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Revista Brasileira de Psicodrama
versão On-line ISSN 2318-0498
Rev. bras. psicodrama vol.20 no.2 São Paulo dez. 2012
ARTIGOS INÉDITOS
Original Articles
Cinema, subjetividade e psicodrama
Cinema, subjectivity and psychodrama
Geraldo Massaro
Doutor em Psiquiatria pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).
Psicodramatista Didata-Supervisor pela Federação Brasileira de Psicodrama (Febrap)
RESUMO
Influenciado por novas teorias da subjetividade, pelas modernas teorias do cinema e pelo estudo das Estruturas Narrativas da Linguagem Literária, o autor procura caminhos para novas contribuições de ação no espaço cênico.
Palavras-chave: Psicodrama, grupos, subjetividade, cinema.
ABSTRACT
Influenced by new theories of subjectivity, by the modern theories of cinema and by the study of the Narrative Structures of Literary Language, the author of this paper is searching for new ways how action can contribute to the scenic space.
Keywords: Psychodrama, groups, subjectivity, cinema.
INTRODUÇÃO
Atualmente trabalho com três grupos no consultório. Em virtude de minha recente aposentadoria, os dois grupos que atendia no Hospital das Clínicas foram repassados para outros terapeutas. Nos últimos dez anos, acompanhando esses cinco grupos, não aconteceu nenhuma sessão que tivesse um protagonista. Ou seja, nenhuma sessão que fosse dramatizada em uma cena ou em uma sequência de cenas voltadas para uma pessoa.
Isso não implica discordância do conceito. Entretanto, origina outra proposta de ação, oriunda de influências que foram se acumulando ao longo dos anos. Entre elas, destacaria uma leitura incessante sobre teorias do cinema; teorias da subjetividade, principalmente de Freud, de Deleuze e da Análise do Discurso e o melhor entendimento das Formas Literárias da Linguagem. Soma-se a isso uma releitura pessoal da Matriz da Identidade (Matriz da Subjetividade?) e um aprendizado com meus filhos sobre cinema, fotografia e teatro.
Faz parte também dessa nova dimensão um entendimento mais aprofundado de Moreno, principalmente da noção de Encontro e da difícil "Teoria do Momento".
Creio que diferentes propostas de ação, mesmo que opostas ou conflitantes, podem ser muito ricas. Por isso me propus, aqui, a apresentar essas semelhanças e diferenças da minha postura, na expectativa que isso possa mobilizar discussões. Na verdade, este artigo é um aquecimento para um texto mais longo, em forma de livro, no qual espero poder ampliar essas questões.
A "SITUAÇÃO-PSICODRAMA": INFLUÊNCIAS DO TEATRO E DO CINEMA
Nossas cenas são quase sempre realizadas na dimensão do drama. Raramente trabalhamos no épico ou no lírico. Drama é diálogo, ação presentificada e conflito. Assim, buscamos a saúde pela resolução do conflito, dramatizando-o.
Temos um protagonista, sujeito a duas ordens, que podem ser conscientes ou inconscientes, internas ou externas, e o colocamos exposto ao conflito que essas duas ordens estabelecem.
É uma sessão muscular. Dois ego-auxiliares ou dois colegas do grupo simularão essas ordens, em uma ação muscular sobre o protagonista. Este entrará em cada uma das forças, tentando reconhecê-las. Quando isso acontece, o terapeuta tira o conflito de uma dimensão intrapsíquica e o coloca na dimensão do relacional. Se não existir acordo, favorece-se que a resolução seja obtida por confronto físico. O paciente será incitado a lutar pelo que reconhece como seu.
Em tese, o conflito é exposto e é resolvido. Estamos o tempo todo pensando em bloqueios e desbloqueios. Há uma concepção ideológica de um Eu centrado, nuclear e submetido às ordens. Espera-se que ele saia vitorioso e consiga impor seus desejos.
As cenas podem ser muito mais complexas do que essa, mas o princípio é o mesmo: diálogo tenso, ação presentificada e resolução de conflito.
Durante muitos anos trabalhei com essa dimensão. São sessões bonitas e de eficiência muito grande, dentro da sala. Contudo, o passar dos anos me mostrou que nem sempre a resolução dentro da sala significava uma resolução no cotidiano das pessoas. Que, em boa parte das vezes, as questões se mantinham. Por quê?
Talvez os conflitos sejam resultados e não causas das questões humanas.
