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Revista Psicopedagogia

versão impressa ISSN 0103-8486

Rev. psicopedag. vol.24 no.74 São Paulo  2007

 

RELATO DE EXPERIÊNCIA

 

Família e aprendizagem escolar

 

Family and school learning

 

 

Nelson Elinton Fonseca CasarinI; Maria Beatriz Jacques RamosII

IMestre em Educação; Ciências e Matemática/PUCRS
IIDoutora em Psicologia - Faculdade de Psicologia/PUCRS; Coordenadora do Curso de Graduação em Psicopedagogia - FACED/PUCRS

Correspondência

 

 


RESUMO

Esse estudo teve como objetivo a compreensão da organização familiar e as implicações no processo de escolarização de crianças e adolescentes que apresentam dificuldades de aprendizagem. As informações foram obtidas a partir de entrevistas com famílias selecionadas, em uma escola particular de Porto Alegre. Isto possibilitou a investigação das relações familiares que acarretam dificuldades evidentes na aprendizagem. Muitas pesquisas têm sido dedicadas ao entendimento das causas do fracasso escolar ao longo do tempo. Entre as causas apontadas, em geral, percebemos a influência da origem social, da prática pedagógica do professor sobre o padrão de estímulo intelectual e afetivo das crianças. Porém, a relação existente entre a família e os processos de aprendizagem não aparece claramente nesses estudos. A aprendizagem está ligada à ação social. A orientação educacional é vital para as pessoas, tanto nas instituições de ensino quanto nas famílias. Pode-se pensar que, a aprendizagem e o desempenho escolar dependem, primeiramente, da inter-relação familiar e, posteriormente, da relação professor-aluno. Se antes as escolas e famílias tinham objetivos que aparentemente não se relacionavam, agora ambas passaram a ser vistas como participantes na educação. Embora distintas, buscam atingir objetivos complementares.

Unitermos: Relações familiares. Aprendizagem. Transtornos de aprendizagem.


SUMMARY

This research was intended to provide some understanding about family organization and its implications to the school process of children and teenagers who have learning troubles. The information were obtained through interviews with families chosen by the school. It made possible to investigate family relationships that lead to obvious learning difficulties. This study was based on the analysis of theoretical references on the subject. A great deal of research have been devoted to understand the reasons for children's school failure along the time. Amidst the reasons pointed out by studies, one usually sees the influence of the social origin and the teacher's educational practice on the children's emotional and intellectual stimuli patterns. But the relationship between the family and the learning process do not appear clearly at those studies. Learning is connected to social action. Educational guidance is vital for people, both at educational institutions and within families. I think that learning and school performance depend first on the family interrelations and then on the relationship between teacher and student. If, in the past, schools and families had apparently unrelated goals, they now both begin to be seen as participants in the education process. Although different, they try to achieve complementary objectives.

Key words: Family relations. Learning. Learning disorders.


 

 

CONTEXTUALIZAÇÃO TEÓRICA

1. Família e Aprendizagem Escolar

Na história do Brasil, a família passou por períodos distintos, os quais se relacionavam com o contexto sociocultural e econômico no país.

No Brasil-Colônia, marcado pela escravidão e pela produção rural às exportações, o modelo era uma família extensa, patriarcal e os casamentos baseavam-se em interesses econômicos. A mulher era destinada aos afazeres domésticos e à educação dos filhos.

Nas últimas três décadas1, a tradicional divisão de papéis entre o homem e a mulher teve grandes alterações. No que se refere a gênero, ambos já não recebem uma educação formal diferenciada. As mulheres pleiteiam as mesmas faculdades e ocupam espaços cada vez maiores no mercado de trabalho. Com isso, a clássica divisão de tarefas pai/provedor, mãe/rainha do lar é quase inexistente. Isso parece muito bom! A mulher fez um movimento que lhe garantiu uma posição diferente no mundo. O problema parece surgir quando, por não enfrentar sua nova condição, a mulher se cobra e faz coisas demais, como uma espécie de punição por ter abandonado os filhos, passando tanto tempo fora de casa.

Esse autor faz uma interpretação pessoal do papel da mulher na sociedade, ele aponta uma importante questão: Como a estrutura familiar atual interfere na educação dos filhos? Deste questionamento surgem outros: A aprendizagem escolar possui relação com a família? Como a escola pode auxiliar, no contexto familiar, a aprendizagem dos filhos?

Cabe lembrar que, apesar da modificação no atual perfil da família, essa não deixa de ser um importante núcleo de crescimento e aprendizado para os adultos, assim como para as crianças e os adolescentes.

Sobre a fundamental importância da família, "não há livros, não há métodos artificiais que possam substituir a educação em família. A melhor história ou o quadro mais emocionante visto num livro são para a criança como a visão de um sonho sem vínculos, sem seguimento, sem verdade interior. Pelo contrário, o que se passa em casa, sob os olhos da criança, liga-se, naturalmente, no seu espírito, a mil outras imagens precedentes, pertencendo à mesma ordem de idéias e, portanto, têm para ela uma verdade interior"2.

Este autor atribui grande importância à família na educação da pessoa. Isso pode ser percebido nos estudantes que não enfrentam problemas familiares.

A partir das últimas décadas do século XIX3, identifica-se um novo modelo de família. Com o fim do trabalho escravo, com as novas práticas sociais e com o início da modernização do país, criou-se um terreno fértil à proliferação do modelo de família nuclear burguesa, originário da Europa. Trata-se de uma família constituída por pai, mãe e poucos filhos. O homem continua detentor da autoridade, enquanto a mulher assume uma nova posição: "dona de casa". Desde cedo, a menina é educada para desempenhar seu papel de mãe e esposa, zelar pela educação dos filhos e pelos cuidados com o lar.

Nos últimos vinte anos, várias mudanças no plano socioeconômico e cultural, relacionadas ao processo de globalização, vêm interferindo na dinâmica e estrutura familiar e, conseqüentemente, estimulando alterações em seu padrão tradicional de organização. Embora, esse processo tenha começado com a Revolução Industrial, a interferência nas configurações familiares passa por grandes mudanças; depois da II Guerra mundial, a mão de obra feminina aumentou em virtude da ausência masculina no mercado de trabalho.

Outro aspecto a ser ressaltado, remete ao sentido da escola no contexto da família ao longo do tempo. Pois, essa dará continuidade na educação dos filhos, sem se tornar responsável por esse processo, já que a responsabilidade fundamental é do núcleo familiar.

A família é indispensável4 à garantia da sobrevivência e da proteção integral dos filhos, independentemente da estrutura familiar, ou da forma como vêm se estruturando. É a família que propicia a construção dos laços afetivos e a satisfação das necessidades no desenvolvimento da pessoa. Ela desempenha um papel decisivo na socialização e na educação. É na família que são absorvidos os primeiros saberes, e onde se aprofundam os vínculos humanos.

A família não é somente o berço da cultura5 e a base da sociedade futura, mas é o centro da vida social. A educação bem sucedida serve de apoio à criatividade e ao comportamento produtivo escolar. A família tem sido, e será, a matriz do desenvolvimento da personalidade e do caráter das pessoas.

A família é responsável pelo processo de amadurecimento psíquico e proporciona uma sustentação necessária à individuação.

Os pais são responsáveis pela sustentação emocional dos filhos, para que estes encontrem sucesso na aprendizagem escolar, orientando-os para lidar com as frustrações em relação aos modelos de aprendizagem formal.

Os problemas vividos nas relações familiares vêm acentuando-se, gradativamente, ao longo da história. Porém, nos últimos anos, as mudanças foram significativas. A falta de tempo, os desencontros e a solidão denotam as dificuldades dos adultos dentro de suas casas. Parece que a maioria dos seres humanos precisa de bolsos forrados de dinheiro, mas possivelmente sem saúde, e principalmente sem familiares à sua volta. Trabalhar é necessário, porém deve-se analisar o contexto familiar no qual se vive e as necessidades desse.

É na família que as transformações individuais e coletivas são maturadas e podem se desenvolver nos padrões da sociedade em que se vive. Mas, isso demanda tempo de convívio.

A reorganização das pessoas em grupo é um processo constante, pois é através dela que acontece a evolução pessoal e a estrutura necessária à formação de novas bases e identificações.

A criança precisa de segurança, estabilidade, afetividade e compreensão para sentir-se adequada diante dos processos de aprendizagem. Um ambiente desfavorável incrementa a agressividade, o sentimento de incapacidade e, conseqüentemente, o comportamento anti - social.

