Serviços Personalizados
Journal
artigo
Indicadores
Compartilhar
Revista Psicopedagogia
versão impressa ISSN 0103-8486
Rev. psicopedag. vol.23 no.72 São Paulo 2006
ARTIGO ORIGINAL
Uma investigação sobre o brincar de Winnicott, no tempo e no espaço da creche: contribuições da Psicanálise para a Educação
An investigation about child playing within the Winnicott's perspective, on the time-space in the kindergarten: contributions of the Psychoanalysis for the Education
Vanêssa R. P. KawagoeI; Maria Cecília SonzognoII
IMestre em Educação pela Universidade de Franca e docente no ensino superior. Psicóloga Clínica - Prefeitura Municipal de Mococa
IIDocente do Centro de Desenvolvimento do Ensino Superior em Saúde - CEDESS/Universidade Federal de São Paulo/Escola Paulista de Medicina - Psicopedagoga clínica
RESUMO
O presente artigo se propõe a investigar quanto a instituição creche compreende o brincar de uma criança pequena, no seu tempo e espaço, segundo Winnicott, por meio da observação e registro do brincar de uma criança de três anos de idade, durante a atividade livre, na presença da professora, auxiliar e demais crianças. Realizamos um estudo de caso de uma menina de três anos de idade, de maternal II, ouvindo o depoimento materno para obtenção dos dados sobre núcleo familiar, gestação e desenvolvimento. O método de observação Esther Bick adaptado foi utilizado para a colheita de dados, durante a atividade livre. Foram realizadas 37 observações. Registramos condutas da criança, seu relacionamento com adultos, outras crianças e objetos. Os resultados obtidos a partir da leitura dos relatos de observação foram recortados em episódios relativos ao brincar. Foram identificados 119 episódios interpretados segundo as categorias: "ansiedade de separação", "função de holding" e "relacionamento entre pares e adultos". Nossas conclusões indicam que a criança demonstrou dificuldades em separar-se da mãe para freqüentar a creche. Condutas da professora e a própria estrutura da creche indicam a necessidade de um maior conhecimento das questões que envolvem o brincar. O brincar de uma criança pequena constitui a expressão de seu mundo interno, tal como suas ansiedades, emoções, desejos e recursos. Assim, os profissionais, ao aprofundarem-se sobre o brincar, poderiam oferecer uma melhor qualidade de atendimento aos pequenos.
Unitermos: Educação infantil. Jogos e brinquedos. Psicanálise.
SUMMARY
The purpose of this study is to investigate how much the school understands about child playing, on the time-space in the kindergarten, within the Winnicott's perspective. We analyzed a three-years-old child during play in the presence of the professor, assistant and other children. Interviews with her mother performed to obtain family history data, gestation and child development. The adapted Esther Bick Observational Method has been used to collect data during the play. Thirty-seven observations (37 hours, from March to June/2002) were performed. The observer took notes of the child's behavior, relationships with adults, other children and objects. All the observations have been supervised. Based on the observation reports, 119 playing episodes were selected and classified into the following categories: "separation anxiety", "holding" and "relationship with children and adults". Our results showed that the child had difficulties to separate from her mother to attend the kindergarten. The teacher's behavior and the kindergarten structure indicated the need of an enhanced knowledge about the child playing. A child play involves the expression of her internal world, such as anxieties, emotions, desires, resources. Better quality of care will be offer to infants when professionals understand more about the play.
Key words: Child rearing. Play and playthings. Psychoanalysis.
INTRODUÇÃO
O presente estudo buscou uma aproximação entre a Psicanálise e a Educação infantil, investigando quanto a instituição creche compreende o brincar de uma criança pequena, inserida no seu tempo e espaço, segundo a perspectiva teórica de Winnicott.
Sentimos existir, no meio acadêmico, uma resistência em usar a Psicanálise para enfrentar a problemática da educação infantil. Contudo, além de ter sido a Psicanálise a primeira a estudar o inconsciente humano, o olhar clínico pode trazer ampliações das competências de um professor de educação infantil.
A escolha do psicanalista Winnicott não foi ao acaso, pois o autor consegue viabilizar a nossa aproximação do objeto pesquisado, de maneira que a significação do problema seja pautada a partir do pessoal.
Preocupa-nos o número de crianças encaminhadas para atendimento terapêutico, que freqüentam a educação infantil, e a dificuldade do professor em olhar as questões emocionais das crianças diante da atividade livre.
