Introdução
Sándor Ferenczi era especialmente interessado na técnica psicanalítica, na relação com o outro e nas questões intersubjetivas. Assim, buscava formas de lidar com o sofrimento dos pacientes. Roudinesco e Plon (1997) contam que Ferenczi já abordava o tema da contratransferência em cartas a Freud, explicando sua tendência de considerar os assuntos do paciente como próprios.
Ferenczi foi considerado por muitos psicanalistas de sua época o enfant terrible da psicanálise, por suas posturas desafiadoras e contestadoras, gerava incômodo em muitos colegas por entender que o psicanalista precisaria estar disponível para ser afetado em seu próprio psiquismo – opondo-se à ideia vigente de um analista refratário, indiferente ou interpretativo, que domina a contratransferência. Uma das grandes contribuições de Ferenczi foi demonstrar que havia um risco de retraumatização do paciente na relação analítica, na qual a dinâmica transferência e contratransferência impeliria a uma repetição das vivências e das defesas do paciente no vínculo com o analista.
Para falar de trauma, desmentido e contratransferência na clínica psicanalítica, faremos uma reflexão acerca da ideia de contratransferência na obra deste e de outros autores como Klein, Heimann e Roussillon, e em seguida traremos uma vinheta clínica. Pensamos que estar atento ao que ocorre na relação analítica, nos afetos despertados no analista a partir do encontro com seu paciente, e vice-versa, é fundamental para que se reconheça o risco da confusão de línguas (Ferenczi, 1933/2011a) e seja possível um cuidado no manejo para evitar também um desmentido.
A complexidade da contratransferência
Compreendemos como contratransferência tudo aquilo que o analista sente e pensa durante o atendimento do seu paciente, o que envolve a comunicação inconsciente entre analista e analisando, incluindo transferências, restos traumáticos e resistências de ambas as partes. A contratransferência é uma fantasia consciente e inconsciente, gerada no psiquismo do analista por algum conteúdo emitido pelo aparelho psíquico do analisando.
Por um lado a contratransferência pode ser uma fonte rica de trabalho analítico, à medida que revela fantasias e repetições de um padrão de relacionamento do paciente que suscitam afetos no analista que, ao mapear o que sente no encontro, pode escutar os aspectos não verbais veiculados pela transferência. Por outro, há sensações e afetos produzidos na sessão que podem advir das próprias feridas ou ainda do narcisismo do analista, mesmo que despertadas pelo vínculo com o paciente. Isso pode ocasionar, por um lado, uma capacidade empática e sensível e, por outro, indisponibilidade para ouvir a voz do paciente quando o analista se blinda de seus afetos. Ainda, pode haver uma confusão entre os ecos do paciente e os ruídos do mundo interno do analista.
Segundo Ferenczi (1919/2011d), o analista precisa saber dosar seus afetos, pois estar tomado por eles constitui terreno pouco favorável à recepção da comunicação do paciente. Dosar, no caso, seria se atentar às intensidades afetivas, deixar-se sentir em uma medida atenta, cuidadosa; afinal, sem sensibilidade o analista nem poderia compreender as lutas psíquicas do paciente. Um delicado equilíbrio entre deixar-se sentir, mas não permitir que a afetação prejudique seu trabalho. As ideias do autor nos levam a pensar que a contratransferência pode não ser um obstáculo ou perigo para a análise e sim, um instrumento a favor dela.
