Em 24 de setembro de 2024 o Jornal de Psicanálise realizou uma roda de conversa com analistas em formação de instituições vinculadas à Febrapsi por meio de programas de ações afirmativas que alcançam, cada qual com seu modelo próprio, pessoas negras (mas não só).
Durante 2h30m os participantes conversaram sobre suas experiências e fundamentaram o porquê de programas como o que fazem parte não devem ser pensados apenas como concessão de um apoio financeiro, mas sim como um conjunto de ações afirmativas amplas, envolvendo comprometimento e engajamento institucional firmes. As expectativas e temores que traziam ao entrar em seus institutos de formação foram relatados, alguns deles se realizaram e outros não, além de surpresas na ocupação desse novo lugar de formação. Na conversa também mencionaram o que apontariam como importante, caso consultados por uma instituição pensando a implementação de programa análogo.
A viabilidade financeira foi abordada, destacando-se que se trata de uma dimensão, vista muitas vezes pelos demais colegas de instituição, quase impensável de que não se possa dispor de recursos para deslocamento ou mesmo abrir mão de trabalhos que competem com os horários destinados à formação. Assim, com certa surpresa desses mesmos colegas, os ingressantes nos programas, pessoas negras, não são vulnerabilizados como o imaginário deles supõe, o que os faz deduzir que as instituições imaginariam que por esses programas entrariam pessoas significativamente desprovidas em vários sentidos, além de muito agradecidas pela oportunidade.
Durante a conversa, compartilharam a impressão de que, enquanto pessoas negras únicas, ou quase únicas em suas instituições, como em Porto Alegre (2) e Ribeirão Preto (1), eles impactam e incomodam aparentemente menos e são alvos de menor violência, do que quando o grupo aumenta e ganha maior visibilidade, como no Rio de Janeiro (14). Desse modo, o tensionamento aumenta, refletindo que muitos dos que votaram a favor da implementação dessas ações não necessariamente concordavam com os programas, derivando em falas duras após o ingresso. Qual a responsabilidade institucional em manejar essas situações e criar dispositivos para trabalhá-las?
Embora tenham relatado perceber o fortalecimento que um grupo de negros na instituição oferece, afirmaram considerar também fundamental o suporte dos brancos apoiadores e o estabelecimento de pessoas de referência no programa para recorrerem em caso de necessidade de acolhimento. Isso não quer dizer que sejam ‘frágeis’, apenas que uma instituição que decidiu se responsabilizar por uma ação desse tipo precisa bancar o que se propõe. O compromisso com essas ações não pode virar apêndice na instituição, precisa ser pensado de forma transversal por todas as áreas da organização, de maneira que não recaia sobre os negros a responsabilidade de fazer o letramento de seus colegas. A impressão compartilhada foi de que após um período de idealização ao ingressar no programa, haveria um outro, de desidealização, e então alguma integração no possível.
A roda de conversa transcorreu em clima estimulante e proveitoso, levando os participantes a pensar na importância da criação de um fórum transinstitucional permanente entre colegas ingressos nos institutos por ações afirmativas da Febrapsi, para assim abordar de modo permanente as relações raciais, a branquitude e o processo de acesso e permanência nas instituições de formação psicanalítica, tal como proposto pelo Jornal de Psicanálise. Dessa experiência surgiu a proposta de se criar um fórum. Algumas das falas foram selecionadas para serem reproduzidas de modo a testemunhar o conteúdo dos relatos.
Como primeiro estímulo, o jp contextualizou o encontro como complementar às entrevistas realizadas com as diretorias da sbprj e sbpdepa – pioneiras em propor ações afirmativas para formação em psicanálise na Febrapsi – publicadas no Jornal de Psicanálise 101 (2021). Se naquele momento ouviu-se os projetos idealizados pelas diretorias dos institutos e sociedades, agora o objetivo era escutar a experiência de quem estivesse vivendo o programa possível, inevitavelmente próximo e distante do idealizado. Para dar início, o jp convidou os participantes a falarem como se aproximaram do respectivo programa e o que pensam dos termos comumente utilizados em programas como esses, de “ação afirmativa”, “cota” ou “bolsa”.
Miriam – Eu tenho entendido que o nome mais apropriado ou adequado, sim, é políticas de ações afirmativas, e para poder pensar e entender o contexto dessas políticas de ações afirmativas, hoje e nas sociedades de psicanálise, é importante fazer um movimento Sankofa de voltar e pegar aquilo que foi acumulado em momentos históricos anteriores. Farei um percurso histórico, olhando para trás, para poder trazer aqui alguns elementos, até mesmo de por que defender a ideia de ações afirmativas, quando, por exemplo, no contexto brasileiro, hoje o que chamamos de ações afirmativas ou políticas de ações afirmativas, tem as mãos, o suor, a luta, a carne, o osso dos movimentos sociais negros. As ações afirmativas partem da luta por reparação para a população negra em diferentes campos, áreas e dimensões da nossa sociedade. Duas delas que podemos citar são: o campo da educação e o campo do trabalho.
Essa caminhada que foi travada pelos movimentos sociais negros não pode ser silenciada, esquecida, apagada. Entendo que até nas nossas instituições psicanalíticas essa história precisa ser contada. Por que ações afirmativas? Porque falamos de um processo de busca por reparação para a população negra no nosso país. E olhando para essa caminhada que os movimentos sociais negros vão incidindo sobre diferentes contextos da nossa sociedade, podemos olhar para a psicanálise e ver que estamos vivenciando um recente processo de reflexão política, jurídica, teórica, filosófica, sobre as ações afirmativas nas instituições de formação em psicanálise. Isso é muito recente para a psicanálise, mas não é recente para os movimentos sociais negros, que têm um longo histórico, um longo percurso, reivindicando a necessidade dessas ações em diferentes áreas, sobretudo da educação. E aqui eu quero citar um projeto de lei que foi encampado por Abdias do Nascimento, então deputado federal, que foi o projeto 1.332 de 1983. Esse projeto de lei do Abdias, obviamente não foi para frente, mas mostra, pelo seu período, esse acúmulo dos movimentos sociais que, até antes da Constituição Federal de 1988, já tinham propostas para pensar ações reparatórias, compensatórias, afirmativas para a população negra no nosso país. Eu quis trazer um pouco desse contexto para nos situarmos, aos poucos, e conseguir nomear como é que isso se dá hoje para as instituições de formação em psicanálise. Quando olhamos um projeto de lei que estava pensando o contexto da sociedade em suas diferentes dimensões, lá em 1983, e vemos hoje, 2024, que a sbpsp ainda não conseguiu implementar seu projeto, fica evidente que há processos iniciados na sbpdepa, na sbprj e na sbprp, mas que ainda temos um percurso grande para consolidar as ações afirmativas nas instituições de formação psicanalítica e eu acho que nos ajuda a pensar hoje, se olharmos para trás e vermos como é que isso pode se dar e ir melhorando, qualificando nas nossas instituições, também no que se refere às bancas de heteroidentificação, essa é uma questão a ser pensada.
