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Revista Psicopedagogia

versão impressa ISSN 0103-8486

Rev. psicopedag. vol.26 no.81 São Paulo  2009

 

RELATO DE EXPERIÊNCIA

 

A escola contemporânea diante do fracasso escolar

 

The contemporary school concerning the school failure

 

 

Marilene Gonzaga Gomes TraviI; Lisiane Machado de Oliveira-MenegottoII; Geraldine Alves dos SantosIII

IPsicopedagoga, Especialista em Educação Inclusiva, mestranda em Inclusão Social e Acessibilidade da Feevale
IIPsicóloga. Mestre e doutora em Psicologia do Desenvolvimento (UFRGS), docente, pesquisadora e extensionista da Feevale
IIIPsicóloga. Mestre em Psicologia Clínica, Doutora em Psicologia, Pós-doutorado na Faculdade de Serviço Social da PUCRS. Professora titular e Pesquisadora do Curso de Psicologia e do Curso de Mestrado em Inclusão Social e Acessibilidade da Feevale

Correspondência

 

 


RESUMO

A escola contemporânea encontra-se diante de transformações constantes da sociedade. Esta situação obriga que a escola se posicione no sentido de modificar os paradigmas das concepções de ensino-aprendizagem, uma vez que o fracasso escolar se impõe de maneira acentuada na atualidade. O presente artigo objetivou discutir os desafios da escola contemporânea diante dos problemas de aprendizagem e da inclusão, utilizando-se de uma vinheta de caso clínico de um adolescente com representativos problemas de aprendizagem. O caso ilustra o fracasso escolar como produto de uma complexidade de fatores, exigindo um olhar amplo e integrado, a partir de uma interface entre o trabalho clínico, educacional e a família. Retrata uma experiência de inclusão exitosa, a partir de um trabalho de cunho interdisciplinar entre a Psicopedagogia, a Psicanálise e a Pedagogia. A escola como possível (re)produtora do fracasso escolar é objeto de discussão no presente artigo.

Unitermos: Instituições acadêmicas. Transtornos de aprendizagem. Psicologia. Psicopedagogia.


SUMMARY

The contemporary school is faced with constant changes of society. This requires the school to be positioned to change the teaching and learning conception paradigms, since school failure is remarkable today. This article aimed to discuss the challenges of contemporary school face the problems of learning and inclusion, using a clinical case vignette of an adolescent with representative learning disabilities. The case illustrates the failure of school as a product of a complex of factors, requiring a comprehensive, integrated look, from an interface between the clinical and educational works and family. It portrays an experience of successful inclusion, from an interdisciplinary work between the Psychopedagogy, Psychoanalysis and Pedagogy. The school as possible (re) production of school failure is the subject of discussion in this article.

Key words: Schools. Learning disorders. Psychology. Psychopedagogy.


 

 

INTRODUÇÃO

A escola contemporânea se vê diante das transformações da sociedade, obrigando-a a buscar novos posicionamentos. Tais posicionamentos referem-se a uma mudança de paradigma nas concepções de escola e de ensino-aprendizagem, uma vez que o fracasso escolar se impõe de maneira acentuada na atualidade.

O fracasso escolar nos remete a pensar em problemas de aprendizagem. Para Fernández1; os problemas de aprendizagem são basicamente de dois tipos: reativo e sintoma. O problema de aprendizagem como sintoma é aquele que necessita tratamento clínico. Por outro lado, o problema de aprendizagem reativo surge em reação às modalidades de ensino.

O presente artigo objetivou discutir os desafios da escola contemporânea diante dos problemas de aprendizagem e da inclusão. Para tanto, utilizou-se de uma vinheta de caso clínico de um adolescente com representativos problemas de aprendizagem. Realizou-se uma triangulação analítica entre família, escola e profissionais para identificar respostas que viabilizem a efetiva inclusão social. Na análise dos dados clínicos também se buscou refletir a articulação entre a Psicopedagogia e a Psicanálise e os importantes diálogos com a Pedagogia.