A falta, ou escassez, de relações familiares adequadas, devido ao pouco tempo de convívio, ou desajustamentos pessoais, provoca a carência das funções materna e paterna, fragiliza os laços amorosos.

Todo ser humano procura identificação e aceitação em um grupo. Se sua família não estiver provendo essa identificação e organização necessária, ele irá buscá-las fora do convívio parental. Logo, surge o transtorno de aprendizagem6, que pode levar o sujeito à marginalização, ao fracasso escolar, o que comumente percebemos.

É no sistema familiar que são expressas as inquietações, as conquistas, os medos e as metas pessoais. Para tanto, é necessário preservar a individualidade dos seus membros e, ao mesmo tempo, o sentimento coletivo. Isso representa uma forma de apoio mútuo em família.

"[...] embora não exista uma concordância quanto ao papel desempenhado pelos afetos no processo de conhecer, é consenso o fato de que os estados afetivos interferem no cognitivo. Também parece haver uma certa concordância quanto ao fato de que as funções afetivas e cognitivas são de natureza distinta, embora indissociáveis, uma vez que não existe conduta afetiva sem elementos cognitivos, nem tão pouco elementos cognitivos desvinculados do afeto7".

A individuação é um processo que passa pela diferenciação, por uma condição de auto-expressão. Teoricamente, a criança ou adolescente são membros garantidos no grupo, visto que nascem e crescem nesse meio. Mas, não basta nascer e crescer, essa criança ou adolescente necessita do apoio da família e de um lugar na relação parental. Nesse sentido, o sujeito vai constituindo sua maturidade e iniciando o processo de individuação. Poderíamos dizer que a família é uma célula reprodutora de outras, pois o indivíduo ao atingir a maturidade e individuação irá formar outra célula, no caso, outra família.

O papel da família vai além de prover os meios necessários à sobrevivência. Para o casal que decide ter filhos, a responsabilidade é ampla. A criança deve ter suas necessidades básicas satisfeitas, receber afeto, usufruir do aprendizado que permita tornar-se um ser capaz de viver em sociedade.

Se a família não oferecer a base necessária ao desenvolvimento da criança, ou do adolescente, este irá buscá-la em outros grupos. O perigo se instala nesse momento, pois, se o sujeito não encontrar apoio e atenção nos membros do seu grupo mais próximo, certamente irá buscá-los fora. Assim, a fragilidade do adolescente aflora quando não vislumbra expectativas de crescimento e autonomia no futuro.

As palavras têm um significado, pois uma comunicação eficiente diminui a chance de desvios de compreensão. Portanto, é necessário o diálogo na tarefa de educar. Poderíamos dizer que as relações parentais, regidas pelo comprometimento e diálogo, são essenciais para uma situação confortável entre as pessoas na família.

Entende-se a família como sendo uma estrutura protetora8, que desempenha a tarefa de orientar a criança ou adolescente, de forma a favorecer o seu crescimento e aprendizado no contexto social. Com o passar do tempo, essa idéia sofre transformações até o ponto de tornar-se uma função da escola. Por outro lado, a escola é colocada como auxiliadora da família na construção de conhecimento e formação social.

Percebemos, hoje, que a família e a escola têm uma tarefa complicada devido às transformações que a sociedade vem sofrendo ao longo do tempo. Como conseqüência, observamos pais e professores queixarem-se em relação tarefa de educar.

"O alongamento da jornada de trabalho, devido tanto à necessidade de trabalhar mais para aumentar o rendimento familiar quanto ao crescimento das cidades, diminuiu consideravelmente o tempo que os pais dispunham para compartilhar com os filhos. Mas a criança carece de muito afeto e de uma troca com os adultos que vá além da satisfação das suas necessidades fisiológicas. A diminuição desse afeto, dessa troca, empobrece consideravelmente a criança e limita suas possibilidades de amadurecimento. Paradoxalmente, para poder satisfazer as necessidades fisiológicas e materiais dos filhos, os pais precisaram trabalhar cada vez mais, reduzindo, com isto, o tempo de contato direto com eles8."

Ao analisar as relações cada vez mais distantes entre pais e filhos, vemos que os filhos procuram, de alguma forma, suprir a necessidade de afeto, assim como buscar meios para atrair a atenção dos pais. Na sociedade atual, a situação escolar é importante para os pais e perturba-os constatar que seus filhos não estão bem nas atividades escolares, em muitos casos.

A dificuldade de aprendizagem de uma criança, ou um adolescente, pode não ser mais do que uma forma encontrada de manifestar a falta, a precariedade dos vínculos familiares, nesse sentido, educar não é uma tarefa tão simples, como pode parecer.

Educar vai muito além de prover os meios para a criança vir ao mundo e ser mantida nele, é um processo e, dentro desse estamos inseridos, enquanto família e escola, pois as crianças aprendem de acordo com o que vivenciam com seus modelos de identificação. Assim, crianças e adolescentes, constantemente, observam, analisam atitudes, comportamentos sociais e profissionais. Daí a importância da organização familiar, porque, ninguém9, ao vir ao mundo, sabe o que é certo e o que é errado. O ser humano, ao nascer, não tem uma personalidade definida. São os pais que têm a tarefa de fundamentar e consolidar a personalidade da criança.

Entende-se como família um sistema em constante transformação, evoluindo graças à capacidade de buscar a estabilidade e, então, recuperando-a por meio de reorganizações de suas estruturas sob novas bases. Ou seja, a família é um sistema que passa por transformações constantes.

Percebemos isso, na mudança de uma família, ao nascer uma criança. A criança10 que nasce vem preencher um lugar já preparado, mas quando nasce é uma realidade que desde o imaginário, a fantasia, desafia a realidade. Também é destacado que, quando o fracasso escolar se instala, profissionais devem intervir na situação do sujeito que "não aprende" e de sua família, ajudando com indicações adequadas.

Precisamos ser sensíveis às particularidades de cada família e de seus membros, também temos alguns dados sobre o que é essencial para o bom desenvolvimento de cada pessoa que compõe a família.

Fatores complexos contribuem para o ambiente familiar atual, no qual, além da presença e da esperança11, problemas sociais, como a ansiedade e a incerteza, já fazem parte intrínseca do contexto da família, que encontra cada vez menos verdades prontas e cada vez mais valores que, em grande medida, têm de ser construídos em conjunto.

Na formação de uma família, espera-se que as pessoas tenham uma relativa independência emocional das famílias de origem. Isso é importante, pois facilita o processo no qual o cônjuge, na formação do novo lar, torna-se uma pessoa significativa no novo contexto. Porém, a maioria dos jovens só começa a vida conjugal na dependência financeira dos pais, o que pode ser um problema. A autonomia, um dos principais desafios dessa fase, acaba ficando de lado, logo, a dependência econômica prejudica o processo de formação da nova família em termos de responsabilidade e autonomia.

Não é rara a formação de novas famílias a partir da gravidez não-planejada por ocasião do namoro, momento que seria para o conhecimento e formação de elos. Porém, a presença do bebê pode causar instabilidade e insegurança no casal em formação. Toda família em formação requer muita maturidade e, conseqüente, desprendimento em favor do grupo a ser formado.

Conciliar essas necessidades requer muita maturidade12. Só se constrói harmonia conjugal com renúncias pessoais, o que, em nossa sociedade, praticamente não acontece, pois a cultura do egoísmo e do individualismo não prepara adequadamente as pessoas para a vida em família, para o enfrentamento das diversidades e adversidades. Essa é uma das principais razões do divórcio precoce.

Outro fator importante é a luta das mulheres. Apesar da revolução feminista, elas ainda ficam com o fardo principal da educação dos filhos, não que isto seja responsabilidade apenas delas, sem contar com as tarefas domésticas. Os homens, por sua vez, continuam, em grande parte, a assumir a principal responsabilidade pelo aspecto econômico, o que faz com que para eles o desemprego seja moralmente catastrófico. Este, portanto, passa a ser um dos grandes abalos familiares.

