Introdução
O desenvolvimento linguístico está fortemente associado ao desenvolvimento cognitivo. Dito de outro modo, quanto melhor for o desenvolvimento da linguagem das crianças, mais facilidade elas terão para comunicar seus pensamentos e sentimentos, assim como para compreenderem a linguagem dos outros. Durante os seis primeiros anos de vida, as crianças necessitam desenvolver habilidades linguísticas e cognitivas que serão os pilares para o sucesso na aprendizagem acadêmica posterior (Zauche et al., 2016).
As habilidades linguísticas consideradas preditoras da aprendizagem da leitura envolvem a fonologia, consciência silábica e fonêmica, a morfologia, o discurso e a pragmática; já as habilidades cognitivas correspondem ao processamento da informação auditiva e visual, a velocidade de processamento, a atenção, memória, planejamento e organização (Silva & Martins-Reis, 2017; León et al., 2019; Silva & Capellini, 2021).
De maneira mais diretamente relacionada ao processo inicial de aprendizagem da leitura e escrita, a literatura destaca as habilidades que fazem parte do processamento fonológico, como: consciência fonológica, memória fonológica e nomeação seriada rápida. Tais competências estão associadas ao sucesso da aprendizagem, já que são responsáveis, respectivamente, pela capacidade de análise da estrutura sonora da fala, retenção de informações e o acesso rápido a representações das informações fonológicas da língua (Silva & Martins-Reis, 2017; León et al., 2019; Silva & Capellini, 2021).
Por esta razão, não é por acaso que os pesquisadores recomendam que os currículos da Educação Infantil estimulem e promovam o desenvolvimento da linguagem oral (Sargiani & Maluf, 2018). A importância do estímulo à linguagem oral na Educação Infantil, além de ser um consenso entre os pesquisadores, já está consolidada como política pública no Brasil. Desde 2010, as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) para a Educação Infantil, por exemplo, já destacavam que as práticas pedagógicas da Educação Infantil deveriam favorecer a imersão das crianças em diferentes linguagens e experiências narrativas, com diferentes formas de expressão e gêneros textuais (Brasil, 2010).
Vale salientar que até bem recentemente as práticas de Educação Infantil possuíam um caráter meramente assistencialista, focado na promoção de boas práticas de higiene, segurança e alimentação, pouco fundamentadas em abordagens que visassem preparar os educandos para os desafios da escolarização posterior (Sargiani & Maluf, 2018).
Em uma revisão que aborda o fracasso histórico das políticas de alfabetização no Brasil, Scliar-Cabral (2019) destaca os baixos indicadores de qualidade da alfabetização do país obtidos nas avaliações nacionais e internacionais. Dentre outros aspectos graves, a autora aponta inconsistências que comprometem a interpretação das políticas públicas mais recentes, notadamente a Base Nacional Comum Curricular (Brasil, 2017) e a Política Nacional de Alfabetização (Brasil, 2019). Por fim, a autora destaca a importância de maiores investimentos em metodologias fundamentadas cientificamente e em formação continuada dos educadores.
Apesar dos avanços acima mencionados, não há uma concordância entre os estudiosos, tanto em âmbito nacional quanto internacional, sobre o que deve ser “ensinado” às crianças na etapa pré-escolar. De um lado, há os que defendem que a Educação Infantil deve priorizar vivências e brincadeiras que as crianças não poderão experienciar mais adiante e, de outro lado, os que argumentam que a Educação Infantil também deve garantir que as crianças adquiram habilidades cognitivo-linguísticas básicas que facilitem seu percurso no Ensino Fundamental, especialmente no que concerne à aprendizagem inicial da leitura e escrita (Sargiani & Maluf, 2018; Rosal et al., 2020).
O presente estudo se insere, portanto, na segunda vertente acima, ao conceber, por exemplo, que a aprendizagem da leitura e escrita pode ser iniciada a partir de uma reflexão consciente sobre a fala (metalinguagem) que também pode e deve ser estimulada de forma lúdica desde a Educação Infantil (Sargiani & Maluf, 2018; Machado & Maluf, 2019).