William – Aqui no Rio é nomeado de Projeto Social/Racial. E esse é um programa para pessoas negras, indígenas e refugiadas, e também para pessoas em condições sociais mais precárias. Então, aqui, além de ser um programa de ação afirmativa, é também um programa de inclusão dentro de um espaço extremamente elitizado, que é a psicanálise do Rio de Janeiro. Aqui, as duas instituições psicanalíticas da ipa e outras que não são ipa, estão na Zona Sul, “área nobre” da cidade. Eu moro na Zona Oeste, que é a periferia da cidade, a 65 quilômetros da Zona Sul. E como toda periferia, tem questões de moradia, transporte, violência etc. Eu soube pelo Edital – no meu caso específico, eu tinha um desejo de fazer a formação na sbprj. Só que eu não podia, porque o nosso programa também abriu a sociedade para não-médicos e não psis, que a sbprj até então não aceitava desde a sua fundação. E eu sou historiador, professor, então não podia fazer a formação.
A Miriam trouxe muito bem a importância de compreendermos a ação dos movimentos sociais, do movimento negro, na questão da reparação. Comumente as pessoas falam em cotas e tal. Eu estava exatamente no final da década de 1980, aqui no Rio de Janeiro, quando a uerj foi a primeira instituição a abrir cotas. Eu participei ativamente desse movimento, tanto na universidade, como também fundando os primeiros pré-vestibulares comunitários, que eram uma forma também de tentar acender a universidade. E aí, quando vim para a psicanálise fazer a formação, 30 e tantos anos depois, eu me senti no filme da marmota. Vocês conhecem aquele filme que você dorme e o dia se repete. Eu me sinto assim, porque as discussões sobre a questão racial, agora na psicanálise, lembram o filme. Parece que eu estou em 1988. É impressionante. Eu ate já falei sobre isso no congresso da Febrapsi, numa mesa que apresentou os três programas, três projetos, da sbprj, da sbpdepa e Ribeirão Preto estava começando ali.
Wagner – A fala dos colegas me remeteu a uma memória involuntária, pois, quando olho para o presente momento é impossível não se conectar com o nosso passado. De repente, comecei a pensar no Brasil colônia, visualizar as caravelas, a companhia de Jesus, a primeira missa. O discurso no ensino retratava como libertadores e descobridores em detrimento do sentido real de invasores e predadores. Invadindo a nossa terra, desapropriando a força as terras dos povos originários, ignorando os costumes e modos de organização social e políticas para impor uma nova cultura eurocêntrica, assim, desta maneira, surgiu o genocídio, a escravidão, as favelas, os miseráveis, o movimento sem-terra. Como é que nasce um sem-terra? Nasce dessa maneira, com essa agressividade, com essa violência brutal, desterritorializando tanto os povos originários como também os povos africanos para serem escravizados em uma terra estrangeira. É a origem traumática da nossa história de desigualdades. Depois vem a divisão das terras – as capitanias hereditárias – o patrimonialismo. A partir disso compreendo e visualizo as grandes fazendas, as casas grandes e senzalas, a imposição eurocêntrica, branca, escravocrata, patrimonialista e toda essa herança cultural do horror que nós temos e que é preciso uma longa caminhada para fazer a reparação necessária. Então, podemos inferir que a política de reparação das instituições se relaciona a essa bagagem histórica de mais de 500 anos de opressão, marginalização, preconceito…
É preciso olhar para esse processo histórico para se chegar aqui e, nesse momento, poder falar: olhem-se no espelho, olha só o que aconteceu, lembram-se de tudo isso? Pois, durante muito tempo ou se pensava igual ou era cancelado – o outro não pode existir sem que fosse por uma identificação – narcisismo – sem espaço para as diferenças – o outro é eliminado. Por que eu consegui entrar na sbprj? Porque está havendo um movimento de transformação – ainda que pequeno, mas, significativo, por meio da implementação de um programa de políticas afirmativas. Diferentemente dos que entram para faculdade muito cedo, eu entrei muito tarde para a universidade, muita água por debaixo da ponte. Fiz a graduação e pós-graduação em bacharelado, licenciatura e mestre em Artes Cênicas pela universidade federal do Estado do Rio de Janeiro (unirio). Portanto, não sou psicólogo, nem médico – e o Projeto Social/Racial (2021) possibilitou a abertura na sbprj ao ingresso de colegas de outros campos de conhecimentos. Durante a graduação me envolvi com um projeto de extensão da universidade chamado teatro na prisão: uma experiência pedagógica rumo à cidadania – por um tempo de 10 anos. E, quando entramos em uma penitenciária, encontramos uma população em sua maioria pretos e pobres – quase não se vê brancos – o contraste é gritante – é um navio negreiro. É o fracasso de nossas políticas públicas e a absoluta miséria de um país que criminaliza pela cor e pelo status social. Esse é o caminho por onde passei, digo, por um processo de experiência de conscientização política, cultural, social. Fui dando conta da existência da luta de classes, dos modos de produção, da força de trabalho – eu diria que até então eu era um alienado.
Tornei-me professor da rede pública de ensino do Rio de Janeiro e a sbprj pelo Departamento de Comunidade e Cultura no qual existe um projeto chamado Travessia que visita e atua nas escolas junto aos professores e diretores da rede pública do município em parceria com a secretaria municipal de Educação. E o projeto Travessia visitou a escola em que eu dava aula, queria ouvir os professores. Eu já estava adoecido na escola – via o ritual desenhando as instituições de controle e de disciplina de Foucault passarem na minha mente como um filme: a casa, a escola, a fábrica, o hospital, a igreja, a prisão – todas instituições análogas para o controle e a disciplina. É muito difícil estar, ser e permanecer na escola, a escassez é brutal em todos os sentidos, os alunos são jogados como se as salas fossem um porão de um navio, em média são entre 35 a 40 alunos por professor, isso é enlouquecedor.
Quando o Travessia chegou lá, percebi que muitos professores têm muito preconceito com a psicanálise, acham que isso não é importante. Falar, falar o quê? Para quê? Por quê? Como? Como se falar não fosse uma forma de ganhar alguma forma de representação das nossas angústias, ansiedades, dores, sofrimentos que sentimos. E eu levantei a mão, eu quero falar, eu preciso falar. Assim, entrei para esse projeto do Travessia, e, foi por ele que tive a notícia do Edital que um programa racial e social tinha sido aprovado em assembleia na sbprj. E pensei, “Será que eu posso tentar? Será que isso é possível para mim?”. A ideia de possível reverberava. Fiquei pensando se era possível entrar, porque até então era um lugar muito fechado, elitizado – não é simples permanecer sendo e estar ali dentro com a carga histórica que conhecemos e é entranhada como algo estrutural.
