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Journal of Human Growth and Development

versão impressa ISSN 0104-1282versão On-line ISSN 2175-3598

Rev. bras. crescimento desenvolv. hum. v.17 n.1 São Paulo abr. 2007

 

PESQUISA ORIGINAL RESEARCH ORIGINAL

 

Os educadores de creche e o conflito entre cuidar e educar*

 

Day-care center caregivers and their conflict between giving care and teaching

 

 

Roberta C P AlvesI; Maria De La Ó R VeríssimoII

IEnfermeira. Mestre em Enfermagem Pediátrica pela EEUSP - São Paulo. robertapascarelli@yahoo.com.br
IIProfa. Dra. da EEUSP. Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 419. cep 05403-000. São Paulo-SP. mdlorver@usp.br

 

 


RESUMO

Promover saúde à criança é garantir cuidados de qualidade para seu desenvolvimento integral. Visando a identificar percepções de educadoras e proposta institucional sobre cuidados de saúde infantil, foram entrevistadas professoras e coordenadora pedagógica de creche municipal em São Paulo, e analisados documentos institucionais. A integração educar-e-cuidar aparece nos discursos como própria do trabalho em creche, mas dificultada pela precária formação para os cuidados, principalmente de saúde, e sobrecarga de atividades, levantando dúvidas sobre a exeqüibilidade dessa integração. Educar ainda é foco principal do trabalho, e cuidar é inevitável pela dependência das crianças, mas restrito ao corpo e valorizado somente se atrelado à educação. As propostas institucionais documentadas apresentam lacunas quanto à inclusão do cuidado como categoria independente e inerente à função profissional do educador. É imperioso persistir na construção de propostas integradoras do cuidado na formação inicial e permanente das educadoras, apoiada pelas diferentes disciplinas que atuam na atenção infantil.

Palavras-chave: Saúde infantil. Creches. Educação infantil. Cuidados primários de saúde. Enfermagem pediátrica.


ABSTRACT

To promote children’s health is to guarantee quality in the care given, in order to provide their integral development. The day-care center is a place where children live great part of their days, justifying the attempt to understand how this care is offered to them. The general objective of the present study was to characterize the aspects related to the implementation of health care in a day-care center, and the specific objective was to identify the caregivers’ perceptions and the institutional proposal concerning the child health care. Interviews were carried out with four teachers and the pedagogical coordinator of a public municipal day-care center in the city of São Paulo, and institutional documents were analyzed. The caregivers’ discourse revealed that the integration of education and care seems to be a characteristic of the work in the day-care center, but many factors made this integration difficult, such as the personnel’s deficient formation in relation to care, particularly that in the health area, and the overload of activities. In view of these difficulties, questions concerning the possibility to effectively accomplish this integration arose. Education still appears as the main focus of the teachers’ work, and care seems to be something inevitable since the child is very dependent. Therefore, care actions remain restricted to the children’s body and are emphasized only when they are considered as activities to be taught, aiming at the child’s independence. The institutional proposal identified in documents presents gaps concerning the effective inclusion of care as an independent category that is inherentin the caregivers’ professional function. In conclusion, the study points to the need to continue improving the construction of appropriate proposals to this level of childhood assistance, with the support of other knowledge areas that perform childcare. Keywords: Child health. Day-care centers. Child education. Primary health care. Pediatric nursing.


 

 

INTRODUÇÃO

As representações de saúde e de doença são diferentes segundo a cultura, tempo histórico e influências científicas. Até o século XIX, as causas das doenças eram explicadas basicamente por teorias empíricas, de fundamentação científica escassa. As descobertas sobre microorganismos, antibióticos e vacinas trouxeram modificações a esses conceitos, porém dúvidas quanto ao modo de transmissão das doenças persistiram1 e ainda persistem na população leiga.

Assim, foi induzido historicamente o "conceito de saúde como ausência de doença, com um modelo baseado na tecnologia, sendo o hospital o centralizador desse atendimento assistencialista", sem uma preocupação importante da medicina em compreender os saberes, as estratégias, os significados relativos aos problemas de saúde nos meios populares2.

Apesar dos inegáveis e importantes avanços na área da saúde, tem se discutido que a conquista de melhor condição sanitária e qualidade de vida depende de estratégias que visem não somente à recuperação e proteção, mas principalmente a promoção da saúde3.

A visão de saúde para além da simples ausência de doença, determinada pela idéia hegemônica de caráter genético e biológico, tem sido debatida amplamente em conferências internacionais de saúde, evidenciando-se hoje outros fatores determinantes, relacionados ao modo de viver das pessoas. Portanto, interferir no processo saúde-doença deve ser papel desempenhado por todos os cidadãos, e para isso é preciso compreender que este processo é fruto das relações do homem com o meio físico, social e cultural.

Quando nos referimos às crianças, creches e pré-escolas são cenário de destaque. Atualmente, é comum que estas fiquem grande parte do dia em instituições de educação infantil+. Assim, justifica-se compreender como a questão da saúde é garantida na creche.

Pode-se dizer que a origem das atuais instituições médico-assistenciais e educacionais, incluindo as creches, está nos abrigos ou asilos, nos quais, desde a Idade Média, recolhiam-se os diferentes tipos de desvalidos, para que pudessem ser alimentados e não ficassem expostos à violência, ou seja, tinham caráter assistencialista4.

