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Revista Brasileira de Psicodrama
versão On-line ISSN 2318-0498
Rev. bras. psicodrama vol.17 no.1 São Paulo 2009
DIÁLOGO ELETRÔNICO
A família na sociedade pós-moderna
Families in the post-modern society
Maria Amália VitaleI,II,* ; Miriam Tassinari**, III
IAssociação de pesquisadores de núcleos de estudos e pesquisas sobre a criança e adolescente/Neca II Federação Brasileira de Psicodrama IIIInstituto de Psicodrama e Psicoterapia de Grupo de Campinas
Editor: Peço que vocês falem de suas carreiras, particularizando a escolha para o trabalho com famílias: quando e como escolheram esse trabalho?
Maria Amália: Ingressei na chamada Escola de Serviço Social em 1966, em São Paulo. Vivi como estudante os chamados anos de chumbo. Desse momento da juventude levei para a maturescência tanto os pressupostos de uma visão de sociedade quanto relações afetivas que até hoje me acompanham. A primeira oportunidade profissional surgiu no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo, no setor de Serviço Social. Esta acabou sendo uma experiência-chave na minha vida profissional, uma vez que direcionou um caminho (raiz do trabalho com famílias) e criou as bases de uma rede profissional que é viva até hoje.
As exigências do campo psiquiátrico me levaram a buscar nova formação. A ponte para esta nova formação se deu por meio de José de Souza Fonseca Filho, psiquiatra e psicodramatista. Fiz parte da primeira turma do curso para assistentes sociais da Sociedade de Psicodrama de São Paulo (SOPSP). Tão importante quanto esses passos foi exercer a atividade docente na PUCS/SP.
A década de 70 representou a implantação da terapia familiar no Brasil, já consolidada em outros países da Europa e nos EUA. Em 1977, concluí a dissertação de mestrado em Serviço Social sobre mitos familiares, focalizando a experiência terapêutica com famílias. A terapia familiar representava uma mudança dos pressupostos básicos do trabalho terapêutico e exigia a aceitação de novas ideias e de novas formas de trabalhar. O aprofundamento do trabalho com famílias me levou, em 1985, a fazer um curso intensivo no Instituto de Terapia Familiar em Roma. Ao longo do tempo participei ainda do Grupo de Estudos de Psicodinâmica (GEP) no Daimon – Centro de Estudos do Relacionamento. Esses estudos sedimentaram meu percurso. Na década de 90 realizei o doutorado, defendendo uma tese sobre Vergonha: um estudo em três gerações. A importância em abordar a família na perspectiva geracional integrou meu trabalho. Em 2006, optei por deixar o Programa de Estudos Pós-graduados em Serviço Social na PUC/SP, no qual desenvolvi atividades de docência e pesquisa sobre família. Participei ainda da fundação da Associação Paulista de Terapia Familiar, assim como de muitas de suas atividades. Atualmente, continuo com as atividades de consultório e com pesquisa vinculada ao Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Crianças e Adolescentes. Essas foram as bases (terapia familiar, psicodrama e docência/pesquisa) em que ancorei meu percurso profissional e que direcionaram minhas publicações acadêmicas.
Miriam: A minha formação básica é psicologia pela Puccamp. Na clínica da faculdade comecei uma formação em psicanálise, mais especificamente em ludoterapia.
Formada (que pretensão!), fui à procura de uma das professoras da universidade, Antonia Camargo, para dar continuidade à supervisão. No primeiro contato fiquei sabendo que ela trabalhava com psicodrama. Já inquieta com o trabalho com crianças, aceitei conhecer essa nova abordagem. Um ano depois comecei a minha especialização no Instituto de Psicodrama e Psicoterapia de Grupo de Campinas (IPPGC), do qual sou associada até o momento, agora como professora-supervisora.
Do trabalho com crianças e pais nasce o meu interesse pela terapia de família. A chamada orientação de pais foi se ampliando, abrindo espaço para um entendimento das relações do grupo familial.
Sentindo a necessidade de um acréscimo teórico e técnico, fui para Milão para um curso intensivo no Centro Milanese della Famiglia, tendo como mestres Boscolo e Cecchin.
Atualmente, além do trabalho em consultório, supervisiono o trabalho dos profissionais do Programa de Saúde da Família em Amparo, SP.
