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Revista Psicopedagogia

versão impressa ISSN 0103-8486

Rev. psicopedag. vol.27 no.83 São Paulo  2010

 

ARTIGO DE REVISÃO

 

Pontos de encontro entre os sistemas notacionais alfabético e numérico

 

Points of meeting between the systems notacionais alphabetical and numerical

 

 

Iara Suzana Tiggemann

Mestre em Educação (UFRGS); Pedagoga (UFSM); Docente do IMES - Catanduva e UNIFEV. Profa de Teoria e Prática da Alfabetização

Correspondência

 

 


RESUMO

O presente texto parte do pressuposto que na construção dos sistemas notacionais alfabético e numérico, vistos tradicionalmente como distintos, alguns entendimentos comuns se fazem presentes nas primeiras conceitualizações da criança. Assim, esta pesquisa bibliográfica, apoiada na epistemologia genética, traz inicialmente características básicas entre os modos de estruturação dos sistemas alfabético e numérico, avançando para a indicação de pontos de encontro entre a psicogênse desses dois sistemas simbólicos. Dessa forma, o estudo aponta para uma metodologia interdisciplinar nos anos iniciais da escolarização, considerando que a criança pequena utiliza procedimentos que se integram a uma estrutura cognitiva mais ou menos comum.

Palavras-chave: Educação. Desenvolvimento infantil. Processo mental.


ABSTRACT

The present text proceeds from the assumption that, in the construction of the notational alphabetical and numerical systems, there are some understandings in children's first conceptualizations which are common to both systems, though they are traditionally seen as being different from each other. This bibliographical research, rested on the genetic epistemology, brings basic characteristics between the ways of structuring of the alphabetical and numerical systems, advancing then to the indication of points of meeting between the psychogenesis of these two symbolic systems. In this way, the study points to an interdisciplinary methodology in the initial years of the schooling, considering that little children use proceedings that belong to a more or less common cognitive structure.

Keywords: Education. Child development. Mental processes.


 

 

INTRODUÇÃO

Nas últimos décadas, pesquisadores adeptos da epistemologia genética têm dado continuidade aos estudos de Jean Piaget, especificando etapas do desenvolvimento e níveis de construção do conhecimento em diversos domínios do saber. Na perspectiva de compreender como as crianças se apropriam de diferentes objetos conceituais, são buscados novos entendimentos acerca das estruturas cognitivas que subsidiam os procedimentos da criança em sua interação ativa com o mundo simbólico. De fato, os resultados de várias pesquisas na área da Psicologia têm alterado de forma qualitativa o ensino nos anos iniciais do Ensino Fundamental, principalmente nos campos da Linguagem e Matemática - áreas predominantes nesse nível escolar e nas quais concentram-se maior quantidade de estudos.

Nos estudos teóricos realizados e ao longo de minha experiência profissional como educadora, percebi que na construção dos sistemas notacionais alfabético e numérico realizada pela criança algumas noções e alguns conceitos se intercruzam e se interrelacionam. Assim, com o presente texto, pretendo tecer relações iniciais entre a psicogênse desses dois sistemas simbólicos, buscando mostrar que entre campos do conhecimento, vistos tradicionalmente como distintos, alguns entendimentos comuns se fazem presentes nas primeiras conceitualizações da criança.

Este texto, fruto de uma pesquisa bibliográfica, traz diferenças básicas entre os modos de estruturação dos sistemas alfabético e numérico. Posteriormente, tendo como base os estudos de Ferreiro & Teberosky1 e as proposições teóricas de Sinclair2; caracteriza a evolução do pensamento da criança em busca da compreensão desses dois objetos conceituais. Finalmente, apresenta para o debate, as relações estabelecidas entre a construção da escrita alfabética e a escrita numérica.

