que essa incursão claudicante por caminhos filosóficos? O que essas analistas em formação têm a ver com isso? E, talvez mais importante para aqueles que ambicionam “aos mestres” e “às maestrias”: o que a formação psicanalítica tem a ver com isso?
É, com efeito, de poder que se trata[rá] aqui, indireta mas obstinadamente. A “inocência” moderna fala do poder como se ele fosse um: de um lado, aqueles que o têm, de outro, os que não o têm; acreditamos que o poder fosse um objeto exemplarmente político; acreditamos agora que é também um objeto ideológico, que ele se insinua nos lugares onde não o ouvíamos de início, nas instituições, nos ensinos, mas, em suma, que ele é sempre uno. E no entanto, se o poder fosse plural, como os demônios? “Meu nome é Legião”, poderia ele dizer: por toda parte, de todos os lados, chefes, aparelhos, maciços ou minúsculos, grupos de opressão ou de pressão: por toda parte, vozes “autorizadas”, que se autorizam a fazer ouvir o discurso de todo poder: o discurso da arrogância. (Barthes, 2013, pp. 5-6)
Deslocamento da individualidade para o coletivo…
Atravessamento pelas questões que envolvem identidade. O
‘indivíduo’ na cultura…
O traumático da própria vivência ou daquilo que é transgeracional…
Sentimento herdado de uma cultura judaica, uma judeidade… História familiar. Representante da primeira geração de refugiados judeus do Oriente Médio,
expulsos do Egito em 1956. O medo transgeracional do banimento, da perseguição, do aniquilamento, vem à tona…
Mas é também essa herança que traz em si ética e humanidade, um olhar que reconhece e acolhe o estrangeiro na alteridade.
Como, em meio a afetos tão intensos, encontrar um caminho de abertura, desmistificações, sem cair em armadilhas que nos levam a um entendimento superficial, binário, onde de forma defensiva tentamos, rapidamente, aliviar o drama da incerteza, da visão em profundidade, dos questionamentos, da fantasmática vertigem de que há um abismo entre nós?
Lina Meruane, uma escritora chilena de ascendência palestina, em seu belo livro “Tornar-se palestina”6, apresenta uma crônica de viagem a Israel, “retornando” a um lugar onde nunca esteve antes, em territórios ocupados, para buscar e se reapropriar das origens de sua família. Meruane resgata Edward Said:
o pior, dizia, “é quando indivíduos ou grupos fingem ser os únicos representantes verdadeiros de uma identidade, os únicos intérpretes legítimos da fé, os únicos baluartes da história de um povo, a única manifestação da cultura, seja ela islâmica, judaica, árabe, americana ou europeia. De convicções tão insensatas surgem não apenas o fanatismo e o fundamentalismo, mas também a total falta de compreensão e de compaixão pelo próximo”. (Meruane, 2014, pp. 151-152)
Contra essas posições exclusivistas, da visão única, completa a autora:
é preciso apostar na linguagem do dissenso e da multiplicidade … Em zonas de conflito, nos momentos mais críticos do debate, a primeira coisa que vai desaparecer, são as nuances, os meios tons dos discursos aparecem como suspeitos. (Meruane, 2014, p. 152)
E, referindo-se ao escritor israelense David Grossman, como:
lúcida testemunha dos processos de limpeza da linguagem, explica que os discursos da segurança ou da superioridade nacional, exigem uma claudicação da capacidade crítica … escreve ele, a frase que copio em meu caderno: “Eu me torno parte da massa quando renuncio ao direito de pensar e formular minhas próprias palavras, na minha língua, e aceito automaticamente e sem críticas, as formulações e a linguagem dita por outrem”. Grossman se refere ao pensamento dócil de um povo, o seu, que se abstém de pensar fora dos discursos aceitos. Não por preguiça. Não por incapacidade. Simplesmente por medo, escreve Grossman. (Meruane, 2014, p. 152-153)
A práxis do pensamento (ação privilegiada, como sugerido por Blondel) que permitiria o deslocamento das posições rígidas e intolerantes, portanto solitárias (no sentido de Lévinas), quando subsumida pela destrutividade aterrorizada marcará toda a língua e estabelecerá o fascismo da/na linguagem, marcada pelo discurso da arrogância (como alertou Barthes). Desembarcamos no território da verdade: única, universal, colonial.
Como psicanalistas, não seria nosso trabalho auxiliar no “desmonte” da linguagem das certezas, por meio da subversão da língua? Denunciar e sustentar o que não se sabe porque está em emergência somente no instante exato do encontro analítico?
Colocar o traumático para pensar, olhar como for possível, de frente ou de esgueio, mas olhar para a violência dos nossos ódios, sempre intersubjetivamente ódio-aos-outros e ao-si-mesmo, visitar o estrangeiro na condição de meros hóspedes, caçar os fragmentos defensivos como quem tenta segurar sabonetes molhados que sempre escapam das mãos, responder como for possível ao ruído doloroso do estilhaçamento da existência ameaçada, transformar sem-tidos em sentidos?