Para entendermos esta postura de Ferenczi e a resistência a ele criada por suas ideias, precisamos primeiro saber o que foi dito por Freud acerca do mesmo tema, abordado em “As perspectivas futuras da terapêutica psicanalítica” (1910/1970b). No texto, ele trata das inovações da técnica psicanalítica e aborda a contratransferência como um aviso aos terapeutas, a fim de evitar que cometam o erro de sucumbir aos desejos inconscientes e se tornarem inaptos para tratar os pacientes. De acordo com ele:
As outras inovações na técnica relacionam-se com o próprio médico. Tornamo-nos cientes da “contratransferência”, que, nele, surge como resultado da influência do paciente sobre os seus sentimentos inconscientes e estamos quase inclinados a insistir que ele reconhecerá a contratransferência, em si mesmo, e a sobrepujará. (Freud, 1910/1970b, p. 150)
Ou seja, para Freud, o psicanalista precisa identificar a contratransferência em si e passar por cima dela, precisa vencê-la. Heimann, por sua vez, aproxima-se da visão de Ferenczi no que diz respeito ao uso necessário da contratransferência. No texto “Sobre a contratransferência” (1950), Heimann questionou o fato de esta ser uma fonte de dificuldades, pois notou que os analistas se sentiam culpados por terem uma resposta emocional em relação aos analisandos, e isso os levava a se distanciarem, perdendo assim o lado sensível da relação. Propôs ainda que esse fenômeno pudesse ser visto como um instrumento de trabalho e pesquisa, e que o fundamental para isso era que o analista fosse bem analisado. Para esta autora, se o analista tentar trabalhar sem consultar seus sentimentos correrá o risco de fazer uma interpretação pobre e distante:
O objetivo da análise do próprio analista não é transformá-lo em um cérebro mecânico que pode produzir interpretações com base em um procedimento puramente intelectual, mas sim capacitá-lo a suportar seus sentimentos, em vez de descarregá-los de modo semelhante ao paciente. (Heimann, 1960, pp. 9-10)
Quando o psicanalista tende a “controlar” a contratransferência, corre o risco de se tornar extremamente duro e inacessível ao paciente, o que geraria uma resistência à transferência.
Voltemos a Ferenczi. No texto “A técnica psicanalítica” (1919/2011d), o autor aborda a questão do domínio da contratransferência e diz que o analista “jamais deve abandonar-se aos seus afetos, pois o fato de estar dominado por afetos, ou mesmo por paixões, constitui um terreno pouco favorável à recepção e assimilação dos dados analíticos” (Ferenczi, 1919, p. 416). Esse texto é o primeiro em que o autor fala sobre contratransferência, nele afirma que a transferência repete a relação infantil erótica com os pais e que os pacientes são como crianças – e querem ser tratados como tal.
Para Ferenczi, como o analista é um ser humano – e, portanto, sensível aos afetos despertados pelo encontro com o outro -, ele deve, por um lado, observar o paciente e seu comportamento e, por outro, elaborar a própria atitude (ou seja, a sua contratransferência). A condição para isso é que o analisa tenha sido analisado. Assim, para o autor, o trabalho do analista traz exigências contraditórias: deve dar livre curso às suas associações e fantasias no estado de atenção flutuante, e deve examinar com atenção o material fornecido pelo paciente e por ele próprio.
Defende que a tarefa do analista é difícil: de um lado, deve observar o paciente, escutar seu discurso, sentir-se dentro do universo emocional deste, como se fosse o próprio, entender seu inconsciente a partir da linguagem verbal e não verbal, mas, de outro, deve controlar constantemente sua própria atitude com relação ao paciente e, se for necessário, retificá-la. Podemos entender que essas atitudes compõem o que Freud e Ferenczi consideravam “dominar a contratransferência”, que inclui, portanto, não desmentir um possível ruído ou equívoco que possa interferir na comunicação entre ambos (Ferenczi, 1919/2011d).
Assim, Ferenczi acompanha Freud ao explicar que “dominar a contratransferência” tem três fases: na primeira, o analista sucumbe às emoções geradas pela relação analista-paciente; em seguida, a contratransferência é avaliada, e corre-se o risco de cair no outro extremo e ser muito duro; e na terceira vem o domínio da contratransferência propriamente dito e a superação das duas fases anteriores.
No texto “Perspectivas da psicanálise” (1919/2011), em coautoria com Otto Rank, Ferenczi critica a rigidez dos analistas que usavam a obra de Freud como “bíblia” e compreende que, na transferência, o analista aceita desempenhar o papel que é dado pelo inconsciente do analisando para favorecer a tendência do paciente a repetir na relação analítica o que ele viveu com outras pessoas. Trata-se de uma forma de comunicação inconsciente não verbal – e que pode ser reconhecida e simbolizada na análise.
