Introdução
A qualidade de sono é pré-requisito para a saúde plena do indivíduo, pois desempenha papel fundamental na formação de conhecimentos e consolidação da memória, além de funções metabólicas, cardiovasculares, imunológicas, dentre outras (Csábi et al., 2016). O sono é um estado complexo, associado a modificações fisiológicas, sendo considerado uma atividade protetora e de sobrevivência. Qualquer disfunção de sono na criança pode afetar processos de desenvolvimento, crescimento e cognição (Oliveira & Martino, 2013). O sono humano normal consiste em episódios cíclicos, que duram de 90 a 110 minutos, de movimentos oculares não rápidos (NREM), divididos em estágios N1, N2, N3 e movimentos oculares rápidos (REM), mensuráveis por índices eletrofisiológicos, fisiológicos e comportamentais (Rama & Zachariah, 2023).
De acordo com a Classificação Internacional de Doenças do Sono (American Academy of Sleep Medicine [AASM], 2014), dividida em seis principais grupos de doenças, a apneia obstrutiva do sono (AOS) pediátrica é um transtorno respiratório relacionado ao sono. A AOS é uma doença caracterizada pela obstrução parcial e/ou completa das vias aéreas superiores durante o sono, associada ao aumento do esforço respiratório, sono fragmentado e/ou anormalidades nas trocas gasosas (Neves et al., 2017). Com relação à fisiopatologia, o transtorno, em crianças, tem um padrão predominante de obstrução parcial e persistente de vias aéreas superiores, que implica em hipercapnia e hipóxia intermitente (Barros et al., 2014). O ronco, principal sintoma, faz-se presente no quadro clínico de praticamente todas as crianças com essa alteração (Silva et al., 2021). Também podem fazer parte do quadro clínico sinais e sintomas como respiração oral, esforço respiratório, parassonias, enurese, sudorese noturna, tosse, engasgos e agitação durante o sono (Silva et al., 2021).
A AOS pediátrica tem uma prevalência de cerca de 1 a 4% (American Academy of Sleep Medicine, 2014), com expressão clínica variável, em que fatores anatômicos, funcionais, neurais e genéticos interagem em sua gênese (Esteller, 2015). De acordo com a Academia Americana de Medicina do Sono, a gravidade da doença pode ser categorizada segundo o índice de apneia e hipopneia (IAH), que indica o número de episódios de apneia e hipopneia por hora de sono. Os principais fatores de risco para AOS na infância são hipertrofia adenoamigdaliana, obesidade, doenças neuromusculares, alterações craniofaciais e doenças genéticas (Csábi et al., 2016). Dentre todos estes fatores, a hipertrofia de tonsilas palatinas e faríngea destaca-se como principal etiologia (Barros et al., 2014). A adenotonsilectomia (AT) é considerada padrão ouro de tratamento e, quando feita no momento adequado, pode beneficiar a criança em aspectos neuropsicológicos, comportamentais e de qualidade de vida. Ressalta-se que esse sucesso apresenta menor taxa em crianças obesas (Corrêa et al., 2017).
O objetivo do presente artigo foi conduzir uma revisão da literatura para descrever as pesquisas acerca dos déficits neuropsicológicos de crianças em fase escolar que apresentam AOS. Pretende-se identificar eventuais lacunas de conhecimento no que se refere ao impacto da AOS nas funções cognitivas e executivas na faixa etária estudada.
Os conhecimentos obtidos poderão contribuir com diagnósticos mais precisos e beneficiar profissionais de saúde e pacientes, uma vez que distúrbios do sono, quando negligenciados, podem gerar erros diagnósticos, como sugestão diagnóstica de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), dentre outros transtornos do neurodesenvolvimento.
Método
Estratégias de pesquisa
As etapas seguidas para a seleção dos estudos da revisão integrativa foram: elaboração da pergunta norteadora, busca da literatura e análise crítica dos estudos.
A pergunta norteadora da investigação que subsidiou a revisão foi: crianças com AOS podem apresentar, como consequência do quadro, déficits neuropsicológicos, impactos cognitivos e linguísticos?
Para a seleção dos artigos, foram utilizadas as bases LILACS e outras bases via Portal Regional da BVS; MEDLINE via PubMed; Embase; CINAHL; Cochrane Library; Scopus; Web of Science; PsycINFO; PEDro e OTseeker, buscando publicações dos últimos dez anos, em todos os idiomas, com as seguintes palavras-chave: Fonoaudiologia; Neuropsicologia; apneia obstrutiva do sono; diagnóstico e criança. A estratégia de busca foi planejada para recuperar os estudos, em todos os idiomas, que contenham, pelo menos, um dos termos de cada conceito: apneia obstrutiva do sono, criança e déficits neuropsicológicos.
