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Journal of Human Growth and Development

versão impressa ISSN 0104-1282versão On-line ISSN 2175-3598

Rev. bras. crescimento desenvolv. hum. v.16 n.3 São Paulo dez. 2006

 

RELATO DE EXPERIÊNCIA EXPERIENCE REPORT

 

Uma perda, tantas perdas...+

 

A loss, so many losses...

 

 

Maria Cristina Barbetta Mileo

Mestre em Psicologia Clinica - Psicanálise - PUC-SP, psicanalista, professora da UNIP - SP. Endereço para corres pondência: Rua Dr. Paulo Vieira, 369 - CEP 01257-000- Sumaré - SP - fone -(011) 3672-2831.cristinamileo@globo.com

 

 


RESUMO

O presente artigo busca compreender e desvendar o sofrimento psíquico de uma mulher portadora de câncer de mama, que se dispôs a empreender um processo analítico. O referencial teórico utilizado é o da psicanálise, método que visa à investigação dos processos inconscientes que se desvendam por meio das associações livres, da transferência e da análise das resistências. É sobre essas bases que este trabalho se organiza. A obra de Piera Aulagnier, psicanalista freudiana, é utilizada como pano de fundo para a compreensão e a discussão teórica dos casos clínicos. É fundamental o conceito estabelecido por Aulagnier, segundo o qual um Eu construtor de uma historia libidinal busca encontrar causas para compreender os mundos externo e interno e o sofrimento desencadeado por estes. Portanto, a noção de que cabe ao Eu continuar a investir em si mesmo, na relação com o outro e no mundo externo para se preservar vivo, mesmo com todas as adversidades, permeia este trabalho.

Palavras chave: Psicanálise. Sofrimento psíquico. Eu. História libidinal.


ABSTRACT

The present article aims to understand and disclose the psychic suffering of a woman with breast cancer who accepted to undergo an analytical process. The theoretical framework used is that of psychoanalysis, a method that aims to investigate the unconscious processes that are revealed by means of free associations, transference, and resistance analysis. It is on those bases that this work is organized. The work of Piera Aulagnier, a Freudian psychoanalyst, is used as the background for the understanding and theoretical discussion of the clinical cases. The concept established by Aulagnier is fundamental: a Self that builds a libidinal history tries to find causes to understand the external and internal worlds and the suffering triggered by them. Therefore, the notion that the Self must continue investing in himself, in the relationship with the other and in the external world to maintain himself alive, despite all the adversities, pervades this work.

Key words: Psychoanalysis. Psychic suffering. Self. Libidinal history.


 

 

À GUISA DE INTRODUÇÃO

Durante alguns anos atendi algumas mulheres que desenvolveram tumores nas mamas e que necessitaram de intervenção cirúrgica radical ou parcial.

Este trabalho não pretende, nem poderia, versar sobre a psicopatologia do câncer de mama, pois isto não pertence ao escopo da psicanálise, que busca nas motivações inconscientes a razão do psicopatológico e não, na patologia física uma relação de causa e efeito. Assim, o que se busca é encontrar o sentido atribuído pela paciente à situação vivenciada e qual "teoria" a mesma desenvolveu na tentativa de dar conta de sua história.

O conceito estabelecido por Aulagnier de um Eu, construtor de uma história libidinal e identificatória e construído também por esta é fundamental. Este Eu busca encontrar causas para compreender tanto o mundo interno como o externo, bem como, o sofrimento desencadeado por estes.

Portanto, permeia este trabalho a noção de que cabe ao Eu continuar a investir em si mesmo, na relação com o outro e no mundo externo para se preservar vivo, mesmo com todas as adversidades.

Assim, pretendo apresentar minha compreensão sobre o sofrimento psíquico de uma paciente portadora de câncer de mama, que se dispôs a empreender um processo psicanalítico.

Sobre o Caso Clínico*

A paciente aqui descrita é uma mulher jovem de 41 anos que, por ter sido mãe muito cedo, já era avó de três netos. Sua busca pelo processo analítico deu-se após a realização de uma cirurgia radical, para retirada de uma das mamas, devido ao aparecimento de um tumor. Seu receio referia-se ao medo da morte, ao temor quanto ao desenvolvimento de metástases, o que mais tarde se confirmou. Seu atendimento teve a duração de aproximadamente um ano e seis meses e após este período veio a falecer.

