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Journal of Human Growth and Development
versão impressa ISSN 0104-1282versão On-line ISSN 2175-3598
Rev. bras. crescimento desenvolv. hum. v.15 n.2 São Paulo ago. 2005
RESENHA BOOK REVIEW
Infância e história destruição da experiência e origem da história
Infancy and history the destruction of the experience and the origin of history
Elaine Pedreira Rabinovich
Psicóloga clínica, Mestrado em Psicologia Experimental-IPUSP, Doutorado e Pós-Doutorado em Psicologia Social- IPUSP, Profa. do Mestrado em Família na Sociedade Contemporânea da Universidade Católica do Salvador, membro do CDH-FSPUSP e do LAPSI-IPUSP; editora assistente da RBCDH
Agamben, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: Editora UFMG; 2005. 188p. (Trad. de Henrique Burigo. Título original: Infanzia e storia: distruzione dell´experienza e origine della storia; 1978). ISBN: 85-7041-459-5. R$ 42,00 (editora@ufmg.br)
Giorgio Agamben, filósofo italiano, de certa forma está sendo "descoberto" pelos leitores brasileiros a partir da tradução de algumas de suas obras, pela Editora Universidade federal de Minas Gerais, como Homo sacer, o poder soberano e a vida nua (Editora UFMG, 2004) e que agora nos brinda com a tradução de "Infância e história".
Este livro, escrito em 1978, consta dos seguintes capítulos: Experimentum linguae (Prefácio à edição francesa, Payot, 1989); - Infância e história: ensaio sobre a destruição da experiência; - O país dos brinquedos: reflexões sobre a história e sobre o jogo; - Tempo e história: crítica do instante e do contínuo; - O príncipe e o sapo: o problema do método em Adorno e Benjamin; - Fábula e história: considerações sobre o presépio; - Programa para uma revista.
Trata-se de uma edição muito bem cuidada e traduzida, que conta com um Glossário do Tradutor no final da mesma, referente às palavras em espanhol, francês, inglês, alemão, latim e grego, citadas ao longo do texto. O tradutor também teve o cuidado de colocar, ao lado das notas de rodapé originais, notas de tradução que elucidam termos técnicos, neologismos etc. Estes cuidados ajudam a leitura e compreensão da densa e erudita obra
No primeiro texto, alvo da presente resenha, o autor propõe responder à seguinte pergunta: Seremos nós ainda capazes de experimentar e de transmitir experiências?
O argumento geral é que, desde a Antigüidade, houve uma junção de dois sujeitos anteriormente separados: o sujeito empírico e o sujeito transcendental ou cognitivo. Esta junção foi realizada graças à mística-divinatória, que permitiu o surgimento da ciência moderna, protagonizada pelo "eu penso" cartesiano. Esta postura expulsou a experiência, baseada na autoridade, substituindo-a pela experimentação, baseada no controle e na previsão.
Partindo desta constatação, propõe procurar um novo lugar para a experiência, encontrando-a no que ele chama "infância", isto é, na fratura que separa o humano e a linguagem, ou seja, no fato de o homem não ser desde o seu começo um sujeito falante. Medir todas as conseqüências desta situação, conceber a "infância" como origem e pátria da história, tal é a meta deste livro. A seguir, exporemos os principais tópicos abordados no primeiro texto.
Sobre a experiência e a autoridade*
Anteriormente, a matéria prima da experiência era o cotidiano que cada geração transmitia à seguinte. Atualmente, a experiência encontra o seu correlato no conhecimento mais do que na autoridade, i.e., na palavra e no relato (como o do conto, da lenda, da fábula do mito), e nada parece deter suficiente autoridade para garantir uma experiência. Ao contrário, o que caracteriza o tempo presente é que toda autoridade se funda sobre o que não pode ser experimentado: a uma experiência legitimada por uma autoridade, ninguém daria o menor crédito. O slogan - que substitui a máxima e o provérbio - é o provérbio de uma humanidade que perdeu a experiência.