 

A ESTRUTURAÇÃO DOS SISTEMAS NOTACIONAIS ALFABÉTICO E NUMÉRICO: CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Tradicionalmente, os estabelecimentos de ensino situam, em seus currículos, o conhecimento lógico-matemático e o conhecimento linguístico em lados opostos. Ainda que as práticas inter e multidisciplinares venham tomando espaços cada vez mais significativos no cotidiano escolar, essas áreas são tomadas como epistemologicamente distintas. De fato, diferentes são suas aplicações e, sobretudo, diferentes são as formas de estruturação. Assim, vejamos como se estruturam os sistemas simbólicos em questão e alguns entendimentos que norteiam a sua construção.

Até pouco tempo, prevalecia a ideia de que a aquisição da escrita estaria diretamente vinculada ao trabalho escolar - sistemático, metódico. As tentativas precoces de representação da linguagem não eram consideradas, senão como atividades de faz-de-conta, como atividades lúdicas de imitação das condutas dos adultos. Entretanto, de acordo com Ferreiro3; as primeiras notações da criança, que há pouco eram consideradas brincadeira, hoje são identificadas como o início do processo de construção da língua escrita. Assim, entendendo que a evolução da escrita na criança inicia antes do seu processo de escolarização, passou-se a compreender também que as instituições educativas influenciam, porém não determinam totalmente a construção desse complexo sistema simbólico.

Nessa linha de entendimento, a criança passou a ser concebida como agente de seu conhecimento, como sujeito ativo e criador, e a aprendizagem da língua escrita, muito mais que um método de codificação e decodificação de unidades fonéticas, passou a ser concebida como compreensão de um sistema de representação.

A ideia de que a criança não poderia representar a língua escrita sem a intervenção escolar ou pelo menos familiar também se estendeu à escrita numérica elementar. Ou seja, entendia-se que a criança aprendia a numeração escrita por meio de uma técnica perceptivo-motora, por sua vez, ainda mais fácil que a aprendizagem da escrita alfabética por envolver apenas dez formas diferentes. Dez formas que, combinadas, conseguem representar um sistema numérico infinito.

Essa ideia parece natural e evidente sob o ponto de vista do adulto, que já não consegue pensar em outra possibilidade de representação numérica, senão a partir do sistema decimal com valor de posição. Contudo, é preciso ter clareza que nosso sistema numérico é uma invenção cultural, com características próprias e arbitrárias.

Diferente do sistema alfabético em que a escrita representa a linguagem oral, no sistema numérico cada algarismo é um ideograma que representa um conceito, uma ideia. O sistema numérico é composto por algarismos que não guardam marcas relacionadas com a quantidade a ser representada, tampouco, mantém relações entre a palavra falada e sua respectiva grafia. Aliás, o sistema de numeração subdivide-se em duas formas diferentes: a oral e a escrita. Isto é, a primeira forma utiliza expressões diferentes para diferenciar as quantidades, enquanto que a segunda forma utiliza diferentes posições para indicar unidades, dezenas, centenas. Nunes & Bryant4 comentam que, por exemplo, no sistema de numeração oral utilizamos expressões como cinco, cinquenta, quinhentos para diferenciar unidades, dezenas, centenas. Já no sistema de numeração escrito, ocupamos diferentes posições, da direita para a esquerda, em que o valor do 5 de 50 é diferente e 500, ainda que o dígito 5 seja o mesmo.

Apesar de trazer consigo uma série de convenções, o sistema numérico em relação ao sistema alfabético é geralmente mais rapidamente apreendido pela criança, o que parece estar ligado a dois aspectos fundamentais: maior transparência desse sistema e maior interação da criança com o mesmo. Podemos imaginar ambientes em que as situações de leitura e escrita são limitadas ou praticamente inexistentes, todavia, dificilmente encontraremos contextos nos quais os conceitos numéricos não estejam envolvidos nas ações cotidianas: contar, somar, subtrair, dividir são ações que desde muito cedo acompanham as crianças em suas atividades.