A revolução psicanalítica não se efetiva na transposição das muralhas defensivas, na ampliação dos espaços compartilhados?
O que nos impe(L)de?
Sem evidências de que Blondel e Freud conhecessem algo do trabalho um do outro, torna-se ainda mais instigante observar a confluência de ideias: Blondel apontava a ação como performativa, algo vastamente documentado por Freud em seus trabalhos com as manifestações histéricas; Blondel associava a inatividade à dissolução (morte) e a ação à organização (vida); destituía a intelectualidade (função do Ego) de seu império como essência do sujeito; e, finalmente, defendia que na ação (práxis) não se manifestava apenas a vontade voluntária do sujeito, mas também seus instintos.
Contemporaneamente, Sigmund Freud (1856-1939) se encontrava às voltas com um problema: quais processos transformam a possibilidade de prazer em desprazer? Essa transformação era essencial para sua construção teórica, visto ser a característica discriminatória do sofrimento neurótico.
A maior parte do desprazer que sentimos é desprazer de percepção, seja percepção da premência de instintos insatisfeitos ou percepção externa, que é penosa em si ou que provoca expectativas desprazerosas no aparelho psíquico, sendo por ele reconhecida como “perigo”. A reação a tais reivindicações dos instintos e ameaças de perigo, na qual se manifesta propriamente a atividade do aparelho psíquico, pode então ser dirigida, de maneira correta, pelo princípio do prazer ou pelo princípio da realidade, que o modifica. (Freud, 1920/2010, p. 125, grifo das autoras)
É nesse trabalho que Freud vale-se da observação da brincadeira de seu neto, com um carretel, quando da ausência da mãe:
É impossível que a ausência da mãe fosse agradável ou mesmo indiferente para essa criança. Como pode então harmonizar-se com o princípio do prazer o fato de ela repetir tal vivência dolorosa como brincadeira? Talvez se responda que a ausência tinha de ser encenada, como precondição para o agradável reaparecimento, que seria o verdadeiro propósito do jogo. (Freud, 1920/2010, p. 128, grifo das autoras)
Decantada do messianismo e do racionalismo, e mesmo de um tipo peculiar de humanismo, seletivo, moralista e, por isso mesmo, mais do que inoperante, violento, pode ser a esperança uma encenação no mundo vital, no sentido do fort-da, uma expressão ativa, performativa e, portanto, com potencial de elaboração?
A noção blondeliana de dupla dimensionalidade oferece-se a um diálogo: Freud aponta para o elemento de passividade diante da ausência (no caso do pequenino bebê, ausência da mãe), o que é revertido na brincadeira, quando pode lidar com essa dor. Porém, agora, de um lugar de atividade. Ativo também no sentido da vingança, já que a brincadeira começa não diretamente por “recuperar a mãe”, trazê-la para perto, mas sim pela expulsão dela: primeiro, vingativamente, lança o carretel para longe. Só depois o recupera:
Vê-se que as crianças repetem, brincando, o que lhes produziu uma forte impressão na vida, que nisso reagem e diminuem a intensidade da impressão e tornam-se, por assim dizer, donos da situação. Mas é claro, por outro lado, que toda a sua brincadeira é influenciada pelo desejo que domina esse seu tempo: o desejo de ser grande e poder agir como as pessoas grandes. (Freud, 1920/2010, pp. 129-130).
Brincar de ser grande, mas, sobretudo, brincar-agir… para não sermos dissipados pelas dores dos eventos da vida, da passividade e da renúncia narcísica. Brincar-agir, ainda que impelidos, de início, pela urgência de se livrar daquilo que desespera sem sentido ou em busca do prazer da vingança triunfante sobre as forças que nos atravessam. “Colocar o corpo para jogo”, isto é, (re)criar a cena onde poderemos ao menos tentar um “acerto de contas”.
Então, que relação conserva a esperança com essa dinâmica? Por que seria, com ela, diferente do que ocorre com nossos outros afetos, sempre a serviço tanto do prazer quanto do desprazer, da vida e da morte?
Assim nos convencemos de que também sob o domínio do princípio do prazer há meios e caminhos para tornar objeto de recordação e elaboração psíquica o que é em si desprazeroso. Uma estética que considere a economia [psíquica] pode lidar com esses casos e situações que terminam na obtenção final do prazer; para os nossos propósitos eles não servem, pois pressupõem a existência e o domínio do princípio do prazer, não atestam a operação de tendências além do princípio do prazer, isto é, que seriam mais primitivas que ele e independentes dele. (Freud, 1920/2010, p. 130)
Com Melanie Klein (1882-1960) nos aventuramos nos domínios “mais primitivos” sinalizados por Freud: apontando a conexão intrínseca entre identificação e introjeção em permanente interação, dançando a identificação projetiva, improvisada com os afetos, para lançar para fora o que dentro pulsa, dilacerantemente, a autora nos leva à construção do mundo psíquico a partir dos objetos primários internalizados, que devolvem o que foi lançado fora e são base de subsequentes e cada vez mais complexos processos de identificação.
