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Nova Perspectiva Sistêmica
versão impressa ISSN 0104-7841versão On-line ISSN 2594-4363
Nova perspect. sist. vol.27 no.60 São Paulo jan./abr. 2018
ARTIGOS
Mindfulness na construção terapêutica do espaço comunicativo baseado na atenção conjunta ao corpo
Mindfulness in the construction of a communicative space based in attention to the body in therapy
Luciana MorettiI
I Asociación Española de Mindfulness y Compasión (AEMIND), Valencia, España.
I Universidade de São Paulo (USP), São Paulo/SP, Brasil.
RESUMO
Este artigo discute a incorporação de Mindfulness na terapia conversacional como ferramenta para a construção do espaço terapêutico como espaço comunicativo baseado em atenção conjunta. De maneira específica, aborda o Mindfulness no corpo como ferramenta facilitadora para criar aberturas para novas formas de significação nos fluxos narrativos recorrentes. Os mecanismos de mudança terapêutica associados à prática de Mindfulness (regulação atencional, regulação emocional e descentramento do eu) são discutidos a partir de fragmentos do atendimento de um adolescente com isolamento social, rigidez cognitiva, autoexigência e pensamentos obsessivos. A atenção no corpo a partir de uma perspectiva colaborativa abriu espaço para a mudança terapêutica em um quadro crônico e refratário, com histórico de recaídas e resistente à mudança.
Palavras-chave: mindfulness; espaço terapêutico; terapia conversacional; regulação atencional; atenção conjunta.
ABSTRACT
This paper discusses the incorporation of Mindfulness into conversational therapy as a tool for the construction of therapeutic space as a communicative space built on joint attention. Specifically, the paper focuses on Mindfulness on the body as a tool that facilitates the interruption of recurrent narrative flows, creating openings to new forms of constructing meaning. The mechanisms of therapeutic changes associated to Mindfulness (attention regulation, emotional regulation and changes in the perspective of the self) are discussed through fragments from the treatment of an adolescent showing social isolation, cognitive rigidity, self-exigence and obsessive thoughts. The attention to the body from a collaborative perspective created an opening to the therapeutic change in a chronic and refractory case, with a history of relapses and resistance to change.
Key Words: mindfulness; therapeutic space; conversational therapy; attention regulation; joint attention.
O trabalho com grupos como dispositivo mobilizador na saúde mental
Quando a atenção é conduzida delicadamente sobre um único ponto, de maneira que todo o restante pode ainda ser percebido mas é posto em espera pacientemente, é possível conquistar um espaço de calma profunda a partir do qual é mais fácil perceber sem ter que reagir de forma imediata e condicionada. Pensamentos como “eu não sirvo para enfrentar o medo”, “preciso prever as reações das outras pessoas” ou “devo ter feito algo terrível” podem então perder a potência reativa habitual própria daquelas construções que repetimos nas narrativas recorrentes e cotidianas, abrindo espaço para novas construções de sentido e histórias que contamos sobre o mundo e sobre nós mesmos. A habilidade de observação atenta, amável e não reativa, bem como o descentramento da experiência de si mesmo, estão entre os principais objetivos do emprego de Mindfulness na clínica psicológica.Este artigo tem como objetivo refletir sobre a relevância da atenção sobre o corpo no uso das ferramentas de Mindfulness na terapia conversacional em consultório, onde o terapeuta não dispõe da infraestrutura institucional que é foco das pesquisas sobre Mindfulness em modelos estruturados. A literatura acumula hoje mais de 30 anos de estudos básicos e aplicados sobre os usos clínicos de Mindfulness, mas grande parte dos trabalhos em psicoterapia parte dos protocolos grupais enraizados no programa de Redução de Estresse Baseado em Mindfulness (MBSR) e da Terapia Cognitiva Baseada em Mindfulness (MBCT). Há um número crescente, contudo, de trabalhos sobre as intersecções entre Mindfulness e terapias relacionais, como a terapia narrativa (Liria & Vega, 2012), a teoria do apego (Siegel, 2001), a terapia de família (Gambrel & Keeling, 2010; Lavie, 2010) ou a psicanálise (Castro, 2014; Hick & Bien, 2010).