O desequilíbrio familiar pode se dar por vários motivos com implicações na vida das pessoas. Assim, deve-se lembrar da importância da estrutura emocional dos adultos no sistema familiar ao enfrentar abalos. Existe um importante período inicial durante o qual o casal sem filhos passa por um processo intenso, mútuo, de adaptação emocional e, se esse processo não ocorrer, o casal pode não apresentar maturidade para lidar com eventuais dificuldades, o que pode gerar a ruptura da família. Isso resulta na formação de novas famílias11 e, cada vez mais, crianças estão vivendo nessas novas famílias, devido ao rompimento da sua família anterior. Ocorre que esses novos lares não estão prontos para terem filhos, porém já iniciam com eles, frutos de relações anteriores desfeitas. E, segundo o autor, essa é a principal razão de 60% dos segundos casamentos terminarem em divórcio em menos de cinco anos.

Geralmente, os pais apresentam mudanças significativas na adolescência dos filhos, o casal enfrenta algumas crises, que também podem abalar a aprendizagem escolar dos filhos, pois todos os indivíduos da família são afetados.

Outras razões como possíveis problemas de saúde dos avós também podem gerar essas crises. Para os pais, a crise é um momento de reflexão, em que avaliam os rumos que a vida lhes tem reservado. Surgem questionamentos sobre o casamento, a profissão e a própria felicidade, também aparece insegurança nas relações afetivas. O problema é que, nesse momento, as pessoas que formam o casal ainda se sentem jovens para mudar, e, em casos específicos, não levam em consideração as pessoas envolvidas em suas decisões, no caso, os filhos, ou mesmo o outro cônjuge. Nessa etapa, são comuns os divórcios e, como conseqüência, as dificuldades escolares dos filhos.

Tudo isso é agravado pela mídia e pela intensa propaganda sobre a vida estar apenas começando na meia idade. O estímulo à individualidade, em detrimento do outro, que freqüentemente é mostrado pela mídia, enaltece a mudança de valores e estilo de vida. Porém, essa não coloca os sentimentos envolvidos e esses podem ser gravemente abalados.

Adultos que tenham limites e saibam estabelecer limites são importantes no cuidado de outras gerações. A maturidade é fundamental nessa fase, para que o sujeito perceba que a felicidade não está nas coisas descartáveis, mas naquelas que não podem ser substituídas, como a família.

Os filhos, ao passarem por isso, buscam a diferenciação - buscam um espaço pessoal, ou seja, a própria identidade. Cada pessoa crescerá e se definirá pelas trocas com outras pessoas, principalmente nas relações parentais.

A família deveria ser a célula da sociedade, mas está se esfacelando aos poucos, dando lugar ao liberalismo descontrolado, à procura de segurança no trabalho, no dinheiro, resumindo, em coisas materiais. Estamos perdidos, inseridos em um meio que não percebe a família como a base ou a sustentação para a resolução dessas dificuldades de ordem individual e coletiva.

Vejo que a descrição é sucinta e parcial, mas parece-me necessária como parte do contexto mais amplo da família nessa parte do trabalho.

Hoje, fala-se muito das relações interpessoais, porém, os conflitos envolvendo diferenças de opinião aumentam drasticamente. Portanto, precisamos de um olhar atento aos processos de mudanças individuais dentro da família, pois isso trará a maturidade necessária ao convívio do grupo.

2. As Transformações Familiares e as Separações

A estrutura e o funcionamento familiar vêm se modificando ao longo do tempo. O contexto sociocultural é um parâmetro indispensável à compreensão do que se passa com a família de hoje. Fatores sociais como o desemprego, a corrupção e a violência atingem todos os setores da sociedade, principalmente a família, que desprotegida pelas Entidades Governamentais, encontra-se só para enfrentar essas desordens, em muitos casos, não está preparada para enfrentar todos esses agravantes.

Considerando o contexto atual, deparamo-nos com os divórcios. Problemas conjugais sempre existiram e vão continuar a existir, para que se resolvam, precisa-se trabalhar com o casal. A sociedade moderna educa as pessoas para exigir o "máximo" da vida1, não aceitando os limites de uma relação com o outro. No entanto, em uma separação, os sentimentos de perda são muito grandes, principalmente quando há filhos. Os sentimentos fortes de fracasso, frustração, raiva e desejos de vingança são comuns quando um casamento é desfeito, na maioria dos casos isso é transmitido aos filhos, mesmo que esse não seja o desejo nessa fase de ruptura. Existem casos, ainda que em números menores, nos quais os filhos são preservados.

As separações mais difíceis13, principalmente nos casamentos de pessoas muito dependentes, com história de perda familiar, despertam grandes temores na criança e sensações de insegurança e desamparo. É comum que nesse período o (a) filho (a) precise mostrar seu desagrado, mesmo que isto seja involuntário, expondo-o por meio de bloqueios e retrações escolares, o que abala os pais. Um fator importante a destacar é o resultado nos estudos, pois os pais preocupam-se com a educação de seus filhos.

Esse mesmo autor diz que a maioria das crianças apresenta alguns sintomas nos primeiros anos após o divórcio, principalmente na escola.

Um dos pontos importantes é que a criança nasce "dependente", precisa de uma família ou de um grupo que a acolha, na verdade, a "independência"11 é algo que nunca atingimos totalmente.

Vejamos o que este autor refere quanto à família e à escola:

"À medida que os filhos crescem, a família gradativamente abre-se para o mundo externo, representado principalmente pela escola. Os cuidados de filhos em idade escolar exigem da família grande coesão e organização. A escola funciona como verdadeira vitrina da família, mostrando o que está indo bem e o que está indo mal. Por isso, é natural que seja a escola quem tome freqüentemente iniciativa de encaminhar a criança para atendimento"11.

Assim, evita-se falar de "família normal", pois constatamos conflitos nas gerações, aquele que está bem tende a um bom desempenho escolar e convive com a família em relativa harmonia. Porém, quem nessa fase apresenta dificuldades de relacionamento familiar reflete e denuncia essa instabilidade no aprendizado, com base na história de problemas familiares.

O fracasso escolar e suas manifestações podem estar associados aos problemas que, involuntariamente, impedem o aluno no processo de aquisição de conhecimento, levando-o a apresentar dificuldades ou transtornos emocionais, problemas complexos que advêm de influências familiares13.

A criança, ou adolescente, com suas crenças e expectativas, pode não compreender claramente o que está acontecendo, sente-se culpado pelos problemas familiares. Assim, esses sujeitos negam-se o direito de saber14.

Destaco esta perspectiva ao tentar compreender a dificuldade de aprendizagem.

Os problemas familiares15 fornecem as condições para que o aprendiz não adquira o conhecimento que lhe é transmitido, por não obter "a autorização para conhecer e, portanto, para aprender, deixando, desta forma de ser considerado aprendiz"15.

Se a família e a escola formassem uma parceria, já nos primeiros anos escolares todos teriam a lucrar. Afinal, a criança que estiver bem vai melhorar e aquela que estiver com dificuldades receberá ajuda tanto da escola quanto dos pais para superá-las1.

3. O Ensino e a Aprendizagem Escolar

Ao analisar os processos de desenvolvimento e de aprendizado, um educador16 propôs um complexo estudo sobre o tema. Um dos pontos de reflexão que esse autor destacou é que o bom ensino leva ao bom desenvolvimento17. Creio que as reflexões desses autores abrem caminho para esse estudo. Esse conceito de desenvolvimento e aprendizagem pode ser compreendido como a distância entre o que o aluno é capaz de aprender16, em seu desenvolvimento normal, e aquilo que ele não consegue desenvolver sozinho, mas consegue realizar no contexto da interação com o meio escolar e familiar, na mediação com o outro.

Acredita-se que a família e a instituição escolar compartilham a mesma função educacional, embora uma não possa fazer o serviço da outra. Nos tempos atuais, o desempenho dos pais deixa muito a desejar, principalmente, nos modelos de ensino e aprendizagem, pois isto exige prática, acompanhamento e sustentação emocional, já que a criança ou adolescente não apresenta maturidade suficiente para enfrentar suas dificuldades sem a presença e os limites colocados pelo adulto.

Uma família disfuncional não responde às exigências internas e externas de convivência entre seus membros, tem papéis pouco discriminados e modelos de comportamento inadequado.

A relação entre pais e filhos, que se mostra rígida, parece não permitir possibilidades de alternativa de crescimento e diferenciação. Com isso, ocorre um bloqueio no processo de comunicação.

A aprendizagem demanda pesquisa, mas como pesquisar se não há apoio e, por falta desse, motivação. Logo, esse trabalho quer sensibilizar a sociedade com relação à aprendizagem, esclarecendo e mostrando situações nas quais temos tido altos índices de enfraquecimento no desempenho escolar.

É possível planejar ou mesmo executar o processo de educação escolar independentemente das condições familiares?