Com o processo de industrialização, as creches passaram a apresentar também características de uma instituição destinada a permitir a utilização da força de trabalho feminina. Para as mulheres da população de baixa renda que trabalhavam fora, a creche passou a ser essencial para a viabilização da dupla jornada de trabalho, ou seja, para a criação dos filhos e o ganho do sustento da família5.

Somente a partir de 1930 o governo federal assumiu oficialmente a responsabilidade de atendimento infantil, ao criar o Ministério da Educação e Saúde. Mas a creche manteve suas concepções filantrópicas e de práticas assistencialistas por muito tempo, com políticas públicas voltadas à assistência social e da saúde, não se valorizando nessa época, na maioria das instituições, o trabalho dirigido à educação e ao desenvolvimento da criança.

Apenas com a Constituição Federal de 1988 legitimou-se a educação infantil enquanto direito da criança, como fruto da luta de entidades civis organizadas em defesa dos direitos da infância. É a partir desse direito proclamado que se faz necessária a demarcação de algumas especificidades da educação das crianças de 0 a 6 anos.

Em 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA6 regulamentou artigos da Constituição Federal e explicitou mecanismos que possibilitam a exigência legal dos direitos da criança. Somente em 1996 foi promulgada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB7, que inclui efetivamente a educação infantil no sistema educacional brasileiro, compondo a primeira parte da educação básica. A partir desse documento passou-se a considerar legalmente como função da educação infantil tanto a educação como o cuidado da criança atendida em creches e pré-escolas.

O Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil – RCNEI8 também assinala o cuidado como atividade permanente e essencial, ao firmá-lo como um dos componentes da proposta curricular da educação infantil. O que se pretende, segundo o Referencial, não é a simples transposição do cuidado doméstico para o ambiente institucional, mas sim a construção de uma prática de atendimento cujo princípio seja garantir as melhores oportunidades de desenvolvimento às crianças.

Sabe-se hoje que o bom desenvolvimento físico, psíquico e social do ser humano depende em grande parte dos cuidados referentes a atenção, nutrição, estimulação, acolhimento, compreensão e carinho oferecidos especialmente nos três primeiros anos de vida. Quando estes cuidados faltam, são inadequados ou insuficientes, as consequências podem ser decisivas e de longa duração, determinando a capacidade de aprender, de se relacionar e de regular emoções9.

Uma importante justificativa para estes princípios é o desenvolvimento da estrutura neurológica humana. Ao nascer, a criança já tem a maior parte das células cerebrais de que precisará para o resto de sua vida, porém a maioria dos 100 milhões de neurônios ainda não estabeleceram sinapses. A principal tarefa do desenvolvimento cerebral inicial é a formação e o reforço dessas ligações. "As conexões entre os neurônios se formam à medida que a criança em crescimento experimenta o mundo que a cerca e estabelece ligações com os pais, com os membros de família e com os outros cuidadores"10. Isto significa que, quanto mais estimulada for a criança, mais ligações entre os neurônios ela terá.

Os estímulos necessários são os mais variados possíveis, como o olhar, o acariciar, o toque, o abraço, a música, o falar com o bebê, o cantar, o ler para a criança, o brincar, o aconchego, a atenção, os atos de alimentar, de orientar nas questões de higiene, de colocar a criança para dormir. É importante aproveitar todas as oportunidades para essa estimulação.

Tais cuidados passam prioritariamente pela relação afetuosa e interativa dos pais e dos cuidadores, que devem aprimorar a sua observação das necessidades infantis para aquele momento de vida, vindo a oferecer as oportunidades apropriadas. O cuidado caloroso e responsivo exerce uma função biológica protetora, diminuindo ou eliminando os efeitos adversos do stress ou de traumas posteriores. Sem as brincadeiras, o toque e outros estímulos, o cérebro de um bebê pode desenvolver-se significativamente menos.

O cuidado de alta qualidade é aquele capaz de gerar confiança e vínculo afetivo entre a criança e o adulto. Nesse sentido, a discussão sobre o tema visa a que as famílias e outras pessoas que cuidam delas, como educadoras de creches e pré-escolas, compreendam que, mediante o cuidado, a interação e a brincadeira, estabelecem-se vínculos afetivos significativos e essenciais ao bem-estar infantil. Isto quer dizer que a qualidade das experiências infantis deve permitir-lhes ter confiança em si próprias, sentirem-se aceitas, ouvidas, cuidadas e amadas, de forma a lhes oferecer segurança para sua formação pessoal e social, para o desenvolvimento de sua identidade e conquista da autonomia11.

Portanto, nas instituições de educação infantil é imperativo focalizar e potencializar as questões referentes à qualidade do cuidado e da educação, especialmente o primeiro, sendo cabível perguntar como os adultos estão provendo as condições adequadas para que as crianças possam se desenvolver plenamente12.

No Brasil, constata-se que, na prática de seu atendimento, as trabalhadoras de creches vêem o cuidado à criança como algo que não demanda habilidades ou conhecimentos específicos, de menor valor e subsidiário em relação à educação, levando em conta o "instinto materno" natural das mulheres13. Muitos dos cuidados prestados são baseados no senso comum14 pois, na maioria destes serviços, até recentemente, houve pouco investimento na formação e capacitação de seus trabalhadores, o que inviabiliza o cuidado integral e sem riscos de iatrogenias às crianças ali atendidas. Nas práticas desenvolvidas prevalece a idéia de que o meio familiar pode ser transportado para a creche, o que tem favorecido o surgimento de um modelo mecânico como o único capaz de dar conta do maior número de tarefas possíveis de maneira rápida e eficiente por um número pequeno de pessoas5.