Editor: Caso possamos confirmar a ideia vigente de que vivemos em uma sociedade pós-moderna, multifacetada, com valores fluidos e identidades quebradas, como vocês percebem a família dentro disso? Estas questões de cunho, digamos, sociológico surgem no cotidiano da psicoterapia com famílias? Como?
Maria Amália: Bem, muitas questões se colocam para a pós-modernidade na relação com a família. As mudanças sociais penetram o âmago das relações familiares e se revelam nas cenas cotidianas que emergem na terapia familiar e de casais. Nós, terapeutas, somos observadores e, ao mesmo tempo, participantes dessas mudanças. Resulta dessa proximidade um processo peculiar e, muitas vezes, perturbador. Vou selecionar alguns aspectos.
Penso que um dos dilemas dos casamentos contemporâneos – em especial para os segmentos, genericamente, chamados médios em nossa sociedade - é a coexistência do valor da individualidade, de identidades complexas (próprios da contemporaneidade) e da conjugalidade. Estar com alguém e estar só ao mesmo tempo. Como diz Singly1, um sociólogo francês, pesquisador dos laços familiares (que tenho estudado): "livres juntos". Essa máxima envolve muitos desafios, espaços de negociação, sentimentos e sofrimentos. As novas tecnologias como, por exemplo, a internet, revelam bem essa dinâmica.
Passando para a família, ela continua a ser uma possibilidade do aprendizado da diferença. Na vida familiar aprendemos a conviver com gerações, gêneros e culturas familiares diferentes. As famílias recompostas, reconfiguradas ilustram os diálogos e enfrentamentos das culturas e dos vários laços de pertencimento dos indivíduos. Com todas as mudanças nos desenhos e fronteiras familiares, a família permanece como lugar de desenvolvimento das identidades individuais. À família estão atribuídas as repostas - pelo menos em parte - às nossas necessidades de satisfação relacional e afetiva. Por outro lado, a vida familiar é o espaço do conflito, mas também dos mecanismos de solidariedade. Por essas razões, a família pode representar uma resistência contra a fragmentação da vida contemporânea. Vale lembrar que não estou idealizando a família. Ela pode, também, não ser um lócus seguro para o crescimento, como tão bem sabemos.
Miriam: Diante da questão do Devanir e da proposta para discussão da Maria Amália, meu pensamento segue para duas experiências bastante distintas.
De um lado estão as famílias que chegam até o meu consultório e, do outro, as famílias atendidas pelo SUS (Sistema Único de Saúde), no PSF (Programa de Saúde da Família, com as quais estou tendo a oportunidade de ter um contato maior).
A primeira "olhada" revela diferenças muito gritantes, facilmente imaginadas, em relação à classe socioeconômica e à composição familiar.
Já um segundo olhar tem me mostrado que, mesmo em condições precárias, não só materiais, mas também de afeto e proteção, os familiares lutam para a manutenção da família.
Como você bem disse, M. Amália, a família nem sempre é o lócus mais seguro para o crescimento, mas parece que de alguma forma ainda é a nossa fonte de referências sociais e afetivas.
Fico com uma questão. Será a necessidade de pertencer que dá à família essa potência? Ou será que ainda não conseguimos criar nada melhor para suprir essa necessidade de conviver e partilhar experiências vitais?
Maria Amália: Penso que você, Miriam, traz, de forma oportuna, as questões das famílias pobres. É interessante acrescentar que os membros dessas famílias vivem, como parte do contexto da modernidade, o conflito entre a individualidade e o respeito às obrigações familiares. Todavia, no caso das famílias pobres, a primeira tende a ficar subordinada à segunda. O sistema de trocas e apoios mútuos familiares, de parentesco e de vizinhança, constitui uma condição para viabilizar a existência dessas famílias. Assim, a autonomia e o desenvolvimento de projetos individuais se tornam pouco viáveis. Por outro lado, há aqueles que rompem com essa lógica da reciprocidade e mergulham num processo de rupturas que inclui a própria vida familiar. A dimensão da individualidade está ancorada no pressuposto da igualdade, mas nossa sociedade é extremamente desigual. Os antropólogos, como Cyntia Sarti2, têm ajudado nessas reflexões.