Durante as primeiras entrevistas, se mostrou preocupada com a possibilidade de estar mais doente do que imaginava, em alguns momentos sentia-se forte e disposta e em outros, fraca e sem vitalidade.

Ao iniciarmos o trabalho analítico, uma das questões, por ela apresentada, dizia respeito ao seu nome, nome pouco usual e para mim desconhecido. A paciente esclareceu que este era derivado do nome de seu irmão Jair, visto que ao nascer não tinha um nome pré-escolhido e todos começaram a dizer nasceu a irmã de Jair, nasceu a irmã de Jair e seu nome tornou-se, então, Dijaira.

A paciente tendia a atribuir esta ausência, ausência de um nome pré-escolhido e pré-investido, ao fato de seus pais não contarem com uma nova gravidez naquele momento, vindo ao mundo em um momento pouco apropriado e, em sua compreensão, sendo, então, uma criança não-desejada.

Na obra de Aulagnier ocupa lugar de destaque o meio familiar, elo intermediário entre a psique infantil e o meio social. Para Dijaira, suas dificuldades de inserção no grupo familiar, talvez, estivessem relacionadas a estes momentos precursores de seu Eu. O fato de não ter tido um nome pré-investido nos remete a uma situação pouco usual - ter recebido um nome que, na verdade, era uma corruptela do nome de seu irmão nos leva a pensar sobre seu lugar dentro desta família, lugar já ocupado por outro. Assim, seu nascimento parece ter sido vivido como mais um acontecimento, não sendo comemorado de forma efusiva, como seria o esperado. Talvez suas dificuldades posteriores estivessem aí esboçadas, dificuldades estas que ocorreram no âmbito afetivo, familiar e social.

Aulagnier, ao definir o conceito de sombra falada, conceito fundamental para compreensão da relação mãe-bebê, assinala que estes enunciados proferidos antes do nascimento de uma criança testemunham o desejo materno. Não posso afirmar que esta mãe não tenha desejado este bebê, mas posso supor que seus conflitos interferiram no acolhimento dispensado.

Dijaira, ao longo de seus relatos, parecia querer confirmar a todo o momento a idéia de não ter sido desejada e suponho que estas fantasias acabaram por permear suas escolhas amorosas e profissionais. Acredito que sua interpretação não estava de todo equivocada, não por não ter sido desejada de fato, mas por sentir-se como tal . Suponho que esta percepção levou-a a realizar escolhas e a tomar atitudes que acabaram por confirmar suas impressões.

Suponho ainda que esta paciente ficou durante muito tempo esperando por um prazer a mais, que nunca pôde ser confirmado, visto que por mais que recebesse nada seria suficiente para preencher aquilo que julgava não ter recebido.

Acredito, então, estar diante de uma problemática neurótica, visto que Aulagnier afirma

"nas neuroses o conflito identificatório não põe em perigo certas referências temporais, certas balizas de sua historia libidinal, que permitem ao Eu reconhecer-se naquilo que ele se torna, apesar daquilo que de si mesmo e de seus objetos se modifica, se desgasta, se perde, ao longo do caminho e apesar, a contrário, da pressão à flor da consciência de seu desejo e de seu amor infantis"1 (p. 189).

Esta afirmativa pode ser compreendida por meio do princípio de permanência, princípio este que se encarrega de garantir ao sujeito sua singularidade, singularidade esta que, inicialmente, lhe foi atribuída pelas figuras parentais, garantindo sua identidade.

Neste sentido, para o neurótico, o sofrimento tem como causa essencial a presença de um desejo que não pode ou que se interdita realizar e, ao mesmo tempo, se recusa a renunciar a ele. Assim, conforme dissemos, o neurótico vive um paradoxo: transformou um investimento fonte de prazer em causa de sofrimento.

Assim, para Dijaira sua inserção no ambiente familiar parece ter sido, desde o início, marcada por esta desconfiança básica - ser ou não amada, acolhida com prazer. Ao mesmo tempo, trazia consigo a noção da família como referência, visto reconhecer receber o apoio quando dele necessitava.