Sempre houve duplicidade e desarticulação dos setores saúde e educação em relação à infância, e mesmo documentos mais recentes, elaborados com o objetivo de estimular e apoiar programas de educação infantil que atendam parâmetros de qualidade, têm deixado a desejar no que respeita à promoção da saúde15.

Assim, diversos autores têm defendido que as práticas de cuidado necessárias à manutenção e recuperação da saúde infantil só podem ser implementadas pelos cuidadores à medida que estes tenham sido capacitados para isso, o que torna evidente a necessidade de que a formação das educadoras de creches contemple esse componente do cuidado.

Em resposta a esse debate, a LDB dispõe em seu título VI, art. 62 que, para atuar na educação básica, os docentes devem ter formação em nível superior, admitida, como formação mínima, a oferecida em nível médio, na modalidade Normal7.

Analisando dados acerca dos profissionais docentes em creches, vemos que houve uma melhora expressiva no grau de escolaridade destes, ao se comparar os dados de 1999 com os de 200516. Apesar dessa mudança efetiva na contratação de pessoal com maior formação escolar, um dos aspectos a ser destacado é que muitos destes têm formação em áreas diversas à pedagogia, devendo-se assim considerar que há, na verdade, um grande aumento de professores capacitados em nível médio de ensino. Cabe questionar se a maior formação profissional redunda em melhor integração entre o educar e o cuidar.

O que se observa, na prática, é que as informações para os educadores acerca dos cuidados com a saúde são adquiridas em breves treinamentos iniciais, e aprendem de forma artesanal, observando outros educadores trabalhando. Estas informações são assimiladas de forma parcial, ou são re-interpretadas segundo os conhecimentos prévios dos educadores e o recorte que fazem sobre o corpo e sua relação com a higiene e saúde14.

Além dos problemas de formação, outra razão que contribui para esse quadro é que as práticas de saúde mais freqüentes nas escolas se fundamentam no paradigma tradicional de saúde escolar17. Neste, as intervenções sanitárias no âmbito escolar limitam-se à vacinação, desparasitação, controles médicos, palestras sobre temas da saúde. Muitas vezes, as ações dos professores reproduzem tal modelo, no controle do cartão de vacinas, campanhas de prevenção, ações de detecção e encaminhamento de problemas de saúde. Este enfoque é o da lógica biomédica, centrada na prevenção da doença, ficando a escola geralmente em posição passiva nas atividades, pois se concebe apenas como um cenário para tais ações17.

Por tudo isto, a construção de práticas de qualidade, que incorporem cuidados de promoção e manutenção de saúde na creche, depende do desenvolvimento de um referencial conceitual e operacional apropriado. Vários autores e entidades têm defendido a educação em saúde como parte integrante da formação de professores, como uma forma de superação desses limites12-15. Acreditamos que, embora o referencial das Escolas Promotoras da Saúde tenha sido desenvolvido com foco no ensino fundamental e médio, seus princípios podem ser apropriados para o nível da educação infantil, com as devidas adaptações.

O modelo das Escolas Promotoras da Saúde (EPS) vem sendo difundido desde 1995 pela Organização Panamericana de Saúde – OPAS, e parte de uma visão multidisciplinar, que considera as pessoas em seu contexto familiar, comunitário e social, e procura desenvolver o autocuidado da saúde e a prevenção de condutas de risco em todas as oportunidades educativas; fomenta a reflexão sobre o que contribui para melhoria da saúde e do desenvolvimento humano; facilita a participação dos integrantes da comunidade educativa na tomada de decisões; e colabora na promoção de relações socialmente igualitárias entre as pessoas, na construção da cidadania e democracia e reforça a solidariedade, o espírito de comunidade e os direitos humanos18.

Desta forma, a Saúde Escolar passa, necessariamente, por uma revisão dos conceitos e práticas higienista e assistencialista, e tem a possibilidade de avançar e ampliar a sua concepção e práticas com uma visão integral e interdisciplinar do ser humano.

Cabe destacar que a Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, em sua gestão atual, lançou o Programa "São Paulo é uma Escola"19, no qual definiu como uma das metas introduzir o modelo das EPS no sistema educacional. Entretanto, esta proposta visa à ocupação dos espaços públicos e tempo livre dos estudantes, o que significa não estar inserida no currículo e, portanto, ser opcional.

A política da educação infantil define como funções da creche e pré-escola cuidar e educar. Sua efetivação é determinada por várias condições, dentre elas, as concepções que orientam as práticas dos trabalhadores no cotidiano. Desejamos analisar nesse trabalho a implementação de ações obrigatórias por lei, como a formação de educadoras de creche em nível médio e superior e a visão da criança como um ser indissociável, que enquanto está na creche precisa de educação e de cuidado simultaneamente.

Ao entender a promoção da saúde como uma meta que pode ser alcançada somente com a definição de políticas que extrapolem o setor saúde e participação de todos os setores sociais, uma das frentes de ação dos trabalhadores da área de saúde deve ser formar parcerias com instituições com as quais possam ampliar seu campo de ação e contribuir para a melhoria do cuidado à saúde da população. Assim, o presente estudo tem a finalidade de contribuir para o debate sobre a saúde no contexto educativo.

 

OBJETIVOS

A presente investigação teve como objetivo geral caracterizar aspectos relacionados aos cuidados de saúde infantil em creche, e como objetivos específicos identificar percepções de educadoras de creche e a proposta institucional acerca destes cuidados.

