Iniciamos esta resenha com a antológica frase de Angela Davis, mulher preta e filósofa estadunidense: “Numa sociedade racista, não basta não ser racista. É necessário ser antirracista”. Davis nos aponta a necessidade de um caminho de ativismo, enfrentamento e de posicionamento ético-político no saber-fazer de nossas ações no mundo. Acessar a obra de Neusa Santos Souza, mulher preta, psicanalista e psiquiatra brasileira é, por si só, um ato de resistência e enfrentamento ao modo eurocêntrico e colonialista de pensar a coisa pública e as relações humanas, fazendo frente às políticas de morte, branqueamento e apagamento histórico, especialmente no cone sul da América.
Falecida em 2008, aos 60 anos, Neusa deixou um rico legado, mas pouco acessado se considerarmos a relevância atemporal de sua obra. É mais recentemente, na última década, que seu trabalho tem sido recuperado no bojo da formação intelectual do país. Enquanto “estudiosa da loucura”, deixou sua marca no Movimento da Reforma Psiquiátrica, nos primórdios dos movimentos antirracistas organizados no Brasil e na transmissão de uma psicanálise feita e pensada no país (Silva, 2021, p. 11).
Em seu texto O estrangeiro: nossa condição, Souza remete o leitor ao estrangeiro que nos habita. Inicia o texto dizendo deste estranho familiar, este Outro que localizamos fora de nós, mas que, mesmo desconhecido e estranho, constitui nossa própria subjetividade, participando intimamente daquilo que somos “nós”. A esse desconhecido a psicanálise possibilita um alcance, na medida em que dá lugar ao sujeito do inconsciente e sua verdade que se mostram contraditórios à própria razão consciente do sujeito. Somos nós, ao mesmo tempo, conflito de afetos, prenhe da ambivalência de sentimentos, “um estranho gêmeo, um duplo assimétrico do sujeito” (Souza, 2021, p. 121).
Para além desse estrangeiro interno, intrapsíquico, há outras figuras que despontam e lhe figuram no social. Souza encaminha o texto sugerindo ao leitor pensar no Outro exterior em sua figura do duplo, o qual se reconhece a presença a despeito do lugar de invisibilidade que esse estranho ocupa: uma presença invisível. A esses estrangeiros familiares, a autora elenca exemplos de nosso cotidiano. Figuras familiares, mas, ao mesmo tempo, estigmatizados socialmente por conferirem risco e ameaça a padrões e estruturas sociais enrijecidas. Traz o feminino como uma das figuras do estranho, do estrangeiro que nos co-habita. O corpo e o gozo dessa figura aparecem como objeção à norma, ao mesmo e à ordem dominante. Souza não se furta em destacar a regra que delimita um campo marginal ao feminino, pois “é sempre o masculino, o fálico, o adulto, o europeu” que devem prevalecer (Souza, 2021, p. 126). O diferente, o estrangeiro, caminha em sentido oposto à dita “regra”.
O louco também é um estrangeiro por fugir à norma, à razão empírica, à linguagem padrão. O louco tenciona a neurose padrão da civilização, que carrega a frágil e onipotente ideia de um controle racional e consciente sobre si e sobre o mundo. Remete-o à angústia do descontrole, da desrazão, da estranheza em si mesmo: “Afetado pela transitoriedade das coisas, há quem mergulhe na dor, nas paixões tristes, no sentimento de estranheza” (Souza, 2021, p. 128).
Ao longo do texto, Souza tece associações da figura do estrangeiro como sendo análoga à mulher, ao negro, ao migrante, ao louco (especialmente na figura maior da loucura, como símbolo da psicose). Neusa tem um papel fundamental nos estudos decoloniais e para pensar uma psicanálise no Brasil. Não por menos, depois de sua obra “Tornar-se negro”, em 1983, ela enveredou pelos estudos da psicose.
Ela transitou, justamente, entre esses grandes temas que têm como eixo comum a figura do estrangeiro. De modo que, apesar do tácito distanciamento em relação à temática da negritude e da luta antirracista, Neusa ampliou suas investigações. Talvez, seja possível levantarmos a hipótese de que a autora não reduziu seu pensamento a questões identitárias, no sentido da redução ao identitarismo e suas políticas reformistas que insistem em preservar as mesmas estruturas sociais (Haider, 2019).
Ao nos autorizar a pensar o estrangeiro como o imprestável explorado, como incômodo presente, somos levados a refletir sobre outros enjeitados sociais. Falamos aqui dos adolescentes acusados de serem autores de ato infracional. Esses meninos e meninas suscitam em nós divergências éticas entre o discurso do corre e do Direito, e suas identificações com esses modos de agir que pervertem a lógica capitalista, no sentido de criar acessos alternativos a lugares e bens materiais que de outra forma lhes seriam dificultados. Seriam eles exemplos de estrangeiros que almejamos trancafiar ou colocar fora dos perímetros de nossa paisagem?
Pensamos o sujeito imerso na socioeducação também como uma figura do estrangeiro, um inquietante. Afinal, o imoral é o outro, nunca nós mesmos. Sobretudo, o autor de ato infracional é dotado de cor, gênero e classe. Portanto, acumula marcadores sociais bem situados como restos que a civilização ocidental almejou findar com suas políticas de morte.
Que esta resenha possa ser um convite à obra de Neusa Santos Souza, de modo a fomentar a resistência e o enfrentamento de práticas que aviltam os direitos desses sujeitos, colocando-os no lugar de estrangeiros na própria terra. Que possamos nos opor ao “admitir a transitoriedade de todas as coisas, da afirmação alegre da diferença”, mas de uma diferença que não seja equivalente à desigualdade (Souza, 2021, p. 129). Finalizamos nossa escrita, a exemplo da autora, na provocação de reconhecer o estrangeiro que nos rodeia e nos habita, o estrangeiro de dentro e fora de nós.
Desejamos a todos uma inquietante leitura, assim como deve ser Neusa Santos Souza!












