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Revista Psicopedagogia

versão impressa ISSN 0103-8486

Rev. psicopedag. vol.27 no.82 São Paulo  2010

 

RELATO DE EXPÊRIENCIA

 

Alunos com dificuldades na escrita: produção de sentidos subjetivos na oficina de palavras

 

Students with difficulties in writing: production of subjective sense of words in the workshop

 

 

Beatriz Judith Lima ScozI; Deborah Regina Motta R. LucchiniII

IABPp - UNIFIEO - Graduação em Pedagogia; Mestrado em Psicologia da Educação pela PUC-SP; Doutorado em Psicologia da Educação pela PUC-SP. Pós-Doutorado (em andamento) - Universidade de Brasília (UNB), Atualmente é professor titular curso de pós-graduação no Centro Universitário Fieo (UNIFIEO), coordenadora de pesquisa e pesquisadora do CNPq. Especialização em Psicopedagogia no Instituto Sedes Sapientiae e na Escola de Psicopedagogia de Buenos Aires
IICEFAC-UNIFIEO - Mestre em Psicologia Educacional pelo UNIFIEO, Especialista em Educação; Graduada em Pedagogia pelo UNIFIEO. Atualmente é professora e cooperadora do Grupo Experimental de Alfabetização do Instituto CEFAC. Pesquisadora do CNPq

Correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo constituiu-se em uma dissertação de mestrado, na qual se pesquisou a Oficina de Palavras, um espaço lúdico, como um espaço potencial para a produção de sentidos subjetivos nos processos de ensino e aprendizagem de alunos com dificuldades na escrita. O referencial teórico abordado são as concepções de subjetividade de Fernando González Rey, que possibilitam compreender a categoria sentido como formações psíquicas dinâmicas do sujeito em constante desenvolvimento, em suas diferentes práticas sociais. Por conta disso, a pesquisa assumiu caráter qualitativo, dentro da Epistemologia Qualitativa. Atividades de conversações e complemento de frases constituíram-se instrumentos para trabalhar e refletir sobre as informações obtidas de maneira construtiva-interpretativa. O presente estudo demonstrou que o processo de aprendizagem da escrita não envolve apenas estruturas cognitivas, mas também aspectos emocionais, afetivos, históricos e sociais e que os aspectos subjetivos estão a todo o momento influenciando no posicionamento do aluno frente aos obstáculos que perpassam a aprendizagem da escrita. A partir desse olhar, entendeu-se que a Psicopedagogia pode oferecer também aos educadores uma nova maneira de conceber os alunos e a construção de conhecimentos, ao considerar que múltiplos aspectos intervenientes nos processos de aprendizagem permitem um espaço dialógico e o posicionamento ativo do aluno, devolvendo ao sujeito algo próprio, pessoal. Ou seja, o reconhecimento de sua autoria de pensamento como ato de produção de sentidos subjetivos.

Unitermos: Aprendizagem. Redação. Transtornos de aprendizagem.


SUMMARY

This study was based on a master's thesis, which researched the Workshop of Words, a play area as a potential space for the production of subjective sense in the teaching and learning of students with difficulties in writing. The theoretical concepts discussed are the subjectivity of Fernando González Rey, which allow to understand the meaning and category training psychic dynamics of the subject under constant development in its different social practices. Because of this, the research took a qualitative, in the Qualitative Epistemology. Activities of talks and additional sentences consisted of tools to work and reflect on the information obtained in a constructive-interpretive. This study demonstrated that the learning process of writing involves not only cognitive, but also emotional, affective, historical and social aspects that are subjective at all times influencing the placement of students in the face of obstacles that go through the learning writing. From that look, it was found that the Psychoeducation can offer, also to educators a new way to design students and the construction of knowledge, considering that many aspects involved in learning processes allow room for dialogue and the active stance of the student returning subject himself to something, people. That is, the recognition of his own thinking as an act of subjective production of meaning.

Key words: Learning. Writing. Learning disorders.