Editor: Maria Amália, talvez você pudesse falar um pouco mais sobre as ideias de Cyntia Sarti, para aquecer nossa conversa.
Noto, como vocês observam, essa dubiedade: vivemos em uma sociedade que prega um certo individualismo, mas não sei se não existem mecanismos em todas as classes que, de uma forma ou outra, funcionam como resistência a isso. A família, sim, pode funcionar como lócus de solidariedade, mas também, em certos casos, de extrema competição e violência.
Vocês atendem a casais e famílias faz um longo tempo. O que mudou nos últimos, digamos, 20 anos?
Miriam: Diante da sua questão, Devanir, penso que é melhor restringirmos a nossa discussão às famílias que chegam aos nossos consultórios.
Você tem razão, Devanir, ao dizer que na família também encontramos, além da solidariedade, muitos conflitos e violências. Penso que no último caso temos ainda a cumplicidade, que faz com que uns acobertem certos atos de outros em nome de uma identidade familiar. A preocupação maior, muitas vezes, é maior com a continuidade do grupo do que com as vítimas das agressões.
Mas para entendermos este movimento talvez tenhamos que considerar o que você, Maria Amália, propõe como reflexão, que é procurar olhar uma família com as suas próprias lentes e não com as de nossa família.
Bem, quanto à mudança das famílias nos últimos vinte anos, observo uma mudança acentuada no sentido da palavra família. Antes tínhamos a chamada família estendida (avós, tios, primos), agora temos apenas pais e filhos, e não necessariamente vivendo juntos.
Lembro que falo da experiência em cidades grandes, que abrigam casais que saíram de suas cidades para estudar e trabalhar, deixando para trás as famílias de origem. Os filhos já nascem com esse distanciamento geográfico, e muitas vezes afetivo, dos avós, tios e primos, por exemplo.
Se por um lado trouxe a essas famílias uma capacidade de sobrevivência e superação, distante dos "seus", também trouxe um modo de viver em pequenos grupos, mais restritos e, a meu ver, com menor possibilidade de diversificar as relações afetivas. O número de amigos é reduzido (talvez pelo excesso de trabalho), os filhos saem pouco sozinhos ou com amigos (falta de segurança?), ficando mais dependentes da mobilidade dos pais. A dependência aumenta e, como consequência, os conflitos. Os movimentos mais independentes dos filhos são retardados. Sinto que é como se tivéssemos uma máquina pronta para ser usada, mas desativada.
Nos últimos anos percebo que as famílias estão diante de um grande impasse: promover a independência dos filhos, torná-los produtivos (exigência da sociedade) e, ao mesmo tempo, não favorecer o afastamento entre os familiares. Não vejo como uma tarefa fácil.
Maria Amália: Bem, eu penso que são muitas as mudanças nesses vinte anos. Lembro-me de até um pouco mais de 20 anos. Recordo-me, até hoje, quando eu era uma jovem terapeuta, de um casal que brigava, aparentemente, porque ela não sabia fazer feijão. Exemplo que, seguramente, não ouço nos dias de hoje. Casais que traziam às sessões conflitos advindos da situação da mulher que queria trabalhar. Hoje, observo (como tendência) o sentido inverso: homens que desejam que suas mulheres entrem no mercado de trabalho. Homens que avaliam o trabalho da mulher como desejável para a própria mulher e como parceria do ponto de vista econômico. A inserção da mulher no mercado de trabalho trouxe ainda um rearranjo nos papéis familiares. A dimensão da paternidade mudou muito. Há um redimensionamento do papel de pai, com maior aproximação da esfera afetiva e dos cuidados com os filhos. Esta afirmação não significa desconhecer as ambiguidades presentes no processo de mudanças. Acho, também, interessante pensar no papel dos avós, novas e velhas figuras da família contemporânea. Os avós ganham relevância não só na relação afetiva com os netos, mas também como auxiliares da socialização das crianças, ou mesmo no seu sustento. Os avós das famílias pobres contribuem de modo vital para a vida familiar. Eles contribuem com suas aposentadorias, por vezes, a única renda, mensalmente, fixa. Os avós dos segmentos médios contribuem para que os filhos e os netos mantenham um status social próximo das famílias de origem. Os avós, por exemplo, pagam a escola da criança, um seguro