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Revista Psicopedagogia

versão impressa ISSN 0103-8486

Rev. psicopedag. vol.27 no.83 São Paulo  2010

 

ARTIGO DE REVISÃO

 

Senso numérico e dificuldades de aprendizagem na matemática

 

Number sense and learning difficulties in mathematics

 

 

Luciana Vellinho CorsoI; Beatriz Vargas DornelesII

IPedagoga, Psicopedagoga, Mestre em Educação pela Universidade de Flinders, Austrália. Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora da Faculdade de Educação UFRGS
IIPedagoga, Dra em Psicologia da Educação e do Desenvolvimento Humano pela USP, Pós Doutorado pela Universidade de Oxford. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da FACED/UFRGS

Correspondência

 

 


RESUMO

O artigo aborda o senso numérico, conceito-chave para a compreensão das dificuldades de aprendizagem na matemática. A partir de uma revisão da literatura internacional e nacional, destacam-se os principais tópicos em torno do tema: conceituação, origem, intervenção e avaliação do senso numérico. O artigo apresenta o Teste de Conhecimento Numérico, desenvolvido por Okamoto e Case (1996), aceito pela literatura atual como um bom instrumento para avaliar senso numérico. Por fim, são apontadas as implicações do estudo deste conceito para a prevenção de dificuldades de aprendizagem e para a pesquisa nesta área.

Palavras-chave: Matemática. Transtornos de aprendizagem. Conceitos matemáticos.


ABSTRACT

The article focuses on number sense, a key concept for understanding learning difficulties in mathematics. Through a review of international and national literature, the main topics around the theme are highlighted: definition, origin, intervention and assessment. The article presents the Number Knowledge Test, developed by Okamoto e Case (1996), suggested by the literature as a good instrument to measure number sense. Finally, it presents the implications of studying this concept to the prevention of mathematics difficulties and to research in this field.

Keywords: Mathematics. Learning disorders. Mathematical concepts.


 

 

INTRODUÇÃO

O senso numérico é um conceito de fundamental importância para a área das dificuldades de aprendizagem na matemática, tanto no que diz respeito à intervenção como à prevenção. Um crescente corpo de pesquisas aponta que as crianças com problemas na matemática apresentam dificuldade central no senso numérico, a qual pode ser identificada desde cedo na educação infantil1-3.

Um senso numérico pouco desenvolvido pode ser decorrente de uma representação e/ou processamento imaturo dos números, que ocasiona defasagens na compreensão e flexibilidade no uso do sistema numérico e acarreta problemas para o desenvolvimento de habilidades do tipo contagem, realização de operações, estimativas e cálculo mental, aspectos estes fundamentais para o desenvolvimento da fluência em matemática4.

Por apresentar dificuldades no senso numérico, o aluno não interage de forma significativa com os contextos que envolvem número (quantificar, relacionar e comparar), o que acaba por acentuar suas dificuldades iniciais. Estamos nos referindo aqui ao efeito São Mateus1; frequentemente mencionado em relação à leitura, e que é válido, do mesmo modo, para a aprendizagem da matemática.

Apesar do conceito de senso numérico ter sido apresentado pela primeira vez, em 1954, por Dantzig, os esforços para defini-lo estão apenas em seus estágios de formação5; como veremos logo a seguir.

 

DEFINIÇÃO DE SENSO NUMÉRICO

Não há consenso na literatura com relação ao conceito de senso numérico. De um modo geral, este se refere à facilidade e à flexibilidade das crianças com números e à sua compreensão do significado dos números e ideias relacionadas a eles.

Berch6 analisou vários estudos que englobavam o conceito de senso numérico, nas áreas de desenvolvimento cognitivo e educação matemática e, como resultado, compilou uma lista de 30 características presumíveis de comporem este conceito. O autor destaca que senso numérico inclui consciência, intuição, reconhecimento, conhecimento, habilidade, desejo, sentimento, expectativa, processo, estrutura conceitual ou linha numérica mental.

Possuir senso numérico permite que o indivíduo possa alcançar: desde a compreensão do significado dos números até o desenvolvimento de estratégias para a resolução de problemas complexos de matemática; desde as comparações simples de magnitudes até a invenção de procedimentos para a realização de operações numéricas; desde o reconhecimento de erros numéricos grosseiros até o uso de métodos quantitativos para comunicar, processar e interpretar informação.