Miriam – Reduzir os projetos que buscam implementar ações afirmativas nas instituições de formação psicanalítica a projetos de bolsas é problemático. Ações afirmativas não se reduzem a bolsas. É muito mais. Porque falamos de uma luta de décadas, séculos, até de todos os nossos antepassados que abriram caminhos, criaram possibilidades para que hoje estejamos aqui falando sobre ações afirmativas nas sociedades psicanalíticas. Então, precisamos pensar no acesso, mas também na permanência, por isso que não é só bolsa. E permanecer tem a ver com o que o William dizia, tem a ver com a nossa locomoção, como nos deslocamos da zona norte para a zona sul ou da zona leste para a zona sul. Tem a ver com como nos sustentamos nessas instituições, tanto psíquica – como sustentamos a nossa existência nesse espaço – como financeiramente: como é que come? Como é que se desloca? Como é que compra livros? E como é que eu cheguei, então, na sbpdepa?
O grupo de estudos – que na época era sobre colonialismo, racismo e desigualdade, hoje é o núcleo de estudos na sbpdepa – me convidou, em alguns momentos, para participar de discussões online, porque eu fiz um percurso acadêmico anterior à minha formação em psicanálise. Tenho duas graduações, mestrado, doutorado em psicologia. Primeiro tenho uma graduação em educação física, na década de 1990. Entrei para a universidade quando não tinha ações afirmativas, quando era tudo pela meritocracia, a disputa era acirrada, eu lembro que no meu curso de educação física na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, nós éramos 700 alunos, alunas, e eu identificava três ou quatro estudantes negros. Então, esse é o contexto que vivenciei na Universidade Federal. Ainda nessa minha graduação, deparei-me com a psicanálise, em 1998, a partir de um psiquiatra, psicanalista, que acessou o meu grupo de pesquisa, e ele queria pensar projetos de extensão, de pesquisa, articulando psiquiatria, psicanálise e educação física, e no meu grupo de pesquisa, eu fui a única que se apresentou para compor tal parceria. Só que depois dessa minha primeira experiência com a psicanálise, também fui me distanciando dela, por ver que não era acessível para mim, eu não poderia dar segmento àquilo que, naquele momento, eu tive interesse, e fui fazer outros percursos, pela saúde mental, pela psicologia, fiz residência em saúde mental coletiva, uma segunda graduação em psicologia, mestrado e doutorado em psicologia, concurso público em uma Universidade Federal, virei docente em uma Universidade Federal, hoje estou na ufrgs. Percurso de mais de 35 anos em que conheci várias pessoas a partir da pauta racial. A minha militância vem de muito cedo, e levei isso para a Universidade. Então, enquanto docente em uma Universidade Pública, fui convidada para fazer uma fala no grupo de estudos “Colonialismo, Racismo e Desigualdade”, hoje núcleo da sbpdepa e retomei a minha relação com a psicanálise na medida em que passei a desenvolver conversações com psicanalistas da sbprj, e que busquei articular meu conhecimento prévio sobre colonialidade, colonialismo, racismo e relações raciais, com as questões que me eram instigadas pelos colegas psicanalistas.
O meu desejo pela psicanálise, que nasceu em 1998, foi retomado e perguntei a uma colega se existia a possibilidade de fazer a formação com valores mais acessíveis. E, então, conheci o projeto Ubuntu e me candidatei a uma vaga. Agora estou nesse lugar, construindo e problematizando a psicanálise por dentro, vivenciando e estudando a psicanálise na perspectiva de torcê-la e deslocá-la, considerando nossas necessidades contemporâneas. Acho que essa foi a minha motivação, e estou muito feliz com esse novo percurso em que me posiciono como aprendiz, estudante novamente. Aprender ao lado de colegas durante os seminários, durante os eventos, durante cafezinhos e almoços e, desse modo, reconstruir a minha relação com a psicanálise tem sido fascinante.
Alessandra – Minha jornada na psicologia e psicanálise começou quando eu era menina, inspirada por algo que ouvi na tv sobre psicanalistas. Esse interesse permaneceu comigo, mas o caminho para realizá-lo foi longo e com algumas intercorrências A questão racial e financeira sempre foi um desafio. Tentei o vestibular da ufrgs três vezes, sem poder pagar por um cursinho preparatório. Apenas aos 36 anos, já casada e com uma filha, consegui retomar os estudos, trabalhando de dia e estudando à noite. Finalmente, com a ajuda do fies, formei-me em 2019. Durante a faculdade, tive experiências valiosas, incluindo um estágio em um hospital psiquiátrico do sus. Foi nesse período que percebi a necessidade de continuar meus estudos após a graduação. Ao procurar opções para formação continuada, me deparei com a sbpdepa. À primeira vista, parecia um lugar inacessível para mim. Tentei uma formação mais curta em orientação analítica, mas ainda enfrentei dificuldades financeiras. A pandemia trouxe uma virada inesperada. Comecei a participar do grupo “Escurecendo Ideias”, no qual mergulhei na minha negritude e no processo de racialização. Foi por meio desse grupo que dei inicio aos estudos sobre racismo, entrei em grupos de estudos sobre o temas e, assim, descobri as ações afirmativas em psicanálise, algo que antes parecia distante demais. Quando soube que a sbpdepa estava implementando um projeto de bolsas raciais, novamente me questionei: “Será que esse lugar é mesmo para mim?”. Entendi que não se tratava apenas de uma questão financeira, mas de um processo de reparação histórica. Minha experiência reflete desafios maiores. Mesmo morando em um bairro tradicional de Porto Alegre, sempre fui questionada sobre minha presença ali. Na terapia, ouvi que a psicanálise seria inacessível devido aos custos e à longa duração do tratamento. Hoje, vejo mudanças acontecendo. As instituições de psicanálise estão começando a reconhecer essas barreiras e a tomar medidas para tornar a formação mais acessível, como disponibilizar materiais em pdf. É um começo, um processo de reparação que ainda tem muito caminho pela frente. Entendo que as pessoas negras enfrentam dificuldades semelhantes durante a busca por educação e realização profissional. Mas também percebo mudanças graduais em direção a um futuro mais inclusivo na psicologia e na psicanálise.
Andressa – Eu me formei em psicologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro e lá, uma grande amiga, que é filha de um psicanalista da sbprj, convidou-me para um grupo de estudos que ele estava organizando naquela ocasião. A partir desses encontros, tive também a oportunidade de fazer uma supervisão social com outra analista da mesma instituição. Por meio dessa rede que generosamente me recebeu, fui conhecendo a sbprj, principalmente, a partir da transmissão via estudo teórico e supervisão. Anos depois soube do programa de ações afirmativas, porque sempre acompanhava as redes, e foi um impacto muito grande para mim. Eu já tinha desejo, mas não achava que eu poderia acessar uma formação nos moldes da ipa. Pensava ser algo muito distante (e era), que eu nunca faria ou talvez só seria viável para mim muitas décadas adiante. Por isso, quando essa porta se abriu, senti um grande impacto emocional. Participei então da seleção para a segunda turma do Projeto Social/Racial.