saúde e assim por diante... O aumento da expectativa de vida, bem como a maior permanência dos jovens em casa - como disse a Miriam - modifica as relações intergeracionais. Na família há maior convivência com avós e bisavós e menos com primos e primas. O chamado "ninho vazio" (termo difundido para caracterizar uma etapa do ciclo de vida ) não expressa bem a realidade atual, ou seja, há um ninho pleno de filhos adultos, eventuais netos e pessoas idosas. Em face da fragilidade dos laços conjugais, os avós tendem a ser, para os netos, um ponto de referência familiar. Na configuração das famílias monoparentais, os avós procuram ou se sentem obrigados a colaborar no cuidado dos netos. Hoje há, também, uma geração de avós divorciados que, em muitas situações, estão recasados. Novos arranjos, novas convivências incluem os netos e os step grand parents, ou seja, os avós emprestados ou sociais. Por essas razões, o novo desenho das relações familiares inclui a participação dos avós. É bom lembrar ainda que a figura clássica do vovozinho(a), presente nos livros infantis, pouco corresponde ao perfil atual dos avós. É claro que vale enfatizar que essas mudanças - que emergem nas cenas e narrativas familiares – constituem um campo contraditório. Uma mudança, às vezes, vem só com nova roupagem. E mais, todas as mudanças envolvem vantagens e custos emocionais e sociais. Penso que vale ainda aprofundar a questão levantada pela Miriam sobre os jovens e a família. Debater mais sobre essa família "emaranhada". E mais, o que vocês pensam das mudanças advindas do desenvolvimento das tecnologias e que penetram a vida familiar?
Editor: Parece que a família vem sofrendo um impacto e tanto em razão das mudanças mais amplas, mas, é muito provável também que os novos arranjos familiares possibilitem questionamentos na sociedade mais ampla. O que dizer, por exemplo, das famílias cujos filhos são de pais homossexuais (legítimos ou adotados) e dos filhos gerados nas chamadas barrigas de aluguel? São experiências absolutamente novas, se pensarmos que estão sendo gradativamente assumidas e oficializadas pela sociedade.
Quanto à questão levantada pela Maria Amália, acho que seria muito interessante que vocês comentassem mais amplamente, especialmente, o papel da internet, cujo impacto parece ser muito mais profundo que a televisão para as gerações anteriores. A internet, e tudo o que ela traz, é um verdadeiro personagem dentro de casa, não?
Maria Amália: Estou ainda com a ideia – proposta pela Miriam – das famílias em que desligar e/ou "separar" de filhos adultos é custoso ou demorado. Quem se beneficia com a permanência dos jovens adultos em casa? Para quem os custos se dirigem? Penso que são perguntas que podem facilitar a reflexão com as famílias dessa etapa do percurso de vida em nossa sociedade. Mas, penso também que as famílias cujos modelos de relações homens e mulheres são mais semelhantes, de uma geração para outra (pais e filhos adultos), favorecem a proximidade. Por vezes, as famílias estão emaranhadas com dificuldades de construir suas fronteiras. E como já foi dito, a questão de mercado de trabalho e ou autonomia, por certo, envolve essa convivência.
Com relação às novas configurações familiares que você, Devanir, levantou (casais do mesmo sexo, barriga de aluguel...), creio que elas empurram os costumes e favorecem as mudanças na sociedade. Pensar a família pela ótica da transformação constante nem sempre é fácil. Falar de casais do mesmo sexo é bem interessante. A Regina França3 escreveu um bom capitulo sobre o tema no livro Laços amorosos. E barriga de aluguel está vinculada às questões advindas das novas tecnologias e sugere ainda o tema paternidade... "Meu Deus", tudo se relaciona quando se trata da vida familiar!
A vida familiar, de algum modo, sempre esteve vinculada à introdução das intervenções tecnológicas em seu cotidiano.
A difusão dos anticoncepcionais, resultado do desenrolar do conhecimento científico, dissociou a reprodução da sexualidade e repercutiu de modo indiscutível na sexualidade feminina e relações entre homens e mulheres.
As intervenções de reprodução assistidas, mais difundidas nas últimas décadas, separaram gravidez e relação sexual (com todas as implicações) e alargaram o tempo biológico para ser mãe.
