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Revista Psicopedagogia

versão impressa ISSN 0103-8486

Rev. psicopedag. vol.32 no.98 São Paulo  2015

 

ARTIGO ORIGINAL

 

A construção e a desconstrução do rótulo do TDAH na intervenção psicopedagógica

 

The construction and the desconstruction of a label of ADHD in the psychopedagogical intervention

 

 

Vera Helena Peres JafferianI; Leda Maria Codeço BaroneII

IPedagoga formada pela Universidade Paulista (UNIP/SP), especialista em Psicopedagogia Clínica e Institucional pelo Instituto Sedes Sapientiae/SP e Mestre em Psicologia Educacional pelo Centro Universitário Fundação Instituto de Ensino para Osasco (UNIFIEO). Atua em consultório particular e como assessora em escolas, São Paulo, SP, Brasil
IILeda Maria Codeço Barone - Psicanalista pela Sociedade Brasileira de Psicanálise (SBP/SP); Doutora em Psicologia Escolar pela Universidade de São Paulo (USP); Docente do Programa de Pós-graduação em Psicologia Educacional do Centro Universitário Fundação Instituto de Ensino para Osasco (UNIFIEO), São Paulo, SP, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho tem como objetivo discutir o efeito que o diagnóstico do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) pode ter sobre o sujeito e, também, como a intervenção psicopedagógica pode contribuir para a desconstrução do rótulo, favorecendo o sujeito a encontrar outro caminho que não seja a repetição do destino. Trata-se de uma análise construtiva-interpretativa a partir de fragmentos de atendimentos psicopedagógicos retrospectivos considerados em duas dimensões. A primeira em relação às entrevistas iniciais com os pais, professores e pacientes, enfatizando o efeito de destino do diagnóstico. A segunda em relação à intervenção psicopedagógica, ressaltando o efeito de desconstrução do rótulo. A análise dos dados sugere que o diagnóstico tem o efeito de destino na vida do sujeito que fica sem autonomia e que, com a intervenção psicopedagógica, o mesmo se desveste do rótulo e sai do lugar que se encontrava.

Unitermos: Transtorno do Deficit de Atenção com Hiperatividade/ diagnóstico. Transtornos de Aprendizagem. Criança.


SUMMARY

The goal of this work is to discuss the effect that the diagnosis of Attention Deficit Hyperactivity Disorder (ADHD) can have on the subject, as well as how the pedagogical intervention can contribute to the deconstruction of the label favoring the subject to find another way other than the repetition of the destiny. It is a constructive-interpretative analysis from fragments of retrospective psychopedagogic treatments considered in two dimensions. The first dimension in relation to the initial interviews with the parents, the teachers and the patients, emphasizing the target effect of the diagnosis. The second dimension in relation to psychopedagogical intervention, emphasizing the effect of deconstruction of the label. The data analysis suggests that the diagnosis has an effect of destiny in the life of the subject, who is without autonomy and that with the psychopedagogical intervention the subject undresses label and gets out of place it was.

Key words: Attention Deficit Disorder with Hyperactivity/diagnosis. Learning disorders. Child.


 

 

INTRODUÇÃO

Acima da responsabilidade, coloca-se a questão do sujeito ou aquilo que determina o ser do sujeito. O que faz com que eu seja o que sou? Quais determinismos constituíram o meu destino, qual o encadeamento das causas das quais eu seria o resultado?1

Este trabalho tem como objetivo refletir sobre o efeito do diagnóstico do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) sobre o sujeito rotulado. Parte da hipótese de que o diagnóstico, muitas vezes, é percebido como um rótulo que marca o destino do sujeito. O trabalho pretende, ainda, refletir sobre o possível efeito do atendimento psicopedagógico na desconstrução do rótulo. Ele toma como objeto para estudo fragmentos de atendimentos psicopedagógicos, retrospectivos, de crianças e adolescentes, atendidos em consultório, diagnosticados com TDAH.

Tais crianças e adolescentes, normalmente diagnosticadas por psiquiatras, neurologistas e pediatras, são encaminhados para avaliação e tratamento psicopedagógico. E, geralmente, a queixa de pais e professores é de que tais pacientes têm dificuldades de atenção, não se interessam pelas atividades escolares, são desorganizados com seu material, além de serem agitados. E, normalmente, relatam que tudo isto que acontece com seus filhos e alunos é resultado do TDAH.