Maria Helena – Farei um resumo da minha caminhada. Sou formada em psicologia, e o que influenciou ter decidido pela psicologia e ter esse olhar e busca pela psicanálise foi o vivido com a analista Adriana Vilela Jacob, que permitiu que eu tivesse acesso à análise considerando minhas condições econômicas. Foi por este contato que tive acesso a Sociedade de Ribeirão Preto: Di Loreto, Suad Haddad, Beatriz Troncon, Josiane Barbosa, entre outros. Eu já trabalhava no Fórum, e trabalho no Fórum. Sou escrevente, trabalho há muitos anos, então, conciliei o meu trabalho e a faculdade. Mas só que, quando eu terminei a faculdade, não deu mais para conciliar o meu trabalho. Eu trabalho oito horas em um serviço público, ficava muito complicado. Então, para não ficar desatualizada, comecei a fazer grupo de estudo na área da psicanálise. Fiz o grupo do Di Loreto, fiz grupo com a Suad e frequentava muito a sociedade de Ribeirão Preto. Nesse meio tempo, conheci uma das psicanalistas da sociedade e comecei a fazer grupo de estudo com ela. As meninas que faziam parte desse grupo começaram a prestar formação. A cada dois anos, uma delas entrava. A Bia insistia que eu tinha que prestar. E eu respondia: “Bia, isso não é para mim, não tenho condições. Não tenho essa possibilidade”. Até que, como todo mundo do grupo, a maioria acabou entrando para a formação, restou só eu e a Bia no grupo. Continuamos estudando, até que saiu a possibilidade, ela me contou desse projeto, foi fofa. E, mesmo assim, eu estava muito resistente, porque eu achava que não era para mim e que eu não teria condições. Porque a bolsa também não é integral, tenho que bancar o pagamento da analista, mas mesmo sendo um preço mais social, é muito caro para mim, é muito difícil. Porque eu não sou de Ribeirão Preto, eu tenho que ficar me deslocando da minha cidade para a cidade de Ribeirão Preto. Vejo que é uma caminhada muito difícil. Porque fico pensando que papel, que espaço ocupamos dentro da sociedade. Quem é essa minoria que está chegando para eles? É muito difícil tanto para quem chega, como para quem nos recebe.
Larissa – Eu sou de Manaus e lá não temos sociedade ipa. Em 2019, quando eu fui para o congresso Febrapsi em Belo Horizonte, tive uma experiência muito boa e pensei, “meu Deus, é isso aqui que eu quero fazer! Psicanálise, quero ser uma psicanalista”. Então, voltei para casa pensando: “como que eu vou fazer isso acontecer?” Assim como a Andressa, eu pensei “talvez quando eu tiver 50 anos, quando eu já tiver acumulado ali a coisa de uma riqueza, de uma possibilidade”, mas enquanto isso, fui pesquisando como é que se tornava psicanalista, qual era essa formação que fazia sentido para mim. E, em 2020, aconteceu a pandemia de covid-19, tudo ficou online e, por conta disso, eu, lá de Manaus, pude me infiltrar em todas as sociedades do Brasil, do Nordeste ao Sul, e ter um panorama do que era esse mundinho ipa, como é eram as sociedades, as pessoas… Então, em muitas reuniões, meu quadradinho estava lá, eu era basicamente um arroz de Zoom. Fui ouvindo e conhecendo a dinâmica das sociedades, das pessoas, como se relacionavam, e era muito interessante porque, do nada, a reunião estava lá, uma reunião pública online para qualquer pessoa ver, e as pessoas estavam lá, e “Oi, fulana, como é que você está? E o netinho?”. Em uma intimidade que eu achava fascinante.
Assim, como uma forma de viabilizar, no futuro, a minha formação, e um passo muito importante que eu podia dar, resolvi começar a minha análise em 2020. Fui atrás de uma analista para mim, e essa analista era da sbprj. Depois de alguns meses eu pedi uma indicação para fazer supervisão, também uma coisa que estava dentro do meu alcance, e essa supervisora me falou sobre como eles estavam organizando a implementação, a partir de um esforço coletivo de anos, de um projeto de ações afirmativas, e que teria essa possibilidade de uma bolsa, enfim, nos moldes que a sbprj trabalha. Quando soube daquilo, pensei: “Meu Deus do céu, está escrito nas estrelas”. Então, comecei a organizar minha vida para que pudesse aproveitar essa chance. Fiz a inscrição, depois as entrevistas e fiquei esperando o resultado. Não me aceitaram de primeira porque não sentiram certeza de que eu realmente me mudaria. E aqui, acho que entra um recorte de região: me recusaram porque não acreditavam que eu, lá de Manaus, pudesse ser capaz de mudar para o Rio de Janeiro para uma formação presencial, mesmo isso sendo da minha conta para viabilizar, e não responsabilidade da sociedade. Com incentivo da minha analista e supervisora, voltei lá, bati meu pé e falei, “Se for por isso, peço então que vocês revejam”. Meu pedido foi então acatado e eu consegui entrar.
Alessandra – Para uma próxima instituição que venha a pensar, então, em um projeto, eu acho que o primordial seria pensar na questão da análise, de como seria a análise, como seria a estrutura, se a instituição iria disponibilizar o valor, seria gratuita, não seria gratuita, entendo que é uma discussão importante. O mesmo para a supervisão e, principalmente, que tenha um local ou grupo ou pessoas no qual os bolsistas consigam buscar acolhimento e apoio. Que eles não se sintam tão desamparados. E aproveitando e falando um pouco da minha experiência, acho que talvez seja a da Miriam: para nós aqui, não temos percebido tantas violências, porque aqui somos só eu e ela. É a síndrome das negras únicas, por enquanto, a nossa presença é bem tolerada. Ela começa a causar desconforto a partir do momento que começam a perceber que ambas temos ideias próprias, aí sim começa o incômodo. Mas penso que a partir do momento que começa a entrada de mais pessoas bolsistas é que as agressões começam, e o desconforto aumenta. E talvez a sensação de desamparo de quem está entrando como bolsista também se faça mais presente. Acho que essa seria a minha sugestão. Por enquanto, eu não tenho tanto essa percepção de uma agressão. E aqui tem o pessoal do Ubuntu, que tanto conseguimos recorrer. E tem também os colegas da diretoria, membros do instituto também, que estão de acordo com o projeto. Então, se percebemos algo, também podemos falar com eles. Acho que o acolhimento é importante.
William – Antes de entrarmos, o programa de bolsas foi aprovado por unanimidade, todos estavam na assembleia. Mas a entrada de não médicos e não psis não foi por unanimidade. No nosso programa somos isentos da mensalidade, do pagamento dos seminários, de todas as atividades pagas. E, recentemente, conseguimos até a gratuidade no congresso da Febrapsi e agora na Fepal. E também da taxa da abc. E a questão da análise e da supervisão, posteriormente, o que aconteceu é que um grupo de analistas se ofereceu voluntariamente para fazer a análise pessoal por valores combinados bem abaixo, valores sociais. Os membros efetivos, no caso da análise pessoal, porque aqui nós não temos a categoria didatas. Só que, desde o início, isso é uma percepção que eu sempre tive, não houve uma preparação efetiva para esse programa, para nos receber.