Outro avanço tecnológico, da década de 90, afeta significativamente as relações entre pais e filhos, homens e mulheres, ou seja, os exames de DNA para comprovação de paternidade. Já na vida cotidiana é o telefone celular que provoca tensões: aproximação e/ou distanciamento entre parceiros e membros da família.
Por intermédio do celular, uma pessoa se faz presente, outra é excluída do novo diálogo, emerge uma situação potencialmente triangular. Decifrar senhas, mensagens e muito mais desvelam relações de ciúmes, amor/desamor, poder/desvalia e tantos outros sentimentos pertencentes à esfera das relações amorosas. Essas situações espelham, também, a necessidade de definição dos espaços, dos territórios conjugais e dos acordos entre o casal. Inúmeras cenas ilustram essas dinâmicas e respectivos sentimentos.
Até o espaço terapêutico é afetado. Os terapeutas familiares têm chamado atenção para as questões que envolvem a internet. A internet desvenda também a situação clássica triangular, mas introduz um novo elemento: o terceiro não presencial. De qualquer modo, novamente está em jogo o desenho dos espaços comuns e individuais na vida conjugal. Sem falar ainda da questão: a internet para os pais...
Editor: E além destas configurações citadas, existem as famílias apenas com o pai ou apenas com a mãe...
Miriam: Realmente, Maria Amália, tudo se relaciona quando se fala em vida familiar: como terapeutas temos a oportunidade de "ver", através das famílias que atendemos, as mudanças da sociedade e as influências dessas mudanças nas relações familiares.
Nesse sentido a internet tem, nos últimos anos, dado a sua grande contribuição. Via computador fala-se e joga-se com amigos, acertam-se programas, recebem-se notícias, conseguem-se parceiros e, talvez a conquista mais significativa, se expressam sentimentos inimagináveis no "cara a cara".
E as escolhas sociométricas? Se a escolha é positiva, o outro é mantido adicionado e ainda recebe mensagens com emoticons; se for negativa, pode-se bloquear ou "deletar" o contato; em caso de indiferente, pode ficar sem resposta por um tempo. Essa, Moreno não conseguiu imaginar!
Relacionar-se virtualmente não facilita só a vida dos tímidos, mas permite a todos manterem-se conectados afetivamente sem mover-se de casa (que seguro!) e sem ter que correr o risco de um olhar ou um gesto traidor (que tranquilidade!).
Acabo de ler um clássico da literatura juvenil escrito em 1907. Na apresentação do livro diz-se que o autor descreve os problemas e as reações comuns a todos os meninos que procuram espaços para o exercício do espaço lúdico. Realmente, a necessidade de expressar a fantasia ainda está presente, mas o espaço físico não é mais um pré-requisito. Pode-se brincar, fantasiar, divertir-se sentado em frente ao computador.
Com certeza temos pontos positivos e negativos a partir desse novo formato Acredito que o mais importante é não adotar um discurso saudosista que destaca o que estamos perdendo, mas o que podemos estar ganhando, já que o desenvolvimento é inevitável.
Ainda. Um desafio que se apresenta para as famílias atuais é "adaptarse" aos chamados crianças e adolescentes "multitarefas", que executam várias tarefas ao mesmo tempo.
Nesse momento em que eu apenas digito esse texto, sem ouvir música ou falar ao celular, sinto-me realmente como alguém do século passado!
Editor: Muito interessante as observações de vocês. Acho que nosso trabalho como psicoterapeutas traz verdadeiros mapas da sociedade, nos quais os conflitos mais amplos aparecem no plano micro da família e nas relações de modo geral.
Qual será o sujeito do futuro criado por estas novas famílias?
Gostaria de acrescentar um tema na nossa conversa que me parece vital: como teoria e prática, como temos utilizado o psicodrama (no sentido amplo)? É uma proposta que responde às questões contemporâneas? Os conceitos e as técnicas dão conta dos conflitos de casal e da família brasileira atual?
Maria Amália: Qual o sujeito? Não sei. Todavia, a família - como campo de tensão - se move entre permanências e mudanças. E, assim, possivelmente, o sujeito do futuro.