Pesquisas brasileiras sobre alfabetização e metalinguagem se multiplicaram nos últimos anos e é visível o aumento no número de estudos de intervenção que testam procedimentos de ensino voltados ao desenvolvimento de diferentes habilidades cognitivo-linguísticas. Como os estudos de intervenção envolvendo o modelo de Resposta a Intervenção - RTI (Santos & Capellini, 2020; Rosal et al., 2020).
Contudo, tais estudos em geral investigam essas habilidades em escolares nas séries iniciais do Ensino Fundamental (Rosal et al., 2020) ou em crianças com alguns transtornos de aprendizagem (Santos & Capellini, 2020), havendo uma lacuna de estudos de intervenção realizado com pré-escolares.
Considerando toda a problemática exposta, o presente estudo teve o objetivo de verificar a eficácia de um programa de intervenção voltado ao desenvolvimento das habilidades cognitivo-linguísticas em pré-escolares.
Método
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa envolvendo Seres Humanos da Universidade Federal de Pernambuco, sob o parecer 4.148.247.
Trata-se de pesquisa de intervenção, exploratória e longitudinal, com abordagem quantitativa, conduzida em uma escola da Educação Infantil da rede pública municipal da cidade de Recife-PE durante o ano de 2019. Foi implementada em duas fases interligadas, a fase I – que compreendeu os procedimentos de avaliação inicial e a fase II – que compreendeu a intervenção propriamente dita, bem como a reavaliação das crianças.
A amostra foi composta por 90 pré-escolares com idades entre 5 e 5 anos e 11 meses, matriculados em quatro turmas do infantil V (último ano da pré-escola) e três professoras. Duas turmas receberam a intervenção voltada ao desenvolvimento das habilidades cognitivo-linguísticas (Turmas A e B - grupo caso) e duas turmas não receberam a intervenção (Turmas C e D - grupo controle).
As intervenções foram realizadas pelas pesquisadoras em conjunto com a professora de cada uma das turmas, em uma espécie de formação em serviço, na qual a professora recebia explicações sobre a finalidade de cada atividade à medida em que as intervenções aconteciam. Todo o material foi elaborado e disponibilizado pela equipe de pesquisa. É importante destacar que uma das professoras, a da Turma A (caso), também ensinava para a Turma D (controle) em outro turno, e foi incentivada e realizar as atividades com essa turma, sem a participação da pesquisadora. O objetivo desse incentivo foi verificar se a professora que recebeu formação em serviço em uma turma estaria preparada para realizar as atividades com outra turma.
As três professoras concordaram em participar da pesquisa e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Foram incluídos na pesquisa os escolares cujos responsáveis também manifestaram o consentimento mediante assinatura do TCLE. Foram excluídos os pré-escolares que não assinaram o termo ou possuíam diagnóstico de alguma deficiência, conforme laudo médico apresentado pela família à escola. Vale ressaltar que todas as crianças das turmas participavam das atividades, mas apenas aquelas que atenderam aos critérios de inclusão foram incluídas na pesquisa.
Para avaliação do desempenho cognitivo-linguístico dos pré-escolares, inicialmente foi realizada uma busca por um instrumento já validado no país para pré-escolares. Como este instrumento não foi encontrado, uma etapa preliminar da presente investigação consistiu em adaptar um instrumento publicado para o ensino fundamental, para uso na educação infantil. O instrumento utilizado foi o Protocolo de Identificação Precoce dos Problemas de Leitura - IPPL (Capellini et al., 2017). Foram realizados estudos pilotos, até que se chegou à versão adaptada.
Em linhas gerais, a adaptação do instrumento envolveu ajustes nas instruções das provas, inclusões de novos itens de treinamento, uso de material concreto para apoio em algumas provas, exclusão ou modificações de provas que envolviam análises e manipulações fonêmicas, além da exclusão de uma prova de leitura de palavras e pseudopalavras, o que culminou em um instrumento contendo as seguintes provas: conhecimento do alfabeto (vogais e consoantes), habilidades metafonológicas (produção de rima, identificação de rima, segmentação silábica, produção de palavras a partir de sílabas iniciais, síntese silábica, identificação de sílaba inicial), memória operacional fonológica, nomeação automática rápida, leitura silenciosa de palavras (escolher entre três palavras a que representa uma figura) e compreensão auditiva de sentenças a partir de figuras.