Sobre a experiência e a ciência moderna
Em um certo sentido, a expropriação da experiência se achava implicada no projeto fundamental da ciência moderna. "A experiência comum é acaso, e a experimentação é o que se procura expressamente" (Francis Bacon). Logo após, a distinção entre verdade de fato e verdade da razão completou a condenação. Assim, a ciência moderna nasce de uma desconfiança sem precedentes quanto à experiência conforme a concebe a tradição.
A experimentação - que permite a passagem lógica das impressões sensíveis a exatas determinações quantitativas e, por conseguinte, à previsão de futuras impressões - responde a esta perda de certeza transportando a experiência, tanto quanto possível, para fora do homem: para os instrumentos e para os números. A experiência perde todo o valor por ser incompatível com a certeza pois, se calculável e certa, perde sua autoridade.
Sobre a experiência, a ciência e os dois sujeitos
Até a ciência moderna, ciência e experiência dependiam de sujeitos diferentes. O sujeito da experiência era o sentido comum (diferente do bom senso) e o sujeito da ciência era o nôus, ou o intelecto agente, separado da experiência, "impassível", "divino".
O conhecimento não tinha sujeito, ou "ego": o indivíduo singular era o sub-jectum no qual o intelecto agente, único e separado, atualizava a experiência. O problema central na antigüidade não era a relação sujeito-objeto mas a relação entre o um e o múltiplo. Donde não haver o problema da experiência como tal mas o da relação entre o intelecto separado e os indivíduos singulares, entre o intelectual e o sensível, entre o humano e o divino. A experiência tradicional é a experiência do limite que separa a esfera do humano e a do divino, ou seja, a morte.
A ciência moderna, na procura da certeza, aboliu esta separação: fez da experiência o lugar - o método, o caminho - do conhecimento. Fez uma re-fundação (da experiência e da inteligência) expulsando os dois sujeitos para substituí-los por um sujeito único e novo - um ponto arquimédico abstrato - o ego cogito cartesiano, a consciência.
Foi a astrologia quem ligou céu e terra, divino e humano em um único sujeito, pela mística neoplatônica e hermética. Devido a este enraizamento em uma mística, toda explicitação da relação entre experiência e conhecimento, na ciência moderna, está condenada a dificuldades quase intransponíveis. Essa implicação recíproca de ciência e mística funda a oposição racionalismo / irracionalismo de nossa cultura e apenas um retorno a uma bipartição da ciência e da experiência permitiria ultrapassar esta oposição.
No sujeito da ciência, a coincidência experiência/conhecimento aparece como o que sempre já foi dito - não um pathma mas um máthema - algo que é sempre um imediato conhecimento em todo ato cognitivo, tanto o fundamento quanto o sujeito de todo pensamento. Do eu verbo, Descartes passa para o eu substantivo no qual se realiza a união do noûs e da psyché, da experiência / conhecimento, e que depois forma a consciência psíquica.
A experiência tradicional permitia ao homem amadurecer, i.e., antecipar uma morte concebida como acabamento e totalização da experiência: algo que se podia fazer e ter, mas que, depois, só se podia ou fazer (Don Quixote) ou ter (Sancho Pança). Kant foi o último pensador a distinguir o eu penso - sujeito transcendental não substantivado nem psicologizado - da consciência psicológica ou eu empírico. Após ele, todos os filósofos reuniram os dois sujeitos.
Relação experiência-linguagem
Agamben chega, agora, ao centro de sua temática, dizendo que colocar rigorosamente o problema da experiência é encontrar o problema da linguagem.
Apontar que, se renunciarmos ao modelo de uma evidência matemática transcendental (como a de Kant e de Husserl e que desde a Antigüidade se enraíza na metafísica ocidental), a linguagem dá ao sujeito tanto a sua origem quanto o seu lugar próprio: apenas na linguagem é possível representar a apercepção transcendental como um "eu penso".