 

 

INTRODUÇÃO

O grande desafio do sistema educacional é garantir o acesso e a permanência dos alunos nas escolas e, para isso, pesquisadores da educação precisam encontrar caminhos que levem à superação de muitos entraves que se colocam frente ao segmento dos processos de escolari-zação. Uma das possibilidades é considerar os alunos em sua dimensão ativa: como sujeitos que têm criatividade, emoções, histórias de vida e que tudo isso junto os faz produzir sentidos em seus processos de aprendizagem, evidenciando-se, assim, a construção de suas subjetividades nesses processos.

No que diz respeito ao processo de aprendizagem da escrita, fazendo uma analogia com os estudos de Scoz1, "a subjetividade também está presente, pois se configura um momento constitutivo essencial, definido pelo sentido que esta aprendizagem tem para o sujeito, dentro da condição singular em que se encontra". Além desse fato, a subjetividade permeia o modo de estar no mundo e as diferentes situações vi-venciadas pelos sujeitos em geral, inserindo-se assim em suas trajetórias de vida.

Nesse estudo, foram utilizadas as concepções teóricas de González Rey2, que possibilitam um novo lócus de análise para a questão da subjetividade. As categorias teóricas desenvolvidas por esse autor trazem a ideia de um sujeito concreto, consciente, que assume configurações subjetivas e produz sentidos em decorrência das relações sociais que se estabelecem nos diferentes espaços de suas vidas. Conceitos como subjetividade, subjetividade social e individual, produção de sentidos e configurações subjetivas serão os pilares centrais para uma análise da proposta acima descrita, ao propiciar um entendimento dos alunos com dificuldades na escrita, como sujeitos de suas próprias experiências individuais e sociais, possibilitando-se a compreensão dos aspectos subjetivos presentes em seus processos de aquisição da escrita.

As áreas de estudo e pesquisa da Psicopeda-gogia, entre outras ciências, também foram consideradas em seus diferentes níveis de atribuições. Elas também têm articulado alguns temas de estudo sobre a construção da subjetividade. Dessa maneira, a Psicopedagogia possibilita a percepção de entraves que se inserem na continuidade próspera da questão do aprender a escrita. Essa percepção merece ser considerada em termos das contribuições que traz.

Esse estudo constituiu-se em uma dissertação de Mestrado, em que se pesquisou a eficácia da Oficina de Palavras como um espaço potencial para produção de sentidos subjetivos em crianças com problemas de aprendizagem na escrita.

O modelo de análise utilizado foi a Epis-temologia Qualitativa, proposta por González Rey3, que tem como foco a busca pela produção de conhecimento e a visualização de aspectos particulares e sociais que permeiam a questão da subjetividade. A partir desse modelo, uma tentativa de aproximação para compreender a subjetividade em alunos com dificuldades na escrita foi a utilização do espaço Oficina de Palavras como um instrumento de pesquisa. Trata-se de um espaço lúdico, com poucas crianças, que ainda não escrevem satisfatoriamente, cursando o ensino fundamental. Nesse espaço, procurou-se compreender os sentidos subjetivos produzidos nos processos de aquisição da escrita. Para tanto, considerou-se as relações de ensino e aprendizagem dos alunos nas escolas, na comunidade de pertencimento, bem como as possíveis relações entre esses sentidos.

 

UMA CONCEPÇÃO ATUAL DE SUBJETIVIDADE

A teoria da subjetividade desenvolvida nos últimos vinte anos por Fernando González Rey tenta dar visibilidade às formas complexas por meio das quais se expressa o psiquismo humano a partir de uma perspectiva histórico-cultural4.

Uma das fontes filosóficas dessa teoria é Vygotsky, que se dedicou ao estudo do sujeito individual e social historicamente constituído, buscando uma nova visão da psique humana. Vygotsky considera a psique como um "sistema complexo e dinâmico organizado em sistemas de sentido que estão mais além de todo o processo psíquico pontual"2.

Segundo Scoz1, as construções teóricas produzidas pelo autor russo abriram caminho para que a psicologia social superasse a dicotomia social-individual, ou seja, no enfoque histórico-cultural, indivíduo e sociedade são entendidos como uma unidade dialética que também supera a dicotomia externo e interno.