Um senso numérico bem desenvolvido é refletido na habilidade da criança de estimar quantidade, reconhecer erros em julgamentos de magnitude ou de medida, fazer comparações quantitativas do tipo, maior do que, menor do que e equivalência5. Crianças com senso numérico desenvolvido têm uma compreensão do que os números significam. Por exemplo, o problema 5/12 + 3/7 pode ser resolvido da forma convencional, encontrando um denominador comum, ou reconhecendo que cada fração é um pouco menor do que 1/2, de forma que o resultado do problema deve ser um pouco menor do que um. A forma convencional se dá por meio da aplicação de um procedimento memorizado, mas a outra forma exige conhecimento do que os números verdadeiramente representam, ou seja, requer senso numérico7. O senso numérico tem como foco os números, ao invés dos dígitos, e o propósito das operações matemáticas, ou seja, a adição, aumenta o tamanho de um conjunto, a divisão gera conjuntos menores e equivalentes8.

O senso numérico dá vida aos números que usamos e às relações entre eles. Um senso pouco desenvolvido sobre o que os números representam torna uma tarefa do tipo aprender multiplicação um puro exercício de memorização. Apoiar-se na memória para lembrar que os múltiplos de cinco terminarão em 0 ou 5 pode ser útil. Melhor será, no entanto, se o aluno compreender que 6 x 8 resulta em uma quantidade maior do que 6 x 6, ou que o produto de 7 e 9 é um pouco menor do que 70 (que é 7 x 10), ou seja, que deve ser 60 e alguma coisa.

A ideia de propriedade comutativa também pode ser melhor compreendida quando alguém se apoia no senso numérico. Um aluno pode ser ensinado que 3 x 4 = 4 x 3 porque a lei comutativa da multiplicação diz que a x b = b x a. No entanto, ele pode ter a compreensão de que aquelas afirmações tratam de um reagrupamento da mesma quantidade. Se um conjunto de 12 itens é agrupado em 3 subconjuntos de 4 itens ou em 4 subconjuntos de 3 itens é irrelevante - os 12 itens originais permanecem.

Neste sentido, o conceito de senso numérico aproxima-se do conceito de numeralização apresentado por Nunes & Bryant9 em que ser numeralizado significa uma familiaridade com números e uma capacidade de usar habilidades matemáticas que permitam enfrentar as necessidades diárias. Significa, também, uma habilidade de apreciar e compreender informações que são apresentadas em termos matemáticos, como gráficos, tabelas e mapas, por exemplo. Juntos, estes aspectos indicam que a pessoa numeralizada deveria ser capaz de entender as formas por meio das quais a matemática pode ser usada como um meio de comunicação.

Com base nas definições citadas anteriormente, a compreensão de senso numérico que caracteriza esse artigo é a de que este é um constructo geral, que engloba um conjunto de conceitos bastante amplo, o qual o aluno desenvolve gradativamente, a partir de suas interações com o meio social. O senso numérico é uma forma de interagir com os números, com seus vários usos e interpretações, possibilitando ao indivíduo lidar com as situações diárias que incluem quantificações e o desenvolvimento de estratégias eficientes (incluindo cálculo mental e estimativa) para lidar com problemas numéricos.

 

ORIGEM DO SENSO NUMÉRICO

Com relação à origem do senso numérico, encontramos duas explicações distintas. A corrente construtivista propõe o senso numérico como um constructo que a criança adquire ou atinge, ao invés de, simplesmente, possuir e considera que seu desenvolvimento é influenciado pela dinâmica do ambiente5,8. Este desenvolvimento ocorre por meio de interações sociais com adultos e a partir de jogos e brincadeiras com outras crianças. Deste modo, as interações informais são um canal para o desenvolvimento do senso numérico da mesma forma que as interações espontâneas da criança com a linguagem podem auxiliá-la, desde cedo, a desenvolver habilidades verbais do tipo vocabulário e consciência fonológica.

A corrente inatista defende a ideia de que existe algum tipo de predisposição inata que nos possibilita sermos numericamente competentes. Para esta corrente, as habilidades numéricas iniciais são o resultado de uma capacidade inata de "abstração numérica das crianças", isto é, a capacidade que as crianças têm para formar representações sobre a numerosidade de conjuntos10.