Por outro lado, tais crianças e adolescentes relatam que a escola é chata, que não querem fazer lição de casa e que gostam de jogar no computador. Tudo isso indicando que deve haver alguma divergência entre a observação de pais e professores com a das crianças e adolescentes a respeito do problema.

Na mesma linha desta observação, Santos & Vasconcelos2 comentam que a alta frequência dos diagnósticos de TDAH tende a conduzir a uma reflexão crítica do processo de avaliação e intervenção no acompanhamento de crianças e adolescentes no sistema de educação, nas práticas educativas e na família. Ainda, os mesmos autores referem-se às mudanças na família, à sofisticação do sistema de comunicação e ao alto número de crianças e jovens por sala de aula como sendo "alguns dos potenciais fatores que podem contribuir para o desenvolvimento de comportamentos de risco, os quais podem ser precipitadamente classificados em diagnósticos psiquiátricos"2.

O eixo de reflexão deste trabalho gira em torno de conceitos como "profecia autorrealizadora" estudada por Rosenthal & Jacobson3; "ganho secundário da doença" e de "exceção" propostos por Freud4,5 e toma a intervenção psicopedagógica levando em conta o sujeito que aprende e não o sintoma. Dessa maneira, reiteramos que o objetivo do trabalho é tão somente discutir o efeito do diagnóstico sobre o sujeito e da intervenção psicopedagógica como desconstrução do rótulo, e não a discussão do diagnóstico.

O TDAH: Percurso Histórico

Desde o século XIX, segundo Ajuriaguerra6, se estuda a instabilidade psicomotora, que é um dos sintomas presentes hoje no TDAH. Esse tema recebeu várias denominações ao longo do tempo, tais como síndrome da criança com lesão cerebral, síndrome da criança hiperativa, disfunção cerebral mínima, agitação e, mais recentemente, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade. O mesmo autor relata, ainda, que o termo "Disfunção Cerebral Mínima (DCM)" foi criado após várias discussões, sendo criticado por sua natureza controversa e imprecisa, embora tenha sido muito utilizado e aberto caminho para as terapias farmacológicas, especialmente com o uso do metilfenidato6.

Atualmente, como observam Leonardi et al.7, o TDAH é o transtorno psiquiátrico mais comum na infância, "cuja prevalência situa-se entre 3% a 13% em crianças com idade escolar, sendo mais frequente em membros do sexo masculino". Segundo os mesmos autores, o TDAH se caracteriza por desatenção, distração, hiperatividade e impulsividade e, por isso, é um dos principais problemas observados na criança no processo pedagógico nos últimos dez anos.

Barkley & Murphy8 afirmam que TDAH é "o termo atual para designar um transtorno desenvolvimental específico, observado tanto em crianças quanto em adultos, com os sintomas de déficits na inibição comportamental, atenção sustentada e resistência à distração".

Desde o DSM-II, o Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais - DSM, 2ª edição, desenvolvido pela Associação Americana de Psiquiatria (APA)9, começou a se falar em hiperatividade, e na época, como era vigente a hipótese do transtorno da Disfunção Cerebral Mínima (DCM), o mesmo foi classificado pela primeira vez nesse manual como "Reação Hipercinética da Infância", enfatizando o papel da Hiperatividade na DCM. Na 3ª edição do DSM10, o DSM-III, surge o termo Distúrbio de Déficit de Atenção (DDA), e na 4ª edição11, o DSM-IV, foram separados os critérios de déficit de atenção dos critérios de hiperatividade e impulsividade, e o distúrbio foi caracterizado como transtorno.

Recentemente, na 5ª edição do DSM12, o DSM-V, a Associação Americana de Psiquiatria (APA) usou o termo ADHD (TDAH em português), como denominação dos "distúrbios de comportamento", tendo em vista que as diretrizes diagnósticas americanas, após várias revisões de estudos a este respeito, denominaram o TDAH como um transtorno que parece provocar uma alteração no comportamento e na capacidade de manter a atenção. Desse modo, não se trata de uma disfunção.

O Diagnóstico

O diagnóstico do TDAH é baseado nas manifestações comportamentais dos pacientes, a partir de critérios diagnósticos determinados pelos Manuais de Diagnóstico e Estatístico das Perturbações Mentais (DSM) desenvolvidos pela Associação Americana de Psiquiatria (APA), atualmente na 5ª edição, o DSM-V lançado em 201312.