 

MATERIAL E MÉTODO

Esta investigação foi realizada em uma creche de administração direta do município de São Paulo, situada na região do Butantã, zona oeste da cidade, que funciona desde 1981 e atende a 140 crianças, em período integral, de segunda a sexta-feira, das 6:30h às 18:30h. Este serviço foi selecionado por tratar-se de um local onde vimos realizando atividades educativas em saúde, demandadas pela diretora, após contato anterior, durante realização de pesquisa.

Foram utilizadas como fontes de dados documentos e entrevistas. Os documentos selecionados foram: o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI); o Programa "São Paulo é uma Escola" da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo; a cartilha "Tempos e espaços para a infância e suas linguagens nos CEIs, Creches e EMEIs da cidade de São Paulo"; o Projeto Político-Pedagógico (PPP)++ da creche, intitulado "O espaço do lúdico: brincando e jogando para chegar ao mundo letrado", elaborado durante o ano de 2005; e os planos de reuniões semanais e mensais das educadoras.

As entrevistas semi-estruturadas, com quatro educadoras e a coordenadora pedagógica da creche, seguiram roteiros baseados nos pressupostos e hipóteses construídos na definição do objeto de investigação. Foram gravadas e transcritas integralmente, e compuseram o material de análise, junto com os documentos.

Os dados foram submetidos à análise temática de conteúdo, categorizados, e alguns de seus trechos usados para ilustrar os resultados. A discussão baseou-se em estudos que abordam a qualidade do atendimento face às necessidades e cuidados essenciais ao Desenvolvimento Infantil.

O projeto foi apreciado e aprovado pelo Comitê de Ética da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, e submetido à direção do Centro de Educação Infantil, a fim de garantir os aspectos éticos e legais deste trabalho. Além disso, as trabalhadoras participantes assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido.

 

RESULTADOS

Participaram do estudo quatro professoras de educação infantil e a coordenadora pedagógica da creche. Suas idades variavam entre 26 e 43 anos de idade; relataram ter optado pelo trabalho com educação, e que iniciaram suas carreiras entre 15 e 18 anos de idade.

Quanto à educação formal, duas concluíram o ensino superior e três estavam cursando esse nível de ensino, o que condiz com os requisitos acerca da atual formação escolar das professoras do Ensino Infantil. Mas apenas duas delas optaram pelo curso superior em pedagogia, e as demais escolheram ciências sociais, letras e direito. Portanto, apesar do elevado grau de formação, os cursos não abrangem conteúdos específicos da área.

Em relação aos cuidados de saúde na creche, as educadoras referiram que:

"Cuidados de saúde na creche incluem: alimentar bem a criança; fazer sua higiene e ensiná-la a cuidar da própria higiene; manter a higiene do ambiente; identificar alterações de saúde e encaminhá-la ao médico quando necessário".

"Tais cuidados são importantes para prevenir doenças".

"As educadoras que são mães e as que trabalham há mais tempo com crianças têm mais conhecimentos e, conseqüentemente, mais facilidade para lidar com as doentes. Ainda assim, todas temos dúvidas e inseguranças porque esses conhecimentos não são suficientes. Isto, além de dificultar o cuidado, torna-o não profissional, caracterizado como ´cuidar materno´, imitativo e de senso comum. Seria importante haver disciplinas sobre a saúde da criança nos cursos de formação de educadores, e na formação em serviço da creche".

"A falta de funcionários, principalmente os da limpeza, também dificulta o cuidado, pois compromete a higiene do ambiente e expõe as crianças às doenças; às vezes, nós temos que varrer as salas e até limpar os banheiros, o que ocupa um tempo importante que deveria ser dedicado para as atividades didáticas. A falta de professores é igualmente uma barreira, já que dificulta a atenção às crianças tanto para evitar agravos de saúde e acidentes, como para atendê-las quando têm algum problema de saúde".

"A ausência da auxiliar de enfermagem, além de prejudicial aos cuidados de saúde, principalmente com os bebês, que não sabem referir queixas, também dificulta o trabalho, pois a professora tem que assumir esses cuidados. Deveria haver também a presença de nutricionista e psicólogo, e integração da creche com serviços de saúde, para facilitar o encaminhamento das crianças, e também para que houvesse troca de conhecimentos entre a educação e a saúde".

As professoras questionam o cuidado como sua função, e definem seu papel profissional na creche do seguinte modo:

"A professora deveria atuar no ensino, na formação intelectual das crianças, e com relação à saúde teria uma função prioritariamente educativa; mas no trabalho em creches, por se tratarem de crianças pequenas e que permanecem muitas horas, surgem situações às quais devemos responder, mesmo que não seja papel de professor, realizando cuidados, como os de higiene, e até aqueles que deveriam ser realizados pela família, como cortar as unhas. Nesses casos, estamos exercendo função de mãe, e não de professora. Além disso, exercemos até função de faxineira, pela falta de funcionários, o que gera uma sobrecarga de trabalho. Isto a leva a questionar como funções do professor educar e cuidar, já a função educativa é a que deveria ser privilegiada, mas fica prejudicada pelas outras funções necessárias ao trabalho em creche".