Tal corrente defende a ideia de que os bebês, quando nascem, dispõem de competências necessárias para resolver com êxito distintas tarefas numéricas do tipo: habilidades para representar e usar conceitos cardinais (propriedade que regula se dois conjuntos são ou não do mesmo tamanho), representar e usar conceitos ordinais (qual a relação existente entre dois conjuntos maior do que/menor do que) e realizar cálculos numéricos de adição e subtração.

As pesquisas que investigam as habilidades numéricas nos bebês utilizam como instrumento de medida a preferência que eles demonstram por fixar o olhar em situações não-familiares. Este é o paradigma da habituação - desabituação que consiste em apresentar aos bebês a mesma estimulação repetidas vezes até que se habituem mostrando menos interesse11.

As críticas que são feitas a tais estudos apontam a falta de precisão para identificar se a reação dos bebês de fixar o olhar para aquilo que lhes causa estranheza é uma resposta que sugere identificação de quantidade ou uma resposta que revela estranheza a diferentes variáveis como densidade, brilho, perímetro dos objetos envolvidos no teste12.

Vemos, assim, que a evidência empírica de que dispomos para determinar as origens das competências numéricas e aritméticas dos bebês é ainda insuficiente e muito controversa. "[...] partimos, então, da possibilidade de uma certa predisposição genética, não bem determinada, mas existente, que permite o desenvolvimento do senso numérico, que poderá ir amadurecendo a partir das interações dadas pela cultura"13.

Adeptos da corrente construtivista sugerem que a maioria das crianças adquire o senso numérico informalmente por meio das interações com os pais e parentes antes mesmo de entrarem na educação infantil. E, aquelas que não adquiriram o senso numérico, necessitam de instrução formal. Por exemplo, uma criança pode entrar na escola sabendo que 8 é 3 maior do que 5, enquanto um de seus colegas, com um senso numérico menos desenvolvido, pode saber somente que 8 é maior do 5. Outra criança que tenha o senso numérico bem desenvolvido pode ter uma estratégia para descobrir quanto maior o 8 é do 5 usando os dedos ou blocos para contar5,14.

É de se questionar, então, quais são as implicações pedagógicas de encararmos o senso numérico como um construto muito mais complexo e multifacetado do que simplesmente possuirmos intuições elementares sobre quantidades? Acreditamos que uma importante implicação resulta no desenvolvimento de pesquisas voltadas para a elaboração de programas de prevenção e de intervenção das dificuldades de aprendizagem na matemática. Estes programas baseiam-se no ensino explícito dos aspectos de senso numérico considerados essenciais para o bom desempenho e proficiência do aluno em matemática.

 

INTERVENÇÃO EM SENSO NUMÉRICO

A importância da intervenção precoce é destacada por Dowker15. A autora lembra que uma intervenção adequada poderá ter sucesso a qualquer momento, mas que é importante que ela ocorra nos estágios iniciais das dificuldades, pois problemas na matemática podem afetar o desempenho em outros aspectos do currículo, como também prevenir o desenvolvimento de atitudes negativas e ansiedade em relação a esta área.

Dowker16 apresenta algumas propostas de intervenção na matemática destinadas à educação infantil. Tais programas2 incluem a introdução de atividades e jogos matemáticos no currículo da educação infantil e, em alguns casos, também auxiliam os pais a usarem os materiais educacionais em casa com seus filhos. Muitos destes programas não têm como alvo apenas as crianças com dificuldades na matemática e sim apresentam um enfoque preventivo.

A autora menciona dois programas de intervenção individualizados, desenvolvidos recentemente, que enfocam o senso numérico (numeracy) em crianças de primeira série: o programa Mathematics Recovery, desenvolvido na Austrália, e o programa Numeracy Recovery, desenvolvido em Oxford. Embora ainda estejam sob avaliação, ambos têm se mostrado promissores já que os alunos que participaram destes evidenciaram resultados significativos no desenvolvimento do conhecimento matemático. Respostas positivas à intervenção indicam que, diante de propostas adequadas às suas necessidades, os alunos com dificuldades demonstram progressos15.

Barbosa17 também destaca a implicação das pesquisas sobre senso numérico para a educação infantil. A autora aponta a importância de se planejar e mediar situações de aprendizagem que possibilitem a criação de conexões e relações flexíveis entre ideias e habilidades de caráter numérico-cognitivas. A qualidade do senso numérico3; construído gradualmente pela criança, dependerá das experiências materiais, sociais e psicológicas que ela vivencia e estas experiências, por sua vez, influenciam o desenvolvimento do senso numérico.