Hoje nós temos três turmas: 2021, 2022, que é a da Andressa, e 2024. Porque em 2023 não teve turma, entre 2022 e 2023 houve um retrocesso na sociedade. Provocado, ninguém assume, mas sabemos que foi pela nossa presença. A sbprj tinha abolido a análise prévia. Nós entramos, a nossa turma não precisou fazer análise prévia. Nesses anos, com a nossa turma e todas as questões, eles voltam com a análise prévia. Então, a turma que entrou em 2024, aprovados em 2023, só entraram agora. Hoje nós somos 14 bolsistas aqui na sbprj, é um número muito grande. Tem uma atividade que não acontecia há muitos anos na sbprj e voltou a acontecer por conta das questões que começaram a surgir nessa relação tensionada entre bolsistas negros, negras. Essa tensão foi se constituindo principalmente nas discussões sobre a questão de racismo, nas questões que sempre apresentamos, seja nos seminários, seja em todos os ambientes. Considero que esse número grande de bolsistas tem um fator positivo para nós, no sentido de termos um grupo no qual conseguimos nos articular e nos posicionar minimamente. Mas essa grande quantidade gera uma tensão também institucional, principalmente com aqueles que eram contra e votaram a favor ou não votaram, e se posicionam de várias formas. Costumo sempre dizer que a companhia, a presença dos meus companheiros e companheiras nessa travessia é fundamental para que atravessemos e continuemos na formação. São muitos os desafios, principalmente em relação ao modelo de formação adotado pela ipa. E nós temos uma dupla tensão, seja a questão da presença de pessoas negras, a sbprj tem uma analista negra, que é a Wania Cidade, e agora temos vários membros provisórios que são negros, e isso tem causado um impacto. A presença dos não médicos e não psis também cria uma situação de incômodo muito grande, de desconfiança, de cobrança exacerbada em algumas situações, em algumas questões. Tudo isso aqui para a nossa realidade está no mesmo pacote e exige de nós também uma capacidade de dialogarmos, de nos posicionarmos e nos impormos.
Andressa – Estamos falando das tensões institucionais e, muitas vezes, sinto que circulam sentimentos persecutórios para todos. Penso que encontros como o que estamos tendo hoje, devem ser promovidos inter-institucionalmente, como uma agenda recorrente dos programas de ações afirmativas. No sentido de que este espaço de diálogo não fique restrito aos institutos de forma isolada, mas circule. Creio que isso fortaleceria a construção dos programas, não só dentro de suas singularidades, mas também enquanto um marco, um movimento das sociedades psicanalíticas brasileiras vinculadas à ipa. Quando eu soube que nossa conversa poderia se traduzir em um material escrito, senti ânimo. Precisamos demarcar esses nossos movimentos, pois eles são construções fundamentais que ganham corpo e voz, à medida que também podem ser escutados e registrados. Por diversas vezes, as mesmas coisas precisam ser ditas, parecem que algumas palavras evaporam de uma reunião para a outra, este é um sentimento recorrente dos candidatos que tiveram acesso via ações afirmativas.
Gostaria também de abordar outro ponto. Quando pensamos em análise de alta frequência, ao longo do dia, às dez da manhã, às três da tarde enfim, nos horários possíveis, parece-me ser compreensível que, neste momento, o perfil dos bolsistas não seja o de pessoas super vulnerabilizadas. Digo isso, pois, por vezes, parece que circulam pelos institutos fantasias do que seríamos (ou deveríamos ser?) pessoas totalmente desprovidas de condições suficientes para sustentarmos estar na formação. Alguns de nós, por exemplo, formados em psicologia, já temos uma clínica, há bolsistas concursados, professoras e professores. Eu fiquei com a sensação de que imaginavam receber outro perfil de bolsista. Na sbprj, por exemplo, nós não temos bolsa permanência. Como poderíamos então dar conta do que demanda essa formação?
Há também reações de surpresa quando percebem nossa eloquência, nível de formação acadêmica, quando também tomam conhecimento de que temos um percurso prévio à entrada nas sociedades.
Que fantasias são essas sobre nós bolsistas? Fantasias de pobreza, ora material, ora intelectual?
Durante os dois anos e meio em que estou na formação, tenho refletido sobre gratidão e culpa. Sem dúvida que, se entramos nessa formação, é porque temos muito que aprender sobre teorias, técnicas e instituições psicanalíticas, mas enquanto sujeitos e profissionais de outras áreas do saber, temos também o que oferecer. Isso é uma forma saudável de encontro: dar e receber. Precisamos cuidar juntos, no convívio, pelo diálogo e disponibilidade de escuta, para não funcionarmos no modelo “ofertante” e “receptáculo” passivo do que é oferecido. Pois assim, penso que apenas restaria a nós, bolsistas, o lugar de gratidão irrestrita e culpa por “nada oferecer”. Quando falamos e escrevemos nossos trabalhos da formação entrelaçando temáticas relacionadas justamente ao que motiva este programa, raça e classe, penso que estamos também dizendo do nosso cuidado pela valorização e continuidade do programa de ações afirmativas, assim como de outras possibilidades de pesquisa no campo psicanalítico contemporâneo. Porém, muitas vezes, isso tem sido visto como algo que estaria empobrecendo ou fugindo ao que seria a ideia de uma verdadeira psicanálise.
Nunca vi nenhum colega bolsista não desejar estudar os autores e autoras das grandes teorias psicanalíticas transmitidas nos institutos de formação. Por que falar de raça e classe é visto como empobrecimento e não como enriquecimento?
Miriam – Aqui no Projeto Ubuntu temos a isenção dos seminários e de todas as atividades que a sbpdepa organiza. Além disso, recebemos uma bolsa para pagar tanto a análise pessoal quanto a supervisão. Não é um valor, por exemplo, que sobra para pagar passagens, alimentação, livros. É estritamente para pagar a supervisão e para pagar a análise pessoal. E à medida que avançamos nos anos de formação, tem um percentual do valor da bolsa que devolvemos para o projeto. Eu já estou nessa fase, pois estou no meu segundo ano de formação com supervisão de dois analisandos. Então, tem um percentual que eu devolvo, na perspectiva de também contribuir para a entrada de novos bolsistas – esses valores são realocados para o Fundo Financeiro Projeto Ubuntu. Tem um escalonamento nesse percentual de minha participação financeira ao projeto que vai de 5% a 15% da bolsa análise e da bolsa supervisão. Mas como eu já disse, a bolsa não é a totalidade do projeto de ações afirmativa. Um debate importante que precisamos fazer e aprofundar, é sobre a necessidade desses projetos constituírem o todo das instituições de formação psicanalítica, ou seja, a estrutura das instituições. Eles precisam estar institucionalizados, não só enquanto um projeto, uma concessão, um apêndice. Isto é, as ações afirmativas precisam estar na centralidade das instituições de formação psicanalítica, considerando as diferentes dimensões que as constituem: administrativa, financeira, científica, formativa, cultural, entre outras. Como é pensar ações afirmativas, por exemplo, na comunicação? Como é pensar ações afirmativas na edição das revistas científicas? Como é pensar ações afirmativas nos eixos da formação que constituem os seminários? É possível a criação de um seminário obrigatório sobre psicanálise, relações raciais, branquitude em diálogo com os clássicos, pensando o processo de formação de todos os membros do instituto. Entendo que esse é o nosso ideal a ser alcançado.
