A dislexia e a esquizofrenia são consideradas transtornos distintos com resultados funcionais divergentes, mas podem compartilhar uma base de neurodesenvolvimento comum cognitivo-linguístico, conforme sugerido pela genética e fisiopatológica, relacionado a prejuízos na linguagem (Condray, 2005; Jamadar et al., 2011; Stefansson et al., 2014; Trulioff et al., 2017).
Embora esse prejuízo possa estar subjacente aos déficits de leitura em ambas as condições, não há causa única de dificuldade de leitura identificada (Gabrieli, 2009; Goswami, 2015; Norton et al., 2015; Peterson & Pennington, 2015), pois envolvem uma combinação de vários mecanismos de interação linguísticos e cognitivos.
Esses mecanismos incluem linguagem, percepção auditiva, percepção visual, controle oculomotor e função executiva. Assim, déficits em cada um desses mecanismos foram relatados na dislexia e na esquizofrenia (Fernandez et al., 2016; Revheim et al., 2006; 2014; Whitford et al., 2018).
Portanto, esse artigo, tem como objetivo discutir à luz da literatura os constructos cognitivo-linguísticos envolvidos que estão defasados em ambos os transtornos, dislexia e esquizofrenia.
Há evidências crescentes de uma base neurodesenvolvimental comum entre esquizofrenia e dislexia do desenvolvimento (Whitford et al., 2018). Tais evidências mostram uma dificuldade específica e significativa de leitura que não é atribuível a nenhum grande atraso no desenvolvimento ou instrução de leitura inadequada (Snowling et al., 2000), mas, a priori, uma base de neurodesenvolvimento comum entre as duas condições é sugerida pela sobreposição genética e fisiopatológica como já mencionada (Condray, 2005; Jamadar et al., 2011; Stefansson et al., 2014; Trulioff et al., 2017). Embora haja literatura evidente sobre a temática, é importante salientar que esse campo de estudo carece de estudos, por isso a proposta desse texto é apresentar a importância do investimento intelectual nesse campo.
Leonard & Eckert (2008) descobriram que as anormalidades cerebrais estruturais implicadas na dislexia (por exemplo, volumes reduzidos do lobo temporal) foram preditivas de processamento cognitivo na esquizofrenia, incluindo compreensão de leitura reduzida. Ampliando esse trabalho, Jamadar et al. (2011) descobriram que um gene de risco para dislexia, nomeadamente DCDC2, foi responsável por uma variação importante do volume do cérebro na esquizofrenia, particularmente, em regiões implicadas na leitura (por exemplo, área de Broca, giro angular, área de Wernicke).
Além disso, Stefansson et al. (2014) conduziram um estudo populacional (N=101.655) de variantes ligadas à esquizofrenia e descobriram que a microdeleção em 15q11.2 (BP1-BP2) estava associada a um pior desempenho de leitura. Os autores também encontraram reduções significativas nos volumes das estruturas cerebrais implicadas na esquizofrenia (por exemplo, redução da massa cinzenta no córtex cingulado anterior e ínsula esquerda, substância branca reduzida em ambos os lobos temporais). Além disso, há um crescente corpo de trabalho sugerindo alterações nas assimetrias de maneira mais geral, incluindo dislexia e esquizofrenia, mais especificamente (Duboc et al., 2015; Paracchini et al., 2016; Trulioff et al., 2017).
Um extenso corpo de pesquisas descobriu que há prejuízos, particularmente, no processamento fonológico e visual característicos da maioria dos leitores com dislexia (Gabrieli, 2009; Peterson & Pennington, 2015; Goswami, 2015; Sprenger-Charolles et al., 2006). Acredita-se que esses prejuízos surjam de uma disfunção inata das regiões cerebrais do hemisfério esquerdo subordinadas à fonologia, aspectos visuais e suas conexões com as regiões cerebrais subordinadas à ortografia (Giraud & Ramus, 2013; Pugh et al., 2000; Shaywitz et al., 2002; Ramus et al., 2003; Richlan, 2012).
Assim, como na dislexia, os pacientes com esquizofrenia também mostram evidências de desempenho prejudicado em testes padronizados relacionados a linguagem (Leonard & Eckert, 2008; Revheim et al., 2014; Whitford et al., 2018). Como por exemplo, ambos Revheim et al. (2006) e Whitford et al. (2018) encontraram redução da consciência fonológica, redução da memória operacional fonológica e redução da nomeação rápida em pacientes com esquizofrenia versus controles pareados. Além disso, Whitford et al. (2013) também descobriram que o processamento fonológico prejudicado na esquizofrenia está relacionado a reduções no desempenho de leitura fluente, indexado por um intervalo perceptual menor (ou seja, processamento parafoveal reduzido).