Com relação ao psicodrama, como referencial que contempla uma visão de homem como ser social e relacional, e que tem como perspectiva a superação de conservas culturais, traz em si a ideia de mudança. Ao focalizar o sujeito em ação, acontece o resgate de aspectos individuais e coletivos. Por essas razões, o psicodrama responde potencialmente aos desafios do homem contemporâneo.
Nesse sentido, é pertinente, também, para o atendimento de famílias. Penso que alguns conceitos do psicodrama estão alinhados com o trabalho de casais e famílias, como, por exemplo, os estados co-conscientes e co-inconscientes, o tele, a ideia da rede sociométrica e seus correspondentes técnicos: o duplo, o espelho e a inversão de papéis.
A inversão de papéis é, talvez, a técnica que mais se aproxima do desafio da convivência com as diferenças, em especial, de gênero, de geração e de culturas próprias da vida social e familiar. O exercício da negociação, tão necessário para as famílias atuais em face das diferenças, supõe a inversão de papéis que pode ser oferecida tecnicamente por intermédio do sociodrama.
O terapeuta procura, junto com a família, desconstruir os jogos relacionais enrijecidos (conservados) e reorganizar de forma criativa, ou mais criativa, os sentimentos presentes nas cenas cotidianas. Este processo tende a conduzir ao novo. Não se pode esquecer que as cenas familiares são recortes do contexto social. O sociodrama possibilita à família entrar em contato com novos mapas sociométricos e suas fronteiras, que "se fazem e se desfazem" no decorrer do percurso de vida familiar.
Gostaria de destacar que a escultura familiar (imagem simbólica), tão utilizada pelos terapeutas familiares de várias linhas teóricas tem sua raiz no psicodrama. O psicodrama traz, também, a ideia do terapeuta como observador participante na relação com a família, e não como observador distanciado da mesma, o que corresponde aos paradigmas contemporâneos do processo terapêutico.
Miriam: A família oferecerá sempre um alicerce para a identidade, uma referência para nossas outras relações, mas cada vez mais está sendo "invadida" por outros referenciais de outros grupos. Geralmente trazidos pelos filhos, as referências externas fazem com que a influência dos pais na estruturação das relações já não seja tão absoluta.
Incorporar o novo e não simplesmente rivalizar com ele tem sido um desafio para as famílias atuais e, acredito, continuará sendo no futuro.
Aos adultos caberá a função de adequar as suas atuações a cada momento dos vários ciclos de vida de cada família. A flexibilidade se fará necessária sempre que outros referenciais apresentarem-se, para que os conflitos não se acentuem e os vínculos sofram uma deterioração.
Percebo, na minha prática profissional, que uma das maiores dificuldades dos pais tem sido responder espontaneamente às novas demandas dos filhos sem que isso cause um sentimento de afronta. As famílias que têm menos confrontos, geralmente, são as que os pais conseguem perceber qual é a parte deles, específica para cada momento. Outras, ao contrário, insistem em reproduzir modelos de educação "requentados" e autoritários.
Acredito que as famílias que receberem as inovações como possibilidade de crescimento e não simplesmente com uma postura rígida poderão desfrutar de uma convivência mais prazerosa, com seus membros atingindo um maior crescimento pessoal e social.
Em relação ao psicodrama, penso que o arsenal teórico e técnico oferece- nos grandes possibilidades de reflexão e atuação. Os conceitos de espontaneidade e criatividade (para incorporação e adequação ao novo), rede sociométrica (expansão social ), as escolhas sociométricas (os laços além dos co-sanguíneos), só para citar alguns, têm no sociodrama familiar a chance de ser empregados e ajudar as famílias em uma possível re-criação dos seus vínculos, como bem lembrou Maria Amália.
Encerrando, acrescento que a mesma necessidade de incorporação do novo pelo grupo familiar, como foi destacado anteriormente, aplica-se ao uso do psicodrama. De outra forma, corremos o risco de ver a prática psicodramática como uma velha foto de família na sala de jantar. Teve a sua importância, mas hoje sobrevive graças às velhas lembranças.