A conversa terapêutica implica que terapeuta e paciente estejam juntos em um processo de atenção conjunta no qual se compartilha a consciência de orientar a atenção, de “ver” um mesmo objeto juntamente com outra pessoa” (Hernández & Miró, 2015) no fluxo contínuo da experiência. Na clínica com terapia conversacional, percebo que as ferramentas de Mindfulness possibilitam uma conexão profunda com o paciente momento a momento e facilitam a construção intencionada de um espaço terapêutico baseado na atenção conjunta, situação relacional que pode ser descrita como interação primordial sobre a qual se estabelece a comunicação, que é base para o desenvolvimento subjetivo (Hernández & Miró, 2015; Miró, 2013; Werner & Kaplan, 1963).
A conexão interpessoal torna-se mais estreita na medida em que a interação é comunicativa, ou seja, quando a interação pretende compartilhar a experiência vivida, em cada instante, em pequenos movimentos de ajuste que possibilitam a aproximação entre dois mundos, o do paciente e o do terapeuta. Na interação comunicativa, as transformações na linguagem em uso permitem reduzir o isolamento, avançando conforme as formas recorrentes podem ceder espaço para novos caminhos narrativos que são construídos conjuntamente na conversa terapêutica. As ferramentas de Mindfulness mostram-se úteis para a suspensão do fluxo narrativo recorrente. Neste artigo, discuto, através de exemplos de um caso clínico, como a ancoragem no corpo baseada na atenção plena1 pode facilitar a abertura de novos processos perceptivos e narrativos.
Na primeira seção, abordo brevemente o lugar que o Mindfulness ocupa na psicoterapia, desde a criação, em 1979, do primeiro Programa de Redução de Estresse Baseado em Mindfulness (MBSR) até as diferentes abordagens atuais. Nesta mesma seção apresento algumas descrições do que é Mindfulness, discutindo aspectos específicos como as dimensões atitudinal, prática e conceitual, bem como sua introdução na terapia conversacional. A partir dessa breve introdução, passo a discutir a construção do espaço terapêutico como um espaço comunicativo baseado na atenção conjunta, estabelecendo um diálogo entre Mindfulness, processos atencionais e práticas colaborativas. Para finalizar, prossigo discutindo os principais mecanismos de mudança associados ao Mindfulness a partir de um caso clínico em terapia conversacional para depois apresentar algumas considerações finais2.
O lugar que Mindfulness ocupa na psicoterapia
O termo Mindfulness é amplamente utilizado no campo da saúde para fazer referência a um conjunto de ferramentas terapêuticas baseadas em meditação empregadas na psicologia e na medicina, e também a uma forma de nos relacionarmos com as nossas experiências. Germer (2005) identifica três acepções para o termo Mindfulness: um construto teórico, uma prática para desenvolver as habilidades de atenção plena (por exemplo, a prática meditativa) e um processo psicológico (atenção consciente, acompanhada de uma atitude de presença).
Desde que ganhou notoriedade, quando Kabat-Zinn criou o programa MBSR, suas aplicações terapêuticas têm sido objeto de pesquisa e debates acadêmicos crescentes. A pesquisa sobre Mindfulness e suas aplicações está presente nas neurociências, medicina, psicologia, assistência social e psicoterapia. Sua introdução em hospitais e nos sistemas públicos de saúde é cada dia maior, dadas as evidências científicas obtidas nas neurociências das mudanças que produz no cérebro, assim como o conhecimento prático de seus efeitos sobre a saúde física e psicológica.