Há, também, diagnósticos que são baseados na Classificação Internacional de Doenças (CID), desenvolvido pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que em sua 10ª edição, o CID-10, define os critérios para o TDAH sob o termo Transtorno Hipercinético13.

Na publicação do DSM-V12, os critérios diagnósticos do TDAH são similares aos do manual anterior DSM-IV-TR14 e foi mantida a mesma lista de dezoito sintomas, divididos entre desatenção, hiperatividade e impulsividade. Importante destacar que os pacientes com idade máxima de 17 anos têm que apresentar até seis dos sintomas listados no DSM-IV-TR e, os mais velhos, até cinco sintomas. Quanto à exigência no manual anterior que os sintomas estivessem presentes até os 7 anos de idade, foi alterada para os 12 anos no atual DSM-V, tendo em vista as mudanças comportamentais que podem ocorrer e que podem ser confundidas com esse transtorno de hiperatividade.

A Literatura sobre o TDAH

Na literatura, há muitos trabalhos escritos sobre o TDAH, de diferentes teóricos, com diversas posições e informações a respeito, como Reis & Santana15, que fizeram um levantamento bibliográfico de trabalhos de teóricos sobre esse tema e relatam que alguns descrevem as características do transtorno, outros teóricos afirmam a não existência de tal transtorno por se tratar de uma forma de camuflar o problema que está na escola ou em casa. As mesmas autoras concluem que, nos diferentes trabalhos analisados, não há um consenso entre as várias teorias citadas e que, por tudo isso, os debates a respeito desse assunto devem ser sustentados, por serem de grande relevância para a ciência e para um maior entendimento pela sociedade a respeito desse transtorno, o qual vem tomando grandes proporções, devido ao grande número de crianças diagnosticadas.

Segundo Reis & Santana15, no Brasil, estima-se que há entre 5% e 8%, ou seja, de cada 20 crianças 1 tem TDAH.

Há muitas crianças e adolescentes diagnosticados com TDA e TDAH que são medicadas com Ritalina (metilfenidato) e há diversos estudos na literatura sobre essa medicação. Alguns artigos que concordam com a prescrição do metilfenidato e sua eficácia, como as pesquisas de meta-análise realizadas com crianças, adolescentes e adultos com TDAH a curto e longo prazo (Schachter et al., 2001; Faraone et al., 2004; Faraone et al., 2006 apud Leonardi et al.7). E outros estudos que discordam do uso do medicamento, como um dos trabalhos, que sugere a piora na impulsividade (Neef et al., 2005 apud Leonardi et al.7).

No entanto, há na literatura trabalhos de diversos autores que vão trazer elementos para pensar o sujeito com o diagnóstico de TDAH de outras maneiras e que sustentam argumentações que serão abordadas neste artigo, como Goldstein & Goldstein16, que propõem um diagnóstico baseado na história de vida do sujeito e que não o rotule; Leonardi et al.7 que, numa abordagem comportamental, argumentam sobre a etiologia desse transtorno, bem como os aspectos dos comportamentos dos sujeitos diagnosticados com TDAH; Moysés17 discute os dados obtidos nas suas pesquisas realizadas com "crianças-que-não-aprendem". A partir da Psicanálise, Crochik & Crochick18 abordam esse transtorno como produto da cultura em que vivemos; Janin et al.19 discorrem sobre o TDAH e suas implicações na vida das crianças e propõem, com base em sua prática clínica, intervenções que possibilitem a construção da autonomia desses sujeitos rotulados, e, finalmente, Levin20 argumenta sobre a hiperatividade da criança enquanto possibilidade de ser olhada pela mãe.

O Rótulo

Na pesquisa realizada com "crianças-que-não-aprendem", Moyses17 analisa a forma como essas crianças são diagnosticadas como portadoras de alguma doença e que, por isso, serão rotuladas e serão reféns de doenças inexistentes e de fracassos que não são seus. A mesma autora sugere que: "feito um diagnóstico, como em um passe de mágica, cessam as pressões, como se o diagnóstico bastasse, prescindindo do tratamento. O diagnóstico não é bastante para resolver o problema, porém é suficiente para acalmar os conflitos que um aluno que não-aprende-na-escola gera"17.