No texto “Elasticidade da técnica psicanalítica” (1928/2011b), Ferenczi ressalta a importância da capacidade empática do analista de sentir os afetos com o paciente e define “empatia” como a possibilidade de mobilizar o psiquismo do analisando pelo emprego da sensibilidade do analista. Fala ainda do tato necessário ao analista, que o equipa para avaliar a adequação de uma intervenção, para que esta não se torne violenta.
Embora reconheçamos o grande potencial que a escuta da contratransferência tem para ampliar o campo analítico, há também dificuldades envolvidas: as resistências do analista e o seu narcisismo podem influenciar a contratransferência, com origem em seus próprios desejos, traumas e sofrimentos, o que pode ser fonte de equívocos no tratamento – um ponto de vista inovador à época em que o autor expôs sua perspectiva, quando os fracassos no processo analítico eram atribuídos apenas ao narcisismo excessivo de alguns pacientes, e não ao do próprio analista.
É em “Fantasias provocadas” (1924/2011c) que Ferenczi propõe uma nova técnica para os atendimentos estagnados, que consistia em dar ordens e interdições aos pacientes, a fim de provocar excitações e conseguir nova distribuição da tensão psíquica para que o material que estava reprimido se tornasse manifesto. Ele provocava o analisando a produzir fantasias para trazer à tona o conteúdo inconsciente e para acessar a transferência negativa ou positiva, lembranças infantis ou fantasias masturbatórias. O objetivo era desestabilizar a economia psíquica do paciente para recuperar a circulação da energia psíquica, a fim de restabelecer a associação livre.
Mas Ferenczi percebeu que, quanto mais ativava os pacientes, mais ativava também a sua contratransferência, por efeito de suas próprias reações aos conteúdos do paciente. Entendeu que a técnica ativa, à qual abandonou, poderia gerar o fortalecimento das resistências e disfarçar o sadismo do analista.
Trauma e repetição
O trauma está no centro das teorias de Ferenczi; é constituinte e fundante de toda a subjetividade, neurótica ou não: está na base dos sonhos, “da constituição do pensamento, da linguagem, da cultura” (Gondar, 2017, p. 67), o que pode ter uma dimensão estruturante e produtiva. Neste artigo, abordaremos a dimensão desestruturante do trauma, ou seja, aquela cujos efeitos são danosos e desorganizadores para o sujeito. No texto “Confusão de línguas entre adultos e a criança” (1933), o autor fala desse tipo de trauma, decorrente de abuso, abandono, rejeição ou violência.
Ferenczi propõe a cena em que uma criança brinca com um adulto a partir de sua linguagem da ternura, em que ela assume os papéis dos progenitores como parte do processo de identificação e elaboração das questões edípicas. No entanto, o adulto confunde a expressão do erotismo infantil com o interesse de alguém que atingiu a maturidade sexual, e então responde a isso com a linguagem da paixão. Assim, a criança encena, no faz de conta de sua brincadeira, suas fantasias incestuosas nos moldes da sexualidade infantil, enquanto o abusador responde na concretude, produzindo a violência em questão.
O autor destaca o aspecto social do trauma com base no conceito de desmentido: trata-se da negação por parte de um adulto que ouve o relato da criança violentada e lhe diz que nada aconteceu, que isso não tem importância, ou ainda, que se trata de uma fantasia. O desmentido é um evento traumático e desestruturante para a criança, faz com que ela não confie mais em sua percepção. Na situação analítica isso também pode ocorrer, ou ainda, se repetir: há o risco de um desmentido e uma retraumatização, se o analista não puder se permitir ser confrontado pelo analisando.