 

OS DESAFIOS E PERSPECTIVAS DA ESCOLA CONTEMPORÂNEA

A escola atual não está conseguindo corresponder às demandas da sociedade. As exigências do mundo atual apontam para uma educação diferenciada2; exigindo qualificação mais esmerada e constante formação e informação dos educadores, uma vez que o mundo globalizado aponta para incessante transformação.

Esse desencontro entre escola e sociedade pode gerar e/ou fortalecer os processos de exclusão, sobretudo, considerando uma sociedade cujo conhecimento é distribuído de forma desigual. Esse aspecto social se apresenta como um expressivo desafio da escola nos dias atuais, na medida em que algumas pessoas são privilegiadas e outras não conseguem ter acesso ao conhecimento. Nessa mesma perspectiva, Bossa3 afirma que: "Vivemos em um país em que a distribuição do conhecimento como fonte de poder social é feita privilegiando alguns e discriminando outros. Precisamos buscar soluções para que a escola seja eficaz no sentido de promover o conhecimento e, assim, vencer problemas cruciais e crônicos de nosso sistema educacional: evasão escolar, aumento crescente de alunos com problemas de aprendizagem, formação precaríssima dos que conseguem concluir o ensino fundamental, desinteresse geral pelo trabalho escolar."

Nesse sentido, "a escola torna-se cada vez mais o palco de fracassos e de formação precária"3. Isso porque as frágeis condições tanto estruturais quanto funcionais de muitas escolas contribuem em grande parte para o fracasso escolar. Tais escolas, na maioria das vezes, não conseguem lidar com as responsabilidades que lhes são delegadas. Nesse contexto, os professores, não raras vezes, se vêem oprimidos, angustiados e com inúmeras incertezas, fato esse que, em geral, se reflete na relação com os alunos.

Devem-se reconhecer as tentativas de reorganização da escola no sentido de prevenir e solucionar o fracasso escolar. Entretanto, a busca de respostas para o grande número de crianças e jovens com dificuldades de aprendizagem exige da escola um repensar em relação aos seus processos. Nesse sentido, reconhecemos em Paín4 um indicativo para esse repensar, pois, para a autora, a educação pode ser alienante ou libertadora, dependendo de como ela é instrumentalizada. É tomando a preocupação de Paín que pensamos na escola como possível (re)produtora de problemas de aprendizagem.

Paín4 ainda ressalta que o maior problema, na esfera da aprendizagem, é quando a escola "[...] constitui a oligotimia social, que produz sujeitos cuja atividade cognitiva pobre, mecânica e passiva, se desenvolve muito aquém daquilo que lhe é estruturalmente possível". A autora utiliza a expressão oligotimia, no sentido de um sujeito que se vê impossibilitado de utilizar o seu potencial cognitivo. Por oligotimia social, a autora propõe-se a pensar no social como uma forma de impedimento do desenvolvimento cognitivo, manifestando-se sob a forma de prejuízos na autonomia do pensamento.

Fernández1; na mesma lógica de Paín4; faz referências a "[...] uma sociedade enferma e causadora de enfermidades, que provoca oligotimia social e grande parte dos transtornos de 'aprendizagem reativos'[...]". Estes elementos permitem considerar que no social e, especialmente em nossas escolas, a (re)produção do fracasso escolar torna-se cada vez mais responsável pela exclusão de muitas crianças e jovens. Sendo assim, o espaço escolar que deveria ser de formação de indivíduos críticos e capazes de transformar a realidade pode tornar-se um ambiente que contribui para o aprisionamento da inteligência e, portanto, a exclusão.

Dolto5 refere que as causas para o fracasso escolar situam-se em "três ordens: sociológica, psicológica e pedagógica". Esses fatores se conjugam e são interdependentes. A autora ainda aponta a necessidade de se apropriar da interação desses fatores e compreender seus elementos intercambiáveis para, então, entender seus efeitos no fracasso escolar. Para tanto, é necessário que haja um olhar mais amplo para as questões do fracasso escolar. Olhar que se volte para o entendimento do sistema escolar atual e para a compreensão dos processos de aprendizagem, o que aponta para a importância de um trabalho articulado e interdisciplinar, no espaço escolar ou não escolar, buscando conceber sujeito e instituição na sua integralidade, sem desconsiderar as suas singularidades.