Editor: Com uma frequência impressionante (nos nossos dias ou sempre teria sido assim?), leio nos jornais sobre a violência dentro da família, e parece acontecer em qualquer classe. Casais que estão se separando e o marido não se conformando, mata a esposa, filho que mata os pais, pai que extermina a família, a droga e o álcool presentes algumas vezes nestes relatos jornalísticos... Isso revela algo sobre a família ou sobre o nosso mundo? Talvez, na prática de vocês, imagino, não apareçam estes casos tão extremados, mas gostaria que comentassem o que pensam.
Miriam: Sempre que surge esse assunto do aumento da violência intra- familar, fico me questionando se há mesmo um aumento ou se hoje temos mais acesso aos fatos pela TV, internet etc. Pode ser ingenuidade da minha parte ou um desejo de que não está tão ruim, mas mesmo assim a dúvida permanece.
De qualquer forma existem os relatos de colegas, outros profissionais, leituras e a minha própria amostra, vinda do meu dia-a-dia profissional. Infelizmente, Devanir, tenho estado em contato com os "casos extremados" que você cita e que me obrigam a pensar que estamos mesmo muito violentos dentro das nossas famílias. Digo nossas porque penso que a violência, em graus diferentes, comparece em várias casas.
Há a violência escancarada que é recriminada e motivo de total rejeição, mas há também os atos violentos que acabam sendo vistos como "educativos". A primeira é mais facilmente esquadrinhada e julgada, fazendo com que a maioria de nós coloque os atos violentos como produto de uma população distante e muito diferente de cada um de nós. Será? No segundo caso, na violência que não sai nos jornais, aparece o poder de alguém que transforma o outro em "coisa" destituída de desejos, necessidades ou direitos essenciais. Refiro-me, por exemplo, aos comportamentos de pais e educadores que, com o aval da sociedade em geral, submetem crianças e adolescentes a situações humilhantes e desrespeitosas, para dizer o mínimo. É uma violência que não aparece na televisão, mas que vai impregnando as relações e disseminando uma agressão lenta, progressiva e repassada aos próximos e mais indefesos.
Maria Amália: Como bem disse a Miriam, não é difícil reconhecer que a violência familiar, doméstica, sempre existiu em relação às mulheres, crianças e adolescentes. Nos modelos tradicionais familiares esta violência ficava encoberta. Penso que hoje há maiores canais para as denúncias, em que pesem as dificuldades para o acesso a esses canais. A própria legislação vem mudando (vide Lei Maria da Penha). Apesar dos avanços nos debates sobre a violência contra as mulheres, crianças e adolescentes, as pessoas que sofrem violência ainda ficam, muitas vezes, sob suspeita, e a impunidade ainda é presente. Episódios recentes, como o da menina Isabela, que, possivelmente, foi morta por violência familiar, e o dos meninos esquartejados, em Ribeirão Pires, ilustram como a violência acontece em todas as classes sociais. A repercussão do caso da menina Isabela remete não só à violência latente em cada pai, como foi tão analisado na mídia, mas, principalmente, à criança ferida "de todos nós", por violência explícita ou psicológica. E não consigo deixar de pensar nos meninos/irmãos de Ribeirão Pires, que não foram ouvidos - em seus pedidos de proteção - por tantos adultos, no decorrer de suas pequenas vidas. Gosto sempre de utilizar - quando falo sobre a família - o tema do primeiro congresso de terapia familiar: a família é um lugar seguro para crescer? A família pode ou não ser segura. Em tempos de valorização da convivência familiar, para crianças e adolescentes, é sempre bom lembrar dessa questão.
Os casos exacerbados nos remetem a pensar: eles representam o extremado daquilo que é próprio de nossa sociedade? Se estes casos nos assustam também podem chamar a atenção para a necessidade de estarmos vigilantes com a nossa violência e com a do outro.
Editor: Faço uma última questão para vocês e deixo, caso queiram, que conversem depois um pouco uma com a outra.
Minha questão está fora de ordem: ela deveria ter aparecido em outro lugar.
Minha pergunta é: porque tantos psicodramatistas fazem também formação em terapia sistêmica, para trabalhar com família? O que esta formação acrescenta?
Miriam: Quando fui para Milão para um curso intensivo em terapia familiar sistêmica, isso na década de 90, a minha intenção era acrescentar, à minha prática com famílias, novas contribuições técnicas e teóricas. Escolhi a teoria sistêmica porque me parecia compatível com o psicodrama e porque há pelo menos vinte anos acontecia uma reflexão e sistematização da terapia familiar, o que eu não encontrava no psicodrama.