Critérios de elegibilidade/de seleção
Após a localização dos estudos foi realizada triagem, considerando o título e o resumo dos artigos. A busca inicial resultou em 219 artigos, segundo as bases especificadas na Tabela 1, a seguir.
Base de Busca | Quantidade de Artigos |
---|---|
BVS | 25 |
PubMed | 28 |
COCHRANE | 10 |
CINAHL | 2 |
SCOPUS | 38 |
WEB OF SCIENCE | 44 |
EMBASE | 72 |
Total | 219 |
Fonte: Elaborado pelas autoras.
Foram incluídos ensaios clínicos randomizados, revisões da literatura, estudos transversais e de coorte e artigos originais publicados entre 2012 e 2022. Foram excluídos artigos duplicados e artigos que abordavam comorbidades – como anemia falciforme, síndrome de Down, craniossinostose, síndrome de hipoventilação central congênita – e que não incluíam grupo etário definido – crianças de 6 a 12 anos de idade. Ao final, foram selecionados 21 artigos, considerando os critérios de inclusão e exclusão, para que fossem lidos na íntegra (Figura 1).
Resultados
A partir da metodologia aplicada e das referências selecionadas1, elaborou-se o Quadro 1, a seguir, com o resumo dos achados.
Referência | Local de publicação | Delineamento de Estudo | Amostra | Objetivos | Principais Resultados e Contribuições |
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Menzies et al. (2022) | Austrália | Revisão sistemática com meta- análise | 63 artigos incluídos na metanálise | Quantificar a gravidade dos déficits neurocognitivos e determinar se os déficits neurocognitivos são generalizados ou específicos de domínio em crianças com DRS. Determinar se os resultados neurocognitivos são moderados pela gravidade do SDB. | DRS em crianças foram associados a déficit em todos os domínios cognitivos: inteligência, atenção/função executiva, memória, linguagem e habilidades visuais espaciais. Crianças com ronco primário apresentam níveis comparáveis e às vezes mais altos de déficits cognitivos que crianças com AOS. O IMC é um fator que aumenta os resultados cognitivos ruins em crianças com distúrbios respiratórios do sono. Assim, o controle de peso pode aliviar os déficits neurocognitivos. |
Silva et al. (2021) | Brasil | Revisão sistemática | Selecionados 37 artigos, livros e teses, 12 nacionais e 25 internacionais. | Revisara literatura publicada nos últimos 20 anos a respeito da SAHOS infantil, compreender fatores etiológicos e tratamentos mais indicados. | A etiologia da SAHOS é considerada de caráter multifatorial e está associada principalmente com hipertrofia adenotonsilar, embora fatores anatômicos e funcionais predisponham à SAHOS na infância. A terapêutica da SAHOS pode variar de acordo com a gravidade, entre seguimento clínico, tratamento medicamentoso ou cirúrgico. |
Skjåkødegård et al. (2021) | Noruega | Estudo transversal | Crianças com obesidade de 7 a 13 anos (N=44) e um grupo pareado de crianças com peso normal (N= 42). | Comparar sono em crianças com obesidade, sem suspeita de DRS e pares com peso normal por meio de medidas objetivas do sono. Comparar os resultados com a avaliação subjetiva do sono pelos pais. | O grupo obesidade demonstrou prevalência significativamente maior de DRS leves a moderados do que as crianças com peso normal. Os DRS em crianças muitas vezes escapam à atenção dos pais. Eles não reconhecem o significado potencial do ronco. |
Hagström et al. (2020) | Finlândia | Estudo transversal | 17 crianças com ronco primário e 27 colegas não roncadores com idades entre 6 e 10 anos. | Avaliar os problemas comportamentais e de atenção e o funcionamento neurocognitivo em crianças em idade escolar com ronco primário. | Ronco com aumento do esforço respiratório sem apneias e hipopneias e sonolência diurna relatada pelos pais podem estar associados aos sintomas diurnos. Crianças em idade escolar com ronco primário correm o risco de problemas comportamentais e de atenção, mas não de deficiências cognitivas. |
Yin et al. (2019) | China | Estudo transversal | 56 pacientes pediátricos com SAHOS. | Determinar os efeitos objetivos da AT na SAHOS por meio da análise dos resultados da PSG entre o pré e o pós-operatório. | SAHOS pediátrica manifesta características de eventos respiratórios diferentes das dos adultos. A AT pode diminuir significativamente os eventos respiratórios e melhorar a arquitetura do sono, no entanto, ainda existem alguns pacientes que não podem ser completamente aliviados com a AT. |