Hoje estamos no possível, que é pensar o acesso de pessoas negras por meio de bolsas. A permanência ainda é um desafio, e estou me referindo à permanência tanto durante a formação quando após. Será que todos os bolsistas conseguirão se manter na instituição, chegando a membro titular, por exemplo? Nesse sentido, as ações afirmativas reforço a ideia de que as ações afirmativas não podem ser da responsabilidade de poucos, de um grupo de pessoas, precisa estar constituir a totalidade da instituição de formação psicanalítica. Precisamos avançar nessa discussão. Voltar a debater e ir qualificando a discussão em nossas sociedades. Como vocês estão fazendo aqui. O jp está pensando isso agora, mas essa pauta precisa ser permanente. Como é pensar as ações afirmativas nesse jornal como algo que não é deste momento ou desse grupo que hoje se mostra comprometido? Como garantir que o próximo grupo do jp dê continuidade e visibilidade a essa discussão? Um outro ponto é sobre as pessoas brancas aliadas. Nós precisamos ter um conjunto cada vez maior das pessoas brancas aliadas que compreendam, que defendam essa pauta, que consigam olhar para sua branquitude enquanto sistema de poder, para, então, transformar as relações interpessoais e da própria instituição. Porque não é nossa responsabilidade, pessoas negras, ter que fazer o letramento de vocês. Essa responsabilidade precisa ser de todas as pessoas e, fundamentalmente, das pessoas brancas. Então, não sou eu, Miriam, que tenho que letrar a minha coleguinha branca que me olha e quer tocar no meu cabelo. Isso é uma violência que eu já vivenciei na minha sociedade, por exemplo. A curiosidade, a fantasia sobre o corpo do outro, autoriza a pessoa branca a violar o corpo da pessoa negra. Isso precisa ser nomeado, enunciado em nossas instituições. Não dá mais para naturalizar esse tipo de comportamento.
Também há o lugar do totem, em que as pessoas brancas nos tomam como objeto para seu próprio gozo, buscando aliviar sua violência. Um exemplo de objetificação é a necessidade de perguntar e escutar sobre o quanto sofremos racismo. Parece que querem gozar com o sofrimento daquele objeto negro que invade o seu território branco. Eu já entendi que nosso sofrimento faz a branquitude gozar. Então, eu não falo. Só falo do meu sofrimento na minha análise pessoal. Parece que os colegas e a própria instituição só nos olham desde o lugar do sofrimento, o lugar da extrema pobreza, com a fantasia de nos ver esfarrapadas. E não é nada disso, pois para manter essa formação, o mínimo de estrutura nós precisamos ter, caso contrário, não conseguiríamos chegar aqui. Então, fica a pergunta: Quem as ações afirmativas nas instituições de formação psicanalítica conseguem alcançar, hoje? São pessoas que têm uma base, que têm uma formação universitária prévia, que têm uma estrutura minimamente consolidada.
Esse mínimo nos permite transitar, agregar, construir desde os nossos conhecimentos prévios. Eu, por exemplo, só estou fazendo essa formação graças ao projeto Ubuntu da sbpdepa, mesmo sendo professora universitária. Por quê? Porque nós, negros e negras, nós não acumulamos a partir de gerações anteriores. Eu sou da primeira geração que consigo ter a casa própria, por exemplo. Que consigo ter condições mínimas para minhas filhas, para minha família viver o mínimo de conforto e isso não é sobre acúmulo, é sobre o mínimo de dignidade humana. Quando olhamos para colegas que possuem trajetórias familiares com a presença da psicanálise, a mãe e o pai são psicanalistas, a avó e o avô foram psicanalistas, fica nítido o privilégio no acesso à educação e possibilidade de dar seguimento a um legado familiar. Muitas de nós somos as primeiras que conseguimos uma ascensão social mínima. Mas que não é suficiente, por exemplo, para bancar uma formação como essa. Esse é um elemento importante para que colegas brancos entendam que a base das ações afirmativas diz sobre a necessidade de reparação a um grupo populacional que historicamente foi vilipendiado quanto ao acesso à educação, por exemplo. A ideia que algumas pessoas brancas têm de que ações afirmativas deveriam ser para pessoas pobres e não negras, só explicita o racismo que as habita. Se estamos falando de reparação histórica em relação à população negra, a discussão é, fundamentalmente, de raça e na sbpdepa conseguimos avançar muito nesse sentido. As bolsas de análise e supervisão estão direcionados a pessoas negras e indígenas.
E, para fechar minha contribuição, quero abordar a questão da gratidão. Em geral, nos espaços em que são criadas ações afirmativas, em um primeiro momento, o que as pessoas brancas esperam é a nossa gratidão total. Tipo, assim: “Olha tudo isso que estamos fazendo. Vocês estão aqui, nós somos legais, nós somos pessoas boas. Abrimos as portas para vocês entrarem, agora vocês têm que ser gratas a nós”. Isso, na minha percepção, é o que muitas das pessoas brancas esperam – nossa eterna gratidão. Nós precisamos inverter essa lógica e dizer: “Não, nós estamos aqui, porque estamos construindo isso junto com vocês e mais, porque se existem ações afirmativas aqui é porque tem uma luta anterior de pessoas negras, dos movimentos sociais negros que construíram essa possibilidade. Temos, sim, pessoas brancas aliadas que estão conosco pensando, lutando, tentando transformar o status quo de nossas instituições de formação psicanalítica”. Mas esperar a nossa eterna gratidão é voltar à relação colonial Casa Grande e Senzala. Então, sim, percorrer por um processo de formação psicanalítica é importante para nós. Mas também é importante para a própria instituição, pois temos muito a agregar à instituição que aprende conosco, com nossas experiências, com nossas vivências, com nossos conhecimentos.
William – E me parece que quando essa indigência intelectual não existe, isso cria uma frustração e um choque muito grandes. E a questão da entrada, a porta estava aberta, nós entramos. Mas entramos como? Pelo mérito, passamos pelas três entrevistas, passamos por todo o processo, depois fizemos tudo o que tinha que fazer. Não foi nenhum favor. É um espaço de conquista. É um espaço que nós temos a legitimidade e o direito de estar ocupando. Só para acrescentar o que eu pensei quando vocês estavam falando.