O Quadro 1 apresenta uma síntese das adaptações realizadas no IPPL, a fim de avaliar as habilidades cognitivo-linguísticas em pré-escolares.
Habilidade | IPPL original | Versão adaptada para a Educação Infantil |
---|---|---|
Reconhecimento e nomeação de letras | Conhecimento do alfabeto | Conhecimento de vogais e consoantes, apresentadas separadamente com auxílio de letras de borracha (material concreto) |
Habilidades metafonológicas | Produção de rima | ** |
Identificação de rima | ** | |
Segmentação silábica | Apresentadas da mesma forma, com o auxílio de fichas para facilitar a segmentação das sílabas (material concreto) | |
Produção de palavras a partir do fonema dado | Produção de palavras a partir de sílabas iniciais | |
Síntese fonêmica | Síntese silábica | |
Análise fonêmica | Prova excluída na versão adaptada | |
Identificação de fonema inicial | Identificação de sílaba inicial | |
Memória operacional fonológica | Memória operacional fonológica | ** |
Nomeação automática rápida | Nomeação automática rápida (objetos) | Acréscimo de prancha para treino antes da aplicação dos itens de teste e do registro do número de acertos, gerando duas medidas: tempo de realização da nomeação e acertos |
Identificação de palavras | Leitura silenciosa (a criança escolhe entre duas palavras a que representa uma figura) | Modificações nas instruções e acréscimo de mais uma palavra, ficando três opções de respostas, para reduzir a possibilidade de acertos ao acaso |
Leitura oral de palavras e pseudopalavras | Leitura de palavras e pseudopalavras | Prova excluída na versão adaptada |
Compreensão auditiva de sentenças | Compreensão auditiva se sentenças a partir de figuras | ** |
OBS: ** atividade apresentada no formato proposto pelo IPPL original, sem a necessidade de adaptações nas instruções ou itens.
A aplicação do IPPL em sua versão adaptada foi realizada individualmente pelas pesquisadoras, em sala reservada na própria escola. A duração média da aplicação foi de 40 minutos por criança.
Em relação à intervenção para as turmas do grupo caso, as crianças foram expostas a oito sessões de intervenção coletiva, com duração média de 90 minutos, aplicadas pelas pesquisadoras, com o auxílio da respectiva professora, para todo o grupo-classe, sendo que em quatro sessões foram trabalhadas habilidades metafonológicas (com foco na identificação e produção de rima) e nas demais sessões foram trabalhadas outras habilidades cognitivo-linguísticas, conforme descrição a seguir.
As quatro primeiras sessões foram baseadas nos livros da coleção Histórias para o desenvolvimento de rima e aliteração, que trazem histórias contendo rima e aliteração e atividades para expansão do vocabulário (Cerqueira César et al., 2019). Em cada uma das sessões utilizou-se uma história dos livros, que era projetada com o auxílio de recurso multimídia e contada pela pesquisadora. Durante a narração, a pesquisadora explorava a rima, a aliteração e o vocabulário, conforme orientações disponíveis nos livros. Ao final da narrativa, uma atividade complementar, também disponível nas obras, era realizada coletivamente. Um exemplo de atividade complementar era o jogo de memória de rima, em que cada criança recebia uma palavra e tinha que encontrar o(a) colega que estava com outra palavra que rimava com a sua.
As quatro últimas sessões tomaram por base o conjunto de atividades dos livros “Pensando em imagens, sons, palavras e letras: atividades para desenvolver competências para o aprendizado da linguagem escrita”. O material é dividido em Caderno do Aplicador (Zorzi et al., 2017a) Caderno da Criança (Zorzi et al., 2017b) e contém um conjunto de 159 atividades que foram idealizadas para favorecer o desenvolvimento cognitivo-linguístico de crianças em fase pré-escolar e no início do ciclo de alfabetização.