"Compete ao profissional de saúde evitar que as crianças tragam problemas de saúde de casa para a creche, orientar as professoras sobre questões de saúde, e até mesmo a protegê-las tanto de se exporem às doenças como de serem culpadas pela família por maus cuidados às crianças. Ele deve orientar a limpeza da creche e a alimentação das crianças, inclusive mudanças no cardápio em casos de doença. Com relação à administração de medicamentos às crianças, que hoje é função da professora, não somos preparadas nem competentes, pois não temos formação adequada para essa responsabilidade, o que pode levar a erros. Além disso, essas atividades demandam tempo que poderia ser usado para outras atividades pedagógicas".

Por outro lado, o discurso da coordenadora aproxima-se mais ao discurso oficial, demonstrando um movimento no sentido de incorporá-lo à realidade:

"A função das professoras de creche deve ser educar e cuidar, de forma a contribuir para o desenvolvimento infantil, ao invés de se centrar na formação educativa. Elas devem estar atentas às necessidades das crianças, através da observação, da atenção, do respeito a seus direitos, da realização de cuidados das que ainda não o fazem sozinhas, especialmente daquelas que não conseguem verbalizar suas dificuldades e vontades".

"As educadoras ainda têm dificuldade em reconhecer como sua função o cuidar, já que este não pode ser mensurado, então dão maior importância ao educar. Para garantir a observação do resultado de seu trabalho sobre o desenvolvimento das crianças, devem registrar sistematicamente suas ações e os comportamentos das crianças. Elas sempre se queixam de que cuidam demais, mas no trabalho com crianças pequenas realmente as atividades são mais físicas do que mentais, o que o torna muito cansativo. Apesar disso, as professoras já estão se conscientizando da importância do cuidado para a criança na creche, mas este é um trabalho longo e dificultado pela entrada de novos funcionários, que estranham e rejeitam essa função ao chegar à creche".

Em relação aos documentos, estes foram utilizados a fim de conhecer e analisar as demandas do serviço em estudo e as propostas oficiais em termos de funções esperadas das professoras na creche acerca dos cuidados de saúde infantil.

O Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil – RCNEI8 ilustra o que as diretrizes atuais definem como orientações para a Educação Infantil; documento que, na introdução traz a idéia de que "representa um avanço na educação infantil ao buscar soluções educativas para a superação, de um lado, da tradição assistencialista das creches e, de outro, da marca da antecipação da escolaridade das pré-escolas" 8. Tem como propósito superar a dicotomia entre cuidado e educação, através da incorporação dos cuidados essenciais das crianças e suas brincadeiras às atividades educativas, pois refere que não há como dissociar tais atividades. Apesar disto, explora com maior detalhamento aspectos relativos à aquisição de conhecimentos, tal como se dá nos estágios posteriores da educação.

O Programa "São Paulo é uma Escola", da SME de São Paulo, foi lançado visando a atender a duas iniciativas da Política Educacional: a ampliação do tempo para o desenvolvimento do processo de ensino e da aprendizagem; e a revitalização e uso dos espaços ociosos da cidade, a fim de melhorar a formação educacional dos estudantes em todos os níveis19. Mas neste programa, tal como nas demais atividades, a EPS se coloca no momento paralelo à escola e, portanto, opcional, conforme descrito em um de seus objetivos: "Usar o espaço e o tempo pós-escola para desenvolver a prática da Escola Promotora de Saúde" 19.

A cartilha "Tempos e espaços para a infância e suas linguagens nos CEIs, Creches e EMEIs da cidade de São Paulo"20 trata das práticas, do currículo e do dia-a-dia das educadoras. Ela é dividida em cinco grandes temas, e ao final de cada um dos tópicos há questões relativas a estes para serem discutidas em grupos, com exceção do primeiro tema, justamente o que aborda a integração educar e cuidar. Pode-se afirmar que este documento é muito condizente com a proposta de melhor qualificar as atividades infantis na creche, entretanto, não há qualquer referência às atividades de cuidado corporal, cuidados com a saúde, hábitos de higiene, o que nos mostra que continua havendo uma dicotomia entre educar e cuidar, havendo maior ênfase à educação.

O Projeto Político-Pedagógico (PPP) da creche, intitulado "O espaço do lúdico: brincando e jogando para chegar ao mundo letrado", foi elaborado durante o ano de 2005 e terá continuidade durante 2006. Apesar de se afirmar em sua introdução que está expresso "no educar e no cuidar", a leitura de seu conteúdo revelou ausência de referência aos cuidados de saúde às crianças e ênfase em práticas pedagógicas. De acordo com a coordenadora pedagógica, este projeto consiste em aproveitar qualquer oportunidade na creche para estimular a linguagem na criança e prepará-la para a leitura. Assim, as professoras tentam promover um ambiente estimulante, através da leitura de histórias, receitas, bilhetes, comunicados, músicas, e da oferta de materiais impressos com figuras e textos, permitindo que as crianças os manuseiem, com a finalidade de "que a criança entre em contato com o mundo letrado, que perceba o uso social da língua escrita e aprenda sua decodificação".

Quanto aos planos de reuniões da creche, estes incluem os conteúdos discutidos nas paradas pedagógicas e nas reuniões semanais, que são brevemente documentados em livros-ata. As paradas pedagógicas ocorrem mensalmente e têm participação do maior número possível de funcionários, durante um dia letivo em que as crianças são dispensadas. Pôde ser constatado que as oficinas realizadas por nós, e uma palestra de fonoaudióloga, foram os únicos temas sobre saúde discutidos nesses encontros no período de 2004-2005, os demais se referiram a conteúdos pedagógicos. As reuniões semanais são conduzidas pela coordenadora pedagógica, e duram 1 hora e 30 minutos por semana com cada grupo de educadoras. Houve menção a uma única atividade de saúde, que foi a elaboração de cartaz sobre importância da vacinação, e o tema do cuidado infantil foi debatido durante as discussões da citada cartilha da Secretaria, embora não haja registro do conteúdo das discussões.