Nesse enfoque, o conceito de subjetividade pressupõe uma alteração na representação da psique, compromissada com uma natureza cultural. Explicitando melhor, a subjetividade não faz referência a algo que vem de "fora" e que aparece "internalizado" na pessoa, mas como algo que contempla esses dois espaços de constituição permanente e inter-relacionados, que se constituem de maneira recursiva.

Desse modo, entende-se a subjetividade individual como um momento da subjetividade social, em uma forma recíproca, sem que uma dilua-se na outra. A subjetividade social é um sistema em que se integram distintas configurações subjetivas (grupais ou individuais) na vida social. Essa concepção de subjetividade se apresenta nas diversas representações sociais da cultura em que as relações entre os sujeitos são produzidas e revela, assim, o caráter rela-cional do viver humano2.

A categoria sentido é fundamental para a questão da subjetividade na perspectiva de González Rey2. Ela surgiu no ensaio de Vygotsky sobre a consciência, sendo concretizada na obra Pensamento e Linguagem (1935) em que o autor escreve:

"O sentido de uma palavra é um agregado de todos os fatos psicológicos que surgem em nossa consciência como resultado daquela palavra. O sentido é uma formação dinâmica, fluida e complexa, que tem inúmeras zonas que variam em sua instabilidade" (apud González Rey5).

A categoria sentido permite analisar as emoções do sujeito que são constitutivas de formas de organização da subjetividade e que são essenciais para compreendê-la. Foi nesse caminho que González Rey2 introduziu a categoria sentido subjetivo, rompendo com a dicotomia indivíduo-sociedade. Para esse autor, o fenômeno social se expressa pelo indivíduo, não em seu estado puro, ou seja, terá uma significação humana.

Entende-se, assim, que a forma como um aluno lida com os desafios que surgem em seu processo de aprender a escrever sofre influência de um conjunto de emoções e processos simbólicos constituídos por diversas experiências ao longo de sua história.

No momento da aquisição da escrita esses aspectos subjetivos influenciam as atitudes frente às tarefas a serem realizadas, ou seja, mesmo possuindo uma boa estrutura cognitiva, o desempenho dos alunos poderá ser insatisfatório, considerando-se as implicações de seus estados emocionais no seu processo de pensar. Kupfer esclarece que "se por um lado temos as funções cognitivas se desenvolvendo, não podemos esquecer que, ao mesmo tempo, há um sujeito se constituindo".

Assim, junto aos aspectos sociais, verifica-se a emergência da singularidade, pois, no momento da aprendizagem, a produção de sentidos subjetivos possibilita a visibilidade de nuances únicas da vida de cada aluno concreto: suas crenças, valores, expectativas.

Entende-se que a dimensão dos sentidos subjetivos não aparece explícita e direta na expressão intencional do aluno, mas surge indiretamente por expressões muito diversas e não associadas de forma imediata. Por esse motivo, devem ser significadas num processo construtivo-interpretativo, ou seja, conforme as ideias de González Rey6, trata-se de um processo dinâmico em que surgem diversas ideias em seu percurso, um processo que envolve pensamentos e emoções que podem facilitar o surgimento de novos processos simbólicos.

 

DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM

Para tratar das dificuldades de alunos na construção da escrita é importante considerar o que se entende por dificuldade de aprendizagem. Embora as dificuldades de aprendizagem tenham se tornado um dos focos de pesquisas nos últimos anos, elas ainda são pouco compreendidas, em seu todo, pelo público em geral e até mesmo por muitos profissionais da Educação. De acordo com os estudos da Psicopeda-gogia, o termo dificuldade de aprendizagem dificilmente pode ser atribuído a uma única causa; muitos aspectos diferentes podem prejudicar a aprendizagem como o funcionamento orgânico, os problemas psicológicos, cognitivos e sociais dos alunos, etc.

Portanto, não se trata de justificar uma dificuldade apresentada pelo aluno, em função apenas de alguma situação emocional específica e difícil que esteja sendo vivenciada, por exemplo, no âmbito familiar, como a separação dos pais, a perda de um dos progenitores, etc.