Dentre as atividades disponíveis nos livros, foram selecionadas as que envolviam as seguintes habilidades: 1) Consciência e segmentação silábica – usando fichas ou os dedos das mãos as crianças eram solicitadas a descobrir a quantidade de sílabas das palavras e falar as sílabas; 2) Nomeação automática rápida de letras, números, formas, cores e figuras – as atividades disponíveis no livro eram projetadas com auxílio de recurso multimídia e as crianças eram solicitadas a nomeá-las coletivamente; 3) Percepção visual de figuras, letras e palavras – as atividades disponíveis nos livros eram projetadas com auxílio de recurso multimídia, as crianças solicitadas a executá-las, e uma criança por vez era escolhida para ir até o quadro apresentar a resposta do grupo; 4) Processamento sonoro, que inclui a discriminação auditiva de palavras e a memória fonológica para dígitos, palavras e pseudopalavras – as palavras estímulos eram faladas pelas pesquisadoras e as crianças deveriam realizar a atividade solicitada, discriminando as palavras ou repetindo-as conforme as instruções; e 5) Consciência lexical e morfossintática – que envolvia a identificação de pseudopalavras e palavras reais, bem como o julgamento da adequação gramatical ou não de frases que eram ditadas pelas pesquisadoras.
Todo material utilizado na intervenção foi disponibilizado pelas pesquisadoras. As intervenções foram registradas em vídeo e em diário de campo.
Após as intervenções todas as crianças das turmas caso e controle foram reavaliadas com o mesmo instrumento – o IPPL adaptado para a Educação Infantil.
Os dados foram tabulados em planilha do software estatístico SPSS, versão 21.0, e analisados por meio de análises descritivas e inferenciais, a fim de comparar os grupos antes e após intervenção, adotando-se o intervalo de confiança de 95%.
Resultados
Inicialmente, são apresentados os dados obtidos na primeira fase da coleta por meio da aplicação do instrumento IPPL adaptado. Para fins de comparação, as médias dos escolares do 1º ano que compuseram a amostra original do IPPL são apresentadas na última coluna (Tabela 1).
PROVA | N | MÍN | MAX | MÉDIA | DP | 1º ANO |
---|---|---|---|---|---|---|
CV | 90 | 0 | 5 | 4,44 | 1,09 | - |
CC | 90 | 0 | 18 | 10,68 | 6,14 | - |
CALF | 90 | 0 | 23 | 15,14 | 6,88 | 21,66 |
PR | 90 | 0 | 17 | 1,0 | 2,92 | 11,42 |
IR | 90 | 0 | 20 | 5,79 | 6,69 | 15,45 |
SEGS | 89 | 0 | 21 | 14,65 | 7,4 | 19,38 |
PP | 89 | 0 | 21 | 11,34 | 6,0 | 18,68 |
SINS | 89 | 0 | 22 | 18,13 | 6,12 | - |
ISI | 89 | 0 | 21 | 12,66 | 8,52 | - |
MOF | 89 | 0 | 24 | 19,48 | 5,13 | 20,54 |
NRT | 87 | 26 | 89 | 48,07 | 12,87 | 43,44 |
NRA | 81 | 0 | 35 | 28,85 | 11,48 | - |
LS | 88 | 0 | 10 | 4,31 | 1,99 | 8,95 |
CA | 88 | 2 | 20 | 18,06 | 2,78 | 19,32 |
CV – conhecimento de vogais, CC – conhecimento das consoantes, CALF – conhecimento do alfabeto, PR – produção de rima, IR – identificação de rima, SEGS – segmentação silábica, PP – produção de palavra a partir de fonema ou sílaba inicial, SINS – síntese silábica, ISI – identificação de som ou sílaba inicial, MOF – memória operacional fonológica, NRT – nomeação automática tempo, NRA - nomeação automática acertos, LS – leitura silenciosa, CA – compreensão auditiva de sentenças.
Como é possível observar na Tabela 1, os pré-escolares do presente estudo apresentaram médias de desempenho bem mais baixas que os escolares do 1º ano do estudo original do IPPL, na maioria das habilidades avaliadas, sendo que na produção e identificação de rimas essa diferença foi bastante acentuada.
A fim de identificar o quantitativo de escolares que poderiam estar em risco para problemas de aprendizagem, foi realizada uma análise pelos percentis, que possibilitou encaixar cada criança em uma classificação de em risco, sob atenção ou fora de risco. Para efeitos de comparação, também são apresentados os percentis obtidos na população do 1º ano do estudo original (Tabela 2).