Wagner – Quando eu falo e penso dessa maneira: será que eu posso? É como se estivesse pedindo, por favor, posso entrar? Eu posso? Quer dizer, é como se não fosse um direito. Se eu pergunto se eu posso, penso e, de alguma forma, sinto que isso significa que a situação já é desigual. Já estou na diferença. Mas, é uma diferença de desiguais. Porque eu poderia estar na diferença com igualdade. Entretanto, a diferença sem igualdade, me posiciona em uma situação subalterna. É como se me dissessem: Olha, estou te fazendo um favor, pode entrar, vou deixar você entrar. Isso é o complexo de próspero, do bom próspero que veio de lá para cá para ajudar o selvagem a se tornar civilizado. Diria em sua prepotência eurocêntrica: Eu vou civilizar vocês, agora vocês vão poder conhecer a alma humana. Porque vocês ainda não têm uma alma. Vocês são apenas corpos. Não é fácil lidar com esses sentimentos ambivalentes e são vários os desafios para permanecer, ser e estar com a vitalidade necessária para não se esmorecer. Sempre recordo que, primeiro, eu vim de outra área, não sou médico e não sou psi, logo, sou um estranho. E me parece que tem um estigma aí, você é bolsista, você é do Projeto Social/Racial. Estamos fazendo um favor porque somos Prósperos e podemos agir dessa maneira.
Há uma tensão não-dita o tempo todo porque não há uma conversa de iguais entre nós, embora pudéssemos e é preciso que assim o seja de sermos diferentes na igualdade. Mas não tem igualdade ali, em lugar nenhum, isso é uma construção. Acho que precisamos encontrar um modo de buscar tornar as relações de poder em uma forma mais horizontalizada. É uma luta permanente permanecer vivo, não permitir a diminuição da potência que aumenta nossa vontade de estar ali. Primeiro que, para mim, estar na formação significa que estou aprendendo uma outra língua, a pensar e escrever psicanaliticamente, se apropriar dessa linguagem, dos conceitos, significa, sobretudo, conseguir pensar esse outro lugar. Isso, para mim, é um desafio enorme. Já entrei me sentindo estranho, estou longe de ser familiar nesse espaço. Talvez um dia eu consiga perceber que nessa estranheza existe algo de familiar, mas ainda nada tem sido familiar para mim. É tudo muito movediço, muito cheio de controle.
A pergunta da Maria Helena é: “Quem são vocês que estão entrando aqui? Quem são vocês?”. É um pergunta muito importante, pois, eu e meus colegas estamos nesse lugar do estranho, estranho no ninho e, por isso, eu me cobro muito, pois acho que preciso provar algo. Eu me vejo tentando provar que estou aprendendo. Como assim eu tenho que provar que estou aprendendo? De certa forma temos esse compromisso, precisamos de alguma forma ser avaliados para saber se estamos aprendendo ou não. Essa questão da avaliação precisaria ser mais discutida. Eu me vejo, às vezes, em uma cobrança tão ferrenha que beiro ao colapso. Tudo errado, nada disso, não pode ser um processo de adoecimento, seria uma contradição, pois estamos justamente falando de um espaço para pensar o funcionamento do aparelho psíquico para cuidar e preservar a saúde mental. Acho que tem que ser um lugar de desejo, de vitalidade, eu estou aqui porque eu quero estar aqui. Leio isso porque quero ler isso, me dá prazer. Garantir e cuidar desse espaço subjetivo e desse sofrimento não precisa, digo, não poderia significar estar em sofrimento. Portanto, é preciso ser prazeroso, embora nisso há um desdobramento em desprazer também se sabendo capaz de suportar as frustrações. Quem são eles para mim? Quem são eles para nós? Sempre eles e nós, então tem uma tensão permanente. Eles para mim começam a representar sempre esse lugar da autoridade, do suposto saber – os Prósperos. Penso que eles estariam me dizendo: você não podia entrar e eu deixei você entrar. Isso é perigoso porque pode tirar a minha vontade de permanecer. Pode matar o meu desejo.
O outro elemento importante é a questão financeira. Seria a nossa libido em uma sociedade capitalista. Não dá para não ter dinheiro. Você precisa ter o mínimo para poder se locomover, comer, se vestir, andar de Uber, andar de ônibus, comprar livros… Poder estar bem, comprar uma roupa legal, estar bem-vestido, usar um perfume… E nem por isso se sentir um burguês. Será que você tem que ser o coitadinho, o miserável? Não pode ter altivez, autoestima? Se isso for um problema torna-se um lugar esquisito, não? Então, é preciso sim ser e ter, sem se sentir um miserável, pois, é caro estar na formação. Fazer as análises três vezes por semana, transporte, alimentação, livros, apesar de pagar um preço social, ainda assim é difícil. Em seguida mais um gasto, a supervisão. Agora que eu terminei o estágio psiquiátrico, eu vou no gaac (Grupo de Acompanhamento de Avaliação Continuada), para pedir uma permissão para poder dar prosseguimento à minha formação, isto é, para que o gaac me autorize a começar um caso oficial e poder iniciar o atendimento de pacientes pela clínica social. Só podemos começar um caso oficial, digo os alunos não psis e médicos após o estágio, exceto os que já fizeram o estágio psiquiátrico durante a formação, que são os psis e os médicos. Mas, para quem não é, precisa fazer o estágio para poder atender o primeiro caso oficial. Isso significa muita coisa também, que é encontrar o analisando, que tope faze análise de alta frequência de três vezes por semana, que possa pagar um preço ainda que simbólico. Conseguir um consultório, pagar um supervisor. Tudo isso gera muita ansiedade e angústia. Quer dizer, isso é o financeiro que não podemos ser displicentes e tem o desejo de precisar estar ali vivo, com vontade, de estar aprendendo essa língua, de estar aprendendo a pensar nessa língua, de querer estar sempre lendo e participar das atividades. O Instituto está conseguindo algumas mudanças. Por exemplo, estão conseguindo por uma advogada uma carta, uma espécie de documento, para angariar fundos de empresas para ter o abatimento do imposto de renda, e esse dinheiro, poderia financiar os programas sociais e raciais e outros projetos do instituto. É um tema importante para criar mais possibilidades e uma estabilidade para sbprj, dar condições possíveis para mais voos e, se voltarmos para a questão do possível, para manter e visibilizar, porque todo ano entra mais gente pelo programa e a tendência é crescer, então tem que ter essa logística de como é que podemos dar conta disso, como é que podemos fazer com que esse projeto tenha permanência. Gostei do que a colega falou sobre receber uma bolsa para pagar a análise. Isso não tem na nossa sociedade, no nosso instituto. Isso é muito legal, muito interessante, daria um gás para nós.