Alguns pesquisadores questionam, contudo, que os efeitos de Mindfulness possam ser estudados com metodologias positivistas e conceituais, já que a prática de Mindfulness pressupõe a indagação sobre “o encontro com o objeto como uma experiência viva” (Hick & Bien, 2010), suscitando questões de natureza fenomenológica. Partindo dessa perspectiva, o campo de Mindfulness em si parece se opor intuitivamente à objetivação e à medição (Moñívas, Díex, & Silva, 2012), pois não se trata de uma técnica desenvolvida para obter fins específicos, mas de uma ferramenta experiencial para a autorreflexão, que pode facilitar – na psicoterapia – o desenvolvimento das habilidades úteis para a construção de uma boa relação terapêutica e também ser utilizada para auxiliar o paciente em seus processos reflexivos e de transformação em terapia.
A pesquisa neste campo – a partir da tradição fenomenológica da terapia centrada no cliente de Carl Rogers – sugere que as habilidades necessárias para o terapeuta, como receptividade e sintonia emocional, podem ser facilitadas pela prática de Mindfulness por favorecer um estado reflexivo e a conexão interpessoal (Feixas & Miró, 1993). Os estudos sobre os neurônios espelho e os circuitos sociais do cérebro (Lanzoni, 2016; Siegel, 2001) materializam esses aspectos do conhecimento construído em práticas clínicas relacionais e colaborativas, avançando ao propor que a sintonização empática e conexão afetiva passam pela leitura que fazemos das alterações produzidas em nosso próprio corpo3. Para Miró (2013), desde uma perspectiva construcionista, é aí onde se estabelece entre paciente e terapeuta um processo de ressonância emocional no qual se constroi a relação terapêutica. A intersubjetividade estabelece-se no espaço terapêutico como um processo de ida e volta, que transforma desde o estado fisiológico até as descrições linguísticas formuladas por cada parte, em um processo comunicativo que na terapia adquire sentido através do reordenamento linguístico, criando novas formas de lidar com a experiência, transformando descrições e narrativas.
Para além da gravidade de patologias como as psicoses, por exemplo, e considerando as limitações que as técnicas e ferramentas podem apresentar, toda relação terapêutica baseia-se na aceitação e no acolhimento. Isso ajuda a compreender a expansão de Mindfulness como ferramenta de autocuidado e também de capacitação para terapeutas, já que mudanças na percepção interpessoal, com incrementos na empatia e na compaixão4, estão entre os principais efeitos associados a Mindfulness (Davidson, 2011). Para Simón (2013), há três aspectos relevantes para o terapeuta que incorpora Mindfulness em sua prática clínica: a prática e a vivência pessoal; o conhecimento dos mecanismos psicológicos e dos diferentes quadros clínicos que pretende tratar; aprendizagem da experiência adquirida de quem já utiliza Mindfulness em clínica, pois a incorporação dessas ferramentas implica ajustes entre a vivência pessoal e o uso com pacientes.
A palavra em inglês Mindfulness é uma tradução do termo sati, em páli5, que faz referência ao mesmo tempo aos termos consciência, atenção e memória. Suas ferramentas clínicas são adaptações ocidentais de práticas ancestrais amplamente documentadas no budismo teravada, principalmente as práticas meditativas. Apesar do vínculo com a psicologia budista registrada no Canon Páli há mais de 2500 anos, as práticas meditativas são muito mais antigas, tendo suas origens documentadas no Vale do Indo, há cerca de 5000 anos. Tais práticas incluem focalização da atenção e a auto-observação não reativa das próprias vivências, incluindo a percepção das sensações propioceptivas, de pensamentos e de estados emocionais. Na adaptação para a psicologia ocidental, as práticas meditativas foram despidas de elementos religiosos e místicos que puderam ganhar com o tempo e incorporadas em programas e terapias baseadas em Mindfulness que utilizam a meditação como ferramenta, bem como em terapias informadas por Mindfulness que se apoiam em processos psicológicos específicos – como a desidentificação com os pensamentos e emoções, a aceitação da experiência ou a regulação atencional e modulação emocional.