Hodges et al. (2018) | EUA | Estudo randomizado | 453 crianças de 5 a 9,9 anos. Inventário de Depressão Infantil (CDI) aplicado apenas nas maiores de 7 anos= 176 crianças. | Examinar sintomas depressivos em relação aos controles em crianças com SAOS. | O aumento do risco de sintomas depressivos foi detectado entre crianças com SAOS, e diferentes variáveis demográficas contribuíram para o risco de sintomas de depressão relatados pelos próprios e pelos pais. O nadir da dessaturação de oxigênio arterial durante o sono foi fortemente associado aos sintomas depressivos. |
Cardoso et al. (2018) | Brasil | Revisão sistemática | Dos 649 artigos encontrados, apenas 34 preencheram os critérios de elegibilidade. | Obter evidências do impacto da SAOS nas habilidades cognitivas/comportamentais de crianças a partir de estudos primários publicados nas bases de dados MEDLINE/PubMed, LILACS, SciELO, ISI Web of Science e PsycINFO de 2002 a 2016. | Os poucos artigos selecionados com baixo risco de viés (níveis de evidência I e II) mostraram que em crianças com SAOS as habilidades intelectuais podem ser prejudicadas, mas permanecem dentro da faixa normal. Qual habilidade cognitiva específica leva a esse comprometimento não está claro, pois não havia evidências suficientes de déficits de linguagem, memória, atenção, funções executivas e desempenho acadêmico, devido a baixos níveis de evidência, achados conflitantes e/ou heterogeneidade de tarefas e habilidades cognitivas aproveitado pelas medidas usadas para avaliar esses domínios. |
Kocuta (2017) | Argentina | Relato de casos | 2 casos clínicos. | Envolver dentistas, odontopediatras e ortodontistas com uma visão atualizada sobre apneia infantil. | Demonstrar multidisciplinaridade no manejo diagnóstico e terapêutico da SAHOS. Recuperar estruturas e harmonizar funções é cumprir o objetivo de interceptar os fatores que comprometem a saúde física e psicológica da criança. |
Mesa e Riffo (2017) | Chile | Revisão de escopo | Artigo não especifica quantos artigos na metodologia, nem na base da pesquisa consultada. Nas referências constam 33 itens. | Revisão dos déficits cognitivos e comportamentais associados aos DRS e os principais testes que são feitos para seu estudo. | A relação entre DRS e problemas comportamentais em crianças é complexo, porém há uma associação clara. Em algumas crianças esses processos podem ser reversíveis. A neuroplasticidade e o diagnóstico precoce poderiam nos oferecer um melhor prognóstico. |
Corrêa et al. (2017) | Brasil | Revisão sistemática | Localizados: 37 artigos no PubMed, 47 na Scopus e 38 na Web of Science. Selecionados: seis estudos, de 2004 a 2014. | Verificar, com base na literatura, se a AOS em crianças está correlacionada a distúrbios de linguagem oral. | O diagnóstico e o tratamento tardios da AOS estão associados a um atraso na aquisição de habilidades verbais. Os profissionais que trabalham com crianças devem estar atentos, pois a maioria dos sons fonéticos são adquiridos na faixa de 3 a 7 anos, que também é o pico da hipertrofia de amígdalas e AOS infantil. |
Csábi et al. (2016) | Hungria | Estudo transversal | 32 crianças. | Examinar o efeito do sono fragmentado em diferentes funções de memória, testando crianças com SDB. | Crianças com DRS exibiram um desempenho de memória declarativa geralmente inferior tanto na fase de aprendizagem quanto na fase de teste os distúrbios do sono na infância têm um efeito diferencial em diferentes processos de memória (online versus offline) e nos dão uma visão de como os distúrbios do sono afetam o desenvolvimento do cérebro. |
Schneider et al. (2016) | Reino Unido | Estudo transversal | 64 crianças, com idades entre 4 e 7 anos, com e sem TDAH. | Examinar as relações entre distúrbios do sono, função comportamental e desempenho em testes neuropsicológicos entre crianças pequenas com e sem TDAH. | A desatenção e a disfunção executiva parecem ser atribuíveis aos sintomas do TDAH, e não ao distúrbio do sono. As relações entre sono, sintomas de TDAH e função neurocomportamental em crianças mais velhas podem apresentar padrões diferentes em função da cronicidade dos distúrbios do sono. |