De acordo com Costa6; a escola do século XXI é alvo de discussões e reflexões entre os docentes, intelectuais e pesquisadores. Por meio de diferentes olhares, esses profissionais tentam encontrar caminhos para uma escola que assegure uma formação cultural e científica para toda a vida do sujeito. Costa ilustra o momento atual da educação contemporânea salientando que: "[...] parece que a escola do século XXI ainda se mantém como uma instituição central na vida das sociedades e das pessoas. Ela não carece de vitalidade. Seu propalado anacronismo parece ser seu catalisador, como uma Fênix que renasce das próprias cinzas. Se a escola da modernidade não se sustenta mais, ela se transmuta, se hibridiza em múltiplos cruzamentos e se reproduz nos infinitos discursos que sobre ela enunciam. Ela certamente não é de um único jeito, não toma uma só forma. Ela própria já começa a se reconhecer como território de diversidade, contorcionista da incerteza, prisioneira dos poderes que a dobram. Mas uma escola que fala a língua do seu tempoespaço poderia continuar fazendo diferença no processo de socialização e educação dos humanos."

Sem dúvida, a escola ainda ocupa um lugar central na vida das pessoas. É nela que são depositadas inúmeras expectativas em relação ao futuro do sujeito e da sociedade. É também o espaço por excelência onde o sujeito estabelece laços sociais para além da família.

Cabe salientar que a escola sofre os impactos das transformações sociais. Dentre tais transformações destacam-se as novas configurações da família. Atualmente, estamos diante de um declínio do exercício das funções parentais. O que vemos é, muitas vezes, a família delegando à escola responsabilidades que outrora eram culturalmente suas. O declínio do exercício das funções parentais gera impasses na constituição subjetiva, fazendo com que as crianças cheguem às escolas com fraturas significativas no desejo de aprender. Muitas delas apresentam problemas de aprendizagem como sintoma4; o que exige da escola um redimencionamento de suas práticas e processos. Paralelamente, a escola, na atualidade, está diante do imperativo que reza que ela deve ser para todos.

Em relação a isso, Beyer7 afirma que "uma escola para todos nunca existiu" e que a escola sempre foi imposta como uma fonte de poder social, em que somente os mais abastados eram os mais privilegiados. Ele evidencia que: "[...] na história da educação formal ou escolar, nunca houve uma escola que recebesse todas as crianças, sem exceção alguma. As escolas sempre se serviram de algum tipo de seleção. Todas elas foram, cada uma à sua maneira, escolas especiais, isto é, escolas para crianças selecionadas. As escolas de filosofia da Antiguidade, os mosteiros da Idade Média, as escolas de filosofia da Renascença - todas foram escolas especiais para crianças especiais, selecionadas. Neste sentido, também hoje as melhores escolas particulares em nosso país são escolas especiais, que acolhem não todas as crianças, porém, apenas algumas delas (obviamente, aquelas cujas famílias têm condição financeira privilegiada para bancar seus estudos)."

Embora a escola nunca tenha sido para todos, é fato que a Declaração de Salamanca da UNESCO8 teve um impacto social, cobrando da escola e da sociedade uma abertura para as diferenças. A proposta da Educação Inclusiva remete a uma ressignificação das práticas pedagógicas, respaldando-se no paradigma do respeito às diferenças. Exige uma nova organização da escola, sendo esta pautada por processos que assegurem o acesso, a permanência e a aprendizagem de todos os alunos. As transformações pautadas nas novas configurações familiares, bem como o imperativo trazido pelo movimento da educação inclusiva, sem dúvida tiveram um impacto na escola, gerando inquietações, angústias, incertezas e inseguranças.