Parece claro que sistema alfabético e sistema numérico estruturam-se de formas diferenciadas e justamente por isso exigem da criança diferentes processos cognitivos para sua apreensão. Entretanto, percebemos que, principalmente no início da trajetória traçada pela criança em busca da compreensão desses complexos sistemas simbólicos, alguns conceitos e noções se interrelacionam. Assim, para entendimento mais claro da questão que suscitamos, passamos a rever rapidamente a psicogênese da língua escrita, tal como foi esquematizada por Ferreiro3; bem como, a evolução das notações numéricas na criança estudada por Sinclair2; para que seja possível, posteriormente, estabelecer algumas relações iniciais.

 

A PSICOGÊNESE DA LÍNGUA ESCRITA

As pesquisas realizadas por Ferreiro & Teberosky1; com um número bastante abrangente de crianças de diferentes faixas etárias, condições socioeconômicas e dissemelhantes interações com o universo letrado, levaram à construção da psicogênese da língua escrita - a trajetória que toda criança percorre para compreender as características desse objeto conceitual. Desde o momento em que a escrita passa ser alvo de sua atenção, a criança elabora diferentes entendimentos e interpretações das informações que obtém do meio em que vive e interage. Esses entendimentos são organizados em etapas, sua sucessão não é aleatória, e a idade e o tempo de duração de cada uma é condicionada por uma série de influências (sociais, familiares, individuais, educativas...).

De acordo com as autoras, a psicogênese da língua escrita pode ser dividida em três grandes períodos: a) busca de parâmetros de diferenciação entre as marcas gráficas figurativas e não-figurativas; b) construção de modos de diferenciação entre os encadeamentos de letras, baseando-se em eixos de diferenciação qualitativo e quantitativo; c) fonetização da escrita.

O primeiro período caracteriza-se pela busca de diferenciações no universo das marcas gráficas. Até então, desenhos, letras, algarismos numéricos faziam parte de um mesmo conjunto sem que isso chamasse a atenção da criança. Agora a criança preocupa-se em diferenciar formas icônicas e não-icônicas: tudo que não é desenho é reconhecido como escrita, inclusive numerais e pseudo-letras. Nesta etapa, a criança também passa a perceber que a escrita pode substituir os desenhos. Ou seja, por meio do estabelecimento de relações entre texto e figura, a criança pressupõe que no texto está o nome do objeto desenhado. A escrita, portanto, deixa de ser uma mera sequência de letras organizadas para se tornar em objetos-substitutos.

No segundo período, as propriedades específicas do texto passam a ser observadas, produto de uma nova centração cognitiva, oferecendo novas condições de interpretabilidade e legibilidade. Se no período precedente um texto poderia ser "lido" com a ajuda do desenho, nesse momento são construídas novas relações.

A criança nessa etapa releva os aspectos intrafigurais e interfigurais da escrita que se expressam sobre os eixos quantitativo e qualitativo. A variação intrafigural apoia-se em critérios absolutos que não permitem comparar as escritas entre si, mas estabelecer quais são interpretáveis. Assim, para que algo possa ser escrito/lido é preciso que tenha, no mínimo, três caracteres e que haja uma variação entre estes. A variação interfigural, por sua vez, apoia-se em critérios relativos, o que possibilita a comparação entre uma palavra escrita e outra. Nessa linha de entendimento, nenhuma palavra diferente será escrita da mesma forma.

Outro procedimento utilizado é a tentativa de corresponder as variações quantitativas das representações e as variações quantitativas no objetivo referido. Dessa forma, os nomes dos objetos grandes são escritos com mais letras do que os objetos pequenos, sendo que o mesmo procedimento ocorre para o mais pesado, o mais numeroso, o mais velho. Para Ferreiro3; esse procedimento não mostra a dificuldade da criança em se desprender do desenho ou objeto a ser representado, mas consiste numa busca formal que dirige as explorações da criança. A autora ainda acrescenta que a busca de uma correspondência entre os aspectos da representação e os aspectos do referido objeto leva em conta exclusivamente os aspectos quantificáveis, já que a criança não pensa em utilizar letras arrendodadas para representar objetos redondos, ou mesmo letras quadradas ou pontiagudas para representar objetos com estas formas.