A dificuldade emocional na creche deveria impulsionar o professor e as pessoas envolvidas na instituição a desvendarem os mistérios do "brincar".
A educação fornece as bases para uma boa apreensão do real e do social que envolve o brincar, assim como os conhecimentos que nos permitem manejar melhor o mundo, podendo tornar-se ainda mais enriquecedora, com a introdução de um olhar psicanalítico que permeia o brincar.
Segundo Winnicott1, brincar está além da diversão, do entretenimento: "a característica do brincar é o prazer", mas esta atividade só dará prazer se for significada. "A significação do brinquedo depende do uso de símbolos" e, nessa visão, o entendimento sobre o brincar não deve focalizar apenas o brinquedo em si, o objeto ou a atividade realizada pela criança e sim, a representatividade da atividade e da brincadeira.
Na perspectiva de Winnicott, o brincar possibilita à criança quebrar barreiras da realidade, viver uma experiência, é uma forma de "viver", "transitando" entre o subjetivo e o objetivo. Essa mesma experiência vai ser adjetivada, ou seja, tem qualidade.
O autor também chama atenção para o "lugar" em que a "experiência criativa" ocorre. Winnicott nomeia esse lugar de "espaço potencial", "terceira área da experiência" ou " zona intermediária".
O brincar se situa, como espaço potencial, inicialmente na relação mãe-bebê e, depois, este mesmo espaço é transposto para outras situações.
Para o autor1 "(...) é a brincadeira que é universal e que é própria da saúde; o brincar conduz aos relacionamentos grupais; o brincar pode ser uma comunicação na psicoterapia; e a psicanálise foi desenvolvida como forma altamente especializada do brincar, a serviço da comunicação consigo mesmo e com os outros."
Neste trabalho, acima de tudo, ficam definidos os seguintes objetivos:
- Observar e registrar o brincar individual e grupal da criança, durante a atividade livre, em sala de aula de Maternal II, com a presença da professora, auxiliar e demais crianças;
- Compreender e analisar as situações do brincar relacionando-as com a prática pedagógica.
MÉTODO
Tipo de estudo
Optamos por realizar um estudo de caso de uma criança de três anos de idade, que será identificada por (D.) de uma classe de Maternal II, ouvindo o depoimento materno para obtenção dos dados sobre o núcleo familiar, gestação e desenvolvimento da criança. O método de observação Esther Bick2 adaptado foi utilizado para a colheita de dados, no contexto da creche.
Método Esther Bick de observação
A metodologia da observação Esther Bick implica na observação da relação mãe-bebê na família, durante um período de dois anos, semanalmente.
A supervisão semanal, realizada no grupo de observadores (em torno de 6 a 8 observadores), tem como objetivo principal ouvir e discutir, em rodízio, o relato de um dos membros do grupo, proporcionando clareza de linguagem, fidedignidade da observação e a compreensão do que se passou nessa relação mãe-bebê. O método Esther Bick difere de outros métodos de observação, na medida em que se preocupa com os detalhes da relação mãe-bebê mais do que o comportamento individual do bebê2-4.
Bick2 estabeleceu um lugar para o observador de modo que sua presença não cause grandes interferências na família. Ao mesmo tempo, ele se coloca dentro do campo emocional da família e, especificamente, na relação mãe-bebê, sem, entretanto, se sentir obrigado a desempenhar papéis, tais como: aconselhar, aprovar, desaprovar ou intervir de modo a mudar os comportamentos a serem observados. A partir do relato é possível ter uma visão analítica aplicada ao contexto no qual o fenômeno ocorreu.
Coleta de dados
Foram realizadas 37 observações, de uma hora de duração, ao longo dos meses de março a junho de 2002. Na observação, estávamos atentas às condutas da criança e seus relacionamentos com adultos, outras crianças e objetos. Todas as observações foram supervisionadas.
Análise de dados
Procedeu-se à leitura dos 37 relatos de observação dos quais foram recortados episódios relativos ao brincar. Foram identificados 119 episódios segundo as categorias de "ansiedade de separação", "função de holding" e "relacionamento entre pares e adultos".
Definindo as categorias utilizadas
- Ansiedade de separação: buscando condições para a independência do bebê, a mãe promoverá uma 'desadaptação' na relação mãe-bebê que, num primeiro momento, é intensa, desenvolvendo no bebê a capacidade de tolerar sua ausência, gradativamente.