Na linguagem e pela linguagem, o homem se constitui como sujeito. A subjetividade é a capacidade do locutor de se posicionar como um "eu" (Benveniste, 1972). O eu se refere ao ato do discurso individual onde ele se pronuncia, e designa o locutor. A realidade à qual envia é a realidade do discurso.
A representação da esfera transcendental como subjetividade, como "eu penso", funda-se sobre uma permuta entre o transcendental e o lingüístico. O sujeito transcendental nada mais é do que o locutor, enquanto o pensamento moderno foi construído sobre a idéia não explicitada de que o sujeito da linguagem é o fundamento tanto da experiência quanto do conhecimento.
Foi a permuta entre linguagem e sujeito transcendental que permitiu à psicologia pós-kantiana atribuir à consciência transcendental uma substância psicológica, pois ela se apresentava a mesmo título que a consciência empírica, como um "eu", como um "sujeito". O transcendental não pode ser o subjetivo a não ser que signifique simplesmente : lingüístico.
Linguagem e in-fância
A linguagem é a base para a colocação, em termos não equívocos, do problema da experiência. Pois se o sujeito não passa do locutor, nunca atingiremos no sujeito o status original da experiência, "a experiência pura, e por assim dizer, ainda muda". A constituição do sujeito na e pela linguagem é a própria expulsão desta experiência "muda"; dito de outro modo, a experiência é sempre "palavra".
Longe de ser subjetiva, uma experiência original só pode ser o que, no homem, encontra-se antes do sujeito, quer dizer, antes da linguagem: uma experiência "muda" no sentido literal do termo, uma in-fância do homem, cuja linguagem deve precisamente marcar o limite.
Uma teoria da experiência só poderia, neste sentido, ser uma teoria da in-fancia, e seu problema central deveria assim ser formulado: existe algo como uma in-fância do homem? Como é possível a in-fância enquanto fato humano? E, se possível, qual é o seu lugar?
In-fância e história
Infância e história dão origem uma à outra. Se o homem é um ser histórico, é apenas porque há uma infância do homem. O que quer dizer infância do homem? - quer dizer que, para falar, ele tem necessidade de se expropriar da infância - o que não fala - para se constituir como sujeito na linguagem. A conseqüência desta infância é que, por causa dela, o homem quebra o "mundo fechado" do signo e transforma a pura língua em discurso humano (segundo Benveniste, transforma o semiótico em semântico).
Na medida em que tem uma infância, na medida em que não nasce falando, o homem não pode entrar na língua como sistema de sinais sem transformá-la radicalmente, sem a constituir em discurso (ou fala).
A semiótica - sistema de sinais -, e a semântica - sistema de significados -, não são duas realidades substanciais, mas sim dois limites transcendentais que definem a infância do homem, sendo por ela definidos. A semiótica é apenas a língua pré-Babel da natureza, da qual o homem participa para falar, mas da qual ele está sempre a ponto de sair na Babel da infância.
Quanto ao semântico, ele só existe em uma emergência momentânea, fora do semiótico, na instância do discurso - cujos elementos, assim que proferidos, caem na língua, que os recolhe no seu dicionário mudo de signos. Apenas durante um instante, a linguagem humana emerge das águas semióticas da natureza. Mas o humano é, justamente, esta passagem da pura língua para o discurso: este trânsito, este instante, é a história.
Temporalidade
Para encontrar esta infância - pois apenas ela permitiria estabelecer um novo conceito de experiência, libertado do condicionamento subjetivo -, é preciso apenas abandonar o conceito de origem definido como um ponto em uma cronologia, como uma causa inicial separando no tempo um antes e um depois.
Tal conceito de origem não pode ser utilizado nas ciências humanas quando se pressupõe ser ele mesmo constitutivo do humano. A origem de um tal "ente" não pode ser historicizada porque ela própria é historizante; é ela que funda a possibilidade de algo como uma "história".
A origem da linguagem deve ser situada em um ponto de ruptura na contínua oposição entre diacrônico e sincrônico, entre histórico e estrutural, e onde se pode apreender a unidade-diferença da invenção e do dom, do humano e do não-humano, da palavra e da infância.