PROVA | N | 25 | 75 | 1º ANO 25 | 1º ANO 75 |
---|---|---|---|---|---|
CV | 90 | 4 | 5 | - | - |
CC | 90 | 5,75 | 17 | - | - |
CALF | 90 | 10 | 22 | 21 | 23 |
PR | 90 | 0 | 0 | 5 | 18 |
IR | 90 | 0 | 13 | 12,50 | 19 |
SEGS | 89 | 9 | 21 | 19 | 21 |
PP | 89 | 8 | 16 | 18 | 21 |
SINS | 89 | 19 | 21 | - | - |
ISI | 89 | 1 | 20 | - | - |
MOF | 89 | 18 | 23 | 19,50 | 23 |
NRT | 87 | 40 | 54 | 35 | 51 |
NRA | 81 | 30 | 35 | - | - |
LS | 88 | 3 | 6 | 8 | 10 |
CA | 88 | 17,25 | 20 | 19 | 20 |
CV – conhecimento de vogais, CC – conhecimento das consoantes, CALF – conhecimento do alfabeto, PR – produção de rima, IR – identificação de rima, SEGS – segmentação silábica, PP – produção de palavra a partir de fonema ou sílaba inicial, SINS – síntese silábica, ISI – identificação de som ou sílaba inicial, MOF – memória operacional fonológica, NRT – nomeação automática tempo, NRA - nomeação automática acertos, LS – leitura silenciosa, CA – compreensão auditiva de sentenças.
Tomando os percentis 25 e 75 como ponto de corte, as crianças que obtiveram pontuação entre 0 e 25 na maioria das habilidades foram consideradas em risco; entre 25 e 75 sob atenção e acima de 75 fora de risco (desempenho esperado).
A Tabela 3, a seguir, apresenta a distribuição dos pré-escolares das turmas caso (A e B) entre as categorias em risco, sob atenção e fora de risco, antes e após a intervenção educativa.
PROVA | N | N | ESPERADO | ATENÇÃO | RISCO | |||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
PRÉ | PÓS | PRÉ | PÓS | PRÉ | PÓS | PRÉ | PÓS | |
CV | 46 | 40 | 35 | 34 | 5 | 5 | 6 | 1 |
CC | 46 | 40 | 18 | 18 | 16 | 15 | 12 | 7 |
CALF | 46 | 40 | 18 | 19 | 17 | 16 | 11 | 5 |
PR* | 46 | 40 | - | 1 | 7 | 14 | 39 | 25 |
IR* | 46 | 39 | 12 | 27 | - | - | 34 | 12 |
SEGS | 46 | 40 | 13 | 23 | 24 | 16 | 9 | 1 |
PP | 46 | 40 | 12 | 24 | 23 | 11 | 11 | 5 |
SINS | 46 | 40 | 30 | 36 | 7 | 2 | 9 | 2 |
ISI | 46 | 40 | 14 | 31 | 24 | 7 | 8 | 2 |
MOF | 46 | 40 | 13 | 25 | 23 | 9 | 10 | 6 |
NRT | 45 | 39 | 12 | 15 | 22 | 12 | 12 | 12 |
NRA | 42 | 37 | 20 | 13 | 12 | 19 | 10 | 5 |
LS | 45 | 37 | 13 | 22 | 25 | 9 | 7 | 6 |
CA | 45 | 37 | 15 | 29 | 18 | 8 | 12 | 2 |
CV – conhecimento de vogais, CC – conhecimento das consoantes, CALF – conhecimento do alfabeto, PR – produção de rima, IR – identificação de rima, SEGS – segmentação silábica, PP – produção de palavra a partir de fonema ou sílaba inicial, SINS – síntese silábica, ISI – identificação de som ou sílaba inicial, MOF – memória operacional fonológica, NRT – nomeação automática tempo, NRA - nomeação automática acertos, LS – leitura silenciosa, CA – compreensão auditiva de sentenças.
Como é possível observar, houve um aumento no número absoluto de crianças com desempenho dentro do esperado e uma diminuição das crianças em atenção e em risco após a intervenção educativa.
Para testar a normalidade ou não de distribuição dos dados, foram aplicados os testes de Kolmogorov-Smirnov e Shapiro-Wilk que revelaram que os dados não possuíam distribuição normal, sendo necessária a utilização de um teste não paramétrico para comparar os desempenhos das turmas antes e após a intervenção.