O professor, diante disso, é quem tem manifestado maior sofrimento, uma vez que tais transformações exigem dele um reposicionamento, pautando sua função para o olhar para diferentes processos de ensino e aprendizagem. Isso porque o professor está frente a alunos que, muitas vezes, apresentam impasses no que se refere à aprendizagem e ao relacionamento interpessoal, sendo frequente o sentimento de incapacidade e até mesmo a recusa em trabalhar com eles. Por isso, é preemente que o professor seja acompanhado nesse processo.

Pensar na escola e no educador em meio a este panorama social em plenas transformações aponta para a necessidade de criação de parcerias que possam trabalhar de forma articulada. Nesse sentido, a articulação da Pedagogia, Psicanálise e Psicopedagogia traz subsídios importantes para a implantação de uma escola verdadeiramente inclusiva e, sobretudo, uma escola que busque a não (re)produção do fracasso escolar.

Estamos propondo uma articulação interdisciplinar que possibilite apoio ao professor que, diante da diferença, se vê desamparado e impotente. Entendemos por diferença o aluno que deflagra angústia no professor, por um distanciamento significativo em relação aquilo que ele espera. Nesse sentido, alunos com necessidades especiais, bem como alunos com problemas de aprendizagem, podem representar para esse professor a diferença. O aluno diferente, não raramente, remete o professor a um estado de não saber o que fazer. Nessa perspectiva, a Psicanálise, a Psicopedagogia e a Pedagogia, de forma interdisciplinar, podem auxiliar o professor a retomar a sua função como educador. A Psicanálise trabalha no campo da subjetividade e dos modos de subjetivação e de relação com o outro. A Pedagogia trabalha no campo do currículo, do método e da avaliação. A Psicopedagogia se insere no campo da aprendizagem humana, tendo como foco de estudo o aprender e o não aprender, ressignificando as relações do sujeito com as mais diversas aprendizagens. Trata-se de saberes que ao serem articulados podem trazer importantes benefícios à escola e ao social, como um todo.

 

A TRAJETÓRIA DE UM ADOLESCENTE NO PROCESSO DE INCLUSÃO ESCOLAR: UMA VINHETA DE CASO CLÍNICO

Partiremos de uma vinheta de caso clínico para discutir as questões relativas ao fracasso escolar na sociedade contemporânea. Trata-se de um adolescente com significativos problemas de aprendizagem, enfrentando dilemas referentes ao processo de inclusão social. Nossa discussão será pautada na defesa de um trabalho de cunho interdisciplinar entre a Psicopedagogia, a Psicanálise e a Pedagogia, contando com todo o respaldo necessário da escola em que o rapaz estava estudando.

Estaremos referindo o adolescente em questão pelo nome fictício de Carlos, no sentido de preservar sua identidade. Trata-se de um rapaz, que na época dos atendimentos tinha 15 anos de idade. Estava cursando o primeiro ano do ensino médio numa escola da rede particular de ensino.

Chamava a atenção o seu aspecto sindrômico, caracterizado por olhos puxados e um corpo hipotônico, que lhe concedia um ar desajeitado. Além disso, apresentava uma expressão apática, como se nada lhe despertasse interesse. Embora sua aparência indicasse uma alteração genética, os pais se recusaram a realizar uma investigação com tal especialista.

A queixa da escola era que Carlos apresentava uma desorganização que o impedia de aprender e realizar as atividades escolares. Aprender não parecia fazer algum sentido na vida dele. Sua apatia também se apresentava na relação com os pares, sendo, por conta disso, segregado pelos colegas.

A avaliação médica, realizada no período da sua infância, acusava uma significativa deficiência auditiva, apresentando 100% de perda auditiva no ouvido direito. Também apresentava dificuldade visual, que fora diagnosticada apenas na adolescência. Sua problemática, no entanto, não era apenas de caráter orgânico-funcional, atingindo também a esfera psíquica, sociocultural e familiar.

Os pais relatavam uma gravidez não planejada e muito sofrida para a mãe, devido a um quadro de depressão e de inúmeras hospitalizações. O parto foi induzido e muito difícil, com muito sofrimento para a mãe e para o bebê. Segundo ela, o menino nasceu "roxinho", remetendo-nos a pensar num quadro de cianose, precisando da intervenção imediata do pediatra. Era um bebê descrito pelos pais como "bonzinho", pois quase não chorava.