 

DISCUSSÃO

Inicialmente, buscamos entender a baixa adesão das educadoras às entrevistas, apesar da intensa participação nas atividades do projeto educativo que vínhamos desenvolvendo. Percebemos que essas atividades ocorreram durante as paradas pedagógicas, em que há presença obrigatória. Além disso, durante os contatos, as participantes revelaram que, a princípio, estavam com receio de participar, por acreditarem que poderiam não saber responder às questões e que não contribuiriam para o estudo, o que as deixaria constrangidas.

Ainda que tenha havido dificuldade em contar com maior número de educadoras no estudo, podemos concluir que seus objetivos foram atingidos, pois foi possível apreender como o cuidado de saúde nessa unidade de educação infantil é entendido e sua relação com a proposta institucional.

Ao referirem os cuidados de saúde oferecidos na creche e sua importância, as educadoras citaram temas relativos à alimentação, higiene pessoal e ambiental. Desses dados, depreende-se que cuidado à saúde restringe-se a prevenir doenças ou tratá-las quando estão presentes, que a visão de saúde subjacente à prática é a de ausência de doença, e o que explica a doença são aspectos dos modelos de uni ou multi causalidade. Assim, tais cuidados estão essencialmente ligados à parte física da criança e nenhum cuidado relativo a aspectos emocionais ou de estímulo ao desenvolvimento infantil foi citado. É possível que muitos outros cuidados sejam oferecidos, porém elas não os reconheçam como tal.

A razão primordial de cuidar na creche, segundo as educadoras, é uma demanda da criança que não pode ser negligenciada, pois ela carece do atendimento a suas necessidades e não é capaz de satisfazê-las por si própria, tal como evidenciado em estudo anterior13. Isto implica a existência de um provedor, alguém que se responsabilize por oferecer essa atenção. Mas o que é assumido por elas como posto, é também questionado quanto a quem cabe, se seria mesmo de sua competência.

Assim, as educadoras ainda vêem com menos estranhamento haver pessoas diferentes para cuidar e educar do que a professora ter que assumir os cuidados com o corpo infantil. Isto aparece claramente nos discursos quando elas afirmam saber que "têm que cuidar e educar" pois se trata de crianças pequenas e não há outras pessoas para fazê-lo. Neste sentido, pode-se inferir que ainda há muita dificuldade em reconhecer o trabalho profissional como centrado no atendimento à criança de forma global.

Além disso, as educadoras ressaltam que geralmente realizam tais cuidados da mesma forma que no ambiente doméstico, que suas ações são baseadas em suas experiências como mãe e de cuidado a outras crianças, de forma semelhante ao que ocorre em vários outros serviços que contam com trabalhadores com variados níveis de formação14,21-23.

Afirmam que não usam conhecimento formal ao oferecer cuidados às crianças, e que se sentem inseguras ao lidar com as doentes. Ao mesmo tempo, destacam que há uma lacuna na formação dos profissionais em relação a essa competência, mas não relacionam a falta de formação à desvalorização que atribuem ao cuidado.

Apesar de, atualmente, o nível de escolaridade mínimo exigido das professoras de creche ser o ensino médio completo, nem mesmo os cursos destinados à formação de docentes são específicos para a formação de profissionais para atuar na educação infantil. Aliás, esta tem pouco destaque em seus currículos, com conteúdos bem restritos e inespecíficos.

Os próprios técnicos de secretarias de educação municipais reconhecem que, na ausência de melhor qualificação para o trabalho, as educadoras mobilizam suas experiências pessoais, principalmente como mães e, ao longo dos anos em que trabalham nas escolas, vão construindo um saber baseado no desempenho desses dois papéis: mãe/professora21. A formação inicial nos cursos de magistério é precária, os estágios são só formais e não preparam os professores para a realidade que vão enfrentar, bem como há insuficiência da formação em serviço, pois muitas vezes não existem horários previstos para o trabalho de planejamento e reflexão em equipe e os modelos de formação adotados não propiciam a integração entre teoria e prática21.

Esses problemas de formação produzem a fragilidade da inserção da função cuidadora no arcabouço da construção do papel profissional do educador. No nosso estudo, isto aparece tanto quando a coordenadora pedagógica associa a ausência de uma forma de mensurar e qualificar o cuidado à rejeição das educadoras em assumi-lo, como quando as educadoras manifestam que o cuidado tem sentido para elas quando atrelado ao ensino.

Percebe-se que há uma lacuna na sistematização do cuidado, dificultando que ele possa ser objetivado, mediante planejamento, com definição de objetivos, estratégias e avaliação. A ausência de um quadro conceitual que ampare e sustente esse cuidado não permite que ele seja sistematizado e visto como produto de um trabalho profissional e, mais ainda, impede pensar o cuidado como categoria individual e independente da educação.

Maranhão defende a premissa de que os cuidados constituem o elo entre as atividades educativas e as ações de saúde na creche14. Lembra que os cuidados com a criança na primeira infância exercem duplo papel: manter sua saúde, o conforto e bem-estar e dar à criança referências sobre si mesma, o outro e o ambiente, o que é obtido por meio do toque, da linguagem, da expressão facial de quem cuida, e da regularidade com que é atendida em suas necessidades24.