Outras situações mostram a possibilidade de a criança utilizar o mesmo número de letras ou caracteres quantos forem os objetos que deseja representar. Nessa perspectiva, cada letra conta para um objeto e a sequência de letras formada representa a palavra no plural. Importante salientar que essa hipótese que se funda na correspondência termo a termo não é generalizável, tampouco estável, porque a criança não consegue desprender-se da exigência mínima de três letras para que algo possa ser escrito ou lido. Diante dessa exigência, a criança não poderia representar quantidades inferiores a três elementos.

Interessante notar que quando a criança é solicitada a escrever primeiro uma palavra no plural, representando um conjunto de elementos, ela pode utilizar uma letra ou caracter para cada objeto, como citamos acima. No entanto, quando instigada a escrever primeiro a palavra no singular, na palavra no plural a criança tenderá a repetir a sequência de letras tantas vezes quantos forem os objetos a serem representados. Se a criança utiliza "Oai" para representar a palavra gato, poderá utilizar "OaiOaiOai" para representar três gatos, por exemplo1.

Para que a criança avance em direção ao terceiro período de conceitualização da escrita, é preciso que compreenda a palavra enquanto sequência de sons. Esta compreensão inicia ainda no segundo período, quando a criança estabelece relações entre a palavra falada e palavra escrita, sem que isso demande de uma hipótese silábica. A criança continua utilizando o critério de variação intrafigural, mas compreende que cada letra corresponde a uma parte da palavra falada e não a uma parte do referido objeto. De acordo com Ferreiro3; estabelece-se uma nova correspondência termo a termo entre dois conjuntos ordenados. Assim, a ideia de que o nome pronunciado pode ser decomposto em partes que podem ser associadas às porções do nome escrito dá início à fonetização da escrita.

O terceiro período, que se caracteriza pelo estabelecimento da relação fonema/grafema, inicia com a hipótese silábica e culmina com a hipótese alfabética. A hipótese silábica consiste na presença de uma correspondência termo a termo, onde a série de letras é ordenada com a série de sílabas da palavra falada. A hipótese silábica tem uma importância enorme na evolução na escrita: pela primeira vez a criança encontra um recurso que lhe permite regular o número de letras e pode, inclusive, antecipar essa quantidade antes mesmo de sua produção.

Nessa etapa, a criança pode compreender a sua maneira de escrever, mas tem grande dificuldade em compreender a escrita que a cerca. Cada vez que ela tenta aplicar a hipótese silábica às escritas produzidas pelos adultos, encontra um excedente de letras. Dessa forma, certas escritas como o seu nome próprio terão importância decisiva na desiquilibração dessa hipótese. É preciso então encontrar um meio de analisar a palavra de forma diferente, de modo a absorver o excedente de letras que se formam com a hipótese silábica. O nível de construção da escrita que caracteriza o avanço dessa hipótese para outra constitui-se no nível intermediário denominado silábico-alfabético.

No nível silábico-alfabético, a criança utiliza escritas que ora caracterizam-se ainda pela hipótese-silábica, ora avançam em direção à hipótese alfabética, onde cada letra representa um som e não uma sílaba.

Finalmente, ao chegar à hipótese alfabética, a criança terá compreendido os princípios da língua escrita. Os problemas de ortografia podem ainda permanecer, o que não implica em entender que a criança tenha problemas quanto à escrita propriamente dita.

O caminho traçado pela criança em direção ao entendimento da estruturação da língua escrita inicia com noções gerais que vão se especificando, na medida em que novas centrações cognitivas são feitas. As descobertas realizadas não se perdem, mas se integram às novas construções, ampliando e enriquecendo as estruturas que, por sua vez, dão suporte às novas intervenções da criança. De acordo com Dorneles5: "... uma aprendizagem nunca se dá no vazio: é resultado de outras aprendizagens anteriores, reintegradas e reorganizadas constantemente". Esse entendimento não se restringe à construção da escrita, mas se constitui em um princípio geral na construção de outros conhecimentos. Apresento, a seguir, a evolução das notações numéricas para que possa, posteriormente, traçar algumas ideias comuns às representações dos dois sistemas.

