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Nova Perspectiva Sistêmica

versão impressa ISSN 0104-7841versão On-line ISSN 2594-4363

Nova perspect. sist. vol.26 no.58 São Paulo ago. 2017

 

ECOS

 

Comunicação dialógica: ecos e movimento

 


 

Carla Guanaes-LorenziI

I Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto/SP, Brasil.

 


 

 

Ecos. Este é o nome da seção para a qual os editores da revista Nova Perspectiva Sistêmica me convidaram para participar, escrevendo um breve comentário sobre o texto “Momentos de referência comum na comunicação dialógica: uma base para colaboração clara em contextos únicos”, escrito pelo querido professor John Shotter. O professor Shotter faleceu em 08 de dezembro de 2016, deixando uma obra extensa e densa que transcende às fronteiras disciplinares e que nos permite a ressignificação de noções como mente, linguagem, realidade, comunicação terapêutica, entre tantas outras. Shotter foi um acadêmico humilde e generoso, que se dedicou não apenas a escrever muitos textos, mas a percorrer muitos lugares (Brasil, inclusive), divulgando suas contribuições para o campo da Psicologia e da Comunicação. Estar em diálogo com ele, na produção desse texto, é, para mim, um desafio e uma honra.

O nome da seção, Ecos, pareceu-me bastante oportuno, tendo eu aprendido justamente com Shotter (2011) acerca da impossibilidade de falar sobre as pessoas ou suas ideias, mas com elas, nos diálogos reais ou internos que travamos em nosso cotidiano. Usualmente descrito como fenômeno da física que explica a reflexão do som por uma superfície ampla, em seu sentido figurado eco implica ressonância, a propagação de um som que se espalha no ambiente, a meu ver de maneira pouco previsível e estruturada.

Esse texto, portanto, busca apresentar ecos que nunca poderão ser tomados como uma representação da ideia original do autor – o que contrariaria, justamente, a concepção de uma comunicação dialógica – tema desse texto. Diferentemente, este texto tece um diálogo, que tomou como ponto de partida a pergunta posta por Shotter no início de seu texto, a qual imagino retratar também a inquietação de muitos profissionais que, de alguma forma, trabalham com relações humanas e processos de mudança:

o que é que, em nossa interação com os outros, não apenas torna a psicoterapia possível, mas também, em muitos outros casos cotidianos, abre-nos a possibilidade de sermos profundamente transformados em nossos encontros com os outros e com a alteridade que nos rodeia? (Shotter, 2011)

A busca por compreender as práticas clínicas, mapeando ou analisando como as conversas desenvolvidas no contexto terapêutico auxiliam na construção da mudança, tem sido uma preocupação amplamente presente nas ciências psis e afins. A partir de diferentes orientações teóricas, terapeutas e pesquisadores têm buscado pistas que permitam compreender o que acontece em uma relação terapêutica que torna a mudança possível. É grande a literatura produzida sobre o tema, investida de diferentes posições teóricas e epistemológicas – o que impede qualquer análise geral e abstrata sobre o conhecimento construído nesse campo. Ainda assim, corro o risco de inferir que, em grande parte destas produções, ao papel do terapeuta é dado um lugar de destaque, uma vez que o “manejo” adequado da situação terapêutica pode permitir a orientação da conversa em determinadas direções. Desse lugar hierárquico, de um saber especializado, o terapeuta é responsável por disparar a mudança que se processará no (interior) do outro, “passivo paciente”.

Críticas a essa compreensão do processo terapêutico já foram delineadas por diferentes autores. Bastante conhecidas dos leitores dessa revista são as reflexões promovidas a partir da compreensão da terapia como construção social (McNamee & Gergen, 1992), que, por meio do reconhecimento de uma ampla diversidade de práticas que, à época, já rompiam com uma visão tradicional de clínica, permitiram ampliar nossos vocabulários para compreensão da situação terapêutica.

De maneira sumária, é possível dizer que um importante diferencial das descrições feitas a partir de uma orientação construcionista social foi a aproximação do processo terapêutico ao processo conversacional (Gergen, 2006; McNamee & Gergen, 1992). Essa aproximação permitiu vários deslocamentos, dos quais destaco: a ênfase no processo de ação-conjunta de produção de sentidos (Shotter, 1993); a ressignificação do lugar do terapeuta como especialista do processo conversacional, e não do conteúdo do que é conversado (Anderson, 1997); a ampliação das vozes presentes em uma interação, desconstruindo a ideia de uma verdade subjacente ao discurso (Andersen, 1999); e a exploração de diferentes opções discursivas como recursos para ampliação de significados (McNamee, 2004).

Considerando estas contribuições, é possível que, em certa medida, tenhamos a sensação de que a pergunta disparadora proposta por Shotter em seu texto já tenha sido respondida em algum momento por ele mesmo ou por outros autores. No entanto, a meu ver, Shotter introduz elementos absolutamente originais nessa discussão, os quais não apenas transformam nossa compreensão sobre comunicação dialógica, como ampliam o próprio discurso construcionista social, a partir de uma “relacionalidade” muito mais ampla, “ecológica” e dinâmica.