Ferenczi nos traz um aporte técnico fundamental para pensarmos de que modo os mecanismos de defesa continuam ativos na transferência, sobretudo quando aborda o tema da identificação com o agressor. Em “Confusão de línguas entre adultos e a criança” (1933/2011a), o autor propõe que durante o trauma pode ocorrer um processo em que a vítima, tomada pelo pavor e sem possibilidade de se retirar da situação de perigo, passa a se tornar extremamente atenta às necessidades do agressor, tentando evitar que a situação de violência se agrave. Face ao perigo, a vítima silencia seus próprios afetos despertados – ódio, medo, vontade de protestar, asco, dor – para sobreviver.
Ferenczi (1933/2011a) nota que, frequentemente, esse mesmo processo ocorre na relação analítica, o paciente silencia a voz de suas feridas e necessidades e se torna atento aos movimentos do analista, na busca de não o desagradar. Essa dimensão traumática continua viva e via transferência promove uma repetição da cena de violência anterior, atualizando-se na fantasia do paciente a respeito de seu analista como um potencial agressor. Por isso, é comum que o paciente se retraia, mas faça parecer que não há tensão na relação, procurando manter o clima afetivo da linguagem da ternura. Deixa, então, de reagir aos eventuais desencontros que ocorrem inevitavelmente em qualquer relação analítica: não discorda de uma interpretação equivocada, não faz críticas ao analista, não comunica seu incômodo, e fica então com a “língua presa” na análise, como propõe Ferenczi. Essa mise en scène pode ser muito sedutora para o analista, que, tomado por suas ambições narcísicas, pode receber os elogios lisonjeiros de seu paciente sem se questionar sobre a natureza do vínculo transferencial. Nesse conluio entre a transferência e contratransferência, o paciente vive uma solidão: não protesta, mas passa a cuidar de si mesmo como uma criança ferida, e brinca sozinho, já que não pode ter um vínculo verdadeiro com o analista.
Há, ainda, mais um vértice do fenômeno da identificação com o agressor ao qual temos que nos atentar: trata-se do sentimento de culpa. Sobretudo quando o agressor é uma figura conhecida e afetivamente importante para a vítima – como pai, irmão, professor, cônjuge, alguém de quem se espera cuidados -, a ambivalência pode se tornar insuportável. Assim, para preservar a estabilidade do vínculo e evitar lidar com afetos tão conflitantes, a criança pode preservar a figura do agressor de qualquer responsabilidade, culpando a si mesma pelo ocorrido.
Ferenczi (1933/1990) propõe que, nesse processo, a vítima procura manter uma relação estável com o agressor do ponto de vista da realidade externa, mas o agressor internalizado produz um enorme sentimento de culpa. Compreender que se trata de uma identificação melancólica, instalando no superego a figura do agressor. Essa dinâmica promove violentas autoacusações na vítima, que acaba sendo violenta consigo mesma, por vezes mobilizando uma necessidade de punição, o que se repete na transferência. O analista pode ser induzido a assumir um lugar complementar ao sadismo do superego do paciente, inconsciente, proferindo reprimendas a ele.
Há também o risco de que o analista se identifique com a parte ferida do paciente e seja tomado pelo furor curandis (Freud, 1919/2011d) e busque interditar essa autopunição. Pode se sentir impelido a afirmar que o paciente não tem culpa pelo ocorrido, mas essa atitude pode operar como uma forma de silenciamento, já que o paciente está falando a partir de uma realidade psíquica, em que o sentimento de culpa precisa ser escutado e metabolizado. Assim, a contratransferência do analista, face a pacientes severamente traumatizados, pode levá-lo a atuar os afetos suscitados pelo vínculo, em vez de os reconhecer e digerir, sobretudo quando os traumas do paciente ressoam nas marcas traumáticas do próprio analista.
Por isso é fundamental a análise do analista e o exame constante de seu mundo interno e de suas reações ao encontro analítico. É isso que evita a repetição entre analista e analisando de uma confusão de línguas, respeitando o último como um estrangeiro que possui língua própria, que não pode ser desautorizada ou deslegitimada, como no desmentido.