Essa questão merece um tratamento cuidadoso, que leve em conta aspectos sociais e culturais. A aprendizagem é um processo individual, mas se dá no contexto sociocultural no qual o indivíduo está inserido, promovendo uma articulação entre a inteligência e as experiências afetivas.

A escola pode contribuir para diferentes trajetórias de desenvolvimento18. No sentido, pelo acesso à educação básica, a criança pode alcançar estágios cognitivos mais elevados. Essa condição lhe possibilita melhores oportunidades profissionais.

O ato de aprender não ocorre de forma solitária, é um processo vincular que exige interação. Vivemos em um modelo de sociedade no qual os saberes são discutidos e, de certa forma, possibilitam a reconstrução de saberes anteriores. Essa troca de informações proporciona à pessoa conclusões sobre saberes em construção. A aprendizagem19 se dá em um contexto social, no qual as possibilidades de troca de informações são exercidas proporcionando o crescimento do grupo.

Para que o sujeito participe, exponha seus saberes e incertezas, ele precisa pertencer a um grupo e sentir-se aceito nele. Essa aceitação permitirá que assuma a autoria de idéias, forme convicções, estabeleça diálogos com o outro e com aprendizagem formal.

Cada um possui uma forma diferente de organizar-se, seja social ou mentalmente. Cada sujeito, inserido em um meio, deve compreender o seu modo de organização, suas possibilidades e modalidades de aprendizagem. Todos podem discernir entre o que é certo ou errado e, frente às escolhas, tornarem-se responsáveis por seus atos. Porém, uma criança em fase de amadurecimento psicossocial, relativamente dependente dos cuidados dos outros, não pode ser responsabilizada por seus fracassos. Isso deve ser repartido com seu grupo familiar, com as pessoas que a orientam quanto às escolhas e às possíveis conseqüências de seus atos, que lhe transfiram responsabilidades. Seu desempenho escolar mostra uma "co-responsabilidade" com os pais.

Já o adolescente precisa assumir responsabilidades sobre seus atos e decisões. Para que isso aconteça, a família deve promover os meios para que este se sinta seguro ao iniciar o processo de individuação e separação progressiva das figuras parentais. A adolescência é um período que demanda alterações no grupo familiar e, principalmente, no jovem, para fortalecer sua identidade pessoal. Por isso, é um processo que deve ser acompanhado de perto pela família e não basicamente pela escola, como tem ocorrido em muitos casos.

É necessário destacar a grande importância dos adultos, inicialmente os pais, na educação das novas gerações. Isso também se refere à vida escolar do filho. Se por um lado a família começa a abrir mão de suas obrigações elementares, enquanto segmento responsável pela orientação e conduta básica da pessoa, por outro, a escola incentiva e acolhe esta opção, não fazendo, muitas vezes, nenhum chamamento que destaque a importância da presença dos pais.

Assim, a escola se coloca em uma posição cômoda, pois não necessita dar satisfação de sua diretriz educacional às famílias. Isso é uma irresponsabilidade, pois deixa de comunicar aos pais os principais acontecimentos da vida do filho, não assume seus próprios equívocos, deixa de se comunicar com os pais por saber que isso exige esforço e acaba por fechar-se em si mesma, não toma decisões em parceria com os pais sobre o melhor método educacional.

Os pais, por sua vez, mostram um distanciamento da vida dos filhos no que diz respeito à escola. Para muitos, não participar é mais interessante, uma vez que têm outras atividades que não podem deixar de assumir. Para a escola, a ausência da família significa que pode decidir sozinha, levar em conta seus próprios interesses.

4. Os Problemas Familiares e as Dificuldades de Aprendizagem

Na escola e na vida familiar, cada um apresenta formas diferentes de aprender e em tempos diferentes. Devemos lembrar que os comportamentos são distintos de pessoa para pessoa, porém cada um apresenta motivos para o seu modo de ser. Precisamos compreender cada sujeito e fornecer os meios necessários ao desenvolvimento de cada um. Isso é uma tarefa complexa.

Muitos pais não impõem limites e permitem que os filhos tenham uma vivência social permissiva. Esses, possivelmente, apresentarão conflitos comportamentais, deixando de considerar a importância dos conteúdos escolares, pois não acreditam em sua capacidade de aprender. No entanto, o motivo é a falta de limites, a intolerância às regras a que ficam submetidos nos relacionamentos com colegas e professores. Esse sujeito não foi educado para tolerar a realidade e as frustrações impostas na vida social.

Observa-se que alguns estudantes mais retraídos, e com dificuldade de aceitação no grupo, acabam se refugiando em seus saberes pessoais, mostram inibição cognitiva, resistência em mudar e não aprendem os conteúdos escolares. Como não possuem uma organização intelectual e afetiva delimitadas com parâmetros externos, ao exporem suas idéias ao grupo, são ridicularizados e, como não sabem lidar com a frustração, ou mesmo não possuem uma argumentação para defenderem seus pontos de vista, acabam partindo para atos de agressão, a ação predomina sobre o pensamento. Esses, na grande maioria, arrependem-se de seus atos, porém a impulsividade do comportamento domina a lógica, a objetividade.

O adulto, no caso os pais, têm o dever de orientar os filhos a desenvolver hábitos frente aos estudos. A tarefa de educar não cabe somente à escola, embora também seja um dos seus papéis. A participação da família na escola é fundamental para o bom desempenho escolar.

É preciso ter claro o que entendemos por participar. Muitos podem ser os significados dessa palavra. Acreditamos ser necessário conhecer as razões pelas quais as famílias não têm correspondido ao que educadores esperam com respeito a sua participação na escola.

"Podemos admitir que, para atingir a diferenciação - para encontrar espaço pessoal, a própria identidade - cada pessoa crescerá e se definirá através de trocas com outras pessoas"20.

Assim, a pessoa sente-se a única responsável por sua incapacidade, tornando-se apática e indiferente ao que se passa ao seu redor. Fica privada de sentir o prazer da descoberta, da criatividade, do enriquecimento pessoal. Normalmente, os pais não sabem como ajudá-la, e apoiando-se na opinião dos outros, também responsabilizam o(a) filho(a) pelo problema.

A capacidade de enfrentamento dessa situação depende, principalmente, das condições da família18.

Muitas vezes, a família ignora, ou tem uma noção precária, que seu papel é significativo no suporte que oferece aos seus filhos para torná-los capazes de obter o sucesso escolar.

Só em famílias em que há diálogo e aceitação, ou seja, famílias organizadas, funcionais, esse processo se dá de forma e equilibrada. Assim, percebemos que coesão é um passo fundamental para o grupo no processo de individuação do sujeito. Em famílias saudáveis20, a diferenciação individual e a coesão grupal são garantidas pelo equilíbrio dinâmico estabelecido entre os mecanismos de diversificação e estabilização de papéis.

A rigidez dos adultos é outro fator que preocupa. O sujeito em desenvolvimento, tratando-se de uma criança ou adolescente, quando ameaçado retira-se para o mundo da fantasia e não tem maturidade para lidar com esse tipo de situação. Nesse momento, o sistema está abalado e o grupo incapaz de reconhecer seus conflitos.

Ninguém retribui carinho com agressão. O ser humano busca refúgio em quem o compreenda e ofereça gestos de sustentação, de aceitação. Assim, o lar deve ser um lugar de aconchego e harmonia, o amor e a maturidade familiar serão os responsáveis pelas escolhas e estruturação psíquica e social.

Crianças, ou adolescentes, que não possuem a confiança necessária na família irão esconder seus fracassos. Isso é grave, pois a família deve ser conhecedora de todas as situações que os afligem. Situações como esta fazem os problemas pessoais da criança, ou do adolescente, piorarem.

 

PERSPECTIVA METODOLÓGICA DO ESTUDO

Nesse trabalho, foram analisados casos de cinco alunos, previamente selecionados por um orientador escolar de 7ª e 8ª séries, do Ensino Fundamental, de 1º e 2º ano, do Ensino Médio, de uma escola particular de Porto Alegre.

O SOE - Serviço de Orientação Escolar - selecionou as famílias que, aparentemente, apresentavam desordens em termos vinculares. Esse Serviço fez o primeiro contato com os referidos grupos. Isso facilitou e auxiliou os primeiros encontros; favoreceu a aceitação das famílias quanto aos objetivos da pesquisa.

Após a entrevista, com todos os dados necessários à compreensão da realidade da família, foi possível elaborar um texto para análise qualitativa21.