Também há evidências comportamentais e neurofisiológicas de processamento básico prejudicado na dislexia e esquizofrenia que podem estar subjacentes aos déficits no processamento fonológico e visual e, por fim, na fluência de leitura observada em ambas as condições (Condray, 2005).
A mesma autora (Condray, 2005) também aponta que um déficit primário na dinâmica temporal da função cerebral pode causar transtorno de linguagem receptiva na esquizofrenia. Supõe-se que esse déficit envolva prejuízos no processamento de informações rápidas e sequenciais e interrupções nos padrões de ativação e sincronização das informações. Como resultado desses déficits de temporização, é provável que ocorram alterações na formação e no acesso de conexões associativas na memória semântica. A justificativa para esta hipótese é baseada em mecanismos conhecidos de linguagem e memória (Pantano et al., 2016), enfatizando os prejuízos em ambos os sistemas: perceptual-visual e representacional semântico.
Um déficit de processamento temporal também foi proposto para a dislexia do desenvolvimento (Tallal et al., 1993), e evidências consideráveis indicam que esse tipo de processamento está comprometido em indivíduos com esquizofrenia (Rey et al., 2002; Tallal et al., 1993).
Essas possibilidades têm implicações para a formulação de estratégias de intervenção, pois, se o prejuízo é apresentado para um subconjunto de pacientes com esquizofrenia que pode representar um transtorno de aprendizagem, as estratégias de intervenção usadas para a dislexia do desenvolvimento poderiam ter utilidade para esses pacientes com esquizofrenia. Por exemplo, o treinamento comportamental administrado a crianças disléxicas (8-12 anos), que incluiu estímulos linguísticos e não linguísticos, produziu melhora no desempenho de leitura e aumentou a ativação em várias regiões do cérebro (Temple et al., 2003). Além disso, foi observada uma associação entre a melhora da leitura e a magnitude do aumento da ativação no córtex temporoparietal esquerdo. A identificação de palavras e o treinamento de vocabulário também produziram ganhos significativos no desempenho de leitura para crianças (7-13 anos) com dificuldade grave de leitura (Lovett et al., 2000; Santos & Capellini, 2020).
Assim, esquizofrenia e dislexia são distintas em sua apresentação clínica e resultado funcional; no entanto, existem várias semelhanças entre os transtornos em termos de etiologia e déficits cognitivos ou perceptuais (Condray, 2005). Além disso, a esquizofrenia e a dislexia envolvem desempenho prejudicado nas medidas da função magnocelular, como sensibilidade ao contraste e percepção de movimento (Talcott et al., 1998; Martinez Perez et al., 2015; Revheim et al., 2006). Esses déficits estão associados a redução da proficiência em leitura na esquizofrenia (Revheim et al, 2006). Além disso, deficiências nos movimentos de busca oculares (Eden et al., 1994; O’Driscoll & Callahan, 2008) e em sacadas, uma medida oculomotora de controle cognitivo (Biscaldi et al., 2000; Gooding & Basso, 2008), foram amplamente divulgadas em ambos os grupos.
Sobre maneira, a esquizofrenia e dislexia estão associadas a semelhantes deficiências linguísticas, fonológicas, visuais e processos oculomotores (Leonard & Eckert, 2008; Revheim et al., 2006).
Exposto isso, as estratégias de remediação usadas para resolver problemas de processamento fonológico e visuais na dislexia (Santos & Capellini, 2020) poderiam, potencialmente, ser estendidas para abordar o problema na esquizofrenia, por exemplo. Além disso, dado que as habilidades de leitura são desenvolvidas e dominadas antes do início típico da esquizofrenia, assim a dificuldade de leitura poderia fornecer uma janela inicial em aspectos cognitivos da vulnerabilidade relacionada aos aspectos cognitivo-linguísticos na esquizofrenia (Ambelas, 1992; Crow, 1997; Reichenberg et al., 2002; Weiser et al., 2007).
No entanto, a relação entre a função executiva e a leitura padronizada no desempenho na dislexia e esquizofrenia tem sido pouco avaliada, com poucos estudos relatando uma correlação positiva entre funções executivas e compreensão de leitura (Machado & Bello, 2021), e, principalmente, no que tange à memória de trabalho na esquizofrenia (Forbes et al., 2009), o que oportuniza condições para novas investigações.
Portanto, a progressão e o envolvimento em atividades terapêuticas nos serviços de saúde mental dependem, muitas vezes, de boas competências em programas de leitura e linguagem. Isto realça a necessidade de identificar com precisão os déficits de leitura e desenvolver programas específicos para melhorar as competências de leitura das pessoas nos serviços psiquiátricos.