Ferenczi (1933/1990) compreende que, nesse contexto, a crítica ao analista só se torna possível mediante uma permissão expressa ou encorajamento para tal. Isso pode levar o analista a se defrontar com suas próprias resistências; por isso deve estar apto a lidar com o ódio e desprezo que as associações do paciente podem trazer. O autor defende a necessidade de uma postura de honestidade e sinceridade do analista perante o paciente em vez de uma hipocrisia profissional, em que o analista não reconhece que a sua linguagem da paixão pode ter invadido a relação, ferindo alguém que buscava ternura e compreensão em relação às suas dores. Conforme Ferenczi,
Assinalemos que renunciar assim à hipocrisia profissional em vez de ferir o paciente, proporcionava-lhe pelo contrário, um extraordinário alívio. ... Admitir um erro valia ao analista a confiança do analisando. (1933/1990, p. 114).
Vemos então como Ferenczi elaborou o tema da contratransferência e da relação analítica: passou de uma postura como a de Freud para a atitude de um analista que sente com o paciente, que se propõe a perceber o que acontece nele mesmo, que pode usar essa percepção como instrumento de trabalho, e que, principalmente, não desmente o analisando quando apontado sobre seus erros. Descreve um analista empático e que não nega sua humanidade para não se tornar traumático para o analisando.
Identificação projetiva e contratransferência
Klein compreende que a fantasia dá “figurabilidade a todos os processos psíquicos” (Cintra, 2022, p. 71): a fantasia inconsciente está no substrato de tudo o que acontece no psiquismo, fazendo uma mediação entre corpo e o psiquismo, entre mundo externo e mundo interno, realidade externa e interna, objetos internos e externos. O analista, acessando a fantasia inconsciente do paciente, faz uma escuta viva, usando seu corpo e psique para tanto.
Klein trará esta concepção de que uma interpretação fará este mesmo percurso nos dois sentidos, da psique ao corpo e do corpo à psique, considerando que o analista realiza uma escuta com o seu corpo inteiro, com suas memórias corporais e usando toda a sua capacidade metafórica e a sua capacidade de se manter em reserva; o seu poder de palavra e o seu poder de silêncio. E, então, convida o paciente a entrar nesse jogo paradoxal e complexo que é a associação livre. (Cintra, 2022, p. 72)
Klein não aprovava o uso da contratransferência como instrumento de trabalho, discordava de Heimann e concordava com Freud, afirmando que esta deveria ser evitada. Porém ela trouxe uma importantíssima contribuição para pensar sobre o que se passa entre analista e analisando na situação analítica: a identificação projetiva.
Em “Notas sobre alguns mecanismos esquizoides” (1946/1991a), Klein introduziu o termo identificação projetiva para denominar a tendência do psiquismo a livrar-se de tudo o que é agressivo e assustador: trata-se de uma cisão de uma parte de si que é insuportável para o ego, e uma projeção desta para uma pessoa, que passa a representá-la. Pacientes mais graves utilizam essa defesa de forma excessiva, fazendo com que o analista vivencie angústias depositadas nele por meio dessa fantasia compartilhada, o que muitas vezes o paralisa. Para a autora, a identificação projetiva seria o “protótipo do relacionamento objetal agressivo, ataque ao objeto forçando partes do ego neste, a fim de apoderar-se de seus conteúdos ou controlá-lo, ocorrendo na posição esquizoparanoide a partir do nascimento” (Klein, 1946/1991a, p. 30).
No texto “As origens da transferência” (1952/1991b), Klein afirma que o paciente reage a conflitos reativados na transferência recorrendo aos mesmos mecanismos de defesa que usou no passado, no início da vida psíquica, nas relações iniciais com objetos. Ela considera que a identificação projetiva é um mecanismo de defesa do psiquismo, e de ataque ao analista. Por sua vez, Bion também confere a esse mecanismo a função de comunicação inconsciente. Às vezes, o analista sente aquilo que o paciente não suporta sentir.
Por isso é importante pensarmos sobre a agressividade do analista, que pode ser provocada por uma identificação projetiva, que leva a uma atuação. Mobilizado por uma reação contratransferencial, ele pode ser violento com o paciente, o que nem sempre destrói todo o vínculo analítico, se puder ser elaborado com sinceridade entre analista e analisando. Caso ela possa ser compreendida pelo analista, os erros admitidos podem levar a um desenvolvimento na análise.