 

A EVOLUÇÃO DAS NOTAÇÕES NUMÉRICAS NA CRIANÇA

O entendimento de que a criança, por meio de suas explorações com o meio, é capaz de representar a linguagem oral de diferentes maneiras até conceitualizá-la da forma convencional é compartilhado por Sinclair2 quando se refere à evolução das notações numéricas. Em suas pesquisas, tomou como objeto de estudo a notação de pequenas quantidades discretas e verificou que a criança pode utilizar diferentes formas de representá-las, de maneira coerente, antes de empregar a forma convencional. Por meio da análise dos procedimentos utilizados pelas crianças quando solicitadas a anotar uma determinada quantidade de objetos, a autora sinaliza para uma construção progressiva de nosso sistema de numeração escrita.

Tal como a evolução das conceitualizações da escrita, a evolução das notações numéricas também relaciona-se com as experiências e interações concretas que a criança tem com esse sistema. Mas, como já assinalei, desde muito cedo a criança defronta-se com a possibilidade de contar quantidades numéricas, instigando-a a engendrar diferentes formas de representação. Em outro artigo, em que problematizo a construção do número pela criança apresento a ideia:

"Aprender números parece uma tarefa relativamente fácil para nossas crianças. Desde tenra idade, elas estão envolvidas com quantidades numéricas - um objeto, muitos, poucos, alguns objetos, nenhum objeto - e com situações cotidianas de classificar, ordenar, acrescentar, diminuir, dividir e tantas outras. Desde muito jovens, estão em contato com as expressões que designam quantidades (um, dois, dez, cem, um milhão... ) e com os símbolos correspondentes (1, 2, 3, 4...). Mal a criança aprende a falar e já nos mostra com seus dedinhos quantos anos tem. É orgulho dos pais ver que o filho já sabe contar de 1 a 5 ou de 1 a 10 corretamente. No entanto, apesar de parecer simples, a construção do número pela criança é um processo complexo, que lhe exige a compreensão de diferentes princípios lógicos6".

Sinclair2 aponta seis tipos diferenciados de notação numérica entre crianças de 3 a 6 anos. Notações estas que não são mutuamente exclusivas, permitindo a uma criança a utilização de diferentes notações para representar uma mesma quantidade de objetos.

Os tipos ou categorias de notação levantados por Sinclair2 são descritos seguindo uma sequência ascendente, em direção às formas que correspondem ao nosso sistema numérico. Resumidamente, caracterizarei cada categoria.

Na forma mais primitiva de notação, a criança procura representar as quantidades de maneira global. A criança não se centra na forma e natureza dos objetos a serem representados, tampouco à cardinalidade da coleção. Por meio de uma série de pequenas grafias (barras, ganchos...) ou de uma linha contínua e ondulada, a criança procura representar a ideia de "muitos" ou "vários". Nas coleções de apenas um ou dois elementos, entretanto, são anotados uma grafia para cada objeto1.

Em uma segunda categoria de notação, a criança detém-se nas características ou no nome dos objetos que compõe as coleções a serem representadas. Em crianças menores (3 a 4 anos), evidenciam-se tentativas de representação das formas dos objetos (desenhando, por exemplo, um círculo para uma coleção de fichas ou sementes, um quadrado para designar uma coleção de figurinhas). Em crianças maiores (5 a 6 anos), esse tipo de notação caracteriza-se pela atenção dada ao nome dos objetos. Assim, a criança tenta escrever, da sua forma, palavras que possam descrever a coleção. De acordo com Sinclair2; "... em tais casos, a criança é consciente do fato de que a cardinalidade não está representada, porque ela diz que não se pode "ler" quantos têm e fornece igualmente outros tipos de notação". Nesse sentido, podemos entender como uma notação aparentemente primitiva pode ser usada por crianças de idades mais avançadas.