Taylor et al. (2016) | EUA | Teste controlado e aleatório | Crianças de 5 a 9 anos com SAOS sem dessaturação de oxihemoglobina prolongada foram aleatoriamente designadas para espera vigilante com cuidados de suporte (n=227) ou AT precoce (eAT, n=226). | Investigar os efeitos do AT nas pontuações dos testes cognitivos no ensaio randomizado de AT infantil. | AT pode ter benefícios limitados na reversão de quaisquer efeitos cognitivos da SAOS, ou esses benefícios podem exigir um acompanhamento mais prolongado para se manifestar. |
Chung et al. (2016) | Irlanda | Estudo de Coorte | Crianças de 3 a 12 anos (n=147). | Analisar se alta capacidade intelectual, em comparação com o desempenho médio ou inferior, reflete as consequências da SDB e limita o benefício comportamental observado 6 meses após a AT. | A função comportamental pode melhorar após a AT mesmo entre crianças com capacidade intelectual relativamente alta no início do estudo |
Esteller (2015) | Espanha | Revisão sistemática | 114 itens nas referências bibliográficas. | Revisar os aspectos mais marcantes em relação à prevalência da SAHOS em cada um deles, os motivos pelos quais causam essa síndrome, suas interações e manuseio. | Interações dessas enfermidades (como obesidade, síndromes, e alteraões neuromusculares) com SAHOS são capazes de aumentar as complicações das doenças às quais está associada, com maior propensão ao comportamento cognitivo. O tratamento da SAHOS deve ser interdisciplinar porque existem várias peculiaridades. |
Chervin et al. 2015) | EUA | Teste controlado e aleatório | Depois que 194 crianças de 5 a 9 anos passaram por 7 meses de espera vigilante, 82 (42%) não preencheram mais os critérios polissonográficos para SAOS. | Verificar prognóstico sem tratamento (AT) para SAOS na infância. | Muitos candidatos a AT não apresentam mais SAOS na polissonografia após 7 meses de espera vigilante, ao passo que a melhora significativa dos sintomas não é comum. Na prática, um IAH baixo na linha de base, circunferência da cintura normal e pontuação de ronco podem ajudar a identificar uma oportunidade para evitar AT. |
Barros et al. (2014) | Brasil | Estudo prospectivo | 26 crianças. | Avaliar a evolução dos DRS em crianças não submetidas à cirurgia de vias aéreas superiores. | Os grupos não apresentaram diferenças quanto à idade, peso, altura e exame físico das vias aéreas. Após 6 meses de seguimento, o índice de apneia não se alterou, mas o índice de distúrbio respiratório aumentou no grupo ronco e o número de hipopneias diminuiu no grupo apneia. Houve aumento do percentual do estágio N1 do sono e do índice de distúrbios respiratórios nos pacientes com ronco primário. O IAH não apresentou alteração significativa em ambos os grupos, mas o número de hipopneias diminuiu nos pacientes com SAOS. |
Chervin et al. (2014) | EUA | Estudo prospectivo de coorte. | 133 crianças de 3 a 12 anos, 109 com AOS. | Avaliar se a fragmentação do sono poderia explicar os desfechos neurocomportamentais, avaliar prospectivamente o valor preditivo das excitações padrão e das alterações de EEG relacionadas ao ciclo respiratório. | A fragmentação do sono, refletida por excitação padrão e alterações na EEG, parece improvável para explicar a morbidade neurocomportamental entre crianças que passam por AT. |
Marcus et al. (2013) | EUA | Estudo randomizado | 464 crianças, de 5 a 9 anos de idade, com SAOS para AT precoce ou uma estratégia de espera vigilante. | Verificar se em crianças com SAOS sem dessaturação prolongada de oxi-hemoglobina, AT precoce, em comparação com espera vigilante com cuidados de suporte, resultaria em melhores resultados cognitivos, comportamentais e polissonográficos. | Em comparação com uma estratégia de espera vigilante, o tratamento cirúrgico para SAOS em crianças em idade escolar não melhorou significativamente a atenção ou função executiva, mas reduziu sintomas e melhorou qualidade de vida e achados da PSG, evidenciando efeitos benéficos da AT. |