Assim se inicia um processo de rotulação na vida dessas "crianças-que-não-aprendem", que pode vir a ser um destino na vida delas. E o rótulo muitas vezes é atribuído rapidamente, tornando-se uma descrição exata dessa pessoa e pode vir a ser um caminho sem volta, como um destino, com danos que perduram na vida do sujeito.

Como Oakes (apud Tauber21) observou "uma vez que rotulamos uma pessoa, mudamos a nossa opinião sobre esta pessoa. Isto afeta como nós agimos e reagimos em relação a ela. Rotular é fácil. Nós não temos como conhecer a pessoa. Nós apenas supomos como a pessoa é". Essa forma de pensar está na base do preconceito porque quando não se conhece bem alguém não se pode saber o porquê de suas atitudes. Como quando um aluno que não presta atenção na aula e não faz lições, muitas vezes, é visto pelo professor como desinteressado e assim será tratado como tal, não mostrando suas capacidades.

A Profecia Autorrealizadora, o Ganho Secundário e a Exceção

Na literatura, encontramos os estudos referentes à "profecia autorrealizadora" (selffulfilling prophecy), de Rosenthal & Jacobson3, que, por meio das pesquisas realizadas com professores e alunos, mostram como a expectativa que o professor tem de seu aluno vai influenciar o rendimento escolar deste sujeito nas situações escolares e sociais. Assim, a partir do que o professor espera de seu aluno, é o que será mostrado por ele. Os mesmos autores, em sua pesquisa denominada "Efeito Pigmalião", mostram, ainda, que o comportamento das pessoas é determinado por regras e expectativas que podem prever como as pessoas vão se comportar em dada situação. E, a partir desse comportamento que se repetirá em várias situações faz com que, naturalmente, esse sujeito seja rotulado por quem convive com ele, e esse rótulo poderá ocupar o lugar de destino em sua vida.

O conceito de profecia autorrealizadora, segundo Tauber21 foi usado pela primeira vez por Merton22, que estudou como a influência sobre algo que se diz faz com que aconteça. E o mesmo autor chama a atenção sobre a importância de se saber o que é essa profecia, sua definição e de como esse "efeito Pigmalião" pode refletir na vida das pessoas.

Dessa maneira, é importante que o professor esteja atento aos seus alunos para não criar expectativas falsas baseadas em alguns comportamentos deles, pois o aluno será visto pelo professor como parece ser e não como é, assim poderá ficar num lugar sem autonomia. As consequências para esses alunos podem ser irreversíveis, modificando seu modo de se expressar socialmente e cognitivamente.

Outra maneira de ver a questão vem da Psicanálise, no texto "as exceções" em que Freud4 coloca que o sujeito, por apresentar alguma deficiência ou má formação, culpa a natureza pelos seus males, considerando-se assim uma exceção. Por isso, aspira ser tratado como um eu ideal e merecedor de todas as regalias, aproveitando-se dessa situação mesmo que não seja construtiva em sua vida. Conforme Freud cita, "sem dúvida é verdade que cada um gostaria de se considerar uma exceção e reivindicar privilégios em relação aos demais"4. Num outro texto sobre "o ganho secundário da doença", Freud5 defende que, apesar da dificuldade que a doença traz, há também um ganho, pois o doente recebe a atenção e a preocupação do outro, como a criança com TDAH que não quer fazer as suas obrigações na escola e, por isso, os pais e professores, muitas vezes, fazem por elas. Assim, a criança coloca-se no papel de exceção, parecendo obter um ganho secundário, por ser considerada TDAH, a despeito do ônus que isso lhe traz.

O Trabalho Psicopedagógico

O trabalho psicopedagógico, do ponto de vista deste artigo, se constitui como atividade que trata do sujeito em situação de aprendizagem. Tal postura indica que este trabalho não trata diretamente do sintoma e nem da transmissão do conhecimento, mas sim do sujeito em sua complexidade. A aprendizagem acontece tomando em conta a criança, a atividade que faz e o psicopedagogo em diferentes momentos do processo. O psicopedagogo atua como mediador entre o aluno e a cultura na circulação do conhecimento, não ficando no lugar de autoridade. A criança tem que saber que o professor sabe, mas ela tem que ser a autora de seu saber.