De qualquer maneira, essa dimensão de dramatização é o centro daquilo que passamos aos nossos alunos e aos nossos supervisionados, em nossos cursos de formação. Como é uma visão bastante didática e de confecção relativamente fácil, costuma fornecer um aprendizado bom, embora com o risco de ser ritualizado em conservas.
Poderíamos argumentar que um trabalho com protagonista não necessariamente tenha de ser feito nessa dimensão. Que poderíamos ter dimensões líricas e épicas, fora do jogo do conflito. É verdade, mas basta acompanhar os trabalhos científicos que produzimos, as supervisões públicas e os relatos de dramatizações que veremos poucas descrições de cenas fora desse âmbito. Somos psicodramatistas porque trabalhamos com dramas, ou seja, com conflitos. É toda uma influência do teatro, em que prevalece o drama, e da Dialética da Interioridade Freudiana, na qual prevalece o conflito. E isso não é ruim, pelo contrário, pode ser muito resolutivo para determinadas situações. Entretanto, é apenas uma parte do que podemos fazer em nossas salas de terapia, ou mesmo em outros usos do psicodrama.
Haveria também a possibilidade de argumentar que o trabalho com a pessoa isolada favorece o desenvolvimento da pessoalidade, da subjetividade. É verdade, mas uma verdade limitada. Outras formas de ação podem ser mais efetivas nesse sentido. Voltaremos ao assunto. De qualquer maneira, o uso de pequenas dramatizações, como vinhetas, pode compensar de alguma maneira. Uso esse sistema em torno de três ou quatro vezes por ano, por grupo. Esse trabalho permite um foco sobre aspectos mais específicos de cada pessoa, seguido de elaborações feitas por todos. Busca-se o comum. O conflito pode aqui ter espaços, porém muito mais para ser vivenciado como tal, do que para ser resolvido.
Outro argumento é o de que se trabalharmos com o grupo, ele é o protagonista. Isso é apenas um jogo de palavras que serviria para esconder questões mais relevantes. O que é possível contra-argumentar neste texto é que podemos trabalhar com todas as pessoas ao mesmo tempo, sem que percam seus espaços de experimentação e, consequentemente, de subjetivação.
Todavia, se o centro do trabalho não se situa na resolução de conflitos, no uso de protagonistas isolados, em uma ideia de Eu como núcleo, onde se situa então?
Peço desculpas antecipadas, pois vou tomar a questão superficialmente, tendo em vista que uma resposta que pretendesse ser mais profunda, sendo ou não, demandaria muito mais espaço que o de um artigo para nossa Revista. Teria de passar por teorias da subjetividade e, quem sabe, por formas "cinemáticas" de dramatização. É muita coisa.
Vamos nos fixar em Moreno. Em seus protocolos e em muitos de seus escritos, prevalecem as questões colocadas na dimensão de conflitos e suas resoluções. Entretanto, se há algo de que realmente podemos nos orgulhar de Moreno, além de introduzir o teatro na terapia e de seu trabalho com psicóticos, é o fato de ele ser um visionário. Alguém capaz de perceber movimentos filosóficos antes que eles tomassem maior concretude e de introduzi-los nas discussões.
Em seu livro "Psicodrama" (1975), Moreno escreveu: "As pessoas não querem superar a realidade, querem expô-la. Reexperimentam-na, são os seus donos..." (pág. 77).
Essa é a direção que devemos seguir. O espaço cênico como espaço de experimentação. Como espaço de construção da realidade e de si mesmo. Experimentação de formas de existência, cujos códigos encontram-se no mundo. A busca da saúde como produção de subjetividades.
Tomar a cena como um espaço de subjetivação implica algumas diferenças em relação ao que tem sido a maior parte de nosso dia a dia:
1. O contato com o caótico-indiferenciado, aqui, será tomado não apenas como produtor de sintomas. Pela Dialética das Diferenças, por intermédio de Deleuze, podemos entender indeterminações psíquicas que já contêm uma complexidade que possa se diferenciar em singularidades múltiplas, linhas de virtualidades que podem ganhar consistências. Sobre essa textura ontológica age o desejo. Isso é coerente com a visão Moreniana do Encontro, no qual a interação entre dois seres pode trazer à tona a aquisição de outras formas de existência.
2. O teatro moderno é quase sempre drama. Brecht, em sua busca da dimensão épica, é rara exceção. Enquanto drama, o teatro implica conflitos e nos coloca no papel, como psicodramatistas, de resolutores de conflitos. Talvez pudéssemos somar outras formas de ação técnica, como a do cinema, permitindo outras linguagens que favoreçam a subjetivação. O cinema também trabalha com drama, mas tem amplo espaço para o lírico e o épico, formas que muitas vezes favorecem o desenvolvimento de subjetividades.