Csábi et al. (2013) | Hungria | Estudo transversal | 10 crianças com DRS e 10 controles saudáveis. | Examinar os efeitos de distúrbios do sono em diferentes aspectos das funções de memória, testando crianças com SDB, que é caracterizado por padrões de sono interrompidos, | A SDB afeta a memória declarativa e a não declarativa de maneira diferente em crianças. O padrão de sono interrompido influencia os processos explícitos mais exigentes e guiados pela estrutura cortical, enquanto os processos implícitos que exigem menos atenção, mediados por estruturas subcorticais, são preservados. |
Chervin et al. (2012) | EUA | Estudo transversal | 81 crianças com idade de 7,8 ± 2,8 anos. | Comparar um índice padrão de apneia/hipopneia pediátrica com as pressões esofágicas quantitativas como preditores de morbidade neurocomportamental relacionada à apneia e resposta ao tratamento. | O monitoramento quantitativo da pressão esofágica pode agregar valor preditivo para alguns, senão todos, os resultados neurocomportamentais dos distúrbios respiratórios do sono. |
Fonte: Elaborado pelas autoras. DRS = distúrbio respiratório do sono; AOS = apneia obstrutiva do sono; SAOS = síndrome de apneia obstrutiva do sono; AT = adenotonsilectomia; PSG = polissonografia; DRS = distúrbio respiratório do sono; IAH = índice de apneia e hipopneia; TDAH = transtorno de déficit de atenção e hiperatividade; SAHOS = síndrome de apneia e hipopneia obstrutiva do sono; IMC=índice de massa corporal; EEG= eletroencefalograma.
Comorbidades associadas à AOS
Crianças e adolescentes com AOS podem apresentar sonolência diurna, alterações de aprendizado, memória e atenção, que podem interferir na linguagem oral (Corrêa et al., 2017). Além disso, considera-se a associação com déficits de atenção e de memória, influência no humor, nas habilidades linguísticas expressivas, nas habilidades cognitivas e na percepção visual dessa população, o que pode comprometer o processamento e o registro de informações e reduzir a capacidade de aprendizado (Corrêa et al., 2017). Déficits de linguagem e fluência verbal podem ser explicados pelo efeito cumulativo da interrupção na arquitetura do sono associado ao período de maturação neurológica, o que, ao longo dos anos, interfere no desenvolvimento das redes sinápticas neuronais, ocorrendo de maneira rápida e intensa em crianças (Barros et al., 2014).
Comprometimentos cognitivos e comportamentais em pacientes pediátricos com distúrbios do sono foram estudados por meio da descrição de mudanças no comportamento e emoção, desempenho escolar, atenção sustentada, atenção seletiva e alerta, além de alterações na linguagem expressiva, percepção visual, memória, entre outros (Mesa & Riffo, 2017). Essas crianças são caracterizadas pela hiperatividade e pelo déficit de atenção com baixo rendimento escolar e podem apresentar comportamento agressivo e rebeldia. A obstrução respiratória e das vias aéreas superiores também pode causar complicações cardiovasculares, distúrbios neurocognitivos e neurocomportamentais e distúrbios endócrino-metabólicos (Kocuta, 2017).
Déficits cognitivos em crianças com AOS são frequentemente relatados nos domínios da atenção, função executiva e raciocínio não verbal e também fraquezas na destreza motora (Taylor et al., 2016). Crianças com obesidade e AOS apresentam pior desempenho acadêmico e mais problemas comportamentais, além de efeitos metabólicos e cardiovasculares negativos (Danielsen et al., 2021; Menzies et al., 2022).
Ademais, a AOS pediátrica também pode induzir hipertensão, déficit de crescimento, enurese noturna e TDAH. Problemas de disciplina e falta de atenção foram significativamente maiores em crianças com AOS comparados com controles sem AOS, associando intimamente o distúrbio do sono ao TDAH. Na AOS pediátrica, 32% e 35% apresentaram TDAH concomitantemente em crianças de 4 a 5 anos e de 6 a 11 anos, respectivamente. Em contraste, uma avaliação do sono em crianças com o TDAH descobriu que 50% deles tinham AOS, o que causava privação crônica de sono e poderia ser considerado como uma assinatura de TDAH (Li-Ang & Hai-Hua, 2021). Regiões cerebrais envolvidas na regulação do despertar e sensíveis à privação do sono, como os córtices cingulado pré-frontal, dorsolateral, ventrolateral e dorso- anterior, também estão implicadas na fisiopatologia do TDAH (Schneider et al., 2016).