- Função de holding: implica no ato físico de conter, dar suporte e no ato mental de entender as necessidades do bebê e atendê-las adequadamente.
- Relacionamento entre pares e adultos: abordagem do outro (aproximação/verbalização), seja num clima amistoso, questionador ou agressivo.
RESULTADOS
No caminho da Psicanálise à Educação, não fizemos apenas uma análise individual de D., mas consideramos o ambiente em que ocorreram as observações.
No decorrer das 37 observações realizadas, a qualidade do brincar da criança pode ser visualizada como indicador de seu "desenvolvimento emocional". Chamamos de qualidade ao emprego de uma rica "percepção criativa" da criança.
Winnicott1 define a criatividade como "um colorido de toda a atividade com a realidade externa".
D. faz uso do "espaço potencial" ao brincar, demonstrando um caminhar para o jogo compartilhado e para as experiências culturais.
Os episódios de brincar demonstram não só aspectos individuais de D., mas, sobretudo, dados relevantes ao contexto da creche e da prática pedagógica.
Nos momentos de atividade dirigida, a professora mostrou-se presente, atendendo às solicitações da criança, apresentando um relacionamento afetivo. No entanto, verificamos que, nas atividades programadas, as crianças não tinham espaço de "brincar" e de "criar" em função das atividades serem muito dirigidas.
A atividade livre ocorre no início da manhã, num momento em que a professora e a auxiliar recebem as crianças e respectivas mães, permitindo que as crianças se movimentem e brinquem mais livremente.
Por outro lado, na hora da atividade livre, a professora e auxiliar não interagem com as crianças, nem quando solicitadas a fazerem às parte do "espaço potencial"; atendem neste momento às mães e realizam atividades profissionais individuais, deixando as crianças atuarem livremente.
D., no brincar, demonstra uma preocupação com a brincadeira, não considerando muito o material disponível; podemos ver que as coisas simples como um pedaço de papel e uma caneta transformam-se em objetos lúdicos.
A Tabela 1 apresenta os episódios de brincar; os dois primeiros algarismos se referem ao relato de observação, portanto, compreendem os números 01 a 37; os dois algarismos seguintes, após o ponto, se referem aos episódios identificados em cada relato de observação, independentemente de terem sido classificados em uma ou outra categoria de análise, com base na teoria do brincar de Winnicott.
A Tabela 2 apresenta a distribuição de freqüências dos episódios, em três momentos, segundo as categorias estudadas, na qual se verifica um decréscimo, ao longo do tempo, da categoria "ansiedade de separação" e, ao mesmo tempo, um aumento nas outras duas categorias "função de holding" e "relacionamento entre pares e adultos", parecendo indicar atividades de simbolização e criatividade mais desenvolvidas.
DISCUSSÃO
Dos 119 episódios, 43 foram classificados como "ansiedade de separação", 24 como "função de holding" e 52 episódios dizem respeito à "relação entre pares e adultos".
A seguir, descreveremos cada categoria, trazendo para cada uma delas um episódio como ilustração.
1) "Ansiedade de Separação"
O brincar, para Winnicott, antecede ao brincar simbólico, cujo pressuposto e possibilidade são a separação sujeito-objeto, eu e não-eu, subjetividade-objetividade. E, tudo isso começa para o bebê na sua relação com a mãe. A jornada à independência caminha da "dependência absoluta", passa pelo estágio da "dependência relativa" e, finalmente, ruma à "independência". A falha ou a demora na satisfação das necessidades, mais do que a criança, a princípio, é capaz de suportar, viabilizará o que Winnicott denomina de ansiedade1.
Episódio (30.04)
Retornando do cabideiro, D. aproxima-se da mesinha em que estou instalada e, olhando para mim, aponta direcionando a mão para as costas dizendo: " - Mamãe coçou minha costa!"
Levanta a blusa, em seguida, e mostra-me algumas picadas de inseto.
Sabendo que D. mora no sítio, pergunto: "- Lá tem bastante mosquito?"
D. responde com a cabeça em sinal afirmativo, vai em seguida até a mesa da professora e fica olhando a professora escrever algo.
Abre a boca (sono) e, após observar a professora, leva o polegar à boca e diz, com o polegar ainda na boca: " - Cadê minha mãe ?"
Nesta hora, J. chega com a mãe e todas as crianças vão com a professora até a porta.