A história escolar de Carlos foi de muito sofrimento, caracterizada por uma sucessão de reprovações, sendo também marcada por muitos fracassos na leitura e escrita. Chegou ao ensino médio com lacunas significativas na construção do seu conhecimento formal. Foi somente no ensino médio, quando Carlos passou a estudar numa nova escola, que foi encaminhado para uma avaliação psicopedagógica. Avaliação que confirmou a preocupação da escola quanto ao problema de aprendizagem. Carlos também foi encaminhado para uma avaliação psíquica, havendo a necessidade de indicação de um tratamento nessa área, realizado paralelamente ao acompanhamento psicopedagógico, que já se efetuava.

O acompanhamento psicopedagógico e psíquico, na realidade, não se propunham a trabalhar somente com os comprometimentos de Carlos no âmbito clínico. O trabalho estava calcado numa proposta de articulação interdisciplinar, considerando os saberes da Pedagogia, Psicopedagogia e Psicanálise, no sentido de fazer valer o processo de educação inclusiva de Carlos. Afinal, havia a necessidade de prepará-lo para os três anos do ensino médio e para a sua inclusão social em outras dimensões, como por exemplo, trabalho e esporte.

O trabalho interdisciplinar ocorreu a partir de reuniões com a equipe pedagógica, que se encarregava de repassar nossas discussões para os professores. Em determinadas situações, entretanto, se fez necessário o contato com todos os professores para conversarmos sobre os avanços terapêuticos de Carlos e sobre questionamentos e orientações quanto ao desenvolvimento do trabalho em sala de aula. Tais espaços foram pautados, especialmente, por reflexões acerca da necessidade de flexibilização curricular, já que Carlos apresentava significativas lacunas relativas à aprendizagem formal. A principal queixa da escola era de que Carlos revelava precárias condições para a interpretação e compreensão de textos, além de ter dificuldades em estabelecer relações entre os conhecimentos já adquiridos e os novos. Para os professores, era sempre um recomeço com o aluno nas atividades em sala de aula. Do ponto de vista psicopedagógico, a avaliação demonstrou que Carlos apresentava uma total rejeição aos objetos de aprendizagem escolar e um déficit lúdico, demonstrando empobrecimento quanto à capacidade de antecipar, coordenar e classificar. Também apresentava acentuada dificuldade para criar e recriar o conhecimento. Quanto às questões psíquicas, a avaliação evidenciou que Carlos apresentava comprometimentos psíquicos, sendo estes porta-vozes da dinâmica de funcionamento familiar. Como já dizia Dolto9; o trabalho psicanalítico com crianças e adolescentes situa-se nos laços familiares, uma vez que a criança e o adolescente são porta-vozes de seus pais. Desta forma, a apatia de Carlos, desde bebê, revelava, entre outros aspectos, o quanto seus pais pouco lhe demandavam, produto de fraturas no desejo parental. Afinal, o discurso dos pais sinalizava que eles pouco esperavam de Carlos, sendo sua apatia uma espécie de laço estabelecido entre eles.

Eram inegáveis os comprometimentos de ordem orgânica, sendo diagnosticados déficits de visão e audição e levantada uma suspeita de alteração genética, em função de sinais característicos de síndromes genéticas. Embora se apresentasse este quadro orgânico, o que evidenciamos, a partir dos acompanhamentos psicopedagógico e psíquico, era que Carlos apresentava impasses na sua constituição como sujeito. Tais impasses tiveram repercussões nas questões relativas à aprendizagem, denunciando, portanto, problemas de aprendizagem como sintoma1. Sintoma que mostrava o narcisismo ferido dessa família, pela vinda de uma criança não desejada e incompatível com os ideais parentais. Uma criança que, desde a gestação, esteve à mercê de um entorno frágil e que pouco conseguiu estabelecer os contornos do corpo de Carlos. A hipotonia, possivelmente, pelo menos em parte, denunciava problemas na estruturação de um corpo que pudesse fazer frente às demandas do outro.