"A pesquisa qualitativa pretende aprofundar a compreensão dos fenômenos que investiga a partir de uma análise rigorosa e criteriosa desse tipo de informação, isto é, não pretende testar hipóteses para comprová-las ou refutá-las ao final da pesquisa; a intenção é a compreensão"21.

Durante as etapas de coleta de dados, elaborou-se um relatório, para análise dos dados, como uma espécie de retorno ao ponto de partida, na busca de novos questionamentos para serem refletidos e considerados. Algumas situações, durante a entrevista, não foram completamente expostas, pois em uma dessas entrevistas o clima ficou constrangedor diante das discussões entre pais e filho.

Um dos participantes declarou que "é vendo e ouvindo sobre o erro que se aprende".

As entrevistas devem ser gravadas e, posteriormente, degravadas22, o que facilita a compreensão das informações e o favorecimento na formação do texto, a partir da escuta dos participantes do processo.

A ida às casas dos estudantes favoreceu a comunicação e a compreensão das relações familiares, bem como a verificação da situação econômica de cada uma, seus hábitos, potencialidades, capacidades e o relacionamento da família com a escola, na qual os filhos estudam.

Com essa estratégia foi possível conhecer cada família, as relações existentes entre as pessoas e as possíveis causas das dificuldades de aprendizagem dos filhos.

Assim, organizou-se a análise das informações contidas nas entrevistas, destacando as particularidades de cada grupo em relação aos processos de ensino e aprendizagem.

Como forma de proteger as famílias, que aceitaram participar dessa pesquisa, irei chamá-las de famílias A, B, C, D e E; seus nomes são fictícios.

À medida que cada grupo é apresentado, também é analisado o material comunicado, com base nos referenciais teóricos que sustentaram essa pesquisa.

Em todas as situações mostradas, o(a) filho(a) tem dificuldades de aprendizagem na área da Matemática, assim como em outras disciplinas.

 

UMA ANÁLISE DINÂMICA DAS ENTREVISTAS

Família "A"

Essa família é composta pelos pais e cinco filhos, dos quais três são adotivos. O casal mora junto e mostra dificuldades na educação dos mesmos. Pareceu-me que os adultos não fazem distinção entre os filhos biológicos e os adotivos.

Iremos nos deter em um membro da família que será chamado "João", 13 anos, aluno da 6ª série do ensino fundamental. O mesmo não apresenta nenhum motivo aparente para suas dificuldades, porém seu aprendizado não se desenvolve de maneira satisfatória, na perspectiva escolar.

Destaca-se a ausência da matriz familiar biológica e a conseqüente repercussão dessa separação no que se refere ao seu aprendizado. Parece que essa separação pode ter ocasionado certa falha na construção da subjetividade e, por conseqüência, na aquisição do conhecimento. Acreditamos ser necessário salientar o empobrecimento pessoal de João em relação aos seus irmãos. Tal situação pessoal pode ser devida ao sentimento de abandono sofrido na infância.

João tem todas as condições necessárias para o bom desempenho escolar. Estuda em escola particular em zona nobre de Porto Alegre. A família passa por certos problemas, pois mora em uma casa alugada. Os ganhos dos pais não são suficientes para ter uma vida confortável, têm limitações, principalmente no lazer, mas procuram não deixar faltar nada para seus filhos, principalmente no que se refere aos estudos e à alimentação.

Essa família considera as regras fundamentais numa grande família. Elas são as mesmas para todos os filhos, sejam biológicos ou adotivos. Na casa, cada um possui suas tarefas e responsabilidades e estas, segundo eles, devem ser rigorosamente cumpridas.

Quanto aos estudos, cada um tem o dever de estudar pelo menos duas horas a cada dia. Nos períodos de avaliações, esse tempo aumenta de acordo com a necessidade de cada um.

João não gosta de estudar, então é liberado das tarefas domésticas para fazê-lo. Essa foi uma forma que os pais encontraram de incentivá-lo a estudar.

Na visão dos pais, é muito importante completar o Ensino Médio para poder se encaixar no mercado de trabalho.

Essa família considera que é importante estreitar os laços de conhecimento entre pais e filhos, especialmente para conhecer a vontade de cada filho no que se refere a uma profissão.

João quer ser policial e esse desejo é estimulado pela família. Os pais conseguem orientá-lo de forma que dê continuidade aos estudos, mesmo com os problemas que enfrenta em relação ao abandono sofrido por parte da família biológica, o que o torna resistente à aceitação do amor dos pais adotivos. Ele enfrenta dificuldades de relacionamento dentro da família e, em determinados momentos, não consegue chamar a mãe desta forma. Ele está em tratamento psicológico para aprender a enfrentar situações que o desagradam relacionadas a professores e colegas. Parece não tolerar frustrações.

O desejo de João de ser policial pode ser em função do que passou na infância. Seu desejo de segurança, de "ser a lei", poder representá-la e, possivelmente, encontrar algo que lhe proporcione parâmetros devido à vivência infantil de maus tratos e abandono. Acreditamos que, com o passar do tempo, ele possa encontrar essa confiança na família que o acolheu como filho.

Percebemos um sentimento filial precário em João. Os pais o adotaram e proporcionam todas as condições necessárias para que ele se sinta como filho, mas parece que João ainda não consegue adotá-los como pais, embora essa relação esteja em processo avançado e logo possa acontecer.

A constituição do caráter na infância23 vai estar presente pela vida toda. Um tipo problemático, rebelde, pode tornar-se assim devido a uma história de vida na infância. Os sentimentos de João apóiam esta hipótese, possivelmente, por ainda não expressar sentimentos de aceitação e afeto por seus pais.

É importante salientar que esses pais relataram que o amor e o carinho que João encontrou fizeram diferença na vida dele. Desta forma, hoje João já os vê como sua família e, possivelmente, breve os verá como pais.

Foram investigadas as dinâmicas familiares de adoções tardias, ele24 afirmou que elas têm características especiais que necessitam ser observadas; com a devida preparação e acompanhamento, mas estas adoções são perfeitamente possíveis. Nas palavras dele24: "Na adoção tardia, tanto como na vida, as chances de sucesso ou fracasso das relações dependem da capacidade de suporte, de entrega, de trocas afetivas profundas, verdadeiras, entre os protagonistas".

João é uma criança batalhadora e sempre procura ajudar, mas é necessário ter seus limites bem determinados. Se deixado à vontade, apresenta reações das quais se arrepende posteriormente. Percebe-se que os pais respeitam essa característica de João, porém mostram-lhe a necessidade de auto-controle como algo fundamental para a profissão que almeja.

Alguns estudiosos desse tema procuram destacar a preparação e o apoio na adoção22,25,26. Ressalta-se que, de acordo com esses autores, na verdade, a "preparação" deveria acontecer com todos aqueles que pretendem ter um filho, mesmo que esse seja biológico, mas isto poucos levam a sério.

O ato de adotar envolve uma enorme responsabilidade23 e o medo de errar deve ser muito grande. Na maioria das vezes, para esse autor, "os candidatos à adoção não passam por uma conscientização e apoio frente à sua decisão, mas somente por um processo de cadastramento e seleção".

Apesar dos poucos recursos de que dispõem, os pais dessa família procuram incentivar os filhos a buscar informações sobre o que pretendem do futuro em relação à profissão. Nos relatos, observa-se que os pais querem muito que os filhos completem pelo menos o ensino médio. Destacaram que é importante completar o ensino médio ou um curso técnico para poder trabalhar e ter recursos para fazer uma faculdade, já que não possuem recursos para o pagamento de uma. Hoje eles não vêem condições para seus filhos fazerem uma faculdade pública, pois julgam que esta seja para quem possui condições financeiras de "bancar" os filhos apenas estudando, o que não é o caso deles, segundo suas comunicações.

Estes pais procuram acompanhar o rendimento dos filhos na escola, porém, pareceu-me um acompanhamento ocasional, que acontece quando há uma entrega de boletins. Não há uma procura sistemática pela escola para ter retorno claro do desenvolvimento de João. O pai destacou que quando João está mal em uma disciplina, ele se recusa a estudá-la, possivelmente por não saber lidar com a frustração. Para sanar esse problema, existe uma espécie de aconselhamento sobre a necessidade de maior dedicação na disciplina em que está com baixo rendimento. O fato de João não querer estudar a disciplina que não está tendo bom rendimento pode ser por uma possível negação da dificuldade, ou negação da realidade em virtude de não saber lidar com o insucesso, tendo como possível conseqüência o abandono da disciplina.