J. dá vários beijos em sua mãe (já está no chão).
D. vai até sua mesinha e fica observando a mãe de J. ir embora; acompanha a saída da mãe de J. olhando pelo visor da sala.
Quando a mãe de J. desaparece de seus olhos, D. sobe em uma cadeirinha e olha pelo visor da porta vendo se ainda enxerga a mãe de J.
A solicitação de D. para olharmos suas costas vai além da necessidade comportamental em enxergarmos as picadas de inseto.
D., neste episódio como em outros classificados como ansiedade de separação, pede um holding para a professora e observadora diante da dificuldade em tolerar a ausência materna.
No episódio acima (30.04), D. deixa explícito o elevado nível de ansiedade, e a postura de incompreensão da professora parece permanecer.
Em nenhum momento, a professora parece entender que, ao perguntar sobre a mãe e levar o polegar à boca, D. busca incansavelmente manter a sua "ansiedade" num nível suportável.
A professora seria "suficientemente boa", naquela situação, se demonstrasse uma qualidade no seu olhar para com D.; reconhecendo o nível de ansiedade da criança e oferecendo-lhe condições para experimentação da ansiedade sem ameaça.
A orientação da professora deve ir além da relação ensino-aprendizagem. A professora, estando mais próxima emocionalmente da criança, sabe como a criança se sente, de modo que é capaz de promover o holding e providenciar situações ambientais adequadas, "suficientemente boas". Sem tal envolvimento, a ansiedade é inevitável.
Assim, nos episódios de ansiedade de separação, podemos verificar a excitação e a agitação de D., quase sempre, logo em seguida à chegada das mães das crianças na creche. Geralmente, a ansiedade é acionada em D. pela chegada e relacionamento dos colegas com suas respectivas mães.
Nas observações, pudemos constatar que o momento de desligamento da criança da mãe ficava exclusivamente a cargo da própria mãe; a professora pouco atuava no sentido de receber a criança na creche.
Momentos de desligamento da realidade externa e o ato de chupar o dedo são constantes nos episódios caracterizados como ansiedade de separação no mecanismo de expulsão da ansiedade.
Winnicott5 explica o ato de chupar o dedo como comportamento observável desde o nascimento e, portanto, pode-se presumir que ele vá do primitivo ao sofisticado, remetendo a criança a voltar-se para dentro como resultado da frustração no amor por um objeto externo.
Então, o chupar o dedo significa também consolo, uma defesa contra a perda do objeto (mãe), contra sentimentos de insegurança ou contra ansiedades primitivas.
Aqui o questionamento à instituição creche torna-se necessário: Como a instituição creche proporciona, na figura do professor, na atividade livre, no ambiente da sala, um sentimento de segurança contra a ansiedade de crianças?
A resposta a esta pergunta é muito complexa, porém alguns dados nas observações podem ser retirados de forma satisfatória.
Começamos chamando a atenção para a qualidade do olhar da professora para a criança. Embora a instituição faça um esforço para apresentar o mundo de forma objetiva, a precariedade da relação professor-aluno inviabiliza a plena realização deste projeto; as coisas objetivamente percebidas passam antes por questões subjetivas.
Nos episódios de ansiedade de separação, há pontos nos quais a ansiedade manifestou-se ou permaneceu implícita, porém fez-nos pensar sobre o papel da instituição e a importância da figura do professor, no sentido de favorecer estratégias de D. para lidar com os seus sentimentos desagradáveis pela "falta da mãe".
A ansiedade de separação de D. demonstra, sobretudo, uma dificuldade da instituição creche em viabilizar um "espaço-potencial" para as crianças "experienciarem", elaborarem o sentimento de ansiedade em conseqüência da falta da presença materna.
2) "Função de holding"
O conceito de holding foi desenvolvido por Winnicott e envolve todas as particularidades do cuidado materno que antecedem e advêm depois do nascimento.
"Holding" significa sustentar, conter, dar suporte. No caso da relação mãe-bebê, isto pode ser feito por meio do ato físico de segurar no colo ou entender as necessidades específicas do bebê e atendê-las de modo mais adequado; para o autor "holding" sempre incluiu a comunicação silenciosa entre mãe-bebê, que é a raiz e a origem de outras comunicações entre seres humanos6.