Uma diretriz recente da Academia Americana de Pediatria endossou a presença de dificuldades cognitivas e problemas comportamentais entre os sinais e os sintomas sugestivos de AOS. Porém, o nível de evidência para as relações entre AOS e problemas cognitivos/comportamentais esbarra em limitações metodológicas, como a ampla gama de instrumentos de avalição e as amostras diversas. A cognição é um conceito multidimensional, que inclui memória de curto prazo visuoespacial e verbal (ou memória de trabalho), memórias de longo prazo (episódica e semântica declarativa, ou não declarativa), funções executivas, de atenção, inteligência e linguagem, as quais refletem habilidades diferenciáveis. A maioria das baterias de testes neuropsicológicos utilizados para avaliar a AOS em crianças não permite a diferenciação de todos esses domínios (Cardoso et al., 2018).
Sendo o sono fundamental para a memória, especialmente para a consolidação da memória durante a noite, a consolidação do vocabulário está correlacionada ao sono em crianças; por essa razão, melhores respostas na evocação de novas palavras correlacionam-se positivamente com a atividade de ondas lentas (Smith et al., 2018). O sono de ondas lentas aumenta a consolidação da memória semântica e episódica, enquanto o sono REM facilita a consolidação da memória processual (Menzies et al., 2022). O desempenho de memória declarativa em crianças com DRS mostrou-se mais fraco, porém, intacto, em comparação com controles. A aprendizagem declarativa exige mais atenção, pois é guiada por estrutura cortical, sendo mais vulnerável aos distúrbios do sono. Já os processos implícitos, mediados por estruturas subcorticais preservadas, exigem menos habilidade atencional (Csábi et al., 2016).
Apesar da variabilidade nos testes cognitivos que melhor comparam crianças com AOS de controles saudáveis, os déficits relacionados à AOS são mais evidentes em testes de atenção sustentada e seletiva, inibição de resposta, raciocínio não verbal, processamento fonológico, fluência verbal, habilidades motoras finas e visuomotoras e funções executivas (Taylor et al., 2016; Csábi et al., 2016). A revisão sistemática com metanálise forneceu evidências de déficits neurocognitivos múltiplos, em vez de específicos, incluindo inteligência, atenção/funções executivas, memória, linguagem e habilidades visuais espaciais (Menzies et al., 2022). O Quadro 2 resume as principais comorbidades e sintomas relacionados ao quadro de AOS.
Comorbidades/Sintomas | Referência |
---|---|
Sonolência diurna | Corrêa et al., 2017; Chervin et al., 2014 |
Alterações de aprendizado | Corrêa et al., 2017 |
Alterações de memória, baixo desempenho de memória declarativa, memória visual e verbal tardia | Corrêa et al., 2017; Mesa e Riffo, 2017; Marcus et al., 2013; Csábi et al., 2013 |
Alterações de linguagem, processamento fonológico, fluência verbal, habilidades linguísticas expressivas | Corrêa et al., 2017; Mesa e Riffo, 2017; Marcus et al., 2013; Csábi et al., 2016; Menzies et al., 2022 |
Distúrbios neurocomportamentais, influência no humor, agressividade, rebeldia, problema de disciplina, hiperatividade | Corrêa et al., 2017; Mesa e Riffo, 2017; Kocuta, 2017; Chervin et al., 2014 |
Déficit em habilidades visuomotoras e visuoespaciais, na percepção visual | Côrrea et al., 2017; Mesa e Riffo, 2017; Li-Ang e Hai-Hua, 2021; Hodges et al., 2018; Marcus et al., 2013; Csábi et al., 2016 |
Déficits de atenção sustentada, seletiva e auditiva | Mesa e Riffo, 2017; Kocuta, 2017; Taylor et al., 2016; Hodges et al., 2018; Marcus et al., 2013, 2012; Csábi et al., 2016; Menzies et al., 2022; Chervin et al., 2014; Hagström et al., 2020 |
Distúrbios neurocognitivos, morbidade psiquiátrica | Corrêa et al., 2017; Mesa e Riffo, 2017; Kocuta, 2017; Menzies et al., 2022; Chervin et al., 2014 |