A literatura mostra que programas de intervenção em senso numérico adotam caminhos distintos. Alguns enfatizam o armazenamento de combinações aritméticas na memória de tal maneira que a criança possa recuperar o fato matemático de forma rápida, sem esforço e sem erro, como uma tentativa de ajudá-la a utilizar estratégias de recuperação, ao invés de contar de forma ineficiente nos dedos18. Outros acreditam que as crianças podem obter respostas para os cálculos rapidamente com um mínimo esforço cognitivo por meio do ensino de "atalhos", ou seja, da aplicação de princípios de cálculos do tipo utilizar uma combinação de número conhecida para derivar uma resposta (2+2=4, então 2+3=5) ou de buscar relações entre operações (6+4=10, então 10-4=6)7,18.

Robinson et al.7 propõem que as intervenções para alunos com dificuldades em lidar com as combinações aritméticas devem incluir dois aspectos: a) intervenções que ajudem a construir a recuperação da informação matemática de forma mais rápida; e b) concentração do ensino em todos os aspectos do senso numérico ou conceitos aritméticos que estão subdesenvolvidos no aluno (por exemplo, princípios da comutatividade, estratégias de contar a partir da parcela maior). De acordo com esta perspectiva, a intervenção auxiliaria o aluno a desenvolver estratégias de contagem cada vez mais maduras e aprender a utilizá-las de forma mais eficiente, aspectos estes que estão relacionados com a recuperação fluente de combinações aritméticas.

Siegler20; por sua vez, destaca que os programas de intervenção devem levar em consideração o fato de que os conhecimentos conceitual e procedimental da matemática devem estar integrados apontando como ideal a criação de situações de aprendizagem em que os alunos possam orquestrar todos estes conceitos enquanto fazem atividades matemáticas.

Encontramos também pesquisadores que, apesar de exaltarem a existência de programas que se propõem a ensinar o senso numérico, chamam-nos a atenção para o fato de que não sabemos, ainda, qual é a melhor forma para se ensinar senso numérico5. Tais questionamentos nos fazem tomar consciência da necessidade de mais pesquisa nesta área.

 

DETECTORES INICIAIS DE DIFICULDADES NA MATEMÁTICA

Pesquisas recentes apontam que o senso numérico, avaliado na educação infantil, é um forte preditor de desempenho na matemática nas séries iniciais. Por exemplo, Jordan & Hanich examinaram o desenvolvimento do senso numérico em 411 crianças de educação infantil, considerando as seguintes habilidades: contagem, princípios de contagem, conhecimento de número, transformação de número, estimativa e padrões numéricos. As mesmas crianças foram testadas em desempenho em matemática no final do 1º ano. Análises preliminares apontam que as habilidades testadas têm forte validade preditiva, mesmo no início da educação infantil, quando as crianças tinham uma limitada instrução formal em matemática.

Outro estudo3 sugere que o desempenho das crianças de educação infantil em habilidades do tipo ler números, comparar magnitudes de números de 1 dígito e desempenhar cálculos mentais simples são fortes preditores de dificuldades de aprendizagem na matemática no 3º ano do ensino fundamental.

 

MEDINDO O SENSO NUMÉRICO

Interessados em pesquisar a possível validade dos instrumentos que medem o senso numérico, Baker et al.21 analisaram um conjunto de medidas que avaliavam o senso numérico e outros aspectos do conhecimento de número para ver se tais medidas eram capazes de predizer o desempenho subsequente do aluno na matemática. Uma bateria de tarefas foi administrada em mais de 200 crianças da educação infantil em duas áreas urbanas. O desempenho nestas tarefas foi correlacionado com o desempenho dos alunos em testes padronizados de matemática: dois subtestes de matemática, um do Stanford Achievement Test - Nineth Edition (SAT-9), e o outro do Procedures and Problem Solving (Harcourt Educational Measurement, 2001).

O primeiro instrumento avaliado foi o Teste de Conhecimento Numérico (Number Knowledge Test) desenvolvido por Okamoto e Case22. Este é um instrumento aplicado individualmente que permite ao examinador não só avaliar o conhecimento de conceitos e operações aritméticas básicos da criança (conhecimento de contagem, os procedimentos de contagem, a compreensão de magnitude, o conceito de "maior do que", a noção de estimativa e as estratégias que usam durante a contagem), como também avaliar sua compreensão em relação àqueles conceitos e operações. Uma série de questões estruturadas foi oferecida às crianças para avaliar sua compreensão de magnitude, o conceito de "maior do que" e as estratégias usadas durante a contagem.