A desvalorização do cuidado enquanto função profissional do educador de creche tem sido creditada, entre outras razões, ao fato do cuidado infantil ser tradicionalmente atribuição materna e familiar, e entendido como naturalmente feminino13,24.

A função educativa é vista na Educação Infantil, de maneira semelhante, como algo natural, fortemente impregnada pelo mito da maternidade, da mulher como educadora nata, e, portanto, destituída de profissionalismo25. Esse é um mito que perdura até nossos dias graças à visão dos primeiros teóricos da educação infantil acerca das qualidades que deveria ter uma educadora de criança pequenas: o fato de ser mulher, preparada pela natureza para a maternidade, já a definiria como educadora nata25.

Assim, pode-se inferir que o fato de tanto a educação como o cuidado nas creches sofrerem prejuízo por serem vistos como capacidades inatas femininas, relacionadas à capacidade da maternidade, impele ainda mais as educadoras a desejarem garantir para si um status profissional mediante rejeição a ações entendidas como maternas.

Nos discursos, vemos que as professoras citam que sua função prioritária é o ensino, tanto nas atividades pedagógicas como em relação aos cuidados de saúde, portanto o cuidado oferecido, para ser sua função, deve ter interface com a educação. A coordenadora inclusive ressalta o quanto as educadoras se queixam do tempo que despendem com o cuidado.

Resultados semelhantes de outro estudo evidenciaram que o cuidado, interpretado apenas como higiene, prevenção de acidentes e oferta de nutrientes, era "acusado" de "atrapalhar" o desenvolvimento da ação pedagógica, por despender tempo dos educadores e impor uma rotina rígida, restringindo as ações educativas aos intervalos que "sobravam"14.

Igualmente, outra pesquisa observou o enfrentamento de um dilema por parte desses profissionais no que diz respeito à dimensão de cuidado em suas práticas cotidianas, quando cosntatou que, apesar do cuidado estar fortemente presente, ele era ora negado, porque tido como antiprofissional, ora visto como algo característico ou mesmo inerente à condição feminina, materna, o que o tornava não uma característica ou atributo profissional típico daqueles que trabalham com crianças, mas, antes, uma característica doméstica, situada no âmbito da vida privada e, sobretudo, associada à condição feminina26.

A despeito dos educadores tentarem construir uma visão de profissionalismo rejeitando o cuidado e revestindo-se do papel de professor transmissor de conteúdos, toda relação entre educadora e criança no âmbito pré-escolar é permeada por algum tipo de cuidado, seja ele explicitado e consciente ou não, seja ele mais ou menos adequado27.

Isto aparece em nosso estudo quando as educadoras relatam que cuidar é inevitável, pois são crianças pequenas e "não pode se recusar a oferecer tais cuidados". Ao constatar este fato, as trabalhadoras parece que tentam delimitar um espectro de ações que seriam cabíveis na creche, excluindo as que consideram específicas das famílias. Mesmo quando reconhecem que o cuidado com a criança pequena é inerente à ação educativa, ainda são encontradas dificuldades em definir os cuidados que são de competência exclusiva da família e os cuidados que seriam da competência da instituição, atribuindo os cuidados com o corpo à família14.

Quando o cuidado não está claramente vinculado a uma ação entendida como educativa, as professoras sentem que não estão atuando como professoras e sim "exercendo função de mãe". Ainda, reclamam a necessidade de manter profissional de saúde no serviço que se incumbisse de acompanhar as ações que consideram específicas de saúde, portanto, fora de sua competência. Embora efetivamente algumas necessidades infantis correspondam a uma demanda de outros profissionais, cabe questionar se o cuidado diário, que inclui ações como trabalhar a aceitação alimentar, deveria mesmo ser incluído nessa categoria.

Assim, evidencia-se a ambivalência na definição de funções relativas ao cuidado. O que aparece num momento do discurso – a integração cuidar e educar – é questionado e até rejeitado em outro momento. Visualiza-se aqui que o discurso individual incorpora o discurso oficial, da lei e da ciência, mas ainda não representa a introjeção dessa visão sobre a função da educação infantil.

Por outro lado, entender as ações de cuidado da criança como fatores de sobrecarga e prejuízo por redução do tempo de atividades didáticas, é um ponto importante a ser melhor explorado, considerando que diversos estudos demonstram que alta qualidade na atenção à primeira infância compreende muito além do oferecimento de atividades pedagógicas28.

Embora as discussões sobre o desenvolvimento infantil em creches sejam complexas, pois se baseiam em estudos não randomizados, indicadores variados e, muitas vezes, até em opiniões, atualmente dispomos de trabalhos bastante significativos que demonstram essa afirmação. De uma forma geral, os estudos evidenciam a importância do ambiente, físico, social e emocional, sobre o desenvolvimento.

Especificamente no que diz respeito às instituições educacionais, a qualidade do cuidado importa em vários níveis28. Com base na análise de estudos realizados nas décadas de 80 e 90, verificou-se que, crianças que freqüentaram instituições de qualidade superior apresentaram melhores competências nas áreas cognitiva, social e de linguagem. A qualidade dos serviços foi mensurada por variáveis como atitudes e comportamentos dos cuidadores, instalações físicas, atividades apropriadas às idades, grupos de tamanhos adequados, baixa proporção criança/adulto, formação e treinamento dos cuidadores. A despeito das diferenças entre as pesquisas, há evidências de que a qualidade do cuidado oferecido está relacionada com as competências subseqüentes das crianças28.