Distúrbios endócrino-metabólicos, retardo de crescimento, enurese noturna | Kocuta, 2017 |
Déficits de funções executivas | Taylor et al., 2016; Csábi et al., 2016; Menzies et al., 2022 |
Déficit em raciocínio não verbal e abstração verbal | Taylor et al., 2016; Hodges et al., 2018; Marcus et al., 2013 |
Fraqueza em destreza motora, déficit de habilidades motoras finas | Taylor et al., 2016 |
Sintomas de depressão | Hodges et al., 2018 |
Fonte: Elaborado pelas autoras
Patôgenese e fisiopatologia da AOS
A associação entre AOS e disfunção cognitiva e comportamental pode ser explicada pelas alterações do sono, hipercapnia e hipóxia intermitente, que podem desencadear estresse nos níveis celular e bioquímico, levando ao desequilíbrio homeostático e à alteração da viabilidade neuronal e glial em determinadas regiões do cérebro (Cardoso et al., 2018; Taylor et al., 2016; Chung et al., 2016; Csábi et al., 2016). A patogênese e a fisiopatologia que afetam o desempenho escolar e o comportamento diurno podem estar associadas à sensibilidade do sistema nervoso central em relação à hipoxemia (Kocuta, 2017), apontada também como um mecanismo potencial para o aumento de sintomas de depressão na população infantil com AOS (Hodges et al., 2018). Outra explicação para os efeitos da AOS na cognição e no comportamento é que esse distúrbio interrompe o sono, e menor tempo de sono está diretamente correlacionado aos problemas comportamentais dos afetados e ao baixo desempenho acadêmico (Cardoso et al., 2018).
O cérebro em maturação das crianças é mais suscetível a alterações causadas pela AOS, compatíveis com a função prejudicada do hipocampo e do córtex frontal. Episódios de apneia mantidos por períodos mais longos podem levar a mudanças ou a alterações corticais, principalmente em períodos críticos de desenvolvimento. Ao mesmo tempo, a plasticidade neuronal traz vantagem de recuperação, e o diagnóstico precoce poderia oferecer um melhor prognóstico (Mesa & Riffo, 2017).
Os métodos e critérios diagnósticos de AOS utilizados nos artigos selecionados foram listados respectivamente nos Quadros 3 e 4, a seguir.
Método diagnóstico de AOS | Referência |
---|---|
PSG | Corrêa et al., 2017; Marcus et al., 2013. Hodges et al., 2018; Cardoso et al., 2018; Chervin et al., 2015; Schneider et al., 2016; Taylor et al., 2016; Yin et al., 2019; Menzies et al., 2022; Chervin et al., 2012; Chung et al., 2016; Hagström et al., 2020; Chervin et al., 2014; Barros et al., 2014. |
Questionário | Corrêa et al., 2017; Marcus et al., 2013; Schneider et al., 2016; Menzies et al., 2022. |
Actigrafia | Schneider et al., 2016; Skjåkødegård et al., 2021; Menzies et al., 2022. |
TMLS | Chervin et al., 2012; Chervin et al., 2014. |
Medida de pressão esofágica | Chervin et al., 2012. |
Poligrafia | Csábi et al., 2013, Csábi et al., 2016. |
Fonte: Elaborado pelas autoras.
OS = apneia obstrutiva do sono; PSG = polissonografia; TMLS = teste das múltiplas latências do sono.
Critério diagnóstico de AOS | Referência |
---|---|
- IA>1; IAH>5 e alteração nos gases - PSG com IAH>1, SpO2 < 92% - IAH>10 e/ou SpO2<95% por evento, e - FC>60bpm - IAH>1 | Corrêa et al., 2017. |
IA>1; IAH>2; SpO2 <90%; dessaturação prolongada de oxi-hemoglobina <2% do TTS | Marcus et al., 2013. |
IAO ≥1/h ou IAHO ≥2/h | Hodges et al., 2018. |
IAH> 1 ou 1,5/h | Cardoso et al., 2018. |
IDR > 1/h | Chung, 2016. |
IAHO>1/h | Hagström et al., 2020. |
IAH ≥2 eventos/h ou IAO ≥1 | Chervin et al., 2015. |
IAH ≥1,5 | Chervin et al., 2014. |
IA >1 evento/h ou IAH > 1.5 eventos/h e SpO2 mínima < 92% | Barros et al., 2014. |
Fonte: Elaborado pelas autoras
AOS = apneia obstrutiva do sono; IA = índice de apneia; IAH = índice de apneia e hipopneia; PSG = polissonografIa; SpO2 = saturação do oxigênio; FC = frequência cardíaca; TTS = tempo total de sono; IAO = índice de apneia obstrutiva; IAHO = índice de apneia e hipopneia obstrutiva.