O outro instrumento analisado foi composto por um conjunto de tarefas para avaliar habilidades especificas e proficiência desenvolvido por Geary et al.23. Este incluía medidas de discriminação de quantidade (comparação de magnitude), conhecimento de contagem, identificação de número e memória de trabalho.

Baker et al.21 observaram que as tarefas que compunham o Teste de Conhecimento Numérico foram as que melhor puderam prever o desempenho dos alunos nos testes padronizados de desempenho na matemática que foram reaplicados nas crianças da educação infantil no ano seguinte. No entanto, conforme destacam os autores, três tarefas simples parecem ser bastante promissoras: (a) discriminação de quantidade ou comparação de magnitude; (b) identificação de um número faltando em uma sequência; (c) medidas de identificação de número. Apresentamos no Anexo 1 o Teste de Conhecimento Numérico.

 

UM ESTUDO BRASILEIRO COM O TESTE DE CONHECIMENTO NUMÉRICO

O estudo de Corso24,25 procurou compreender e identificar as relações entre as dificuldades na leitura e na matemática em 79 alunos brasileiros, do 3º ao 6º ano do Ensino Fundamental, divididos em quatro grupos: com dificuldades na leitura (DL), na matemática (DM), nas duas áreas (DLM) e sem dificuldades (SD). O perfil cognitivo dos grupos foi obtido por meio de tarefas de senso numérico, processamento fonológico (consciência fonológica, memória fonológica e velocidade de processamento), memória de trabalho (componente executivo central) e estratégias de contagem e de recuperação da memória.

Em relação ao senso numérico, tema de interesse deste artigo, o estudo tinha o objetivo de verificar se os problemas enfrentados pelos alunos que apresentam a coexistência de dificuldades na leitura e na matemática ou que apresentam defasagens exclusivamente na matemática podem estar associados a um senso numérico pouco desenvolvido. O Teste de Conhecimento Numérico foi o instrumento utilizado para avaliar o senso numérico nos diferentes grupos de alunos (Tabela 1).

Vemos que o senso numérico demonstrou ser uma habilidade prejudicada no grupo de alunos com dificuldades na leitura e na matemática (DLM). Resultados como estes vêm reforçar o que as pesquisas, de um modo geral, têm apontado em relação à maior gravidade das dificuldades apresentadas pelos alunos com DLM, em relação àqueles com problemas exclusivamente na matemática ou na leitura26. Isto pode ocorrer em função de diferentes tipos de dificuldades subjacentes às habilidades de domínio geral associadas com a co-ocorrência de dificuldades na leitura e na matemática e reflete dificuldades que podem abranger várias áreas do desenvolvimento, ou seja, problemas que não são específicos somente à leitura ou à matemática27,28.

Embora os alunos com dificuldades na matemática tenham apresentado desempenho inferior na tarefa de senso numérico, em relação ao grupo de controle e ao grupo com dificuldades na leitura, tal diferença não alcançou nível de ignificância estatística. Possíveis justificativas para tal resultado incluem questões metodológicas e conceituais. A primeira diz respeito ao tamanho reduzido da amostra de alunos que compôs o grupo com dificuldades na matemática (n=13). Amostras deste tipo podem diminuir o poder de detectar diferenças significativas nas variáveis sendo avaliadas e, assim, reduzir a possibilidade de generalização dos resultados obtidos.

A segunda se refere ao ponto de corte, neste caso mais leniente, que caracterizou o instrumento utilizado nesta pesquisa para formar a amostra de alunos com dificuldades na matemática. Estudos recentes têm chamado atenção de pesquisadores da área de dificuldades de aprendizagem para o fato de que diferentes pontos de corte para os escores de desempenho em matemática, mais restritivos (< 5th ou 10th percentil) ou mais lenientes (< 30th percentil), acabam por produzir grupos de alunos com dificuldades que diferem substancialmente em seu perfil de desempenho em matemática e nas habilidades relacionadas a ela28,29.