3. O cinema não será tomado como um substituto "mais moderno", apenas como algo que se soma. Também não será tomado apenas em seu arsenal técnico. O entendimento de como se forma o roteiro e a montagem é muito interessante para o nosso aprendizado. Considero isso tão importante que vou procurar reafirmá-lo em outras palavras. O estudo do roteiro e da montagem no cinema pode ser muito mais importante para nós, psicodramatistas e terapeutas em geral, do que a aquisição de técnicas da linguagem cinematográfica.
4. A "Situação-Psicodrama", oriunda da junção entre teatro e cinema, pode se diferenciar, em muitas coisas, de suas origens. Ela cria outra intimidade, outra relação com as bordas da cena, outra participação, outro chamado à ação, outro espaço e tantas outras diferenças. Aceito, de antemão, que o conceito de "Situação-Psicodrama" que estou tentando desenvolver, ficou, nesse artigo, muito solto e pouco estruturado. Ele estará bem mais desenvolvido no texto mais longo, em forma de livro.
5. É também importante o conhecimento das formas literárias, que são o drama, o épico e o lírico. Trabalhamos constantemente com o drama, embora nem sempre saibamos o que isso significa. O conhecimento mais aprofundado do que são o épico e o lírico poderia enriquecer sobremaneira o trabalho de fomentador de espaços cênicos de subjetivação.
6. O corpo, aqui, em geral, ganha uma dimensão mais profunda. Ele não será tomado muscularmente ou como aquilo que nos oferece uma percepção imediata da origem do conflito. Será o centro virtual de ações, que dá acesso à temporalidade e ao imaginário, colocando-nos em situação, permitindo o fluxo dos desejos e das fantasias contidos no imaginário e concretizando-os em cena.
7. A própria cena, tomada nessa dimensão, insere-se de modo diferente em um projeto de psicoterapia. Ela não é mais um anel de uma corrente de anéis que se dirige a um final planejado. É uma cena de uma sequência de cenas ocorridas no mesmo dia ou em épocas muito diferentes, mas sempre objetivando uma resolução. Ela passa a ter valor em si mesma, como fonte de criação, de experimentação de realidades e de novas formas de existência. Essa situação, muito presente nas discussões sobre o cinema moderno, não nos lembra a Teoria do Momento?
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Imaginemos que em uma sessão um grupo "tenha caído" em um pequeno planeta que, pelo tamanho, recebe a luz de seu sol em todas as suas faces. Se não há alternância claro/escuro, não haverá abstração do que é o hoje e o amanhã. A experiência social do tempo estará alterada, originando outras formas de temporalidade e de projetos. Uma simples "brincadeira" expõe o grupo a uma experiência inusitada. Que mudanças na autonomia e na subjetividade experimentarão? O que mudará na captação da realidade? Que outras formas de interação ocorrerão?
Expor as pessoas e a nós mesmos, ao mesmo tempo, a outras formas de experimentação, fazendo do espaço cênico psicodramático um instrumento disso.
Esse caminho pode nos parecer mais difícil. Pensar a cena como um dispositivo que nos coloca em contato com nossas indeterminações, permitindo uma objetivação de linhas de virtualidade e, consequentemente, um ganho de subjetividades, pode parecer complicado. Em um primeiro momento, a trama teórica pode nos parecer impenetrável. No entanto, ela não o é. Talvez o que seja realmente complicado é buscar novas posturas quando temos uma postura bastante objetiva à mão.
Todavia, porque usar apenas um instrumento de ação perante as pessoas que nos procuram, quando podemos usar dois?
Referências
BÉRGSON, H. Matiére et mémoire - Essai sur la relation du corps à l'esprit. Paris: Librairie Félix Alcan, 1907. [ Links ]
FONSECA, J. Psicoterapia da relação. São Paulo: Ágora, 2000. [ Links ]
MASSARO, G. Esboço para uma teoria da cena – Propostas de ação para diferentes dinâmicas. São Paulo: Ágora, 1996.
__________. "Subjetividade e psicodrama". In: Petrilli. R. S. A. (org.) Rosa dos Ventos da Teoria do Psicodrama. São Paulo: Ágora, 1994. [ Links ]
MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1971. [ Links ]
Endereço para correspondência
Geraldo Massaro
Rua Pamplona, 33, casa 2 Bela Vista
São Paulo, SP CEP 01405-000
e-mail: geraldo_massaro@terra.com.br
Recebido: 10/11/2011
Aceito: 11/06/2012