Na literatura, o foco nos processos psicológicos dá lugar à concepção de Mindfulness como um estado e também como uma tendência disposicional. Como estado, implica a consciência que emerge da atenção intencionada ao momento presente, sem julgar (Kabat-Zinn, 2009, citado Hervás, Cebolla, & Soler, 2016). Entre os componentes atitudinais desse estado destacam-se a curiosidade, também nomeada na literatura sobre Mindfulness como "mente infantil" e "mente de principiante", a aceitação da própria experiência e a amabilidade. Essas atitudes acompanham também a descrição de Mindfulness como processo de regulação da atenção, mantida intencionalmente na experiência imediata com amabilidade e aceitação. Como tendência disposicional, Mindfulness pode ser compreendida como uma habilidade relativamente estável que pode ser desenvolvida e aprendida em programas de treinamento (Hervás et al., 2016).
No campo psicoterapêutico, os programas baseados em Mindfulness inscrevem-se habitualmente no âmbito das terapias de terceira geração, conhecidas também como terapias comportamentais de terceira onda, que preconizam uma apreciação holística e contextualizada da pessoa (Lucena-Santos, Pinto-Gouveia, & Oliveira, 2015). Cada vez são mais frequentes, contudo, trabalhos que estabelecem intersecções entre Mindfulness e as terapias relacionais. Trata-se de um movimento coerente se consideramos os traços sistêmicos, relacionais e construcionistas da epistemologia que informa a prática e as formulações teóricas sobre Mindfulness, bem como as suas origens no pensamento oriental. Ambos, nas suas diferentes escolas, apresentam preocupação em relação à inter-relação sistêmica entre todas as coisas.
Uma das razões pelas quais grande parte dos trabalhos publicados está inscrita no terreno das terapias de terceira geração deve-se ao fato de que há um grande número de estudos controlados que avaliam os efeitos da terapia cognitiva comportamental. O programa de Terapia Cognitiva Baseada em Mindfulness de Segal, Williams e Teasdale (2000) para prevenção de recaídas em depressão é um exemplo amplamente conhecido, constituindo o segundo grande programa terapêutico de Mindfulness ao lado do programa de Redução de Estresse Baseado em Mindfulness proposto por Kabatt-Zinn (1979). Mindfulness está incluído também como um módulo específico na Terapia Dialética Comportamental (DBT) desenvolvida por Marsha M. Linehan para o tratamento dos Transtornos de Personalidade Limítrofe (Linehan & Dimeff, 2001) e é um dos pilares que informam a Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT) proposta por Hayes (2004), que recupera o valor terapêutico da auto-observação no contexto das terapias comportamentais através da Teoria dos Quadros Relacionais.
Os programas e protocolos terapêuticos derivados do programa de Redução de Estresse Baseado em Mindfulness (MBSR) são descritos frequentemente como psicoeducativos porque estão organizados em um número limitado de sessões em grupo (entre 8 e 12, dependendo da problemática a ser tratada) e seguem uma estrutura que tem como objetivo capacitar o participante no uso de habilidades de atenção plena ao presente através de diferentes formatos de prática de meditação contemplativa e também de elementos do Yoga. Na terapia individual, essa organização é por vezes adaptada a modelos de intervenção estruturados, como por exemplo na terapia cognitiva comportamental (Maynar, 2013). Contudo, um dos elementos terapêuticos distintivos das terapias baseadas em Mindfulness, mesmo nos protocolos estruturados, é a indagação, onde o terapeuta ou mediador interfere na prática com conversas abertas e generativas, preferidas sobre abordagens diretivas (Woods, Rockman, & Collins, 2016). A interrupção do fluxo narrativo habitual e a criação de aberturas para novas formas de relacionamento com a experiência são um dos processos através do qual Mindfulness mostra efeitos terapêuticos.