Para Pain23, aprendizagem se dá como processo de apropriação construtiva do conhecimento através das trocas humanas, e que ao aprender reconhecemos o outro como possuidor de um saber. Mas para o sujeito adquirir esse conhecimento do outro dependerá da confiança e do vínculo que se constrói a cada encontro. Sendo que o psicopedagogo trabalha com a aprendizagem, e não na transmissão do saber, assim a partir da relação estabelecida entre paciente e psicopedagogo o sujeito que não aprende poderá expressar, pela linguagem, dos atos falhos e das associações livres, suas angústias e desejos nas sessões psicopedagógicas. Segundo Kupfer24, "os atos falhos são pequenas manifestações que emergem em nossa fala, às quais não se costuma dar muita informação". Nesse papel de mediador, o psicopedagogo poderá despertar no paciente o desejo de aprender e de conhecer o novo. Pretende-se, assim, que o sujeito comece a se arriscar mostrando-se nas suas possibilidades como autor de seu saber, se implicando, como "sujeito de uma ação inteligente"23, que se apropria do conhecimento. E, ao tentar resolver uma situação desafiante com interesse, com alegria e com autonomia sabe que estamos juntos, mas não para dar respostas, e sim, para encontrar caminhos.

Na mesma linha, Janin19 propõe que, ao falar de aprendizagem escolar, devemos levar em conta as condições internas da criança, a relação com o professor (transferência), o método da escola e a valorização social da aprendizagem. A mesma autora sugere que, aprender é como entrar em lugares desconhecidos, algo como se apropriar e se arriscar num movimento de busca, de fazer perguntas, e que para querer saber deve haver o desejo. Janin19 considera, ainda, que, para aprender algo temos que prestar atenção, nos concentrarmos nesse tema, sentir curiosidade por isso, para desarmá-lo, desvendá-lo, quebrá-lo, para traduzi-lo em nossas próprias palavras, reorganizando-o e apropriando-nos dele para podermos usá-lo em diferentes circunstâncias.

Na visão de Kupfer24, o aluno-paciente deve desarticular, retalhar, engolir e digerir todo o conhecimento que foi transmitido pelo educador-psicopedagogo. E esse novo conhecimento se entrelaça no desejo do educando dando sentido para ele, e assim "pela via de transferência, o aluno passará por ele, usá-lo-á, por assim dizer, saindo dali com um saber do qual tomou verdadeiramente posse e que constituirá a base e o fundamento para futuros saberes e conhecimentos". Visto desse modo, o trabalho psicopedagógico com crianças rotuladas preserva a relação com o paciente, sendo que todo o trabalho acontece no espaço psicopedagógico, e, por meio da transferência com o paciente, durante a intervenção psicopedagógica, ele sai de um lugar de dependente do outro, quebra-se o efeito do rótulo e, aos poucos, reconhece-se como sujeito do aprender e com autonomia. Essa ética promove a desconstrução do diagnóstico-rótulo no trabalho psicopedagógico que propomos aqui.

 

MÉTODO

Trata-se de um estudo a partir de fragmentos dos atendimentos psicopedagógicos retrospectivos de quatro pacientes, diagnosticados com TDAH, atendidos em consultório particular de psicopedagogia.

A pesquisa é qualitativa com uma análise construtivo-interpretativa e discute o efeito que o diagnóstico pode ter sobre o sujeito, ou seja, ele muitas vezes, à semelhança de profecia autorrealizadora, conforme estudo de Rosenthal & Jacobson3, fixa um destino para o sujeito, que acaba agindo conforme o que é esperado dele. Nesse sentido, a criança muitas vezes se acomoda a esse destino, experimentando o "ganho secundário da doença", como coloca Freud5 ao se referir ao doente que, por receber privilégios, se acomoda no papel de doente e se fixa nele. Também se discute como a intervenção psicopedagógica pode funcionar como intervenção capaz de desconstruir o rótulo, favorecendo o sujeito a encontrar outro caminho que não seja a repetição do destino.

Inicialmente, o projeto de pesquisa foi submetido à apreciação do Comitê de Ética em Pesquisa do Centro Universitário FIEO - Osasco/SP, o qual foi aprovado com o nº CAAE 22156113.6.0000.5435, em 30/10/2013, pelo parecer nº 441.321. Os representantes legais dos participantes assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido apenas para autorizar o uso dos dados dos atendimentos desses pacientes, já que o trabalho psicopedagógico realizado com tais pacientes já havia sido concluído.