A Tabela 4 apresenta esta comparação, nas quatro turmas avaliadas. A comparação antes e após foi realizada por meio do teste de Wilcoxon Signed-Rank.
Turma A | Turma B | Turma C | Turma D | |||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Pré | Pós | Pré | Pós | Pré | Pós | Pré | Pós | |
CALF | 15,79 (7,5) | 17,84 (6,8)* | 16,57 (6,3) | 18,29 (5,9)** | 12,71 (6,6) | 11,57 (7,5) | 16,40 (6,0) | 18,70 (5,0)** |
PR | 1,79 (4,8) | 4,00 (5,7) | 1,52 (3,1) | 3,38 (4,3) | 0,07 (,267) | 0,57 (1,0) | 0,65 (1,0) | 2,65 (5,2)** |
IR | 6,61 (7,4) | 12,33 (8,6)** | 3,86 (6,7) | 14,52 (6,5)** | 6,00 (5,9) | 9,00 (7,1) | 6,80 (6,5) | 10,40 (6,6) ** |
SEGS | 15,84 (7,2) | 18,89 (4,2) * | 17,05 (6,4) | 19,71 (2,0) | 10,71 (7,1) | 13,07 (6,8) | 17,00 (6,3) | 19,68 (3,3) |
PP | 11,89 (5,0) | 16,16 (6,4) ** | 11,76 (6,5) | 15,38 (6,0)** | 8,93 (6,5) | 12,21 (6,5) | 13,11 (5,1) | 19,37 (1,9) ** |
SINS | 18,74 (5,3) | 20,37 (2,5) | 19,62 (4,7) | 20,81 (,68) | 16,79 (7,3) | 20,50 (1,0) | 18,63 (5,9) | 20,05 (3,8) |
ISI | 10,89 (8,6) | 16,95 (7,3) ** | 16,52 (7,0) | 19,24 (5,0)** | 13,50 (9,0) | 17,71 (7,1) | 10,42 (7,5) | 16,89 (6,3) ** |
MOF | 20,74 (3,2) | 22,05 (2,8) | 19,52 (4,9) | 22,43 (3,9) * | 19,36 (3,2) | 21,64 (2,3) | 18,47 (8,4) | 22,68 (1,7) ** |
NRT | 47,00 (11,8) | 45,00 (3,7) | 42,10 (8,2) | 44,00 (11,0) | 54,86 (18,2) | 59,57 (41,2) | 46,16 (9,5) | 45,32 (9,1) * |
NRA | 31,73 (8,9) | 32,80 (2,1) | 31,11 (8,4) | 33,06 (2,8) | 18,45 (17,6) | 26,45 (12,0) | 33,59 (2,7) | 34,24 (2,9) |
LS | 4,87 (1,9) | 5,20 (2,8) | 3,81 (1,8) | 5,86 (2,8)** | 3,46 (1,3) | 3,92 (2,1) | 5,42 (2,1) | 4,84 (2,2)* |
CA | 18,06 (2,4) | 19,47 (1,0) * | 17,19 (4,4) | 19,10 (1,7) | 18,85 (1,4) | 19,31 (1,3) | 18,37 (1,4) | 19,89 (0,65)** |
CALF – conhecimento do alfabeto, PR – produção de rima, IR – identificação de rima, SEGS – segmentação silábica, PP – produção de palavra a partir de fonema ou sílaba inicial, SINS – síntese silábica, ISI – identificação de som ou sílaba inicial, MOF – memória operacional fonológica, NRT – nomeação automática tempo, NRA - nomeação automática acertos, LS – leitura silenciosa, CA – compreensão auditiva de sentenças.
*p<.05; **p<.01
Como é possível observar, houve avanços significativos em diversas habilidades cognitivo-linguísticas nas turmas A e B, que foram as turmas que receberam a intervenção educativa, assim como na turma D, cuja professora recebeu a formação em serviço durante a intervenção na turma A. A turma C, que não recebeu a intervenção direta, nem indireta (por meio da professora), não evoluiu como as demais turmas, uma vez que não foram observados avanços significativos em nenhuma das habilidades investigadas.