Episódio (15.04)
Corre satisfeita, sorrindo para o grupo de crianças que se encontra junto da professora; chega e se instala em seu colo (não diz nada), carrega consigo a boneca. Quando corre em direção à professora, carrega a boneca sem preocupação, ou seja, segura o brinquedo com uma das mãos e pelos cabelos, porém, ao sentar-se no colo da professora, acolhe e arruma com cuidado em seu colo. A professora começa a cantar uma música de ninar para a boneca de D.
D. segura a sua boneca em posição de ninar, batendo com as mãos em suas costinhas, com carinho.
A professora, terminando de cantar a música, continua por alguns segundos com D. em seu colo (D. continua ninando a boneca). Em seguida, a professora vê as horas em seu relógio de pulso e pede para as crianças guardarem seus brinquedos, pois está na hora do café.
A professora olha para a boneca e para D. e diz: "vamos deixar ela dormir!" D. coloca sua boneca em cima do último colchonete (empilhado atrás da professora, faz isso ainda no colo da professora, pois, só assim alcança a pilha de colchonetes).
Enquanto coloca boneca, fala que ela vai dormir.
No episódio descrito acima (15.04), D. manifesta um comportamento cuidador para com a boneca; no entanto, este comportamento cuidador parece ter sido acionado com o acolhimento da professora, e todo o contexto ambiental (setting) em que D. estava se relacionando.
Ao mesmo tempo, D. cuida da boneca, mas ela também busca aconchego e ajuda da professora.
Com a boneca, D. projeta estágios primitivos vivenciados anteriormente enquanto bebê, pois, a capacidade para relações objetais só será alcançada e mantida se houver, de alguma maneira, uma condição ambiental de holding.
Notamos que nos episódios de holding, a professora não estava fazendo nenhuma outra atividade, senão recepcionar as crianças .
Na creche, a função de holding da professora poderia ser um facilitador, por exemplo, das situações de separação mãe-criança.
A idéia de Winnicott de um ambiente de holding inaugura-se com a relação mãe-bebê dentro da família e expande-se para outros grupos sociais, no caso, a creche6.
Como a creche pode proporcionar um ambiente de holding para as crianças? Como deve ser este ambiente? E a professora?
Novamente transpondo as particularidades do cuidado materno para a creche, Winnicott chama a atenção para a sensibilidade, para a intuição que o professor de creche tem que ter, ou seja, o professor de creche tem que ser suficientemente sensível para perceber a criança, possibilitar o "holding" e, ao mesmo tempo, possibilitar à criança o direito de exercer o seu próprio eu.
A professora suficientemente boa, em termos de "holding", só poderá reconhecê-lo, se um dia teve uma mãe cuidadora.
Diante dessas constatações, a função do professor de creche exige que ele seja acolhedor; porém, ele só o será se um dia obteve esse cuidado, via mãe ou substituto.
Observamos que, a partir da décima oitava observação, D. começa a transferir o cuidar para a professora e amigos e demonstra a capacidade de aceitar, ou mesmo buscar o "holding".
Abram7 enumera as características necessárias à provisão ambiental, em que a função de holding não tem uma diferenciação entre a fisiologia e a psicologia, ou ambas estão caminhando juntas. A provisão do ambiente confiável implica a empatia materna, a sensibilidade auditiva e toda a rotina do cuidado que se estende.
De modo análogo, a professora de creche tem o cuidar sobreposto ao educar. O cuidar tem como característica o "toque" - a forma com que o professor toca o seu aluno (criança) no dia-a-dia da creche - tocar no sentido físico e psicológico.
Os episódios - função de holding - representam uma mostra viva da consciência de quanto holding o professor de creche necessita a fim de poder trabalhar com crianças pequenas que apresentam uma demanda emocional nesta fase de inserção na instituição.
3) "Relação entre pares e adultos"
Nos episódios aqui classificados, a criança observada denota saúde ao usar a agressividade contra forças externas que ameaçam o que ela julga valioso e, ao mesmo tempo, apresenta o que Winnicott chama de " concernimento", ou seja, a capacidade do indivíduo de importar-se com o bem estar do outro e, conseqüentemente, trazer implícita a capacidade de dar, construir algo e reparar5.
Episódio (06.01)
"No chão, senta-se entre as mesas, depois de ter pegado a caixa do "Crie e Monte". Encaixa uma peça em outra, à medida que tira, uma peça de cada vez, da caixa. Dessa forma, pouco a pouco, monta um quadrado.