Os materiais utilizados nesta pesquisa foram os fragmentos de atendimentos dos quatro participantes das anotações das entrevistas realizadas com os pais e com os profissionais da escola, com o paciente e as anotações dos atendimentos.

Procedimentos

Para efeito de melhor compreensão trata-se dos fragmentos coletados considerando duas dimensões. A primeira reportando-se às entrevistas com os pais, com a criança e com a escola, salientando o efeito de destino dado ao diagnóstico. A segunda reportando-se à intervenção psicopedagógica, chamando a atenção para o efeito de desconstrução do rótulo que ela pode ter.

Para a discussão, o embasamento teórico apresenta-se a partir do trabalho de Rosenthal & Jacobson3, pelo conceito da profecia autorrealizadora, e também pelas contribuições da psicanálise, de Freud4,5 pelo viés do sujeito, como exceção e pelo ganho secundário da doença, e por demais autores que suportaram este trabalho.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Nos fragmentos em que há relatos referentes à fala dos professores e dos orientadores, percebe-se que o professor não escuta a criança e não vê o porquê dela não aprender e esse professor só reconhece a criança a partir do rótulo que carrega. Assim, esses alunos rotulados ficam no lugar de incapazes, sem autonomia e não correspondem ao esperado pelos professores. E isso pode ter como consequência a "profecia autorrealizadora", conforme Rosenthal & Jacobson3, do aluno não ser ouvido como sujeito e sim como sintoma.

Assim, a escola teria que ter como tarefa entrar em contato com os alunos, mas a partir do diagnóstico a tendência da escola é olhar pela ótica do diagnóstico, conforme apareceu nesta pesquisa pela fala de alguns professores e orientadores:

  • a orientadora de Ana relata: "Ana era desatenta e não queria ficar na sala de aula e saía da classe. Era hiperativa e quando eu a chamava na minha sala para conversarmos ela não ficava sentada e se movimentava pela minha sala." (sic)
  • o professor de Lucas relata: "por ter o laudo com diagnóstico do TDAH, Lucas tinha privilégios como não entregar os trabalhos." (sic)
  • o orientador de Marcelo relata: "agora com o diagnóstico de TDAH ele vai ser medicado com Ritalina, e daí vai ficar mais adequado em sala de aula". (sic)
  • a professora de José relata: "sei que ele é assim por causa do TDAH, coitadinho. Mas eu o ajudo". (sic)

Na maioria dos fragmentos, percebe-se que os sujeitos recebem regalias por terem o diagnóstico de TDAH e, por isso, aproveitam dessa situação, de doente, e ficam nesse lugar por receberem privilégios, e não mostram o que são capazes, o que vem de encontro ao que Freud diz sobre "o ganho secundário da doença" que o paciente não quer, inconscientemente, sair do lugar de doente por receio de perder os privilégios que a doença proporciona.

Nos relatos de fragmentos referentes à desconstrução do rótulo do TDAH na intervenção psicopedagógica, nota-se que algumas atitudes da psicopedagoga, respeitando o ritmo e o tempo de cada paciente, ajudou-os a interessarem-se pelo aprender.

Fragmentos de relatos da psicopedagoga:

1- Nas sessões seguintes, foi observado que Ana aproveitava o tempo das sessões para brincar e fazer as atividades que eu propunha, mas sem se movimentar muito pela sala e, quando eu falava das regras que ela tinha que obedecer, ela reagia positivamente. Isto se devia ao nosso vínculo que se fortalecia a cada sessão e, também, por ela confiar nesse espaço acolhedor. Assim foi combinado com a professora de Ana, que ela a incentivasse a tentar fazer as atividades, respeitando o ritmo e o tempo dela. E, assim, Ana estava começando a mostrar também na escola o que já sabia. Ao agir dessa forma, a professora estava abrindo espaços para Ana começar a construir sua autonomia, aceitando as regras e aprendendo a conviver com os colegas. Ana começava a desvestir-se do rótulo, desconstruindo-o.