Vinheta clínica7
Carolina é uma paciente adulta, que foi atendida durante cinco anos. Sua queixa inicial era de crises de pânico que a acordavam à noite, para as quais já vinha sendo medicada. A situação a seguir aconteceu durante a pandemia, momento em que as sessões passaram a acontecer de forma virtual, com câmera aberta, pois Carolina nunca havia aceitado se deitar no divã.
Certa manhã, a analista se dirigia cedo ao consultório para o primeiro atendimento online com essa paciente que ocorreria às 8h00. Naquela semana ela havia conversado com todos os pacientes sobre reajuste de valores, e todos haviam aceitado muito bem. Conversaria também com Carolina, que pagava um valor defasado em relação ao preço que a analista praticava por conta da dificuldade que havia enfrentado numa migração de carreira.
Quase chegando ao consultório, a analista recebeu uma mensagem de Carolina dizendo que estava com muita dor de barriga e não conseguiria fazer a sessão. Perguntou se poderiam repor. Mas faltavam 10 minutos para a sessão, e Carolina sabia que não haveria reposição nesse caso. A analista respondeu que não, pois, de acordo com o combinado, não havia reposição de sessão cancelada no mesmo dia (quanto mais em cima da hora!).
Ela aceitou, mas em seguida a analista mandou mais uma mensagem falando do reajuste. A analista só pode reconhecer sua atuação após a reação da paciente. Logo em seguida Carolina mandou o comprovante das sessões que havia feito naquele mês, dizendo que estava encerrando a análise porque não se pede reajuste por mensagem. E ela estava certa: não se pede reajuste por mensagem.
A analista respondeu a ela que gostaria de agendar mais uma sessão para conversarem, pois achava que a relação poderia sobreviver a isso. Na sessão recebeu uma pessoa muito brava, que dizia como a analista era péssima profissional por ter agido daquela forma. Ela ouviu, reconheceu e se desculpou. Pensou sobre o que havia feito e entendeu que tinha ficado muito brava de ter acordado cedo e ido ao consultório, e por ter que esperar mais uma semana para pedir o reajuste. Na tentativa de conseguir a reposição que Carolina sabia que não era devida, a analista sentiu que a paciente tentava tirar algo dela.
Mas essa foi uma atuação, reflexo da contratransferência que a tomou. Na verdade, Carolina tem um histórico familiar de sensação de terem tirado coisas dela. Com o falecimento de seu pai, quando tinha 19 anos, foi alçada ao lugar de provedora da casa. Trabalhava muito para bancar sua mãe, o irmão caçula e uma irmã mais velha que só se dedicava a encontrar um marido. Sustentou os três por muito tempo e continuou ajudando a irmã mesmo depois de ela se casar e ter filho. Era tratada como se tivesse a obrigação de prover essa família. Dizia que havia deixado de viver durante a juventude muitas experiências que suas amigas viviam, de ter muitas coisas, por conta da função que exercia na dinâmica familiar.
A analista admitiu seu erro para a paciente, e entendeu o que a havia levado a agir dessa forma. Aceitou que a paciente dissesse o quanto a analista tinha errado e sido violenta. Sim, ela foi, e o pedido de reajuste feito daquela forma fez Carolina se sentir como se alguém estivesse tentando tirar o dinheiro dela novamente. A paciente resolveu ficar na análise, e a analista teve que receber uma pessoa muito brava durante várias sessões, suportando os ataques, mantendo-se inteira e reconhecendo seu erro repetidas vezes.
Se a analista tivesse se esquivado, dito que não havia problema em pedir o reajuste por mensagem (talvez para outro paciente não houvesse) e que a paciente é quem havia reagido mal, teria tocado, por meio de um desmentido, na mesma ferida infligida por sua família.