Considero que a indagação aberta e generativa, um dos pilares da terapia baseada em Mindfulness, está alinhada às práticas colaborativas e construcionistas. De uma perspectiva construcionista e colaborativa é a sensibilidade do terapeuta e sua habilidade para “envolver-se e participar dos relatos em primeira pessoa de seus consultantes” (Goolishian & Anderson, 1999, p. 198) que estabelecem os rumos do processo terapêutico junto com o paciente (ver também Anderson, 2016). A incorporação de Mindfulness na terapia conversacional poderia parecer contraditória ou complicada se adotada como um método fechado. Contudo, se incorporada como uma ferramenta em um quadro colaborativo e dialógico, pode facilitar a tomada de consciência e a transformação de processos patogênicos ou que produzem sofrimento em processos integradores de auto-observação e consciência de si mesmo integradores.
No terreno das terapias informadas pelo construcionismo, Liria e Vega (2012), no livro Terapia Narrativa Basada en Atención Plena para la Depresión, fazem um amplo paralelo entre as terapias narrativas e Mindfulness. Para os autores, ambas perspectivas compartilham aspectos como a confiança nos recursos do paciente para permitir a configuração de uma sabedoria própria; a inexistência de separação entre observador e objeto de observação; o lugar do terapeuta como parte integrante do processo terapêutico, no qual não se estabelecem metas e diretrizes, mas se acompanha o paciente no trilhar de seu próprio caminho; uma ideia de self fluida. Tanto para a terapia narrativa quanto para as terapias baseadas em Mindfulness a ideia de self fluida permite compreender a mudança terapêutica em termos de mudanças na experiência subjetiva e, portanto, na reconstrução da subjetividade tanto no âmbito da experiência quanto no âmbito das formulações narrativas.
Em minha experiência com Mindfulness, é a própria vivência e familiaridade do terapeuta com essas ferramentas que possibilitam sua utilização em situações específicas no espaço terapêutico não como uma tecnologia ou corpo de conhecimento, mas como uma postura e como um recurso que pode ser usado com sensibilidade e delicadeza para aberturas no processo conversacional e narrativo. É o que confere também ao terapeuta a segurança e a calma para conduzir o paciente à regulação de seu estado em momentos de angústia, aproveitando oportunidades e aberturas facilitadas no espaço terapêutico a partir da intenção de atenção conjunta. A consciência dos processos de regulação atencional é um dos mecanismos neuropsicológicos da mudança terapêutica gerada com Mindfulness (Hervás et al., 2016; Hölzel et al., 2011) e ter consciência de que um processo psicológico requer passar antes pela vivência que permite experimentá-lo e compreendê-lo. Esse é o ponto de partida que possibilita ao terapeuta o uso consciente da regulação atencional (que implica também aspectos emocionais) para a construção de um espaço de atenção conjunta para observar com o paciente a experiência problemática em terapia e trabalhar sobre ela, ampliando as possibilidades de regulação emocional e redescrições liberadoras.
O espaço terapêutico como espaço comunicativo baseado na atenção conjunta
A epistemologia construcionista parte da ideia de que nós, humanos, damos sentido às coisas através da linguagem, que se constitui nas interações sociais. Os problemas e sofrimentos que são objeto da psicoterapia, partindo dessa perspectiva, “geram-se e manifestam-se no seio de práticas discursivas” (Botella, 2007). As psicoterapias de corte construcionista buscam gerar um espaço para transformações sobre as construções da experiência mediante diálogo colaborativo (Kaye, 1995). Partindo dessa perspectiva, torna-se viável a intersecção entre as ferramentas terapêuticas de Mindfulness e as ferramentas informadas pelo construcionismo social, pois a prática de atenção plena potencializa as habilidades reflexivas e de vinculação do terapeuta e oferece ao paciente meios para observar suas próprias experiências de uma forma que lhe permita romper jogos recorrentes, automatismos e condicionamentos, abrindo novas possibilidades de significação em terapia.