Na terceira categoria de notação, aparece pela primeira vez a correspondência termo a termo. A criança que utiliza esse tipo de notação corresponde o número de objetos presentes nas coleções ao número de grafias. Essa categoria pode ser dividida em dois tipos. No primeiro, a criança utiliza formas semelhantes aos objetos (três círculos para três bolinhas de gude, quatro retângulos para quatro pauzinhos de picolé). Já no segundo tipo, a criança utiliza grafias que não apresentam relação com a forma dos objetos. Dessa forma, tanto pode usar formas geométricas, pontos, cruzes, traços ou mesmo letras e pseudoletras. Nesse caso, a criança pode usar uma única letra para representar a coleção (cinco "A" para cinco lápis - AAAAA) ou usar uma letra diferente para cada objeto (XBAEL).

Em crianças pequenas, essa correspondência nem sempre é exata, todavia, percebe-se uma clara intenção em relacionar o número de objetos ao número de grafias. Interessante notar que, em ambos os tipos dessa categoria de notação, as grafias são ordenadas em linha (da direita para a esquerda, da esquerda para direita ou de cima para baixo), ainda que os objetos das coleções estejam dispostos de forma desordenada sobre a superfície.

Na quarta categoria de notação, embora se mantenha a ideia de correspondência termo a termo, aparecem os algarismos numéricos. A criança utilizando esse tipo de notação registra uma algarismo para cada elemento da coleção. A criança pode utilizar a sequência dos algarismos (1,2,3,4,5 para cinco objetos; 123456 para 6 objetos), como pode utilizar o algarismo que representa a cardinalidade tantas vezes quantos forem os objetos a serem representados (333 para três objetos; 55555 para cinco objetos). Em ambos os casos, os algarismos são sempre escritos de maneira correta.

Na quinta categoria de notação, o cardinal aparece sozinho, representando de forma exata a quantidade de objetos das coleções. Finalmente, na sexta categoria de notação, a criança escreve o algarismo numérico acompanhado de letras, representando tanto a cardinalidade, quanto a natureza dos objetos.

 

RELAÇÕES INICIAIS ENTRE PSICOGÊNESE DOS SISTEMAS NOTACIONAIS ALFABÉTICO E NUMÉRICO

Com essa breve revisão à evolução do sistema notacional numérico e alfabético algumas relações podem ser tecidas.

Observando a progressão das notações numéricas podemos perceber que existe uma relação entre estas e a idade das crianças. Ainda que as notações não se excluam mutuamente, a criança com o avanço de sua idade tende a deixar de produzir as notações mais primitivas, buscando procedimentos cada vez mais exatos e específicos, mas não mais ou menos coerentes com suas hipóteses. Um dado que chama atenção diz respeito à "súbita aparição" dos algarismos numéricos que, tão logo apareçam, representam a cardinalidade de maneira correta. Segundo as proposições de Sinclair2; conhecer a grafia e o nome dos numerais não implica, necessariamente, em saber sua aplicação. Com isso podemos entender que a criança não utiliza os algarismos numéricos nas notações anteriores por ainda não compreender sua utilização e função, mas não por desconhecer sua simbologia oral e escrita.

Mas não seria evidente que a criança utilizasse algarismos numéricos (ainda que escritos de forma inexata) ao invés de iniciar com letras na correspondência termo a termo, tal como vimos na terceira categoria de notações? Não me parece tão claro quanto parece para Ferreiro1 que a criança desde muito cedo diferencia natureza e função de letras e numerais.

O que pretendi mostrar nesta análise é de que em dois campos do conhecimento, epistemologicamente diferentes, a criança pode utilizar procedimentos similares e apoiar-se, possivelmente, em semelhantes estruturas cognitivas na compreensão desses conhecimentos.

Se analisarmos a evolução de cada sistema notacional, perceberemos que a criança parte de uma percepção e representação global para uma progressiva atenção aos aspectos específicos e particulares dos objetos conceituais. Entretanto, uma análise ainda mais cuidadosa pode nos levar a outras constatações.