De fato, a aprendizagem humana implica nas dimensões cognitiva social, afetiva, orgânica, numa inter-relação com os fenômenos culturais, de uma maneira interdependente, indissociável e não apenas como uma somatória7. É algo que acompanha o indivíduo desde o seu nascimento e envolve vários componentes intrapsicológi-cos (memória, atenção, etc) e interpsicológicos (relação com o outro), dentro de um contexto sociocultural. Alguns estudiosos, como Pain8, Cagliari9, Soares10, Fernández11, Spinillo12, Sisto13, entre outros, também salientam que a aprendizagem é um processo em permanente construção.

Na concepção de González Rey2, a construção da subjetividade ocorre nas inter-rela-ções entre sociedade/indivíduo, pensamento/ emoção, sentido/significado. Nesta pesquisa, os aspectos subjetivos que interferem nas dificuldades de aprendizagem da escrita serão considerados a partir dessas inter-relações. Esse modo de pensar a subjetividade implica na concepção de pensamento complexo de Edgar Morin14, que pontua "complexus" como aquilo que é "tecido em conjunto". É notório que as configurações de sentidos subjetivos constituídas ao longo das trajetórias de vida desempenham papéis fundamentais nos processos de aprendizagem dos alunos: o modo como o aluno se depara com um obstáculo à sua aprendizagem está diretamente relacionado a essa perspectiva dinâmica e processual.

 

INTERFACES DAS DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM COM A PSICOPEDAGOGIA: SUBJETIVIDADE/PRODUÇÃO DE SENTIDOS

A Psicopedagogia estuda e lida com processos de ensino e aprendizagem e com os problemas e/ou dificuldades decorrentes desse processo, de forma preventiva e terapêutica. Configura-se em um campo de conhecimento multidisciplinar que implica, como anteriormente mencionado, aspectos cognitivos, orgânicos, afetivos e sociais.

A mais significativa contribuição dessa abordagem reside em nos mostrar as evidências de que as dificuldades de aprendizagem que levam ao fracasso escolar não dependem de uma única causa e que conhecê-las não será o bastante para resolver a questão. Por outro lado, para considerar os múltiplos fatores intervenientes nos processos de aprender e de ensinar não bastam os múltiplos olhares, os múltiplos saberes. Estes precisam ser compartilhados por meio de relações dialógicas nas quais as falas do outro, ainda que diferentes, precisam ser ouvidas e reconhecidas como contribuições que garantam as relações entre vários saberes. O conhecimento "novo" surgirá fortalecido porque é constituído na interação.

A contribuição de Scoz15 pode sintetizar melhor essa ideia:

"(...) os problemas de aprendizagem não são restringíveis nem a causas físicas ou psicológicas, nem a análises das conjunturas sociais. É preciso compreendê-los a partir de um enfoque multidimensional, que amalgame fatores orgânicos, cognitivos, afetivos e pedagógicos, percebidos dentro das articulações sociais".

Orofino e Zanello (apud González Rey6) complementam essa ideia ao afirmarem que inserir o psicopedagogo atuando de modo a se aproximar da multidimensionalidade do ser humano enquanto indivíduo, simultaneamente produto e ator de um determinado contexto histórico-social, é conceber o espaço que produz a ação.

Na atuação psicopedagógica considerada a partir do olhar de González Rey16, os múltiplos saberes e olhares devem ser acompanhados da criação de situações dialógicas com o aluno, na construção de hipóteses sobre configurações subjetivas das dificuldades de aprendizagem relatadas por ele. Desse modo, o psicopedagogo induz espaços de expressão, facilita a emergência de novos sentidos subjetivos, ou seja, permite que esse momento seja um processo de produção de novos sistemas de subjetivação, por meio de sua própria ação.

Sendo assim, nos processos preventivos e terapêuticos da Psicopedagogia pode-se abrir um espaço para a produção de novos sentidos na aprendizagem, que poderão surgir quando o sujeito afetado, por alguma dificuldade, transforma-se em sujeito diante da sua situação atual e é capaz de produzir novas emoções e processos simbólicos que lhe facilitem o desenvolvimento de novos sentidos subjetivos.