Passadas duas ou três semanas, Carolina relatou um sonho. Nele estava sentada em um jardim, e um pássaro gigante pousara em seu braço. Ela olhou o pássaro e o achou lindo, pensou que deveria ter medo dele, mas para seu espanto estava muito confortável. A analista pediu para que fechassem a câmera por um instante para que elas olhassem a foto usada por ela no Zoom: um pássaro bem do jeito que aparecera no sonho. Como as sessões eram feitas com câmera, Carolina provavelmente via a foto de relance. A analista compreendeu que o sonho mostrou que a relação analítica, apesar de ter contido uma violência e ter corrido perigo, não a assustava e a deixava confortável. Isso só foi possível porque a analista pôde pedir perdão e perdoar a paciente. Caso, contrário teriam ficado numa relação com ressentimentos e desmentidos.
A analista compreendeu que sua atuação foi movida pela raiva que não tinha se dado conta que sentia. O pedido da analisanda foi de que a analista a compreendesse e pudesse dar a reposição, mesmo sabendo que não estava no contrato. Ocorreu entre elas uma confusão de línguas: Carolina falando pela linguagem da ternura, do lugar de alguém que foi exigida demais na vida e queria acolhimento. A analista falou pela linguagem da paixão, com ódio, sentindo-se exigida. Afastou-se da dimensão infantil da paciente. Falou da posição de alguém que exige maturidade de uma pessoa que não tem possibilidade naquele momento.
De fato, a reação contratransferencial da analista foi de extrema violência para Carolina. A analisanda fazia um movimento na transferência no qual sua fantasia de ter se sentido expropriada pela família ficava revelada, provocando afetos na analista que não pôde, naquele momento, dosar seu afeto.
A contratransferência, segundo Heimann, (1950) só poderia ser utilizada como instrumento de trabalho após a percepção da analista de sua própria emoção. Isto só se tornou nítido após a reação da paciente, o que evocou a empatia da analista (Ferenczi, 1928/2011a). Caso a analista tivesse resistido a esse reconhecimento, o trauma de Carolina poderia ter sido revivido como um trauma desestruturante, caso a analisanda tivesse contido seu impulso de protestar, como havia feito em relação à família no intuito de evitar agressividade.
Pode ter ocorrido entre elas a fantasia compartilhada da identificação projetiva, conforme proposta por Klein (1946/1991a): Carolina tinha vivido com sua família uma situação de expropriação de seu dinheiro quando jovem, e mediante seu pedido, a analista passou a se sentir expropriada também. Dessa forma a analista vivenciou angústias depositadas nela pela paciente; a agressividade pode ter sido provocada pela identificação projetiva recebida. Conflitos na transferência podem ter feito, nesse caso, com que mecanismos de defesa utilizados em tempos anteriores tivessem sido reativados.
Nesse sentido podemos depreender, com base na situação relatada, a íntima relação existente entre trauma e repetição, à medida que os matizes do passado traumático podem influir no presente, alterando a percepção da realidade atual e reativando mecanismos de defesa arcaicos. Trata-se de uma repetição que convoca outra repetição: pela via da identificação projetiva, a situação traumática é revivida, desencadeando as condições de sua reprodução. Isso demonstra a relevância clínica de um analista que procura estar atento aos afetos despertados na contratransferência, uma vez que possibilitam acessar de outras formas os movimentos subjetivos do paciente.
O que salvou essa relação foi a possibilidade da analista não cometer mais uma violência e não desmentir um certo abuso que havia cometido, além de poder identificar o que havia despertado sua reação contratransferencial. O que ocorreu na relação pode ser visto como trauma estruturante, que ampliou a capacidade da dupla analítica de pensarem juntas. Isso pode ocorrer se o analista puder reconhecer suas falhas e atuações.
Em seu artigo “A destrutividade e as formas complexas da ‘sobrevivência’ do objeto”, Roussilon (2013) discute as condições necessárias para que os objetos permaneçam vivos a despeito do seu esmaecimento. Na perspectiva dos bebês, por exemplo, a mãe permanecerá viva se for capaz de não retaliar a agressividade do infante, mas, ao contrário, retribuir com amor aos vorazes ataques típicos da tenra idade.