Por exemplo: a raiz indo-européia nunca foi falada mas está presente e operante nas línguas históricas. Uma tal origem nunca será inteiramente redutível a "fatos" que poderíamos supor historicamente ocorridos; há algo que ainda não parou de vir-a-ser. Esta dimensão seria a história transcendental, consistindo no limite e na estrutura a priori de todo conhecimento histórico.
Experiência pura e transcendental
Eis o modelo de experiência pura e transcendental que, enquanto infância do homem, está liberada tanto do sujeito quanto de qualquer substrato psicológico. Ela não é um simples fato que se poderia isolar, o lugar cronológico que uma psicologia infantil (no plano da palavra) ou uma paleoantropologia (no plano da língua) poderiam construi como fato independente da palavra.
Enquanto infância do homem, a experiência é simplesmente a diferença entre o humano e o lingüístico. Que o homem não seja sempre já falante, que ele tenha sido e seja ainda in-fante, eis o que constitui a experiência.
A própria existência de uma tal infância, i.e., da experiência enquanto limite transcendental da linguagem, exclui que a linguagem possa em si se apresentar como totalidade e verdade. Sem a experiência, sem a infância do homem, a língua seria certamente um jogo e sua verdade coincidiria com o seu uso correto, seguindo apenas regras lógicas.
Mas, desde que uma experiência existe, desde que há uma infância do homem cuja expropriação é o sujeito da linguagem, a linguagem aparece como o lugar onde a experiência deve se tornar verdade: o instante da infância, como "arquilimite" na linguagem, manifesta-se constituindo-a em lugar da verdade.
O inefável é, em realidade, infância. A experiência é o mystérion que institui todo homem pelo fato de que há uma infância.
Língua e discurso
A infância provoca, na linguagem, uma cisão entre língua e discurso que caracteriza a linguagem humana. O fato de que todo homem falante ser o lugar da diferença entre língua e palavra e possa passar de uma a outra, nada tem de natural nem de evidente.
Não é a língua que caracteriza o ser humano mas a cisão entre língua e palavra, entre semiótica e semântica, entre sistema de signos e discurso. Os animais não chegam à língua, estão nela desde sempre. O homem, ao contrário, por ter uma infância, por não ser já sempre falante, cinde a unidade desta língua e aparece como aquele que, para falar, deve se constituir em sujeito da linguagem e deve dizer eu.
Sobre esta diferença, sobre esta descontinuidade, funda-se a historicidade do ser humano. Se ele tem uma história, se o homem é um ser histórico, é apenas porque há uma infância do homem, porque a linguagem não se identifica ao humano, porque há uma diferença entre língua e discurso, entre semiótica e semântica.
Ter a experiência significa necessariamente encontrar a infância como pátria transcendental da história. De fato, o mistério que resulta, para o homem, a sua infância só pode se dissipar na história; igualmente, a experiência, enquanto infância e pátria do homem, é o lugar onde ele está sempre a ponto de cair, para a linguagem e para a palavra.
Eis porque a história não pode ser o progresso contínuo da humanidade falante, ao longo de um tempo linear: em sua essência, ela é intervalo, descontinuidade, époché. Aquele que tem a infância como pátria e origem deve prosseguir o seu caminho em direção à infância e na infância.
Comentários do resenhista
O leitor pode, assim, apreciar a complexidade e alcance do pensamento que afirmam Agamben como um dos principais pensadores atuais.
Recomendamos a leitura deste livro a todos que se interessam por compreender o mysterium humano conforme expresso nas diversas disciplinas que o estudam mas, mais importante ainda, como uma das tentativas mais bem sucedidas de realizar a transdisciplinaridade e apontar as pontes entre disciplinas como história, psicologia, linguística, religião, filosofia, antropologia, entre outras.
Os textos que o seguem têm o mesmo escopo, embora com ênfases e temáticas diversas deste que é o mais longo e mais complexo dos textos incluídos no livro.
* Itens de autoria da resenhista