Mas Klein também nos lembra que nessa dança “não são apenas as partes do self sentidas como destrutivas ou ‘más’ que são excindidas e projetadas para dentro de outra pessoa, mas também partes que são sentidas como boas e valiosas.” (Klein, 1955/2023a, p. 191).
Daí a afirmação de que o objeto bom internalizado sirva ao fortalecimento do ego, necessário para uma maior capacidade de integração e síntese, contrabalanceando nossa tendência à cisão e à dispersão, mas, acima disso:
O ego pode, então, sentir também que é capaz de reintrojetar o amor que distribuiu, assim como internalizar o ‘bom’ de outras fontes e, dessa forma, ser enriquecido por todo o processo. Em outras palavras, em tais casos existe um equilíbrio entre dar e receber, entre projeção e introjeção. (Klein, 1955/2023a, pp. 193-194, grifo das autoras)
Nesse sentido, a práxis da esperança não nasce nem se confina no próprio sujeito, mas sim, cria, como no brincar, a cena de enfrentamento àquela solidão congelante que Lévinas associa à ausência de tempo e que Klein diz resultar “de uma ânsia por um estado interno perfeito, inalcançável” (1963/2023b, p. 377).
É nessa encenação que, se de um lado, se instiga a insegurança paranoide, de outro, também se impele à integração ou a tomada de posse sobre si-mesmo, como apontam Blondel e Ricoeur. Algo do objeto primário bom, internalizado, pode ser recuperado… Nossa incessante brincadeira de esperança!
Evidentemente, nada está garantido: instabilidade incontornável… impermanência inescapável… expressão do imbricamento das pulsões de vida e morte. Seja o que for, se fará no instante da ação, que é sempre ponto de acesso entre interno e externo, intersubjetividade.
Penso que foi o meu afeto por você - admiração e respeito profundos - que me fez desejar o diálogo… fragmentos de objeto bom lançados para dentro dela…
Para mim também…
… já não seria possível fazer só… porque não somos “eu”!
Gesto. Ação. Práxis. Tomada de posse de um si-mesmo que é intersubjetividade. Atirar pedras nas muralhas quando não se pode derrubá-las. Ainda estamos aqui. Abrir fendas, buracos, nos discursos enclausurados pela verdade única. Ainda estamos aqui.
Dar o primeiro passo na direção do abismo imaginário da diferença (de)formar a língua como forma de diz-torcer e com-ser-va(e)r algo da experiência.
Autorar o tempo… agenciar passado-presente-futuro… desarticular a língua para atravessar o fascismo da linguagem, contaminar-se por afetos, arder de febre de compreensão.
Transmutar “dentro” e “fora” na própria corporeidade: tornar-se… judia, árabe, mestiça, dar-se-a-ver… dar-eceber. Assim escrevemos, porque estamos contaminadas!
Mulheres-brasileiras-Estrangeiras-em-suas-ascendências-Psicanalisantesde-si-dos-outros-impactadas-profundamente-tocadas-tocantes-das-
questões-Israel-Palestina-partindo-de-lugares-muito-diferentes-tãopróximas-vinculantes-vinculadas-com-afeto-criando-espaçoencontro-liberdade… estamos sonhando, afinal? Há alteridade? A alteridade.
Vocês estão aqui desde as 9h00! São 15h30!
Isso… Nossa! Nem percebi!
Não tenho nada a ver com isso… Como tenho a ver com isso? Sei que tenho a ver com isso.
Sou judia mas ainda não sei dizer
se sou antisionista…
Minha mente explodiu quando, mesmo sem nunca ter conhecido um palestino, olhei para aqueles retratos grafitados na parede de uma vila em Jenin e soube, antes de tudo, que eram terroristas.
Como assim!? Na minha mente imagens: filmes e matérias jornalísticas e programas de entretenimento e propagandas e músicas e diz-o-curso, obrigando-me a enunciar são terroristas, mas, eu mesma, nunca conheci um palestino…
[Os olhos piscam. As almas fecham-abrem. Ainda estamos aqui!]
Então, quando?
Sábado, 09h30?
Combinado! Até o próximo café!
Post Scriptum
Entregamos a versão final desse ensaio à editoria do Jornal de Psicanálise no dia 170 da ofensiva israelense sobre o território palestino, incluindo, além de Gaza, também a Cisjordânia. Ainda que os números divulgados variem, estima-se que mais de 30 mil palestinos já foram mortos. Somados, mulheres e crianças chegam à metade desse número. Feridos são cerca de 75 mil. Profissionais de saúde, trabalhadores da Defesa Civil e jornalistas mortos passam de 1000. No âmbito da infraestrutura, os equipamentos de saúde (hospitais e clínicas de especi-alidades), de educação (escolas e universidades) e de cultura (sobretudo templos religi-osos) completamente destruídos passam de 2900. A população desabrigada é estimada em dois milhões de pessoas.7 As vítimas israelenses são 12008 e 1309 seguem reféns do Hamas.