Fazendo uma análise mais ampla, a família concluiu que possivelmente precise de uma integração maior. Como a família é muito grande, torna-se complicada essa integração em função das necessidades relacionadas ao trabalho. A mãe quase não pára em casa, devido às suas tarefas profissionais. O pai, nem no final de semana, dispõe de tempo, mas considera que isso seja fundamental em uma família, pois se trata da educação dos filhos.

Família "B"

A composição familiar desse grupo é pai, no caso padrasto, cerca de 20 anos mais velho do que a esposa, mãe biológica, a filha, que chamaremos de "Ana", e a avó, que no fim da vida é cuidada pela filha e neta. Ana é uma garota de 17 anos e está no 2º ano do ensino médio de uma escola particular de Porto Alegre.

Moram todos juntos, porém apresentam um histórico familiar que cabe ressaltar. Os pais na juventude foram namorados, casaram-se e separaram-se em virtude do rompimento matrimonial por parte da mãe. Esta, separada, gerou a filha proveniente de outro relacionamento. Foi abandonada pelo pai biológico de Ana e, sem ter como sustentar-se e a filha, voltou para o marido, que a aceitou juntamente com a filha. A menina cresceu em meio a um relacionamento conturbado, sua mãe assumiu o alcoolismo, vício que carrega desde a juventude, hoje se diz em recuperação. Sua avó, por problemas de saúde, passou a morar junto, necessita de cuidados especiais em virtude de problemas visuais provocados pela diabete.

Parece que o padrasto gosta da "filha", mas cobra além das possibilidades que esta pode oferecer. Ana é responsável por cuidar de sua avó e resolver problemas ocasionados por sua mãe, que, aparentemente, apresenta um transtorno emocional e faz tratamento psiquiátrico.

Possuem uma condição financeira razoável, sem aparentar necessidades. Moram em um bom apartamento, amplo e com boa qualidade.

A família praticamente não conversa, o pai é o único que trabalha para manter o nível familiar. Sai cedo e chega tarde, querendo apenas relaxar.

A mãe relatou que cobra da filha boas notas, mas esta não responde às suas cobranças por não gostar de estudar. Nessas palavras da mãe, percebe-se que a cobrança é maior que o incentivo, que provavelmente não há.

Quanto à organização de tarefas, Ana é esforçada, pois controla a casa e os compromissos escolares, mas não demonstra bom rendimento em relação ao que é cobrado pela escola.

Mencionaram que procuraram oferecer o melhor à filha, aconselhando-a a ter bom desempenho escolar. É importante ter apoio e destacaram perceber a responsabilidade da família na educação, por isso pagam uma escola particular que a eduque e ofereça as condições necessárias.

Sobre o ambiente familiar em relação ao desempenho escolar, aponta-se27 indicadores de desvantagem na aprendizagem de alguém em meio a um grupo com problemas não resolvidos. Desta forma, o grupo com problemas tem seu ambiente de desenvolvimento prejudicado pela presença de circunstâncias adversas não resolvidas, que afetam e geram insegurança, receio e dúvida.

Talvez nem o padrasto, nem a mãe possuam serenidade suficiente para compreender e poder expressar-se sobre o relacionamento familiar. Parece não haver sintonia familiar, apenas moram juntos sem responsabilidades maiores. Acredito que isto ocorre devido à sua história passada. Trata-se de uma família disfuncional, com vínculos frágeis e denegridos por situações do passado que levaram à separação e à conseqüente desorganização familiar hoje vivenciada.

Quando questionados sobre como é tratada a individualidade de cada pessoa da família, houve um desabafo do pai ao expor a falta de comprometimento da mãe na educação de Ana. O padrasto fez o seguinte comentário: "como alguém irá conhecer limites se não lhe é ensinado?"

O respeito à diferença e o reconhecimento são frágeis nessa família. O que existe em grande escala é cobrança de resultados e a interferência, privando a singularidade de cada sujeito. Acredita-se que isso ocorre em conseqüência da condição familiar no passado, refletindo-se no presente.

O acúmulo de funções pode provocar baixo rendimento escolar28, pois nessa fase da vida crianças ou adolescentes ainda não estão prontos para lidar com muitas situações ao mesmo tempo. É o que está acontecendo com Ana. Pode-se ressaltar a confusão de papéis e os ressentimentos que não foram elaborados pelos adultos.

Quanto à necessidade de estudo de Ana, declararam ser importante para o seu futuro.

Novamente, não aparece incentivo algum. O que fica claro são as cobranças sem uma meta definida para as mesmas. Essa família aparenta apenas morar sob o mesmo teto e conviver diariamente com um erro do passado.

Quando foi abordado o tema escola, a mãe destacou que nem sempre comparece na escola quando é chamada. Disse que sua saúde é precária e não pode deixar sua mãe só, a avó de Ana. O pai afirmou que a escola é cara e deve fazer a parte dela em ensinar.

Não conhecem os professores, pois geralmente tratam com a orientação escolar, quando há necessidade. Gostariam que Ana tivesse melhores notas, mas a mesma não se esforça.

Não houve clima para que pudesse questionar o que seria esforço, na visão deles, em virtude da forma como vivem e como se relacionam. Ana não tem condições, em um contexto como esse, de se dar bem nos estudos, ou mesmo querer esforçar-se.

Ambos querem que Ana estude, pois só com o estudo é que se consegue algo na vida, destacou o padrasto.

Ana parece ser uma boa menina. Sua bondade pode ser para compensar a realidade vivida, para tentar ser estimada e aceita pelo grupo. Ela precisa que outros gostem dela, mas nada faz por si mesma. Não há circulação de afeto, há cuidado material, físico, sem envolvimento afetivo. Ana parece viver carregando uma culpa que não é sua, estereotipada por um passado vivenciado pelos pais que refletem nela as conseqüências.

As estratégias de aprendizagem podem abrir novas perspectivas para a vida pessoal29 e, até mesmo, permitir a estudantes, como no caso de Ana, ultrapassar as dificuldades promovidas pelo ambiente, de forma a conseguirem obter um maior sucesso escolar. Mas, para tanto, penso que essa família necessita de acompanhamento e de um tratamento especializado.

Família "C"

Essa família é composta por três pessoas: a mãe, um filho e uma filha.

Na juventude, a mãe engravidou de seu namorado, mas foi abandonada pelo mesmo; optou por não interromper a gravidez, motivo da separação. Seus pais lhe deram apoio, mesmo possuindo poucos recursos. Passou a trabalhar como faxineira e, com dificuldades financeiras, criava seu filho.

O tempo passou e ela conheceu alguém com quem começou a viver, nos fundos da casa de seus pais, onde mora até hoje. Com esse companheiro teve uma filha, hoje com 11 anos. Quando essa tinha apenas 3 anos, esse companheiro a abandonou. Ela, então, decidiu não ter mais nenhum tipo de relacionamento e passou a dedicar-se a seus filhos.

O garoto mais velho, hoje com 17 anos de idade, o chamarei de "Carlos", cursa o 2º ano do ensino médio. Carlos teve em seu avô a figura paterna e sentiu muito a perda do mesmo, há oito anos.

Essa família possui dificuldades financeiras e devido a essas não compartilha momentos de troca afetiva no grupo. A mãe trabalha muito para conseguir sustentar a casa e dar conta dos compromissos.

As dificuldades de aprendizagem podem ser causadas por variáveis pessoais30, por ambientes desfavoráveis e por uma combinação interativa de ambos. Esse autor destaca a pobreza como um dos principais vilões em relação à aprendizagem escolar.

Essa família não apresenta regras, os filhos possuem liberdade de fazer as tarefas escolares em frente à televisão. A mãe destacou que orienta para que não façam dessa forma e, só quando é necessário, é usada a autoridade de mãe para que o estudo seja de forma adequada. Segundo ela, não há imposição, existem conselhos.

Os avós influenciaram de forma positiva tanto a vida particular, como a vida escolar de Carlos, em todas as suas fases. Até hoje, existem coisas que ele comenta apenas com a avó e não com a mãe. Isso se deve ao fato de ter sido criado praticamente pela avó, pois a mãe trabalha o dia todo e retorna para casa tarde da noite. Durante algum tempo, Carlos chegou a morar com a avó e ser cuidado somente por essa.