Discussão
Os resultados do estudo mostram, de modo geral, que, com exceção das provas de identificação e produção de rima, todas as demais foram realizadas sem muitas dificuldades pela maioria das crianças pré-escolares, ao passo que foi possível identificar as crianças em risco, sob atenção e fora de risco. Tais resultados sugerem, que apesar do IPPL não ter sido desenvolvido para esse público-alvo (Capellini et al., 2017), com algumas adaptações como as descritas na presente investigação, é possível avaliar as habilidades cognitivo-linguísticas em pré-escolares.
Contudo, inegavelmente o instrumento adaptado para a Educação Infantil ainda necessitará passar por novos estudos de validação psicométrica antes de ter o seu uso recomendado para o contexto educacional ou clínico. A este respeito Pernambuco et al. (2017) destacam que, de modo geral, os estudos de validação de instrumentos devem sistematizar o procedimento metodológico e seguir as recomendações psicométricas, desde a elaboração até a interpretação dos testes.
A comparação dos resultados antes e após a intervenção educativa revelou que houve avanços significativos na maioria das habilidades avaliadas nas turmas que receberam intervenção. No que se refere às habilidades de identificação e produção de rima houve avanço significativo apenas na identificação. Esses dados sugerem a identificação surge antes da produção de rimas, visto que se trata de uma “sensibilização” para o reconhecimento de sons (identificação) que, possivelmente poderá se consolidar a partir de uma exposição mais sistemática a esse tipo de reflexão, chegando até a produção que denotaria a reflexão metafonológica deliberada e consciente. Machado e Maluf (2019) destacam as habilidades metalinguísticas podem ser desenvolvidas por meio de estratégias pedagógicas apoiadas na linguagem oral, como parlendas, rimas, músicas, jogos que envolvem manipulações de fonemas, etc. De modo semelhante ao que foi observado no presente estudo, Santos e Barrera (2017) também observaram efeitos positivos de um programa de intervenção em consciência fonológica aplicado a pré-escolares.
Estudos reconhecem que as habilidades metafonológicas são capazes de predizer o sucesso na aprendizagem inicial da leitura e escrita e, como consequência, que o estímulo ao desenvolvimento metafonológico desde a Educação Infantil pode aumentar as chances de sucesso das crianças diante do desafio da aprendizagem da escrita, diminuindo as possibilidades de fracasso na alfabetização (Leite et al., 2018), o que se torna particularmente importante para crianças com poucas oportunidades socioeducativas no ambiente familiar, como muitas que, em geral, frequentam as escolas públicas brasileiras.
A este respeito, León et al. (2019), por exemplo, compararam estudantes de escolas públicas e particulares em relação ao desenvolvimento da consciência fonológica, e encontraram evidências de que o tipo de escola, pública ou particular, parece influenciar no desenvolvimento dessa e de outras habilidades cognitivas importantes para a aprendizagem da leitura e escrita.
Assim, tomados em conjunto, os resultados obtidos na presente investigação reforçam a importância do trabalho sistemático com as habilidades cognitivo linguísticas na pré-escola, sobretudo, no contexto da educação pública, como aconteceu no presente estudo, com vistas a favorecer a aprendizagem inicial da leitura e escrita, contribuindo para diminuir as desvantagens socioeducativas de muitas crianças e, também como medida para a identificação precoce dos problemas de aprendizagem, como as que são preconizadas no Modelo de Resposta à Intervenção - RTI (Response to intervention) (Flecher & Vaughn, 2009; Funchs & Vaughn, 2012).
Como apontado nos resultados do presente estudo, a realização de oito sessões de intervenções educacionais voltadas ao desenvolvimento de habilidades cognitivo-linguísticas nas crianças pré-escolares, a partir de atividades estruturadas, baseadas em evidências científicas, parece ser eficaz para promover o desenvolvimento de habilidades cognitivo-linguísticas importantes para a alfabetização. Contudo, novas pesquisas ainda precisam ser realizadas no campo da avaliação e intervenção das habilidades cognitivo-linguísticas com este público-alvo, a fim de testar instrumentos de avaliação e modelos de programas de intervenção em pré-escolares.
Nesse sentido, um outro aspecto importante a ser destacado é que o presente estudo não teve a pretensão de apresentar um programa de intervenção estruturado para a população pré-escolar. De modo diferente, o estudo utilizou materiais já publicados (Zorzi et al., 2017a; 2017b; Cerqueira César et al., 2019), adaptando-os para o uso coletivo. Como mencionado no método, essa adaptação consistiu basicamente na elaboração de arquivos digitais para a aplicação coletiva em sala de aula, utilizando recursos de projeção visual.