Outra possibilidade seria a de que as dificuldades na aritmética apresentadas pelos alunos que compuseram nosso grupo com DM estariam menos relacionadas aos aspectos de senso numérico referentes à compreensão de magnitude, ao senso de quantidade, ao uso de linha numérica mental, e à compreensão de conceitos tais como "maior do que" e sim estariam mais voltadas para os procedimentos e estratégias de contagem já que este grupo evidenciou defasagem específica nesta variável, avaliada no estudo de Corso24; que não nos deteremos aqui. É importante lembrar que as estratégias e os procedimentos de contagem também são aspectos que englobam o conceito de senso numérico. No entanto, o escore do Teste de Conhecimento Numérico reflete o desempenho dos alunos naquele conjunto de habilidades citadas anteriormente.

Estamos retomando aqui a idéia de que o senso numérico refere-se a um conjunto bastante amplo de habilidades, conforme vimos anteriormente, e que o desempenho do grupo com DM no Teste de Conhecimento Numérico (sem diferença significativa em relação aos demais grupos) sugere que alguns elementos de senso numérico podem estar intactos nestes alunos, enquanto outros (estratégias e procedimentos de contagem) mostram-se deficitários19.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS E IMPLICAÇÕES PARA O ENSINO E PESQUISA

Discutimos aqui o conceito de senso numérico que, apesar de bastante controverso quanto à definição, avaliação e intervenção, é crítico para o desenvolvimento da competência em matemática. Pesquisas recentes têm apontado que um senso numérico pouco desenvolvido é uma das características que acompanha os alunos que enfrentam dificuldades na matemática.

Não restam dúvidas quanto à necessidade de mais estudos nesta área de investigação para que possamos melhor refinar e operacionalizar o senso numérico. Somente, assim, a área das dificuldades de aprendizagem na matemática estará apta a aprimorar a natureza dos instrumentos desenvolvidos para a identificação inicial de problemas e delinear programas de intervenção efetivos em senso numérico.

Infelizmente, nossa realidade mostra que, de forma frequente, o ensino da matemática tem se baseado em práticas com limitadas oportunidades para que os alunos explorem verbalmente o seu raciocínio e recebam feedback sobre o seu conhecimento de conceitos e estratégias, aspectos essenciais do senso numérico. Em outras palavras, o ensino nesta área continua a enfatizar o cálculo, ao invés da compreensão matemática, o que acaba por favorecer o desenvolvimento de dificuldades de aprendizagem. De fato, as influências dos estudos sobre senso numérico no Brasil estão, ainda, presas aos discursos teóricos.

É fundamental que o ensino da matemática dê ênfase maior ao desenvolvimento do senso numérico. Por meio do fortalecimento do senso numérico estaremos favorecendo aos nossos alunos o desenvolvimento de conhecimentos conceituais necessários para a resolução aritmética (experiências de contagem que permitam a descoberta de relações matemáticas). Do mesmo modo, estaremos promovendo a prática de estratégias de contagem mais maduras e eficientes que funcionam como uma espécie de andaime para o desenvolvimento das estratégias baseadas na recuperação imediata da memória. A recuperação de fatos aritméticos da memória, por sua vez, exerce um importante papel no desenvolvimento de processos matemáticos mais complexos (e.g., cálculo de multidígitos, solução de problemas) e, por isso, a importância de se dar mais ênfase ao ensino desta habilidade, principalmente, para os alunos com dificuldades na matemática.

 

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Correspondência:
Luciana Vellinho Corso
Rua Marques do Pombal, 1577 apto 202
Porto Alegre, RS - CEP 90540-001
E-mail: l.corso@terra.com.br

Artigo recebido: 8/4/2010
Aprovado: 7/7/2010

 

 

Trabalho realizado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS.
1 Conceito apresentado por Stanovich (1986) em que o autor destaca que se o aluno lê pouco, desenvolverá em menor grau as habilidades necessárias e, em decorrência disso, tenderá a ler menos, acentuando-se, assim, os problemas iniciais.
2 Dowker (2005) refere tais programas: Nos Estados Unidos - Big Math for Little Kids (GINSBURG et al., 1999), Head Start (ARNOLD; FISHER; DOCTOROFF; DOBBS, 2002), Berkeley Maths Readiness Project (STARKEY; KLEIN, 2000), Right Start (GRIFFIN; CASE; SIEGLER, 1994). Na Holanda - Additional Early Mathematics Program (VAN DE RIJT; VAN LUIT, 1998). Na Inglaterra - Family Numeracy (ROBERTS, 2001).
3 A autora traduz o termo number sense por sentido de número.
4 Instrumento traduzido por Luciana Vellinho Corso e utilizado em seu trabalho de tese de doutorado (Corso, 2008)24.

 

 

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