A correspondência termo a termo parece guiar os procedimentos das crianças tanto em suas representações dos números quanto da linguagem oral. Na numeração escrita, a correspondência termo a termo aparece de forma clara na terceira categoria de notações, em que a criança relaciona a quantidade de elementos ao número de grafias correspondentes.

Na conceitualização da linguagem escrita, a correspondência um a um aparece de diferentes formas e em dois períodos diferentes. Antes de tentar representar a linguagem oral, a criança representa os objetos explorando diferentes meios. Um deles consiste na tentativa de relacionar o número de elementos ao número de grafias. Como já destaquei anteriormente, essa hipótese não se estabiliza, pois rapidamente é precedida pelo critério de quantidade mínima de letras para composição das palavras. Sob outra forma, mas de maneira inexata, a correspondência biunívoca permite que a criança estabeleça primeiras relações entre palavra escrita e falada, o que lhe possibilita o avanço ao terceiro período. Nesse período, caracterizado pela fonetização da escrita, a criança passa a ordenar uma letra a cada sílaba emitida, avançando em direção à compreensão da escrita convencional. Parece-me que esse procedimento consegue organizar o pensamento da criança de maneira lógica, permitindo que a mesma avance em seus modos de construção em ambos os sistemas aqui analisados.

A noção de variação intrafigural que se evidencia na psicogênese da escrita parece também acompanhar o raciocínio da criança em momento específico da construção numérica. Na terceira categoria de notação, a criança registra as quantidades utilizando diferentes formas gráficas - icônicas ou abstratas, mantendo a possibilidade de não repeti-las em uma das variações dessa categoria de notação. Sinclair2 descreve esse procedimento dizendo que "... a criança toma o cuidado de variar as formas empregadas; por vezes, ela pára e reflete para encontrar uma 'diferente'. Seu estoque de 'letras' é ainda restrito e, para uma cardinalidade de 6, por exemplo, ela tem dificuldade de desenhar o mesmo tanto em formas diferentes". Questiono, portanto, se a criança utiliza diferentes formas para distinguir cada um dos elementos registrados ou se, possivelmente, os critérios utilizados na construção da escrita são estendidos na construção dos números.

Finalizando, trago para reflexão um procedimento comum na construção da língua escrita que parece associar-se aos conceitos numéricos. Trata-se de uma hipótese construída pela criança, em que o número de letras utilizado para representar um determinado objeto relaciona-se com os aspectos quantificáveis do mesmo. Ora, utilizar mais letras para o maior objeto, e menos letras para o menor, implica na compreensão de um conjunto de relações matemáticas que envolvem a seriação. Assim, para que a criança possa diferenciar suas escritas baseando-se nesse critério, precisa, inicialmente, arranjar os objetos em uma ordem crescente, captando uma regra lógica básica denominada transitividade2. Parece-me bastante claro que nessa hipótese estão imbricados conceitos de natureza lógica-matemática na construção da linguagem escrita.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apresentei nessa revisão, de forma bastante resumida, a evolução de dois sistemas notacionais. Em ambos, a progressão de um nível a outro posterior relaciona-se com as diferentes interações que a criança mantém com esses objetos simbólicos. Nesse artigo, procurei mostrar que a criança, no início de suas conceitualizações, organiza seu pensamento, utilizando alguns esquemas que se ajustam aos dois campos do conhecimento. Não me parece claro que as operações lógico-aritméticas sejam exclusivas na conceitualização numérica. Da mesma forma, não entendo que a escrita alfabética possa utilizar-se somente das relações espaciais para consolidar-se como sistema simbólico. Parece-me, isso sim, que no início dessas construções, antes que sejam compreendidas as particularidades de cada sistema, a criança utiliza procedimentos que se integram a uma estrutura cognitiva mais ou menos comum. Mesmo quando a criança, por volta dos quatro anos, parece imprimir uma clara diferenciação entre letras e números, isso não parece suficiente para que passe também, desde já, a estruturar seu pensamento de modo diferenciado na construção desses dois objetos conceituais.