Em seus relatos, a angústia diante da possibilidade da morte e da severidade de sua doença aos poucos foi se confirmando, seu quadro clínico rapidamente se agravava.

Assim, as questões que inicialmente se colocavam, gradualmente foram sendo substituídas por aquelas que diziam respeito ao futuro dos seus filhos e familiares, quando não mais estivesse entre eles. Havia como que uma tentativa de manter-se no controle da situação - tentava desesperadamente prever o que aconteceria no futuro, quando estivesse ausente.

Inicialmente, o trabalho analítico foi permeado por aspectos relacionados à sua escolha amorosa, pelas dificuldades enfrentadas durante os anos em que esteve casada. Casou-se muito jovem em função de uma gravidez não planejada com um rapaz não apreciado por sua família - o mesmo havia se envolvido com drogas e álcool. Durante os anos de casada este homem não teve trabalho fixo e assim a responsabilidade pelos cuidados com a casa e com os filhos ficava quase que inteiramente nas mãos da paciente.

Mostrava-se ressentida e magoada com as pessoas de sua família, julgava não ter tido apoio e compreensão por parte destes e, em especial, por parte de sua mãe. Assim, mais uma vez esta mãe se mostrou pouco disponível e não ofereceu o acolhimento esperado. A paciente parecia relutar em admitir sua responsabilidade na situação, atribuindo-a num primeiro momento ao descaso materno. Gradualmente, pôde entrar em contato com o fato de que cabia a si mesma a responsabilidade pelas escolhas efetuadas e via-se agora muito angustiada com o futuro dos filhos e netos aos quais atribuía características de fragilidade e dificuldade para enfrentar a vida.

Durante o processo analítico, alguns pontos adquiriram importância cada vez maior e estavam relacionados a aspectos tais como a perda da mama e a proximidade da morte.

A paciente parece ter vivido a perda da mama como algo que vinha de encontro às suas fantasias de não aceitação, de não acolhimento, seja por parte de sua família de origem, seja por parte de seu parceiro amoroso. A questão da reconstrução mamária não se apresentou, sua doença evoluiu de forma rápida e sua luta dizia respeito a preservar-se viva. O fato de ter tido um câncer na mama se configurou como uma surpresa, uma vez que em sua família não havia outros casos. A paciente tendia a atribuir seus sofrimentos psíquicos às situações vividas ao longo da vida e, em última instância, pôde atribuir a si mesma seus sofrimentos, suas angústias, considerando não ter se cuidado de forma adequada. Acredito que, ao tentar atribuir a outros sua dores, evitava entrar em contato consigo mesma, com aspectos que a faziam sofrer, percebendo não ter desfrutado a vida com prazer.

Para Aulagnier, a atribuição pelo Eu de um sentido ao que está sendo vivido é uma obrigatoriedade e, neste sentido, parece que esta paciente buscava de todas as formas responder a esta questão - porque comigo? Ou ainda, porque neste momento?

Desse modo, diante de um sofrimento insuportável e de uma doença incurável, talvez só reste ao Eu procurar respostas na própria história, ou seja, um responsável. A probabilidade da morte é algo que todos nós tendemos a negar, esperando, talvez loucamente, sermos poupados. Mas, no momento em que a negação e o adiamento deixam de ser uma possibilidade, o que resta?

Nossos encontros, gradualmente, foram cada vez mais permeados pelo medo da morte, pelo receio por seus familiares quando não mais estivesse entre eles. Para os homens a representação psíquica da própria morte é algo inconcebível, e neste sentido recorro a Freud quando este afirma: "de fato é impossível imaginar nossa própria morte e, sempre que tentamos fazê-lo, podemos perceber que ainda estamos presentes como espectadores. Por isso, a escola psicanalítica pôde aventurar-se a afirmar que no fundo ninguém crê em sua própria morte, ou, dizendo a mesma coisa de outra maneira, que no inconsciente cada um de nós está convencido de sua própria imortalidade"2 (p.327).

Dijaira mesmo ao falar sobre a morte iminente, não deixou de considerar a possibilidade de vir a curar-se, mantendo mesmo que parcialmente seus investimentos, seja em si mesma, seja em suas relações familiares. Ao se ver impossibilitada de se separar de seu corpo, se deparou com a necessidade de investí-lo, para se preservar viva e mesmo assim, a morte se impôs no final.