Alícia Fernández11 também enfatiza a dimensão subjetiva nos processos de aprender e de ensinar. A autora aponta que, muitas vezes, são necessárias intervenções psicopedagógicas que possibilitem devolver ao sujeito algo próprio, pessoal, ou seja, o reconhecimento de sua autoria de pensamento como ato de produção de sentidos, como reconhecimento de si mesmo, protagonista ou participante de sua produção.

Para Scoz17, a Psicopedagogia também pode oferecer aos educadores uma nova maneira de conceber os alunos e a construção de conhecimentos, ao considerar que múltiplos aspectos interve-nientes nos processos de aprendizagem permitem um espaço dialógico, e o posicionamento ativo do aluno, para que realmente brotem mudanças favoráveis à produção de sentidos subjetivos nos processos de aprender e de ensinar.

 

A PESQUISA

Realizar uma pesquisa significa produzir novos conhecimentos, portanto, é preciso estar livre para refletir e apontar novos caminhos. Tratando-se de questões que não se evidenciam, claramente, como os sentidos subjetivos e, consequentemente, os complexos processos que constituem a subjetividade, entendeu-se que a Oficina de Palavras poderia propiciar a oportunidade de interação, de trocas de experiências individuais e, ainda, uma oportunidade para lidar com as dificuldades de aprendizagem na escrita de uma maneira não convencional. Entende-se que a sala de aula, muitas vezes, não é suficiente, para a criação desse espaço.

Scoz1, citando Peter Reason (1998), ressalta que algumas propostas metodológicas atuais em pesquisas participativas oferecem:

"Possibilidades mais ricas, coloridas e intensas para a pesquisa do futuro e que o interessante e inovador é a consideração de atividades como a narrativas de histórias, desenhos, pinturas, como valiosos canais de expressão para ressignificar as histórias de vida e para validar dados que não podem ser obtidos com metodologias de pesquisa tradicionais".

Para tanto, partiu-se da hipótese de que a Oficina de Palavras poderia ser uma dessas atividades onde seria possível uma aproximação para compreender os sentidos subjetivos que os alunos produzem no processo de aprendizagem da escrita e, por conseguinte, os elementos subjetivos presentes nesse processo.

A proposta desse estudo, para entender a construção da subjetividade no processo de aprendizagem de alunos com dificuldade na escrita, permitiu assumir referenciais teóricos abertos a um diálogo recursivo, bem como complementar das esferas implícitas envolvidas nesse processo. Ou seja, uma pesquisa sobre o tema subjetividade, segundo o olhar de Gonzá-lez Rey2, implica a necessidade de novas metodologias que gerem um espaço de articulação pesquisador-pesquisado, que possibilita romper com a dicotomia e distanciamento que historicamente transcorreu nas ciências naturais.

Por conta disso, a epistemologia qualitativa proporciona, de forma satisfatória, o alcance às exigências epistemológicas inerentes ao estudo da subjetividade, como parte constitutiva do indivíduo e das diversas formas de organização social.

González Rey6 propõe a defesa do caráter construtivo e interpretativo, o que implica compreender o conhecimento como produção. Dessa forma, é possível uma criação teórica plurideterminada, diferenciada, irregular, interativa e histórica, que representa a subjetividade humana. Ou seja, não é uma apropriação da teoria apenas como assimilação linear de uma realidade, mas um processo que mantém o caráter recursivo com os instrumentos usados na pesquisa.

Para compreender essa complexidade, que envolve a questão da subjetividade nos processos de aquisição da escrita, foram necessárias a organização e a seleção de alguns recursos investigativos, como: observações, sistemas conversacionais, desenhos e histórias livres e contextualizadas e complemento de frases, presentes nas etapas da pesquisa.