O espaço terapêutico é, em si mesmo, um espaço de interação que busca produzir transformações. No espaço terapêutico, o paciente pode observar e vivenciar suas experiências difíceis ou problemáticas na medida em que vão se apresentando, ao mesmo tempo em que pode construir, junto com o terapeuta, formas habilidosas para poder transformar sua relação com essas experiências (Miró, 2013). A conversa terapêutica “remete à busca recíproca de compreensão e à exploração, através do diálogo, de problemas sempre cambiantes que vão se apresentando” (Anderson & Goolishian, 1988; Goolishian & Anderson, 1999).
Experiências e conversas manifestam-se em fluxos. Nas terapias conversacionais, as transformações que possibilitam a mudança terapêutica implicam um reordenamento, no plano linguístico, das experiências vividas, de forma que a relação da pessoa com aquilo que lhe causa sofrimento é modificada. As transformações no reordenamento linguístico são facilitadas no espaço terapêutico por interações comunicativas, aquelas que possibilitam transformações na linguagem em uso a partir de aberturas geradas no sistema para aquilo que nomeio aqui, com Braga (2010b), como espaços de inferência. De uma perspectiva da epistemologia da comunicação, o fato de que duas pessoas compartilhem um mesmo espaço não garante que as interações entre elas sejam interações comunicativas. As interações podem ser pensadas como comunicativas na medida em que produzem transformações na linguagem para reduzir o isolamento (Braga, 2010a). Essas transformações não implicam a comunhão de sentidos, mas se produzem, principalmente, através de ajustes sucessivos em tentativas de aproximação das partes (Braga, 2010b). Na prática clínica, essas aproximações tentativas podem ser pensadas como movimentos do paciente e do terapeuta em torno de um mesmo objeto de atenção (a vivência) no espaço terapêutico.
Na perspectiva pragmatista das ciências da comunicação mencionada aqui, entende-se que é a incerteza o que realmente potencializa a comunicação ou, o que é o mesmo, a abertura para novos caminhos na construção de sentidos. Cecchin, em artigo que faz uma revisão das passagens do modelo cibernético para o modelo construcionista na terapia sistêmica familiar, discorre sobre como o deslocamento do foco para o terapeuta possibilitou que as verdades dessem lugar às hipóteses e a neutralidade cedesse espaço para a curiosidade (Cecchin, 1998). De uma perspectiva relacional, a curiosidade, se orientada para as conexões que se estabelecem dentro de um sistema (e aqui me refiro tanto ao sistema paciente e terapeuta como ao sistema paciente em seus mundos, sem me circunscrever unicamente ao sistema familiar que era tema de discussão no artigo de Cecchin), ocupa-se mais dos encaixes e conexões em uma totalidade estética que implica a vivência do sujeito dentro dos sistemas humanos. A formulação de hipóteses por parte do terapeuta pode ser compreendida então em um fluxo contínuo de aproximações e ajustes com o paciente, sendo que o valor das hipóteses está mais na discrepância do que no acerto, já que é na discrepância que se abre espaço para novos entendimentos e para o reordenamento, no plano linguístico, das experiências vividas.
O potencial de comunicação com a abertura para novas construções no código e nos jogos de sentido é teorizado por Braga (2010a, 2015), desde a epistemologia da comunicação, como o espaço de inferência no qual o código é transformado, dando lugar a novas formas, práticas e significados. A interação comunicativa manifesta-se ao mesmo tempo no nível do código e no nível das inferências, justamente onde o código previamente estabelecido ou compartilhado não é suficiente (Braga, 2010a, 2010b). Transportando estas ideias para a psicoterapia, a transformação gerada na comunicação com o terapeuta beneficia-se justamente das aberturas e espaços que permitem gerar novos significados e histórias. Observação atenta e curiosa, com mente de principiante e consciência da impermanência, e indeterminação dos conteúdos narrativos – eixos fundamentais das práticas de Mindfulness – facilitam a abertura de novos caminhos em meio ao fluxo de experiências transitórias e a rotas aprendidas.