O fato de o ambiente continuar existindo, apesar dos ataques do bebê, é o que assegura sua confiabilidade e a possibilidade de continuar existindo subjetivamente para o sujeito. Dessa forma a agressividade, em vez de ceder lugar à angústia de retaliação por parte do ambiente, pode ser integrada e elaborada, o que favorece o sentimento de que o vínculo e o ambiente continuarão a existir.
Se o amor resistir ao ódio, então o amor será experimentado como consistente, confiável, e o conflito de ambivalência pode se organizar. Caso ele não resista, então nada vale senão o mal, e será necessário tentar proteger o amor de todas as maneiras possíveis, pois a sua preservação é vital para a vida psíquica e para o vínculo com o objeto. (Roussilon, 2013, p. 8)
No contexto da vinheta clínica, a sobrevivência da analista implica a continuidade do trabalho analítico, ou seja, assegura a sobrevivência da capacidade de pensar. Notamos que, paralelamente a isso, o caso também encerra outro trabalho psíquico importante: o do perdão. Nesse sentido, condições necessárias à sobrevivência do objeto também são aquelas mesmas que asseguram a possibilidade de um sujeito perdoar: trata-se de um ambiente capaz de nutrir, em vez de ser vingativo. O trabalho psíquico do perdão, muito semelhante ao do luto, consiste em recuperar um bom objeto apesar de feridas e ofensas, ou seja, é um trabalho de integração no qual as defesas são vencidas (Siassi, 2013). A impossibilidade de perdoar culmina em uma postura parcial e implacável em que o vínculo com o bom objeto é perdido. Ao apostar na possibilidade de sobrevivência do vínculo, e na capacidade para o perdão da analisanda, o laço foi testado e a relação com o bom objeto restaurada.
Conclusão
Na vinheta apresentada, vemos que a analista adotou a postura de honestidade defendida por Ferenczi, o que possibilitou um interessante processo no curso desta análise: a sobrevivência da analista enquanto um objeto importante para a analisanda. Assim, a partir da delicada situação instalada com a atuação da contratransferência, surgiu um impasse no qual o vínculo foi testado e emergiu vitorioso em relação ao risco de ruptura.
A capacidade de analisar os aspectos contratransferenciais permitiu à analista entender a atuação, assumir seu erro e pedir perdão. A analisanda também pôde admitir sua dureza com a analista e, obviamente, consigo mesma. Dali em diante a relação passou a ser de confiança e conforto, diferentemente das primeiras relações da paciente, que foram de exigência e abuso.
É preciso que o analista não entre em uma confusão de línguas, que leva a não considerar o analisando que sofre. Este último pode estar mergulhado na linguagem da ternura, diante de um adulto que está imerso na linguagem da paixão. E caso isso ocorra, é preciso um reconhecimento por parte do analista para que o ocorrido possa ser reparado.
As articulações entre a vinheta clínica e a teoria nos levaram a compreender que a falha do analista pode levar a análise a lugares muito produtivos. Mas o analista deve estar muito atento para não se deixar levar pela arrogância, o que gera o risco de retraumatizar o paciente desmentindo-o.
A análise da contratransferência é fundamental para que a situação analítica ocorra de forma a favorecer a análise. Ela pode ser um instrumento que leva ao progresso, mas também pode causar danos caso o analista não seja capaz de reconhecer suas próprias questões e vulnerabilidades e atribua tudo ao analisando.
No Diário clínico, Ferenczi declara:
Quase se poderia afirmar que quanto maiores forem as fraquezas do analista que o conduzem a erros e fracassos maiores ou menores, tanto maiores são as possibilidades de que a análise adquira bases profundas e reais. (1933/1990, p. 57)
Compreendemos que não é a quantidade de erros do analista que aprofunda a análise, e sim a possibilidade de admiti-los, abordar os afetos despertados no paciente com base no ocorrido, e elaborar a experiência para que ela não se torne traumática.