Em minha experiência profissional como alfabetizadora, verifiquei que, de um modo geral, as crianças avançam de forma mais ou menos uniforme na compreensão dos dois campos do conhecimento, no início de sua escolarização. A meu ver as dificuldades ou facilidades em um campo do saber em relação ao outro se estabelecem quando justamente a criança se apropria das particularidades de cada sistema, quando parecem se consolidar dois diferentes núcleos de estruturação, duas formas diferenciadas de ordenar o pensamento.

Assim, corroboro com Dorneles5 quando expõe que:

"...num momento inicial das construções de cada sistema simbólico, os esquemas utilizados são semelhantes e, às vezes, os mesmos. No decorrer desse processo de independentização, os esquemas vão se diferenciando, conforme as leis particulares de cada sistema (...) Se pensarmos em cada um dos sistemas simbólicos como um núcleo de estruturação, podemos entender que estes têm seu ritmo de desenvolvimento próprio e parcialmente independente."

Esse entendimento articulado ao princípio piagetiano de que "... não se podem criar estruturas cognitivas, mas sim ativar as que já existem, ampliando-as e aplicando-as em diferentes conteúdos..."5, possibilita que pensemos formas de articular o desenvolvimento das crianças em áreas de maior dificuldade, partindo, justamente das áreas mais desenvolvidas. Não me restam dúvidas, entretanto, da necessidade de mais pesquisas nessa área e que, sem demora, seus resultados possam alcançar as instâncias escolares, provocando mudanças no ensino que parece ainda insistir na divisão sistemática dessas duas áreas do conhecimento.

 

AGRADECIMENTOS

Agradeço a Dra. Beatriz Vargas Dorneles, pela revisão cuidadosa deste artigo, no âmbito da disciplina "Sociogênese e psicogênese dos sistemas notacionais", do programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

 

REFERÊNCIAS

1. Ferreiro E, Teberosky A. Psicogênese da língua escrita. 4ª ed. Porto Alegre:Artes Médicas;1991. 284p.         [ Links ]

2. Sinclair A. A notação numérica na criança. In: Sinclair H, org. A produção de notações na criança: linguagem, número, ritmos e melodias. Tradução: Moro MLF. São Paulo: Cortez/Autores Associados;1990. p.71-96.         [ Links ]

3. Ferreiro E. A escrita... antes das letras. In: Sinclair H, org. A produção de notações na criança: linguagem, número, ritmos e melodias. Tradução: Moro MLF. São Paulo: Cortez/Autores Associados;1990. p.19-70.         [ Links ]

4. Nunes T, Bryant P. Crianças fazendo matemática. Tradução: Costa S. Porto Alegre: Artes Médicas;1997. 248p.         [ Links ]

5. Dorneles BV. Escrita e número: relações iniciais. Porto Alegre: Artes Médicas;1998. 104p.         [ Links ]

6. Tiggemann IS. A construção do número pela criança: algumas considerações. Interciência - Ciências Exatas. 2005;4(2):65-72.         [ Links ]

7. Ifrah G. Os números, a história de uma grande invenção. Rio de Janeiro:Globo;1989. 367p.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Iara Suzana Tiggemann
Rua Vitória, 230 - Catandura, SP, Brasil - CEP 15805-060
E-mail: iaratiggemann@yahoo.com.br

Artigo recebido: 5/6/2010
Aprovado: 22/8/2010

 

 

Trabalho realizado programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS.
1 Embora não seja alvo de meu interesse traçar paralelos entre a psicogênese e a sociogênese dos sistemas notacionais, a forma de representar as quantidades um, dois e mais unidades nos chama a atenção e nos remete aos estudos de Ifrah7. O autor, em sua obra, resgata a pré-história dos números, apontando que um e dois são os primeiros conceitos numéricos inteligíveis pelo ser humano. E assim, em épocas mais remotas de nossa história, o máximo de relações que se podia estabelecer entre as quantidades residia na possibilidade em diferenciar a unidade, o par e a pluralidade tal como vimos na notação acima descrita.
2 Sobre transitividade, ver Nunes & Bryant4.

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