A observação baseada em Mindfulness procura adentrar o que há de ‘extra-ordinário’ (fora do comum, ou pouco habitual) nos fenômenos corriqueiros, inibindo o fluxo do conhecimento aprendido e pousando o foco sobre as experiências e vivências que ocorrem em cada instante. Na terapia individual, o direcionamento da atenção desenvolvida com Mindfulness sobre o próprio corpo gera um lugar facilitador para trabalhar com o paciente aberturas em seus sistemas de significação sobre as vivências, facilitando, por exemplo, o emprego da descrição e de estratégias narrativas como a externalização do problema (White & Epston, 1993). O corpo é o fundamento da aprendizagem de Mindfulness, sendo um lugar adequado para a auto-observação por ser relativamente lento e estável se o comparamos com os processos mentais (Moñívas et al., 2012). O corpo pode ser um ponto de ancoragem mais estável do que o mundo da produção de sentidos, oferecendo a possibilidade de uma desaceleração que favorece a observação dos sistemas em interação.
A atenção é a habilidade primordial sobre a qual as terapias baseadas em Mindfulness se articulam e, tendo em conta como os pacientes vivenciam seus próprios processos atencionais com ajuda das ferramentas de Mindfulness, prossigo com uma definição de atenção como sistema. Posner e Petersen (1990, 2012) descrevem a atenção como um sistema complexo, formado por três subsistemas inter-relacionados: (a) uma rede de alerta responsável pela ativação necessária para poder processar informação; (b) uma rede de orientação e seleção responsável pela reorientação, capacidade de liberar o foco de atenção para redirecioná-lo a outro objeto, selecionando aquilo que é relevante e, finalmente, (c) uma rede executiva responsável pela administração dos recursos atencionais dedicados a duas ou mais tarefas (atenção dividida), bem como por poder manter a atenção durante um período longo (atenção sustentada).
Essas três sub-redes podem gerar diferentes combinações de enfoque, orientação, processos emocionais e processos relacionados ao autoconceito. O artigo publicado em 1990 por Posner e Petersen foi disparador de inúmeras reflexões em torno dos aparatos cognitivo e emocional necessários para a manutenção do foco atencional, sendo que os mesmos autores ampliaram essa discussão relacionando-a também com os processos de regulação emocional que implicam a habilidade para inibir reações reflexas e respostas recorrentes para poder selecionar outras menos dominantes (Posner & Petersen, 2012).
O aspecto afetivo é central nas terapias baseadas em Mindfulness, onde se procura desenvolver uma atenção intencionada, firme e flexível que mais se assemelha ao foco que pousa delicadamente sobre o objeto, proporcionando uma vivência muito diferente da rigidez da hiperfocalização frequentemente presente no sofrimento psicológico, por exemplo, própria dos estados obsessivos. A regulação atencional que se procura construir com as práticas de Mindfulness baseia-se na observação atenta e delicada da experiência e, nesse aspecto, a qualidade sensorial à que a linguagem pode remeter é relevante. Expressões como "pousar ou descansar a atenção delicadamente sobre a sensação de inquietude no corpo" ou "deixar que a atenção deslize suavemente acompanhando o movimento respiratório" são exemplos de construções linguísticas que carregam aspectos sensoriais que ajudam o paciente a compreender e ajustar o uso flexível e delicado da atenção plena mesmo em momentos de angústia. A conversa terapêutica proporciona muitas oportunidades para introduzir elementos da atenção plena, criando espaços de atenção conjunta nos quais é possível construir novas possibilidades.