Como os acompanhamentos foram buscados quando Carlos já era adolescente, não tínhamos dados precisos acerca dos primórdios de sua constituição subjetiva. Os dados que tínhamos acessos referiam-se aos relatos de seus pais, bem como, aquilo que se apresentava enquanto dificuldades na vida atual de Carlos. O relato dos pais e as dificuldades de Carlos nos remetiam a pensar em fraturas significativas na constituição do laço de filiação, sendo este o fundamento da estruturação de um corpo marcado por significantes, de acordo com a Psicanálise10-16. Tais fraturas nos indicam duas questões principais: o relato de depressão materna e o fato de os aspectos sindrômicos estarem marcando um distanciamento em relação ao bebê, em geral, sonhado pelos pais. Nesse sentido, além da vulnerabilidade psíquica materna, a marca da diferença estampada no rosto de Carlos possivelmente estaria sinalizando para uma fragilidade na constituição do laço de filiação.

Quando a constituição do laço de filiação é comprometida, muitas vezes, observamos repercussões psíquicas e psicopedagógicas muito semelhantes àquelas apresentadas por Carlos. Entendemos que a deficiência auditiva e visual pode ter um impacto na aprendizagem, mas acreditamos que, nesse caso, os aspectos relativos à constituição de sujeito se fizeram marcantes no desenvolvimento dos problemas de aprendizagem.

Tendo em vista tais questões, o percurso terapêutico teve como norte alcançar o estatuto de sujeito de desejo, que para a Psicanálise é o que possibilita a aprendizagem. Tomamos sujeito do desejo no sentido lacaniano. O sujeito, para Lacan17; se constitui no campo do Outro, estando inicialmente alienado ao desejo do Outro e, portanto, numa posição de objeto, para então, a partir da separação, operação dada pela castração, constituir-se como sujeito do desejo. Sendo assim, constituir-se como sujeito do desejo abriria, para Carlos, possibilidades para ele desejar a aprender e, dessa forma, a escola ter um sentido para a sua vida. Isso nos possibilitou trabalhar uma das facetas da inclusão, qual seja, a da constituição do sujeito, que se instaura a partir de um trabalho clínico, no sentido de propiciar o movimento da filiação para a inclusão. A filiação aponta para um lugar simbólico, de pertencimento na família. Poderíamos dizer que a filiação é a nossa primeira experiência de inclusão e que, portanto, a forma como ela foi constituída terá efeitos na inclusão em outros âmbitos da vida, tais como: escola, trabalho, sociedade15.

Além do trabalho desenvolvido com Carlos, foi essencial o empenho com os pais no sentido de resgatar os seus lugares nas relações familiares e, sobretudo, o lugar de sujeito de Carlos. Isso envolveu percorrer os desejos de cada um em relação ao filho, o que nos possibilitou estabelecer os contornos entre as limitações e as potencialidades de Carlos, para que esses pais pudessem, a partir de então, permitir que ele conquistasse um lugar nessa família, marcado por satisfações, por alegrias e não mais somente por decepções e frustrações. O trabalho também possibilitou o resgate da curiosidade, do prazer da descoberta e do aprender, da autonomia e da autoria de pensamento, pois o lugar destinado pela família ao aluno era "o lugar do que não pode aprender"1. Para eles, Carlos não sabia, não podia e não devia fazer nada. Como já foi sinalizado anteriormente, os pais de Carlos ocupavam lugares de poucos desejos em relação ao filho.

O trabalho clínico era guiado por esses pressupostos, porém o caso apontava para o fracasso escolar como produto de uma complexidade de fatores. Nesse sentido, não apontava somente para as questões subjetivas de Carlos, mas também a uma idéia de possíveis fracassos no processo de inclusão. Embora as dificuldades de Carlos apontassem para problemas de aprendizagem como sintoma, não poderíamos desconsiderar a presença de impasses institucionais, de modo que Carlos também poderia estar apresentando problemas de aprendizagem reativos1. Nesse sentido, o fato de apresentar problemas de aprendizagem como sintoma não invalida de se pensar nos obstáculos institucionais. Isso porque o aluno que apresenta significativos problemas de aprendizagem, não raras vezes, desestabiliza o professor, fazendo-o perder suas referências em relação a sua atuação docente. Assim sendo, era fundamental que o trabalho clínico não permanecesse reduzido aos aspectos subjetivos de Carlos, e sim que propusesse uma articulação interdisciplinar com a Pedagogia, baseado na premissa de que a escola era um espaço vital para ele, assim como é para todas as crianças e jovens. Um espaço de estabelecimento de laços sociais para além da família.