Maria Helena – Como funciona a questão da bolsa em Ribeirão Preto? Sou isenta de toda atividade que tenho na sociedade, mas pago a análise, mas a um preço social que é cobrado dentro da instituição. Esse valor social é o que eu pago das análises, que é quatro vezes por semana que eu tenho que me deslocar para Ribeirão Preto. Estar dentro da sociedade é você se deparar com outra realidade, porque a sociedade é preparada para aquele grupo elitizado. A estrutura da sociedade é para esse grupo elitizado. A minoria que está chegando vem de uma outra realidade. E essa minoria tem que se adaptar a essa estrutura e, às vezes, não dá certo. Então, sinto que é entrar dentro da sociedade e estar vivenciando a cada etapa se será possível passar, porque tem que falar com o coordenador, tenho que explicar a minha realidade que não se encaixa à realidade da instituição. Então, é um questionamento que eu faço. Abriram-se as portas, deu-se oportunidade para que a minoria chegasse, mas a estrutura não mudou. Simplesmente deu oportunidade, mas não se pensou como receber e como fazer para manter a minoria que chega. Então, a Alessandra, que falou dessa coisa de um grupo de apoio, acho muito importante ter esse grupo de apoio junto com a análise, principalmente, até para se discutir ou conversar com essa pessoa que está chegando. Nem todos se candidataram a atender pessoas como eu. Eu moro em outra cidade, não tenho carro, trabalho no judiciário por oito horas, então, para eu fazer análise quatro vezes por semana, a escolha dentro de uma lista que me passaram, tive que me adaptar à minha realidade. Só que, às vezes, corre-se o risco da escolha feita daquele profissional que melhor se encaixa à tua realidade, não necessariamente quer dizer que vai ser o melhor encontro. São questões muito delicadas que as instituições poderiam pensar. Quem é o sujeito que chega? Qual é a realidade desse sujeito? E o que a instituição pode fazer para atendê-los? Porque, se não, é um abrir uma porta para entrar e uma outra também para sair.
Larissa – Atualmente divido minha trajetória, de quase quatro anos, em três fases: o primeiro ano de profunda idealização; um segundo momento de profunda desidealização e muita decepção; e um terceiro momento em que tento fazer a integração desses aspectos. Da idealização e da desidealização. Das coisas muito boas que a formação me possibilitou e das coisas muito sofridas, muito duras que vivi nesse espaço. Então, vou aqui manter a minha tese de que é preciso muita idealização para querermos fazer isso. Depois, ter muita capacidade para suportar a frustração e habilidades de integração das partes boas e ruins para continuarmos a querer ir até o final. Algumas vezes eu comentava sobre coisas que me incomodavam dentro do processo da formação, seminários, conversas, enfim. E eu ouvia de volta: “mas é difícil mesmo. E é difícil para todo mundo”. E eu realmente concordo que é difícil para todo mundo esse processo que escolhemos para nos tornarmos psicanalistas.
Não é nada fácil se virar do avesso e ir atrás de cada buraquinho e canto escuro que temos. Psicanálise é um processo muito duro. A vida institucional também é muito dura, pode ser muito violenta. Mas acho que tem algo da experiência de ser uma pessoa não branca, não rica, talvez, não psi e não médica, dentro das instituições psicanalíticas que é da ordem de um sofrimento diferente. Então, sim, a formação é muito difícil e muito desafiadora para todo mundo que entra, mas acho que quando somos capazes de reconhecer que existe em nós e em nossa sociedade um viés que opera de forma inconsciente, temos, pela lógica, que ser capazes de reconhecer também que existe um sofrimento que é diferente quando se trata desses grupos específicos. E, nesse sentido, eu acho que precisa haver uma implicação diferente da instituição com essas pessoas para quem ela decidiu abrir as portas. Não basta abrir as portas, não basta falar “vem, gente, entra”. Você tem que cuidar onde essa pessoa vai se sentar, onde vai dormir, o que vai comer, como vai chegar até lá. Claro, em termos metafóricos. Mas sim, é preciso que as instituições se impliquem de formas diferentes com os candidatos das ações afirmativas, do que elas se implicam com os candidatos das vias comuns. E isso não é dizer que precisamos ser tratados como coitados ou protegidos como incapazes, mas sim que me parece razoável que uma instituição que fala “vou fazer um projeto afirmativo porque eu reconheço que existe uma violência estrutural que impede que esse grupo de pessoas chegue na minha instituição” seja capaz de pensar “ah, esta violência está sendo reproduzida aqui no seio da minha casa então preciso fazer alguma coisa, ao menos falar ei, vamos com calma… esse papo tá estranho”. E para a segunda pergunta que seria o que eu falaria para as sociedades que estão pensando em alguma coisa assim, eu pensei no seguinte: acho que tem aspectos objetivos dos projetos e já podemos perceber que cada sociedade fez ali mais ou menos da maneira que conseguiu, da maneira que deu conta. Então, o nosso projeto na sbprj é bastante diferente do da sbpdepa, e ainda bem que os dois aconteceram, ainda bem que o de Ribeirão também aconteceu. Eles são diferentes entre si e isso reflete a organização das próprias sociedades, o que elas deram conta em termos de planejamento, de condições, de dinheiro também. Acho que a única que talvez pudesse dar bolsas e abrir para um monte de gente ao mesmo tempo seria a de São Paulo, mas vemos que isso não é o suficiente. Ter dinheiro não é o suficiente. E isso porque acho que estamos falando de um ato da instituição, uma ação que realmente afirma alguma coisa. E tem que ter pessoas que sustentem esse ato, que sustentem o desejo de ter a gente lá. Nesse sentido, eu apontaria como importante para isso seriam habilidades que todos nós analistas temos – ou, ao menos, que deveríamos ter: que é a capacidade de sustentar o mal-estar; a capacidade de escutar sem retaliar e sem se defender; a capacidade de aguentar as feridas narcísicas; e a capacidade de integrar as partes boas/ruins e as partes cindidas. E, falando de racismo, estamos falando de tudo isso.
Quando entramos, isso envolve ter coragem e força para suportar. Porque quando entramos, a gente tensiona. Estamos lá. Diferente. No mesmo espaço. O cabelo é diferente, a forma de falar é diferente, os referenciais são diferentes, as conexões que faremos com a teoria são diferentes. Quando apontamos o desconforto e dizemos: “meio atravessada essa fala aí, né?”, quando confrontamos e não somos profundamente gratos, como é que é? O tensionamento está presente o tempo inteiro. Pode ser muito difícil para todo mundo suportar isso e, embora pessoas negras – ingratamente – acumulem certa experiência navegando por essas águas, pode ser extremamente cansativo e desestimulante. Então, acho que é coragem e força para suportar… e talvez um montão de esperança também. Porque não é fácil, como vocês puderam ver aqui, trazemos muitas riquezas, muitas contribuições. E, honestamente, não acho que tem futuro da psicanálise sem a gente.