Conforme Aulagnier "para que a vida se preserve é preciso que o Eu mesmo quando já tiver aprendido que a causa última de sua morte se inscreve na natureza mortal do corpo, consiga coabitar com seu corpo, investindo-o como um 'habitat', uma 'posse', um 'bem', conseguindo protegê-lo contra uma morte cujas causas serão sempre extrapoladas (sobre o feiticeiro, sobre deus, sobre o vírus, sobre o risco de um assassinato, sobre um erro) a fim de inocentar o corpo" 3 (p.74).

Suponho que, Dijaira ao tentar inocentar o corpo, imputando a outros seu adoecimento, suas dores, suas angústias, seu abandono, tentava de todas as maneiras inocentá-lo, por meio de cuidados que se oferecia -massagens, acupuntura, tratamentos alternativos.

Considero ainda que no decorrer do trabalho analítico houve um momento que talvez possa ser compreendido como aquilo descrito por Aulagnier como o fenômeno de descorporização - experiência na qual o Eu se sente estranho e prisioneiro no corpo, corpo este que, em outros momentos, continua a habitar e investir. Levanto a hipótese de que tal fenômeno se apresentou no momento em que a paciente, durante uma das sessões, verbalizou o desejo de sair correndo de si mesma, desejo este por mim compreendido como o desejo de abandonar seu corpo, fonte de dor e sofrimento. O corpo, seu corpo, a obrigava a entrar em contato com questões que preferia deixar de lado, não pensar. Como se, por um momento, a paciente julgasse possível separar-se de seu corpo, fantasiando esta possibilidade. Na situação analítica, este foi um momento fugaz, ocorreu apenas uma vez e dá a dimensão de sua dor psíquica, de seu desespero, por ver-se condenada à morte e nada poder fazer.

Diante de um sofrimento insuportável advindo da impossibilidade de reconhecer-se morrendo, foi difícil para Dijaira, mulher ainda jovem, com planos para o futuro e desejando viver, entrar em contato com a própria morte, com o fim que se anunciava. Suponho que o momento descrito acima remetia, então, ao desejo de se separar de seu corpo, corpo este que fugia ao controle de seu Eu, obrigando-a a se perceber doente e condenada.

Aulagnier compreende a questão transferencial como: "A transferência ocupa na experiência analítica o papel de um catalisador que permite que dois discursos, duas histórias, duas experiências desemboquem na formação de uma terceira e nova construção da qual cada um dos construtores, terminada a análise, tirará as conseqüências, os proveitos, os ensinamentos, mais adequados ao prosseguimento de um percurso que continuará sozinho mas cujos objetivos serão modificados"4(p.21).

Embora a situação analítica tenha sido interrompida devido ao agravamento de seu estado físico, acredito que Dijaira pôde, gradualmente, desfrutar as relações familiares e afetivas enquanto isto foi possível, compreendendo suas próprias limitações, bem como daqueles que a cercavam.

 

REFERÊNCIAS

1. Aulagnier P. Os dois princípios do fununcionamento identificatório: permanência e mudança. In: Aulagnier P. Um intérprete em busca de sentido. São Paulo: Escuta; 1990. v. 2, p.181-94.        [ Links ]

2. Freud S. Reflexões para os tempos de guerra e morte. Vol. XIV. Cidade: ESB; 1915. p. 311-41.        [ Links ]

3. Aulagnier P. A filiação persecutória. In: Aulagnier P. Um intérprete em busca de sentido. São Paulo: Escuta; 1990. v. 2, p. 70-81.        [ Links ]

4. Aulagnier P. O aprendiz de historiador e o mestre feiticeiro: do discurso identificante ao discurso delirante. Escuta: São Paulo; 1989.        [ Links ]

 

 

Recebido em: 18/09/2006
Aprovado em: 27/09/2006

 

 

+ Artigo baseado na dissertação de mestrado "Uma perda, tantas perdas... mulheres portadoras de câncer de mama - um estudo psicanalítico", 2003, Pontifícia Universidade Católica - PUC - SP.
* O nome aqui referido é fictício a fim de preservar a identidade da paciente.

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