A Oficina de Palavras contou com a participação de duas alunas de oito anos com dificuldades de aprendizagem na escrita, em atendimento psicopedagógico na Instituição Vivereh. Essa instituição atende, principalmente, alunos que moram nas redondezas, cursando o ensino fundamental em escolas regulares do município de Osasco. Nesse espaço foram realizadas atividades lúdicas e conversações com objetivos pedagógicos, considerando os interesses dos alunos. É importante ressaltar que a Oficina de Palavras possibilita um espaço livre e seguro para que os alunos tragam suas situações de vida, uma vez que as relações entre mediação/ aluno são lúdicas e que suas produções recebem aceitação individual.

A pesquisa realizou-se em oito etapas vi-venciadas com os participantes da pesquisa. Cada etapa teve a duração semanal de uma hora e meia, totalizando doze horas. Durante os encontros foram discutidos assuntos sobre dificuldades enfrentadas em provas, produções de textos, tarefas, entre outras, possibilitando uma reflexão e verbalização das atividades relacionadas ao ato de escrever. As duas alunas participantes da pesquisas foram denominadas: Paula e Heloísa (nomes fictícios).

Selecionaram-se para esse artigo, as etapas mais significativas vivenciadas pelas participantes da pesquisa. São elas: Sistemas conversacionais e Complemento de frase. Os Sistemas conversacionais se constituem em uma atividade que, na metodologia qualitativa, representa fonte essencial para refletir como a pessoa se expressa e para garantir a qualidade da informação. O Complemento de frases é um instrumento que apareceu na literatura psicológica como um teste projetivo desenvolvido por Julian Rotter, propondo significados particulares para formas gerais de expressão das pessoas diante das frases. Esse último instrumento foi adequado para as atividades que envolvem relações de ensino e aprendizagem.

 

CONSTRUÇÕES A PARTIR DAS VIVÊNCIAS E INFORMAÇÕES DAS ALUNAS PARTICIPANTES

Paula

Utilizando como instrumento sistemas con-versacionais

Paula tem oito anos. É quieta, observadora, esforçada e alegre. Não gosta de perder ou "ficar para trás" e, quando isso acontece, fica muito chateada. Por conta disso, está sempre competindo com seus colegas. Sua maior vontade é aprender a escrever corretamente, porque acha que, dessa forma, vai ficar mais inteligente e ninguém vai rir dela quando escrever alguma palavra errada.

Nessa atividade, a intenção foi deslocar-se do lugar central das perguntas para tentar compreender as produções de sentidos de Paula em suas dificuldades na escrita. A conversa fluiu descontraidamente, sobre a elaboração de frases e textos, enfim, sobre a produção escrita.

Evidenciou-se, a partir dos relatos de Paula, que muitas vezes ela se "fechava", não se permitindo expor situações vividas e, principalmente, expressar suas emoções. Retomando o problema desta pesquisa, observei que, após a dinâmica conversacional, a aluna mostrou-se mais livre, mais disposta ao diálogo, que era a intenção dessa atividade. A reflexão sobre pensamentos de frustração e ira, por cometer erros ortográficos quando escrevia um texto, fez com que a aluna participante expressasse seus sentimentos com mais espontaneidade. Assim, foi possível perceber que, nessa reflexão, Paula produzia sentidos subjetivos e alguns elementos subjetivos e significados internos se evidenciavam.

Heloísa

Utilizando como instrumento complemento de frase

Heloísa é uma menina alegre, mas muito preocupada e nervosa. Qualquer manifestação dos colegas a respeito de sua escrita na lousa ou em uma atividade realizada na folha de papel sulfite era motivo para ela manifestar sentimento de raiva. Muitas vezes, chegava até a bater nos colegas. Apesar de aparentar que é forte, é uma menina frustrada consigo mesma, imatura para sua idade e indecisa. Não gosta de receber críticas, nem sugestões.

Nessa atividade, Heloísa escolheu uma tira de papel contendo algumas frases incompletas, por exemplo:

Eu fico muito nervosa, me sinto raiva eu me odeio quando não consigo escrever certo. Completou a frase escrevendo do seu jeito.