Dirige-se para próximo da professora, levando as peças parcialmente desmontadas do "Crie e Monte". Senta-se próxima da professora (professora está sentada perto da mesa), naquele instante consegue encaixar todas as peças.
A professora começa a dar atenção para a criança W.
D., com as peças encaixadas, encosta o brinquedo nos pés da professora e, em seguida, levanta as peças encaixadas diante do rosto da professora.
Obtendo o olhar da professora, retorna ao chão, a uma distância de mais ou menos um metro da professora, senta-se com as pernas cruzadas e termina o encaixe das peças".
Neste episódio (06.01), D. mostra persistência numa tarefa: vai em busca do que quer e busca o contato com a professora.
Os episódios de relação entre pares e adultos nos fazem refletir sobre o fato de reconhecermos não só o desenvolvimento físico da criança, mas o que concerne à conjugação de mãe e filho e desta relação o caminhar para as outras relações (com pares/adultos, com o conhecimento, etc.).
No decorrer das 37 observações, D. demonstra uma evolução no brincar: no início, sozinha; posteriormente, compartilhado; e, muitas vezes, demonstrando experiências culturais; em todos os episódios do brincar há envolvimento do corpo e manipulações.
Nos episódios - relação entre pares e adultos, há demonstração da comunicação, da agressão, da amizade e do concernimento, ou seja, uma resultante da seqüência do desenvolvimento situado dentro do contexto das relações .
Na verdade, uma descrição da amizade e da capacidade de estabelecer vínculos, baseada na tese de Winnicott8, requer a capacidade da criança em reter o amigo no psiquismo; ao mesmo tempo ocorrerá o reconhecimento da separação. A busca cultural será realizada pela criança utilizando o "espaço transicional" existente entre os indivíduos.
Acreditamos que a creche poderia viabilizar mais tempo em sua programação diária para o "brincar" e para a atividade criativa.
Observamos que tanto para D. como para as outras crianças, a atividade livre é uma forma de comunicação, de apreensão de novas situações e uma possibilidade de elaboração de vivências.
Winnicott1 descreve que o brincar possibilita à criança desenvolver relações sociais e a seqüência do desenvolvimento das relações transforma a natureza do brincar.
No episódio (06.01), visualizamos o desconhecimento por parte dos educadores no referente ao contexto da brincadeira e o fato da atividade consistir apenas um momento de preparação, espera de crianças, ou seja, uma hora em que a creche se "organiza" para começar suas atividades.
Contribuições da Psicanálise à Educação
Para uma aproximação sobre o brincar, reportaremo-nos à relação mãe-bebê, assim como fez Winnicott.
A unidade existente entre o bebê e sua mãe está além das limitações corporais, tanto que a mãe deve concretizar as buscas do bebê deixando, muitas vezes, de ser ela própria. Aos poucos, o bebê vai passando pela dolorosa dinâmica de separação desta mãe6.
O brincar acompanha esta difícil dinâmica, ajudando a criança a elaborar de forma criativa esse corte saudável e necessário do "cordão umbilical simbólico"5.
O "espaço potencial" se situa no brincar, inicialmente na relação mãe-bebê e depois este mesmo espaço é transposto para outras situações em que haja interação1.
Quando a mãe consegue alternar e completar de forma equilibrada o papel de mãe e o papel de "pessoa", o bebê começa a experimentar uma sensação boa, ao mesmo tempo de confiança na mãe e de controle saudável do meio, lidando pouco a pouco com pequenas e suportáveis situações.
Essa mãe é chamada pelo estudioso de "mãe suficientemente boa", por proporcionar ao bebê o fato do objeto (mãe) continuar existindo, mesmo quando é rejeitada ou agredida. Winnicott9 faz referência à "ansiedade" como processo de crescimento e aprendizagem no manejo da frustração.
Na análise do depoimento materno, percebemos que D. está vivenciando e elaborando o processo de separação materna, demonstrando uma "ansiedade de separação" que, provavelmente, não deve ser percebida apenas pela mãe. Com certeza, toda esta ansiedade não ocorre apenas em casa, mas também na creche, onde a criança passa boa parte do tempo.
A função da educação infantil, mais precisamente da creche, deve ser a de ampliar o seu papel no desenvolvimento da criança. A professora de educação infantil deve compreender a psicologia do desenvolvimento e as adaptações infantis, reconhecendo, por meio desses processos, a dinâmica emocional da criança.