A mãe acha que a avó fez um excelente trabalho com seu filho, exercendo uma influência benéfica na vida de dele. Afinal, ele é um bom garoto, segundo ela. As primeiras experiências educacionais31 da criança, geralmente, são proporcionadas pela família, e no caso de Carlos foi pela avó, com uma grande diferença de idade em relação a ele.

Enfatizo que a criança precisa ser educada em um ambiente emocionalmente estável26 e consistente, no qual tenha experiência de aceitação e amor incondicionais. Carlos teve essa relação com sua avó, não com sua mãe, como ela mesma relata.

Carlos é um garoto querido por todos, devido à sua presteza. Ele gosta muito de fazer tarefas para outras pessoas, mas não em casa. Ele sempre se recusa a participar nas tarefas domésticas. Esse é um ponto de atrito e discussões entre mãe e filho. Talvez, isso se dê pelo fato de Carlos ter sido criado segundo as orientações da avó, mas parece carregar as marcas do sentimento de rejeição pelo fato da mãe não ter participado nessa etapa de sua vida.

Eles possuem liberdade de falar sobre tudo e discutirem sobre situações da vida cotidiana. Esse relacionamento parece mais de amigos do que de mãe e filhos, conforme a mãe de Carlos.

Esse relacionamento parece não ser firme com regras e papéis definidos, pois a mãe relatou que entra no quarto do filho só quando é extremamente necessário.É Carlos que cuida de suas roupas, o mesmo não ocorre com a filha, ou seja, parece que o sentimento de rejeição é recíproco entre Carlos e sua mãe.

Como forma de incentivo para os familiares, a mãe procura usar o elogio e agir com recompensas no grupo familiar. Parece uma espécie de troca para conseguir algo. Ficou claro em suas palavras que a mãe procura valorizar o ser humano, destacou que errar é normal, mas aconselha para que não aconteça novamente.

Carlos é um garoto firme e decidido nas suas posições, então a mãe tenta usar a autoridade para fazê-lo estudar, pois ela acredita que ele não goste de estudar.

Carlos quis parar de estudar, mas não teve sucesso. Sua mãe não permitiu e ressaltou que o futuro depende somente dele e de mais ninguém, pois ela não possui condições financeiras para poder mantê-lo. Ela espera que Carlos estude e tenha sucesso em sua vida e, quem sabe um dia, possa ajudá-la.

Carlos é um garoto atencioso, mas pouco participativo nas atividades escolares, devido, possivelmente, à vergonha de perguntar.

Quanto à participação e ao relacionamento com os professores, a mãe destacou que praticamente não há, devido ao seu trabalho. Só vai à escola quando é intimada a participar, geralmente por causa de trabalhos, notas ou provas, nunca por indisciplina.

O relacionamento de Carlos com a irmã é tumultuado. Ambos têm ciúmes um do outro, mas sem agressões. A mãe diz que Carlos precisa ajudar em casa, visto que a mesma sai de casa às 8 horas da manhã e volta à noite e, aos domingos, faz faxinas para complementar a renda.

A criança, ou o adolescente depende dos adultos32, seja na orientação quanto nos estudos, ou no que se refere à parte financeira. Essa dependência se dá por aqueles que exercem a função paterna e materna, como é o caso de Carlos, que depende de sua mãe, porém, foi praticamente educado pela avó. Ressalta-se que a própria mãe mostra a necessidade e a carência de um companheiro na educação dos filhos.

A mãe destacou que é importante a presença masculina, especialmente a figura do pai. Pois, muitas vezes, ela precisa fazer o papel de pai e mãe, mesmo sem saber se está correto, isto principalmente na fase da adolescência. Então, ela julga a escola como importante na educação dos filhos. Sabe que a escola não vai suprir a falta do pai, mas acredita que possa auxiliar na orientação de Carlos.

Família "D"

Essa família é composta por cinco pessoas, os pais e três filhos. Todos moram juntos e possuem uma condição financeira baixa, porém aparentam esforço para manter a educação dos filhos. O mais velho, com 19 anos, sempre estudou em escola particular. Irei deter-me em "Júlia", garota de 17 anos de idade, cursando o 2º ano do ensino médio. A filha mais nova ainda não está em idade escolar.

O casal mora junto, mas aparentemente não mantém diálogo quanto à educação dos filhos. Mudam de residência com muita freqüência, devido à situação financeira. Discutem seus problemas na frente dos filhos e, estes, por sua vez, sentem-se culpados por tais problemas.

Consideram a situação econômica como sendo o grande empecilho e julgam que, se os filhos não estudarem, não terão as condições necessárias para enfrentar as exigências da sociedade.

Atribui-se à família33 a garantia de sobrevivência de seus filhos e destacam que dentro da família se realizam as experiências básicas, as quais serão imprescindíveis no desenvolvimento e nas aprendizagens posteriores.

Júlia não tem apresentado bom desempenho escolar este ano. A mãe relatou que não a cobra em relação aos estudos. Porém, quando percebeu que sua filha corria o risco de ser reprovada, colocou limites. Para tanto, tirou algumas regalias que esta possuía até que apresente melhora nos estudos. Destacou que não cobra que seus filhos sejam os melhores no estudo, mas quer que estes acompanhem com obrigação a aprendizagem e tenham bom desempenho escolar.

Os pais propõem regras, mas, segundo eles, seus filhos não gostam de estudar. A mãe evidencia que ao cobrar e acompanhar o estudo dos filhos, o retorno é certo. Em outras palavras, ela deixou claro que, quando coloca limites, estes devem ser cumpridos.

O pai salientou que muitos têm facilidade em estudar e outros necessitam seguir regras.

As tensões acumuladas nas relações familiares certamente ressurgirão na escola, a partir destas relações, sob a forma que a aprendizagem assume na vida escolar.

É fundamental, segundo a mãe, que os pais acompanhem de perto o desempenho dos filhos na escola e, quando necessário, devem orientá-los.

Eles destacaram que sempre que a escola os chama, eles comparecem. Porém, nesse ano, não estão tendo muito tempo para acompanhar o desempenho de Júlia. Como conseqüência, essa optou por parar de estudar e trabalhar para ter o seu dinheiro, porém, os pais não permitiram e estabeleceram regras que deverão ser seguidas.

Foi dito pelo pai que o filho mais velho nunca precisou ser orientado quanto aos estudos, apresentando facilidade. Nessa época, a família praticamente não possuía problemas financeiros, como hoje. Porém, Júlia necessita de acompanhamento e orientação, devido às suas dificuldades.

O autor34 refere-se à diferença de classes sociais, e chega a afirmar que crianças oriundas de ambientes familiares que oferecem maiores oportunidades para a aprendizagem chegarão à escola mais preparadas para aprender os conteúdos ministrados pelos professores. Pode não acontecer o mesmo com quem passa por uma experiência de maior ou menor pobreza, pois terá maior propensão ao fracasso escolar.

Ficou evidente que os pais procuraram dar o mesmo tipo de educação aos filhos, mas hoje percebem que isso não foi correto, pois estes são pessoas diferentes e com personalidades distintas.

Seu relacionamento em família é perfeito e com as demais pessoas também, mas Júlia é inibida na escola, possivelmente por não acompanhar a condição social das demais colegas. Parece sentir-se inferiorizada e isto, talvez, interfira na imagem e na estima de si mesma.

O sonho de Júlia é ser veterinária. Quando ela optou por parar de estudar, conforme relato da mãe, ela usou como argumento o sonho da filha em relação à profissão, questionando-a sobre como ela iria realizá-lo se não estudasse.

Os pais têm pouco contato com a escola e, quando este ocorre, é com a orientação. Em nenhum momento tiveram contato com os professores. Destacaram que, segundo a orientação escolar, todos os professores apreciam o comportamento de Júlia e, sua única dificuldade, é quanto ao rendimento em algumas matérias, embora todos assegurem que Júlia apresenta todas as condições para ter um bom desempenho.

A mãe destacou que a família é muito importante e, quando os pais não estão bem um com o outro em seu relacionamento, os filhos ficam bloqueados para tomarem decisões e ilustra com as dificuldades de Júlia.

Situações adversas com relação à economia familiar atrapalham o estudo dos filhos. Júlia parece sentir-se culpada pelos problemas financeiros dos pais.