Para Carlos, entretanto, a escola era um espaço que o remetia a frustrações e fracassos. Nesse sentido, havia a necessidade de ressignificação desse lugar e da relação entre Carlos e a escola. Isso deflagrou um repensar sobre as práticas escolares, que fora fundamental para o processo de ressignificação da escola. A proposta era promover o máximo de autonomia e autovalorização do aluno, respeitando as diferenças, as limitações e, principalmente, acreditando no potencial e nas possibilidades de sua aprendizagem. Isso exigiu que a escola saísse da lógica curricular como algo engessado e previsto, para entrar na lógica da primazia do sujeito. Sendo assim, não falamos mais de integração e sim de inclusão. A diferença entre integração e inclusão é que na primeira os alunos devem se adaptar ao que está posto no currículo, sendo ele ainda a referência das relações de ensino e aprendizagem; na segunda, há uma abertura, por parte da escola, às diferenças e, nesse sentido, a aprendizagem se dá por meio de adaptações curriculares, considerando os diferentes modos de subjetivação e de aprender.

Esta vinheta de caso clínico nos remete a pensar em problemas de aprendizagem que conjuguem os aspectos de ordem sintomática e os aspectos institucionais. Incluímos aqui os aspectos institucionais, pois se tratava de uma escola que, não muito diferente das demais, se confrontava com muitas dificuldades para trabalhar com a inclusão. Não contava com uma proposta efetivamente inclusiva em seu Projeto Político-Pedagógico e, ademais, seu corpo docente não se sentia capaz para agir de acordo com os pressupostos da educação inclusiva. Nesse sentido, a experiência com Carlos foi fundamental, pois o trabalho foi se dando a partir da prática diária. Para tanto, foram necessários encontros sistemáticos com a equipe pedagógica da escola. Afinal, essa equipe era responsável pela gestão pedagógica da escola. O trabalho se inscreveu numa proposta interdisciplinar, por meio do estabelecimento de uma relação de parceria entre a clínica e a escola. Também foi necessário realizar encontros com os professores, para que eles pudessem encontrar ali um espaço de fala, de escuta, enfim, de trocas. O trabalho sempre se deu no sentido de refletir sobre o fracasso escolar como não sendo apenas produto de funções parentais fragilizadas e de problemas de constituição subjetiva, mas também produto institucional, pensando aqui as relações estabelecidas na escola, pois elas facilmente podem reproduzir a questão sintomática, aprisionando-se nas limitações do aluno, sem conseguir, portanto, investir nas suas reais capacidades e potencialidades. É nesse sentido que aqui postulamos que a escola pode se colocar num lugar de (re)produção do fracasso.

Defendemos no presente artigo a importância de um trabalho clínico articulado com o trabalho educacional. Afinal, de nada adianta trabalhar as questões sintomáticas se, no âmbito da escola, não há um trabalho efetivamente inclusivo, que acolha as diferenças, as limitações e aposte nas potencialidades do aluno. Ao longo dos encontros com a escola, fomos percebendo os avanços de todos: dos trabalhos clínicos, da escola, da família e, sobretudo, de Carlos. Isso porque os diferentes saberes articularam-se e tornaram possível uma visão mais global e integrada de Carlos. Os avanços, nesse sentido, foram visíveis a partir do momento em que, efetivamente, criou-se um espaço interdisciplinar. Poderíamos dizer que tal espaço também operou em caráter preventivo, uma vez que conseguimos evitar maiores riscos inerentes ao processo de subjetivação e aprendizagem em casos como o de Carlos. Um dos maiores produtos de nosso trabalho em parceria foi reconhecer as potencialidades de Carlos e seu ritmo de aprendizagem singular, por parte da escola e da família. Cabe salientar que tanto a escola como a família conseguiram bravamente enfrentar os desafios da inclusão. Do ponto de vista da escola, os professores mantiveram-se abertos e desejosos em relação ao processo de aprendizagem de Carlos. A coordenação pedagógica da escola, no decorrer dos três anos do ensino médio, ficou em contato frequente com a psicóloga e psicopedagoga clínica permitindo, assim, uma avaliação constante quanto ao processo inclusivo. Os pais, por sua vez, permaneceram atrelados ao processo de inclusão de seu filho, acompanhando-o na escola e nos atendimentos.