A criança pequena, por estar ainda no processo de desligamento de sua mãe, deve encontrar na figura da professora e no ambiente da creche meios "facilitadores" para o "brincar".
Acreditando que o "brincar" também ocorre no tempo e espaço da creche, na relação professor-aluno, torna-se bastante importante que a figura desta professora seja também "suficientemente boa".
A freqüência de uma criança em uma instituição de educação infantil permite uma vivência social exterior à família, podendo criar "ansiedade", inquietação e, ao mesmo tempo, a oportunidade para a professora realizar uma contribuição sadia no desenvolvimento emocional e social da criança.
A "escola maternal" também oferece à criança a companhia de outros pares da mesma idade. É a primeira experiência da criança como participante de desenvolver a capacidade de relações harmoniosas em tal grupo8.
Diante dos episódios, podemos observar que a creche é para a criança uma possibilidade de compartilhar "experiências" além da mãe e, ao mesmo tempo, é um choque devido ao fato da criança estar elaborando um "eu" relacionado com uma realidade que gradativamente está sendo definida. A professora deve aceitar que a "integração" ao grupo de crianças é um processo que causa "ansiedade".
Associando o conceito utilizado por Winnicott de mãe "suficientemente boa"6 ao de professora "suficientemente boa", a educação na creche também exigirá da professora restrições, controles sobre os "impulsos" e instintos das crianças, fornecendo, ao mesmo tempo, instrumentos e oportunidades para o "desenvolvimento criador", "experiência criativa" e intelectual da criança.
A professora "suficientemente boa" pode e deve ser "facilitadora" de uma interação criativa, principalmente na creche. É necessário que ative, explore e amplie o "espaço potencial" da criança, com sensibilidade, facilitando a "transição", uma passagem tranqüila da experiência exclusiva que a criança tem com a mãe e com a família para o ambiente da creche.
No território da creche, há muito mais do que rotinas, projetos e conteúdos. Há um espaço potencial que pode ser criativamente transitado pelo professor e pelo aluno.
CONCLUSÕES
Os resultados decorrentes deste estudo evidenciam que a creche deveria fornecer um olhar sobre o brincar direcionado ao desenvolvimento pessoal e emocional da criança. A atividade livre deveria ter mais "tempo e espaço" dentro da creche, na qual o professor poderia proporcionar a qualidade do "brincar" de seu aluno.
A freqüência de uma criança em uma creche permite uma vivência social exterior à família, um desligamento da figura materna que é realizado gradativamente.
A conduta da professora e a estrutura da creche demonstram que há necessidade de trabalharmos na instituição a "ansiedade de separação" das crianças, bem como gerar um maior conhecimento das questões que envolvem o brincar.
O educar aproxima-se do cuidar visto que o professor deveria fornecer um ambiente de "holding" para a criança poder se constituir sujeito.
REFERÊNCIAS
1. Winnicott DW. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro:Imago;1975. [ Links ]
2. Bick E. Notes on infant observation in psycho-analytical training. Int J Psychoanal. 1964;45(4):558-66. [ Links ]
3. Melega MP. Observação da relação mãe-bebê na família: uma metodologia para ensino, pesquisa e profilaxia. In: Publicações Científicas (Centro de estudos mãe-bebê-família de São Paulo) 1990;1:17-37. [ Links ]
4. Melega MP. A supervisão da observação mãe-bebê: ensino e investigação. Rev Bras Psicanálise. 1995;29(2):263-82. [ Links ]
5. Winnicott DW. Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas. Rio de Janeiro: Imago;2000. [ Links ]
6. Winnicott DW. Os bebês e suas mães. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes;1999. [ Links ]
7. Abram J. A linguagem de Winnicott. Rio de Janeiro:Revinter;2000. [ Links ]
8. Winnicott DW. A criança e seu mundo. Tradução de Alvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar;1971. [ Links ]
9. Winnicott DW. O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre:Artes Médicas; 1982. [ Links ]
Correspondência:
Maria Cecília Sonzogno
Rua Áurea, 25 apto. 101 - São Paulo - SP
04015-070 - Tel: (11) 5579-6612
E-mail: mcsonzogno@uol.com.br
Artigo recebido: 30/05/2006
Aprovado: 20/07/2006
Trabalho realizado para obtenção do título de mestre, realizado na Universidade de Franca (UNIFRAN), Franca, SP.