2- A professora de José relatava que ele não aceitava regras e não tinha limites, atrapalhava a aula andando pela sala, cutucando os colegas, e não aceitava quando errava e desistia de fazer a atividade. Também colocava que ultimamente ele estava brigando com um colega. Eu intervinha colocando limites e regras, trabalhando com canais de expressão, propondo um desenho e uma história escrita ou um jogo de regras. E quando ele fazia coisas que não eram adequadas, eu intervinha na hora e conversava sobre as regras que não foram obedecidas e das consequências que aconteceriam por isso. Eu mostrava para José os progressos dele ao aceitar as regras do jogo, do mesmo modo que eu fazia com Ana. Essa intervenção fez com que eles começassem a acreditar no que eram capazes, contendo sua impulsividade e elaborando o que não estava bom, fazendo melhor. Eles tinham que viver a frustração, saber que podiam perder.

Desse modo, reconheceram-se nas suas possibilidades, saindo do lugar que estavam aprisionados desconstruindo o rótulo.

Tentei demonstrar pelos meus relatos que as pessoas com o diagnóstico do TDAH apresentam geralmente uma dificuldade em aceitar regras e limites, que impedem uma organização necessária para a apropriação do conhecimento. Portanto, a meu ver, essa é uma questão importante a ser trabalhada na intervenção psicopedagógica com pacientes que têm este transtorno, para que eles consigam, em algum momento, sair do lugar que estavam presos e sem autonomia, como propõe Moyses17: "Deste modo, ao desconstruir o rótulo, poderá sair do lugar acomodado de "criança-que-não-aprende" fracassada e expropriada de seu saber, e, poderá mostrar-se como autora de seu saber".

Percebe-se que essas crianças e adolescentes rotuladas que apresentadas nesta pesquisa têm a oportunidade de verem-se como autoras de seu saber, por meio da intervenção do psicopedagogo, em vários momentos de jogos, de atividades pedagógicas e de desenhos e estórias durante o acompanhamento psicopedagógico. Assim, conseguem escolher pela construção de sua autonomia e não pelo determinismo do rótulo como destino. Cabe ao psicopedagogo levar em conta o sujeito, a sua história de vida e as suas angústias. Tais atitudes como ajudá-los a encontrar modos de melhorar o que não estava adequado, como respeitar as regras propostas e aceitar os limites colocados em cada situação vivenciada; fazer a reescrita de seus textos, para que houvesse sentido no que escreviam e, em matemática, fazer cada etapa do exercício proposto propiciaram neles um movimento em busca do aprender.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A questão do TDAH deve ser amplamente discutida com os profissionais da escola, diretores, orientadores e professores, tendo em vista que, em muitas escolas, conforme dados obtidos nesta pesquisa, o diagnóstico médico funciona como destino da criança. Isto é, o laudo médico vai ser o orientador do rumo da criança na escola como uma profecia autorrealizadora, como posto neste trabalho. Visto desse modo, o sujeito rotulado não terá oportunidade de mostrar-se como sujeito do aprender, por ser subjugado em suas capacidades.

As observações desta pesquisa corroboram com o que foi proposto por Rosenthal & Jacobson3 referente às expectativas que os professores têm do aluno com TDAH e que refletirão no modo como irão tratar os alunos em sala de aula, a partir do que os professores acreditam que eles sejam. Corroboram, também, com o que Freud4,5 propôs sobre a pessoa sentir-se como uma "exceção" e exigir regalias para se conformar com a situação que vive e como ônus obtém privilégios, como no "ganho secundário da doença", se fixando no lugar de doente para não perder as regalias.

Evidencia-se, assim, a importância de os profissionais da educação e da saúde envolverem-se em uma ética, colocando-se num lugar onde possam ver o sujeito, com suas outras capacidades escondidas atrás do rótulo, colaborando para a desconstrução desse rótulo que o impede de ser um sujeito autônomo. Um dado importante que pode surgir deste trabalho é que o professor não se fixe tanto no sintoma e sim nas capacidades do sujeito.

 

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Endereço para correspondência:
Programa de Pós-Graduação em Psicologia Educacional - Centro Universitário FIEO
Av. Franz Voegelli, 300 -Vila Yara - Osasco, SP, Brasil - CEP: 06020-190.
E-mail: ledabarone@uol.com.br

Artigo recebido: 22/5/2015
Aprovado: 13/7/2015

 

 

Este artigo foi escrito a partir da pesquisa da dissertação de mestrado "O diagnóstico como destino: a criança com TDAH e a flexibilização necessária na clínica" de Vera Helena Peres Jafferian, sob a orientação da professora dra. Leda Barone, do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Educacional do Centro Universitário Fundação Instituto de Ensino para Osasco (UNIFIEO), Osasco, SP, Brasil.

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