A disseminação do discurso construcionista social na ciência levou a uma importante compreensão da linguagem e sua centralidade na configuração do mundo social. Ficamos mais atentos ao processo de produção de sentidos, a como discursos sociais configuram realidades, e ao dinamismo presente em um momento interativo, quando aquilo que enunciamos ganha sentido apenas a partir da resposta do outro, em um movimento dinâmico que cria e sustenta determinadas formas de vida. Contudo, essa ênfase na linguagem pode ter sido reduzida erroneamente à fala, e, assim, ofuscado a necessidade de um outro debate importante – que Shotter apresenta nesse texto de maneira contundente: a questão de que qualquer processo de comunicação está envolto em um ambiente determinante e que o momento interativo (ou, de ação-conjunta) é marcado por um uso da linguagem que é necessariamente espontâneo e corporalmente vivo. É justamente esta espontaneidade, que se apresenta de uma maneira não previamente planejada e antecipada, que pode ser explorada como uma qualidade importante das comunicações dialógicas. Pois, as ocorrências espontâneas – que, em outro momento, o autor nomeou como momentos marcantes, delineando o método da poética social (Katz & Shotter, 1996) – podem estar permeadas de possibilidades criativas e inovadoras, as quais podem ser relacional e responsivamente ampliadas, permitindo uma mudança significativa para os envolvidos na conversa.

Derivam dessa proposição ao menos três convites importantes para a compreensão do processo terapêutico como comunicação dialógica. Primeiro, que abandonemos a expectativa, que usualmente nos atravessa, de que podemos controlar de alguma maneira o processo terapêutico e suas direções, a partir do uso de teorias e técnicas. Um uso mecânico, metódico e aplicado das teorias e técnicas que estudamos pode desviar nossa atenção do processo terapêutico, e nos impedir de estarmos radicalmente presentes (McNamee, 2016), acompanhando o fluxo e movimento de uma interação da qual, como terapeutas, somos parte.

Segundo, essa proposição nos convida a passar de uma narrativa referencial-representacional (que objetiva pessoas e coisas na busca por desvendar sua verdade) para uma narrativa responsivo-relacional. A partir desta, buscamos estar sensíveis não apenas à fala, mas também às direções que se apontam e que se expressam através do corpo, da entonação, dos murmúrios, da respiração, do silêncio, enfim, das possibilidades de expressão que se tornam possíveis dentro da relação particular que se estabelece entre terapeuta-cliente, em uma determinada situação vivida. Como diz Shotter, o foco não está apenas no palco, mas nos bastidores – onde residem as palavras em seus pronunciamentos. Não devemos, no entanto, confundir esta alternativa com propostas de terapias de base corporal que, a despeito de trazerem a dimensão corpórea para o cenário terapêutico, o fazem a partir de uma postura interpretativa e, por isso, referencial-representacional.

Por fim, essa proposição parte de uma diferenciação interessante entre dificuldades de intelecto e de vontade. O entendimento de que o que move as pessoas a buscarem terapia é uma dúvida de raciocínio ou intelecto tem levado os terapeutas, com frequência, a um uso instrumental dos recursos teóricos e técnicos de que dispõem. É como se acreditassem que se as pessoas entenderem (racionalmente) o que se passa com elas (suas causas, consequências, etc) terão suas dificuldades de vida resolvidas! Porém, os terapeutas lidam, na maior parte das vezes, com dificuldades de vontade (ou orientação), as quais são muito mais complexas, por envolverem a pessoa em sua relação dinâmica e ampla com a vida, com o mundo, com seu entorno, enfim, com seu ambiente. Isso demanda, então, que o terapeuta esteja relacionalmente responsivo à pessoa e à situação que ela apresenta e corporifica em seus enunciados. Entendo, com base nas colocações de Shotter, que buscar construir um momento de referência comum, a partir do qual se pode construir um senso de experiência compartilhada, é muito mais do que uma nova pista teórico-técnica sobre como favorecer uma comunicação dialógica a partir da exploração de momentos marcantes. É, mais precisamente, um posicionamento ético. Pois, como Shotter sugere, “qualquer requerimento para que nos expressemos apenas dentro de códigos estabelecidos é uma limitação de quem somos ou podemos ser”. Dúvidas de orientação demandam responsividade, a qual só se dá quando se responde de maneira sensível e espontânea ao que se delineia como possibilidade.

De diferentes formas, entendo que estas ideias são desafiadoras, pois ampliam, de maneira vertiginosa, as lentes através das quais podemos significar o que acontece em um processo de comunicação, como a terapia. Espero que os ecos das ideias aqui destacadas, junto com o afeto que emana das narrativas que construímos de nossa relação (real ou imaginada) com esse autor, se espalhem, ajudando-nos a ampliar as possibilidades de vivenciarmos a terapia como comunicação dialógica, sejamos os terapeutas ou os clientes dessa relação.


Referências

Anderson, H. (1997). Conversation, language and possibilities – a postmodern approach to therapy. New York: Basic Books.

Andersen, T. (1999). Processos reflexivos. Rio de Janeiro: Instituto Noos/ITF.         [ Links ]

Gergen, K. (2006). Therapeutic realities: collaboration, oppression and relational flow. Chagrin Falls, Ohio: Taos Institute Publications.         [ Links ]

Katz, A. & Shotter, J. (1996). Hearing the patient´s voice: a social poetics in diagnostic interviews. Social Science and Medicine, 43(6), 919-931.         [ Links ]

McNamee, S. (2004). Purity vs. promiscuity in the practice of family therapy: if Rembrandt met Picasso how would their conversation go. Journal of Family Therapy, 26, 224-244.         [ Links ]

McNamee, S. (2016). The ethics of relational process: John Shotter’s radical presence. In T. Corcoran & J. Cromby (Eds.), Joint action: Essays in honour of John Shotter (pp. 89-101). New York: Routledge. McNamee, S. & Gergen, K. (1992). (Eds). Therapy as social construction. London: Sage.         [ Links ]

Shotter, J. (1993). Conversational realities: constructing life trough language. London: Sage.         [ Links ]

Shotter, J. (2011). Getting it. Withness thinking and the dialogical... in practice. New York: Hampton Press.         [ Links ]

I Carla Guanaes-Lorenzi, Psicóloga, terapeuta familiar, mestre e doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP). Docente do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto – USP. E-mail: carlaguanaes@gmail.com

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