Desse modo, diferentemente de intervenções que foram publicadas para os escolares do Ensino Fundamental (Silva & Capellini, 2019), a proposta de intervenção aqui apresentada para os pré-escolares, apesar de oferecer evidências práticas que permitem afirmar que é possível propor intervenções mais estruturadas para esta população, também carecem de novas investigações que ofereçam maior validade. Trata-se, portanto, de uma área que precisa de maior atenção e investimento por parte dos pesquisadores e instituições de fomento à pesquisa no Brasil.
Um outro aspecto que merece ser destacado é que o modelo de intervenção adotado utilizou uma proposta de formação em serviço, uma vez que as professoras das turmas do grupo caso participaram diretamente das intervenções, pois estavam em sala de aula junto com as pesquisadoras no momento de aplicação das atividades.
Contudo, conforme mencionado no método, a professora da turma A (caso) também lecionava na turma D (controle) em outro turno e aplicou as atividades também nessa turma, sem a presença das pesquisadoras. Os resultados mostraram que a turma D (que recebeu essa intervenção indireta) evoluiu tanto quanto as turmas A e B que receberam a intervenção diretamente das pesquisadoras, o que revela que o investimento na formação permanente dos professores, por meio de ações práticas, desenvolvidas por equipes multiprofissionais, pode ser uma grande estratégia para promover avanços na qualidade do ensino pré-escolar. Scliar-Cabral (2019) reforça a importância do investimento na formação continuada dos professores, além da oferta de métodos e recursos didáticos fundamentados cientificamente, como forma de alavancar a qualidade da educação.
Vale salientar que as investigações na área das habilidades cognitivo-linguísticas em pré-escolares não são recentes. Roazzi et al. (2010), em um estudo que revisa o conhecimento metalinguístico antes da escolarização formal, destacam que existem inúmeras evidências de pesquisas que reconhecem que a criança desde a fase pré-escolar procura, ativamente, compreender a natureza da linguagem que se fala em sua volta e que, na tentativa de compreendê-la, formula hipóteses, procura regularidades, submete suas previsões à verificação e constrói uma gramática própria, que não é uma simples cópia do modelo adulto, mas uma criação bem original. Assim, de acordo com os autores, quando a criança inicia o processo de alfabetização já possui um notável conhecimento da própria língua, possuindo um “saber linguístico decorrente do uso que faz dessa língua em todas as suas ações comunicativas do dia a dia” (p. 44).
Mais recentemente, pesquisas apontam que a utilização de programas de intervenção na Educação Infantil pode contribuir positivamente para o desenvolvimento dos pré-escolares. A intervenção voltada para esse público pode facilitar a transição para o Ensino Fundamental, ajudando a criança a desenvolver habilidades adequadas de prontidão escolar. Contudo, diversas barreiras têm dificultado a implementação de modelos de intervenção na Educação Infantil. Dentre as principais barreiras, a literatura aponta: limitações técnicas para avaliação e intervenções (poucos instrumentos disponíveis para lidar com essa faixa etária) e limitações na formação dos professores (Shepley & Grisham-Brown, 2019; Wackerle-Hollman et al., 2021).
Ao que parece, portanto, oferecer às crianças em fase pré-escolar atividades que as façam refletir sobre esse conhecimento linguístico que decorre do uso, pode ser um bom caminho para promover habilidades precursoras do processo de aprendizagem da leitura e escrita, facilitando e assegurando uma maior possibilidade de êxito nesse processo.
Considerações
O programa desenvolvido mostrou-se eficaz para promover o desenvolvimento de habilidades cognitivo-linguísticas em pré-escolares, com boa aplicabilidade, reforçando a importância da utilização como instrumento de avaliação e intervenção educacionais baseadas em evidências científicas para esse público-alvo.
Espera-se que os resultados obtidos na presente investigação sirvam de subsídios para nortear a prática de profissionais na área da saúde da criança e da educação básica, bem como para direcionar futuras investigações e proposições de políticas públicas que possam contribuir para a melhoria da qualidade da educação pré-escolar no Brasil.