Tratamento da AOS
Crianças apresentam sintomas comportamentais e cognitivos atenuados após o tratamento da AOS (Cardoso et al., 2018). A melhora na função executiva e nos sintomas de hiperatividade nessas crianças após a adenotonsilectomia (AT) estão ligadas à melhora da profundidade do sono, observada pelo Odds-Ratio-Product, índice derivado da relação entre potências em diferentes bandas de frequência do eletroencefalograma (Tapia et al., 2018). Crianças submetidas à AT com e sem AOS confirmada por polissonografia progrediram em uma série de medidas de desempenho acadêmico, uma medida de memória visual atrasada, de atenção/memória de trabalho de curto prazo e de funcionamento executivo, juntamente com classificações de comportamento dos pais (Chung et al., 2016). Por outro lado, medidas de capacidade de abstração verbal, cálculos aritméticos, aprendizagem visual e verbal, memória verbal tardia, atenção sustentada e outra medida de memória visual tardia demonstraram declínios na habilidade, enquanto outras medidas não melhoraram ao longo do tempo. Esses achados questionam a expectativa de que a AT resolva a maioria ou todas as dificuldades comportamentais e cognitivas em crianças com diagnóstico clínico de distúrbios respiratórios do sono em consultório (Marcus et al., 2013). Achados atuais sugerem que a espera vigilante sem cirurgia pode ser uma opção razoável em crianças com baixa carga de sintomas da AOS e, principalmente, pouco ronco, baixo IAH e sem obesidade central, possibilitando resolução espontânea da AOS (Chervin et al., 2015).
Estudo conduzido por Taylor et al. (2016), que incluiu crianças com o distúrbio sem dessaturação prolongada de oxihemoglobina, não encontrou nenhum benefício da AT em testes de linguagem, habilidades de percepção visual ou capacidade cognitiva global e concluiu que essa cirurgia confere pequenos efeitos positivos nos escores de testes cognitivos em crianças com AOS com funcionamento cognitivo médio geral. A AT pode diminuir significativamente os eventos respiratórios e melhorar a arquitetura do sono, no entanto, ainda existem alguns pacientes que não obtêm alteração significativa na porcentagem de sono de ondas lentas e eficiência do sono após cirurgia (Yin et al., 2019).
Não foi encontrada uma associação consistente entre a gravidade dos DRS e a gravidade dos comprometimentos neurocognitivos, déficits evidentes tanto em crianças com ronco primário (RP) como em crianças com AOS (Menzies et al., 2022). O ronco, em vez da gravidade do IAH, poderia prever a probabilidade de problemas cognitivos em crianças de 4 a 10 anos. Ronco com obstrução parcial prolongada pode resultar em sintomas diurnos e prejudicar a atenção auditiva seletiva e sustentada (Hagström et al., 2020). O monitoramento quantitativo da pressão esofágica durante a polissonografia poderia agregar valor preditivo para resultados neurocomportamentais dos distúrbios respiratórios do sono (Chervin et al., 2012). As pesquisas até o momento tiveram dificuldade em mostrar que os resultados polissonográficos predizem o comportamento hiperativo, déficits cognitivos, morbidade psiquiátrica ou sonolência que acompanham a AOS ou sua melhora após o tratamento (Chervin et al., 2014).
Considerações
Os artigos encontrados sugerem que a AOS pode causar déficits neuropsicológicos relacionados à atenção, memória declarativa, habilidades visuomotoras, verbais e funções executivas. São ricas e amplas as pesquisas acerca desse tema, porém há dificuldade em mensurar o impacto na vida acadêmica e social das crianças com AOS a partir dos exames clínicos e polissonográficos, bem como definir prognóstico. Levanta-se, portanto, a necessidade de se conduzir pesquisas para que seja preenchida tal lacuna na literatura. O presente estudo fundamenta a necessidade de intervenção em crianças com distúrbios respiratórios do sono em todas as gravidades. A intervenção adequada, seja terapêutica e/ou cirúrgica, depende de diagnóstico precoce e observação atenta dos sintomas neuropsicológicos relacionados com a AOS infantil, por parte dos cuidadores, dos professores e dos profissionais da saúde.