Apesar das dificuldades encontradas por Carlos em sua trajetória, poderíamos definir tal experiência de inclusão como exitosa. Carlos terminou o terceiro ano do ensino médio com perspectivas de fazer um curso técnico na área da informática pelo qual estava mais identificado. No entanto, o mais importante é que no transcorrer do trabalho, Carlos conseguiu estabelecer os contornos entre seus limites e suas potencialidades.

Diante da complexidade das relações sociais, acreditamos que a escola contemporânea não tem mais como fugir da perspectiva interdisciplinar. Isso porque tal complexidade requer a interface de diferentes saberes, na medida em que um só não dá conta de suas vicissitudes. Nesse sentido, articular os saberes da educação e da saúde é de fundamental importância, no sentido de promover reflexões e ações de forma mais integrada e global.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo se propôs a discutir os desafios da escola contemporânea diante dos problemas de aprendizagem e da inclusão. Vimos que a escola contemporânea está diante da complexidade das relações sociais, necessitando rever seus paradigmas, na medida em que ainda ocupa um lugar central e de referência na vida das pessoas. Um dos maiores desafios enfrentados pela escola contemporânea refere-se aos impactos gerados pela educação inclusiva, o que a coloca diante da diferença, seja nos aspectos de constituição subjetiva ou de aprendizagem. Sendo assim, a escola precisa repensar sua identidade para não somente acolher a diferença, mas também assegurar a permanência e a aprendizagem de crianças e adolescentes com problemas de aprendizagem.

Quando a escola não se flexibiliza, mantendo-se num sistema rígido e engessado, facilmente pode produzir ou reproduzir o fracasso escolar. A reprodução do fracasso escolar, em geral, ocorre quando a escola se identifica com a família, não apostando nas reais possibilidades e capacidades de cada sujeito e, portanto, não respeitando a sua singularidade no processo de aprendizagem.

A partir do relato da vinheta de caso clínico e das intervenções da Psicopedagogia e da Psicologia foi possível compreender a importância de um trabalho interdisciplinar, que possibilite a comunhão destes diferentes saberes, compondo uma visão integrada do sujeito, de modo que sejam respeitadas suas diferenças e peculiaridades. Percebemos também que a escola, frente à diferença, se vê, muitas vezes, numa condição de desamparo, necessitando de um espaço de escuta e discussão sobre questões de aprendizagem e comportamento, no sentido de restabelecer o saber do professor, para que ele possa também apostar nas potencialidades do aluno.

Embora o artigo tenha apresentado somente uma vinheta de um caso clínico, sendo, portanto, impossível realizar generalizações, nosso intuito foi trazer a contribuição de uma experiência exitosa de inclusão, apontando que o diálogo interdisciplinar é fundamental em casos como o de Carlos. Isso porque o fracasso escolar é fruto de uma complexidade de fatores, exigindo um olhar amplo e integrado dos diferentes saberes envolvidos com a saúde e a educação.

 

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Correspondência:
Marilene Gonzaga Gomes Travi
Rua João Pedro Schmitt, 750 - Bairro Rondônia
Novo Hamburgo, RS - CEP: 93415-640
E-mail: maritravi@terra.com.br

Artigo recebido: 05/7/2009
Aprovado: 30/10/2009

 

 

Trabalho realizado na Feevale, Novo Hamburgo, RS.

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