Hoje, o cenário já é outro, com várias publicações sobre psicoterapia de família e psicodramatistas, como a Maria Amália, refletindo sobre e aprimorando a teoria e trazendo-nos maiores recursos técnicos.
Acredito que a atração, digamos assim, pela teoria sistêmica foi e continua sendo devido à proximidade dos conceitos teóricos que entendem o ser humano como participante e agente de um grupo, no caso, o familiar.
Penso também que como a socionomia permite-nos trabalhar com os mais diversos grupos, o sociodrama familiar aparece como uma das possibilidades e, portanto, acabou não recebendo pelos estudiosos um tratamento destacado.
O pensamento sistêmico, ao contrário, é trazido para a psicoterapia, amplamente discutido e aprimorado no trabalho com famílias, oferecendo aos terapeutas um grande número de publicações científicas e a possibilidade de conhecê-lo.
Um acréscimo inegável à minha prática, depois do curso em Milão, foi um novo manejo das falas durante as sessões. O que antes estava mais próximo de uma coleta de dados passou a ter um caráter não só investigativo, mas terapêutico por si só. As minhas intervenções passaram a ter um objetivo de pesquisa sociométrica mais declarada (despudorada, eu diria).
Hoje, avalio que as dramatizações em terapia familiar têm a sua importância inegável, mas procuro acrescentar a elas uma utilização das falas de uma maneira mais elaborada e com objetivos mais claros. Acredito que isso tudo foi disparado pela minha experiência com os sistêmicos.
E a sua experiência, Maria Amália? Como foi?
Maria Amália: Fazer o curso intensivo em Roma (1985) valeu, principalmente, por ter "sobrevivido" à experiência de ser a única latino-americana em um grupo constituído basicamente por europeus. Por outro lado, tomei melhor contato com o pensamento sistêmico e passei a incluir a dimensão geracional no trabalho.
O pensamento sistêmico ampliou o repertório das concepções teóricas e solidificou os pressupostos que apoiam o trabalho terapêutico com famílias para os psicodramatistas. O sociodrama oferece, no entanto, contribuições próprias, seja no plano teórico, seja no prático. As refletir sobre as correlações entre psicodrama e teoria sistêmica, não reduzo um ao outro. Acredito que os psicodramatistas, ao longo de suas práticas com famílias, estabelecem trocas entre as ideias psicodramáticas e sistêmicas. O caminho terapêutico construído com as famílias, quer pela ação dramática, quer pelo meio verbal, procura fazer emergir a possibilidade espontânea e criadora (a competência) das famílias. Dos autores atuais, creio que Michel White muito se aproxima da prática moreniana, embora no eixo das narrativas. Na proposta de externalização do problema, reconstrução das histórias e na inclusão da dimensão do poder, há pontos de vista semelhantes.
Editor: Agradeço imensamente a vocês duas pelo tempo que dispensaram para responder a estas perguntas. Tenho certeza de que o diálogo esclarece e provoca novas questões.
Um grande abraço.
Endereço para correspondência
Maria Amália Vitale Rua Havaí, 78
São Paulo - SP
e-mail: marfv@terra.com.br
Miriam Tassinari
Rua Piquete 1076
Campinas- SP
e-mail: miritassi@terra.com.br
* Doutora em Serviço Social (PUC/SP), didata/supervisora (Febrap), pesquisadora da associação de pesquisadores de núcleos de estudos e pesquisas sobre a criança e adolescente/Neca, terapeuta familiar psicodramatista
**Psicóloga (Pucc), Psicodramatista (IPPGC- Febrap), terapeuta de família e professora supervisora (IPPGC)
1 - SINGLY, F. Libres ensemble. Paris:Nathan, 2000
2 - SARTI, C. Família enredadas. In: ACOSTA, A. R. e VITALE, M. A. F.(orgs.) Família: redes, laços e políticas públicas. São Paulo: Cortez/IEE, 2005
3 - FRANÇA, R. Terapia de casais do mesmo sexo. In: VITALE, M. A. F. (org.) Laços amorosos: terapia de casal e psicodrama. São Paulo: Ágora, 2004.