Frente à magnitude da importância do cuidado para o desenvolvimento infantil, não se deveria pensá-lo como algo que interfere nem atrapalha as ações próprias do professor na creche, tal como ainda aparece nos discursos dos educadores.

No que diz respeito aos documentos, observa-se ainda uma aproximação tímida dos aspectos de cuidado.

Quanto à adoção do modelo de Escola Promotora de Saúde pela Secretaria de Educação19, além de se constituir em uma ação paralela, a justificativa para sua utilização ainda recai sobre a visão tradicional da saúde escolar, pois seu objetivo é ratificar a importância do impacto da correção dos problemas de saúde sobre o aprendizado.

Essa visão tradicional está baseada nos modelos higienistas de Saúde Escolar, que criaram a equivocada tarefa da Saúde de ter que responder pelo processo de aprendizagem de crianças e adolescentes, medicalizando as questões da educação e privilegiando a prática terapêutica como modelo de intervenção junto ao sujeito e à sociedade29.

No que diz respeito ao projeto político pedagógico da creche, enfatiza um dos aspectos do desenvolvimento infantil, qual seja, a linguagem, e reforça o papel do educador na função de ensinar. A escolha da área de linguagem tem um aspecto positivo, uma vez que o período da vida em que as crianças freqüentam creches corresponde a uma fase crítica para o desenvolvimento, e a linguagem é uma área em que a criança pode ter dificuldades maiores uma vez que necessita da intervenção de outrem12.

Entretanto, na implementação do projeto na creche estudada, o foco é o estímulo ao apreço pela escrita, o que pode significar uma preocupação delimitada pela visão da escolarização, priorizando um aspecto em detrimento de pensar a ação de forma mais ampla, uma vez que a linguagem tem muitas outras funções no desenvolvimento, tais como a socialização e a expressão de sentimentos.

Embora na sua introdução aponte-se que o PPP está expresso "no educar e no cuidar", novamente percebe-se que o foco não é a criança, mas sim a visão de competência que os educadores pretendem de si mesmos, isto é, aproximar a criança da leitura é algo que dignifica seu trabalho nesse local.

A esse respeito, para que faça sentido caracterizar a instituição de educação infantil como lugar de cuidado-e-educação, deve-se tomar a criança como ponto de partida para a formulação das propostas pedagógicas. Seu sentido fica vazio ao se adotar essa caracterização como se fosse um dos jargões do modismo pedagógico, o que leva a resultados justamente opostos ao que se pretende30.

Já os planos de reuniões expõem o investimento na formação continuada, mas não foi possível identificar como se dão essas atividades, e percebe-se que temas de saúde são trabalhados de forma pontual, possivelmente com pouca repercussão no trabalho. Sabe-se que a mudança das práticas depende de uma mudança de concepções, o que não ocorre de forma automática. A construção de uma nova compreensão sobre o papel do educador na creche só pode ocorrer mediante o compromisso individual e grupal em repensar suas práticas e o que as mobiliza. Quanto a isto, a coordenadora pedagógica demonstra um movimento no sentido dessa reconstrução, mas também reconhece dificuldades concretas que enfrenta, como os problemas de formação anterior das educadoras e sobrecarga de atividades.

A cartilha "Tempos e espaços para a infância e suas linguagens nos CEIs, Creches e EMEIs da cidade de São Paulo"20 é uma material que pode auxiliar tal reconstrução, mas, seu conteúdo também privilegia aspectos da aprendizagem. Além disto, chama a atenção que cada um dos capítulos traz questões relativas aos temas para reflexão e discussão em grupo, exceto o primeiro - "Educar e Cuidar: por que a Educação Infantil passou a tratar desses dois conceitos de modo integrado?". Considerando que as questões da cartilha foram utilizadas na formação continuada da creche, e que não havia questões sobre esse capítulo, nem outras questões específicas do cuidado nos demais capítulos, podemos afirmar que a própria cartilha ainda não aborda o cuidado como se pretende.

Assim, os documentos citados pontuam como função da creche integrar as ações de cuidado e educação, o que possivelmente determina que as educadoras manifestem esse discurso, mas fica claro que ainda há muito a se fazer para que seja realmente superada a visão tradicional e dicotomizada de educação e cuidado.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A construção dos saberes e práticas que integrem cuidar e educar na atenção infantil é um grande desafio, a ser superado com o apoio das várias disciplinas que se incumbem de estudar, refletir, construir, propor e avaliar os conhecimentos e as ações voltadas à promoção do desenvolvimento infantil. Este é o caminho para não cair no reducionismo que culmina na atenção parcial à criança: agregar contribuições das diferentes áreas do conhecimento, para a construção de um atendimento integrado e global a ela.

 

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Enviado em 08/08/2006
Modificado em 21/09/2006
Aprovado em 27/09/2006

 

 

* Dissertação de Mestrado apresentada à Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo – EEUSP.
+ Segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a Educação Infantil compreende creches e pré-escolas, que atendem crianças menores de 4 anos, e de 4 a 6 anos, respectivamente (Lei 9394/96)
++ O Projeto Político Pedagógico de uma instituição educativa estabelece princípios, diretrizes e propostas que sistematizam todas as suas atividades e pressupõe uma construção participativa dos diversos segmentos escolares.

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