Família "E"

Essa família é composta por quatro pessoas. Os pais e duas filhas, uma já casada. Os pais não moram juntos, separaram-se há três anos. A filha mais velha casou-se quando estava ainda no 2º ano do ensino médio, ficou grávida do namorado, hoje seu marido. A filha mais nova cursa o primeiro ano do ensino médio, irei chamá-la de "Lúcia". É uma menina que aparentemente não apresenta motivos para ter dificuldades de aprendizagem, porém, não se desenvolve satisfatoriamente, de acordo com a visão atual de aprendizagem.

Os pais, hoje separados, não têm muitas posses, mas também não passam necessidades.

Os problemas que levaram o casal a separar-se foi o alcoolismo e, segundo a mãe, a falta de comprometimento do ex-marido com a família. Foi relatado que o pai, até mesmo, chegou a espancar a mãe na frente das filhas. O pai não tem relacionamento com a família e, quando marca um encontro com a filha, na maioria das vezes, não comparece. Ela sente-se rejeitada pelo pai.

Todo ser humano necessita de um ambiente saudável, que propicie desenvolvimento, principalmente os filhos, que merecem o respeito dos pais, para que possam amadurecer e ter independência. Dessa forma, a criança passa a ter referências seguras, consistentes e consciência de suas possibilidades, quando é capaz de sentir segurança interna, auto-estima, estabelecendo uma relação de trocas e acreditando em si. Acredita-se35 que não é preciso que os pais sejam perfeitos, eles apenas devem ser atentos, sensíveis e humanos. Esse autor destaca o que exatamente falta para Lúcia, devido à desatenção de seu pai.

A mãe procura orientar a filha quanto às regras, e diz que elas são importantes, pois colocam limites na vida. Segundo a mãe, Lúcia não esconde nada dela, mas não tem vontade de estudar e fazer as tarefas. Ela tenta ajudar, mas nem sempre a filha está disposta. Ficou claro que a mãe não consegue controlar os hábitos de estudo da filha, pois trabalha o dia todo. Ambas saem cedo e, à tarde, Lúcia fica só e dorme a tarde toda, segundo a mãe. À noite, Lúcia quer apenas assistir à televisão. Ambas têm conversado sobre a importância de estudar, mas está difícil de Lúcia dar retorno, de acordo com as exigências educacionais.

Com respeito às influências da família, a mãe destacou que foram tremendamente negativas, pois suas duas filhas cresceram vendo o pai desprezá-las e também a ela, conclui ser em virtude do álcool. Elas nunca tiveram o hábito de estudar, e tão pouco ambiente para estudo. Enfrentaram um período que ficaram aproximadamente três meses sem luz em casa devido à falta de dinheiro, pois tudo que o pai ganhava gastava em bebida e obrigava a mãe a dar o que ganhava para pagar dívidas.

Hoje separada, orienta melhor a menina, mas ainda não consegue fazer com que ela queira estudar. Ela acredita que a baixa auto-estima de Lúcia deve-se à rejeição paterna. A filha mais velha casou-se cedo, a mãe pensa que foi para sair de casa. Ela odeia o pai, segundo sua mãe.

Lúcia está fazendo terapia, a mãe espera que isso a ajude a compreender melhor as coisas e a aceitá-las. Lúcia é muito amiga do namorado de sua mãe, ambos conversam muito, segundo ela.

Lúcia tem total liberdade com sua mãe e vice-versa; somente as duas moram juntas e, à noite, há tempo para conversar, mas a televisão atrapalha. A mãe destacou que tem medo das amizades de Lúcia, disse que a orienta quanto ao que não é bom, pois ela é só uma adolescente de 15 anos. Não quer que Lúcia siga os mesmos passos da irmã e pare de estudar.

Lúcia possui condições para estudar e é orientada para isso, mas ela parece não reagir. Apresenta grande potencial, precisa apenas saber lidar com tudo isso, ressalta a mãe, um pouco emocionada.

Lúcia recebe estímulo da mãe, que procura conversar sobre tudo com ela, e sobre os estudos, principalmente. A mãe é professora, e diz saber como é um aluno com problemas de aprendizagem. Destaca que sua filha não tem problemas para aprender, ela não está motivada para estudar. A mãe frisou que esse problema tem a ver com ela e com o pai dela, devido às suas dificuldades de relacionamento em função da bebida. A mãe disse já ter pedido várias vezes ao pai que, pelo menos, trate Lúcia com respeito, que é o mínimo que um filho merece. A mãe destacou que Lúcia ama o pai, mas ele só enxerga a bebida, e acrescentou: "ele destruiu nossa família e percebe que está acabando com nossa filha".

Lúcia tem recebido a ajuda da mãe para estudar, mas a mãe enfrenta dificuldades, pois é professora de séries iniciais e já faz muito tempo que não tem contato com o que Lúcia está estudando. Disse não ter condições de pagar aulas particulares, pois paga aluguel, escola particular e terapia para Lúcia, o que sobra é para alimentação. A mãe diz: "faço todo o possível para não deixar faltar nada para ela".

A mãe de Lúcia tem ótima relação com a escola, pois trabalha no mesmo local onde a filha estuda, assim, encontra-se com os professores praticamente todos os dias. Segundo a mãe de Lúcia, todos dizem não compreender os motivos pelos quais Lúcia não consegue se desenvolver. Alguns chegam até a dizer que ela tem tudo para se dar bem. A mãe desabafa: "eles não entendem o que nós passamos".

A mãe de Lúcia contou que tem conversado muito com a orientadora escolar. Isso tem ajudado Lúcia. Na conversa, ela é orientada sobre os estudos e matérias que não está bem e necessitam de estudo.

Chamou a atenção a seguinte frase: "Sei que Lúcia pode perder o ano, não é o que quero, mas talvez possa ser melhor ela repetir, pois ela realmente não está aprendendo quase nada".

Ficou evidente que a mãe de Lúcia gostaria que o pai percebesse a filha que tem e lhe desse o valor que ela merece, e acrescentou: "Isso não é fácil, ele precisa querer e não acredito que isso ocorrerá".

 

UMA REFLEXÃO FINAL

Nos relatos, a partir das entrevistas, constatou-se a relação entre as expectativas, os investimentos familiares e a dificuldade para aprender, por esse motivo algumas falas ficaram inalteradas, por serem relevantes e explicativas do fenômeno pesquisado.

Ao analisar os encontros com os pais, surgiu a proposta de formar um grupo de apoio às famílias, com a presença de alguns especialistas, entre eles psicopedagogos, que possam atuar junto aos pais e aos professores na tarefa de ensinar e aprender.

A educação é um processo sério, que exige comprometimento e disponibilidade, tanto dos pais quanto dos professores.

A educação necessita de trabalhos e discussões como as indicadas, já que nunca se viu tantos problemas relacionados ao ensinar e ao aprender como em nossos dias.

Acreditamos que essa pesquisa traz colaborações e reflexões pertinentes sobre os espaços familiar e escolar na dinâmica do ensinar e aprender. Destaca-se essa idéia, pois muitos professores e pais agem como se aprender fosse uma função tão natural quanto respirar ou andar.

É fácil encontrar, em inúmeros livros e artigos, conselhos sobre como agir em relação ao ensino e à aprendizagem de crianças e adolescentes. Entretanto, muito deve ser construído, questionado e estudado sobre o modo como as novas gerações são preparadas para o futuro, para a vida em sociedade. E quando nos referimos à sociedade, nos reportamos à casa, à escola e à rua.

Os problemas na infância e adolescência podem nos ameaçar de muitas maneiras, portanto, devemos rever nossas posições em termos de confiabilidade e segurança.

Para finalizar, lembramos de algumas frases36 que podem ser úteis tanto para pais como professores:

Filhos

"Vossos filhos não são vossos filhos.

São os filhos e as filhas pela aspiração divina pela vida.

Vêm por vosso intermédio, mas não de vós;

E embora estejam convosco, não vos pertencem.

Podeis conceder-lhes vosso amor, mas não vossos pensamentos;

Pois têm seus próprios.

Podeis abrigar seus corpos, mas não suas almas;

Pois elas abrigam-se no amanhã, que não podeis visitar nem mesmo em sonho.

Podeis esforçar-vos por ser como eles, mas não procureis torná-los iguais a vós."

 

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Correspondência:
Nelson Elinton Fonseca Casarin
Rua Alberto Silva, 238/317
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Maria Beatriz Ramos
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E-mail: mbjramos@terra.com.br

Artigo recebido: 12/03/2007
Aprovado: 07/06/2007

 

 

Trabalho realizado na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS.
A pesquisa foi realizada em 2006, numa instituição escolar, particular, em Porto Alegre, RS.

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