Heloísa sabe que tem dificuldades na escrita, mas o nervosismo que apresentava quando não conseguia escrever certo a impedia de escrever adequadamente. Nesse momento, ela se transformava: ficava brava e expressava os sentimentos presentes em sua escrita na complementação de frases. Mais uma vez, se confirma o quanto os sentimentos e as emoções são importantes na produção de sentidos subjetivos e, consequentemente, na compreensão da subjetividade em construção. Escrever é sempre um espaço de tomada de consciência, pois é nesse momento que sentimentos e emoções são agregados ao ato da escrita.

 

RESULTADOS

Alguns aspectos inerentes à aprendizagem evidenciaram-se durante a pesquisa, possibilitando uma aproximação dos elementos subjetivos presentes nos processos de aquisição da escrita:

• Percepção: a percepção de si levou as alunas à "entrega" de seus dilemas e por conta disso, à superação de valores negativos, o que permitiu a produção de novos sentidos na aprendizagem da escrita. Ao perceberem elementos de seu mundo real, fizeram inferências baseadas em conhecimentos adquiridos previamente e em informações sobre a situação presente;

• Atenção: permitiu às alunas o resgate da auto-estima. Tal fato possibilitou menor incidência de erros na produção escrita e, consequentemente, a diminuição do sentimento de medo; possibilitou, ainda, o reconhecimento de suas autorias de pensamento, logo, a produção de novos sentidos nos processos de aprendizagem da escrita;

• Memória: levou as alunas a expressarem e reconhecerem a própria criatividade. Assim, elas produziram novos sentidos na vida escolar: com menos sentimentos de frustração e mais confiança em si mesmas, não se intimidando quando cometiam erros em suas produções escritas.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho buscou analisar uma experiência concreta acerca da compreensão da subjetividade nos processos de aprendizagem da escrita, que considera o sujeito em sua dimensão ativa e singular, ou seja, como alguém que produz sentidos subjetivos. A concepção atual de subjetividade proposta por Gonzalez Rey2 permitiu ampliar uma discussão de diferentes nuances sobre as experiências de alunos com dificuldade para escrever.

A todo o momento, os alunos produzem sentidos subjetivos na produção escrita, uma vez que essa produção é um processo interminável, implicado pela organização atual do sistema subjetivo do sujeito e sua história de vida, considerando-se seus pensamentos, suas emoções e também a ação das pessoas e situações envolvidas em suas experiências.

Nesse movimento, a Oficina de Palavras significou um espaço seguro e diferenciado, que possibilitou a produção de sentidos dos alunos nos processos de construção da escrita, evidenciando suas subjetividades em construção.

O valor de uma atividade não está nela mesmo, mas nos sentidos subjetivos que emergem da atividade em si. Embora o aluno encontre dificuldades no decorrer de suas aprendizagens, quando lhe são oferecidas situações nas quais ele produz sentidos subjetivos, a tarefa, embora difícil, prossegue mais tranquila, levando-o a superar as dificuldades que aparecerem nesse processo.

Há também que se considerar o professor e o psicopedagogo, pois suas posturas, enquanto educadores, certamente contribuirão ou não para a produção de sentidos subjetivos de alunos com dificuldades na escrita, na medida em que a relação professor/aluno, psicopeda-gogo/aluno implica um vínculo afetivo. Ao atentar para essa questão, a escola, os professores e psicopedagogos poderão contribuir para a promoção de situações favoráveis para o enfrentamento das dificuldades que surgirem ao longo do processo educativo.

Enfim, foi possível compreender que os múltiplos saberes e os múltiplos olhares do psicopedagogo e do professor induzem espaços de expressão, facilitam a emergência de novos sentidos subjetivos, criam situações dialógicas com o aluno, ou seja, possibilitam que o momento de troca entre aluno/psico-pedagogo, aluno/professor, seja um processo de produção de novos sistemas de subjetiva-ção por meio de suas próprias ações, o que permitirá compreender com mais clareza as dificuldades que alguns alunos têm para aprender a escrever.

 

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Correspondência:
Deborah Regina Motta R. Lucchini
Av. Martin Lutter King, 980 - Jd. Umuarama
Osasco, SP - CEP 06030-013

Artigo recebido: 2/10/2009
Aceito: 8/2/2010

 

 

Trabalho realizado no Centro Universitário FIEO, Osasco, SP.

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