O corpo no fluxo de percepções, sensações, pensamentos e narrações
A qualidade sensorial e a corporeidade da experiência psicológica podem ser exploradas na sala de terapia de diferentes maneiras, por exemplo, através da atenção plena ancorada no corpo. A atenção conjunta dirigida deliberadamente à sensação de angústia, ansiedade, dor (não apenas psicológica, mas também física) mostra-se útil, por exemplo, em combinação com técnicas como a externalização do problema (White, 1988; White & Epston, 1993), na dissolução de crises de ansiedade, na reconexão em crises de dissociação, ou para lidar com sintomas em experiências com traços psicóticos (Hervás et al., 2016). Mesmo quando há um diagnóstico de transtorno psicológico ou doença mental, a atenção conjunta à experiência de sofrimento em seu estado mais básico pode facilitar o trabalho terapêutico sem que o terapeuta tenha que se circunscrever a narrativas paradigmáticas pautadas, por exemplo, pelo diagnóstico (Cecchin, 1998), mas ao mesmo tempo mantendo consciência dos mecanismos que configuram os distintos quadros clínicos.
Para ilustrar este aspecto, recorro ao exemplo da experiência dissociativa. Embora as vivências de distanciamento ou estranhamento de si próprio (despersonalização), de estar vivendo um sonho ou uma ficção (desrealização), ou a anestesia sensorial possam ser organizadas como sintomas de quadros clínicos específicos, o manejo de um estado de dissociação em sala de terapia requer, para além de qualquer etiqueta diagnóstica, a presença do terapeuta como âncora para conduzir o paciente de maneira que possa encontrar novamente a si mesmo, consciente de como agiu para sua própria regulação. A focalização da atenção, a regulação emocional apoiada na sintonização livre da respiração e a condução para o próprio corpo permitem lidar com os sintomas dissociativos no momento presente, criando para o paciente uma oportunidade de vivenciar o caminho de reconexão independentemente da etiqueta diagnóstica6.
A corporeidade da experiência psicológica é, talvez, o elemento mais tangível do aspecto sistêmico dos trabalhos terapêuticos baseados em Mindfulness. Ainda que por suas origens em práticas meditativas e também pela proeminência de estudos do campo cognitivista parte do vocabulário de Mindfulness possa parecer mentalista, a dualidade mente-corpo é compreendida apenas como uma divisão artificial utilizada como recurso de auto-observação. As concepções de mente nesse campo são holísticas e sistêmicas (Siegel, 2001), assim como as concepções de sujeito, pensado como expressões variadas de um sistema dentro de outro sistema, de modo que a própria percepção do "eu" é concebida como processo e como efeito de percepções e de construções geradas nas experiências vividas.
A auto-observação terapêutica difere da auto-observação caracterizada pela reatividade emocional derivada da não aceitação da experiência, frequentemente carregada de julgamentos e resistências que agem como geradores de estados ansiosos e depressivos. Para Miró (2013), a reconstrução terapêutica da experiência vivida realizada durante as sessões de psicoterapia deve incluir tanto os aspectos experienciais como os aspectos discursivos, podendo proporcionar um reordenamento no plano linguístico das relações que o paciente estabelece com aquilo que experimenta. Na prática clínica, percebo que um dos aspectos facilitadores para esse reordenamento é a consciência da corporeidade na experiência psicológica, onde se dá o fluxo de percepções, sensações, pensamentos e narrações.
O interesse por compreender os mecanismos responsáveis pela mudança terapêutica associada à prática de Mindfulness abriu um amplo campo de pesquisa em psicologia e neurobiologia. Em artigo de revisão, Hervás et al. (2016) destacam que três componentes interagem para possibilitar os efeitos terapêuticos de Mindfulness: (a) um melhor controle dos processos atencionais; (b) uma maior capacidade para regular os estados emocionais; (c) uma transformação na consciência de si mesmo, com um menor processamento autorreferente, maior consciência do corpo e maior equanimidade (Hervás et al., 2016; Tang, Hölzel, & Posner, 2015). A regulação da atenção parece estar associada especialmente às práticas de focalização da atenção em um único ponto, enquanto que a regulação emocional e a descentralização da percepção de si mesmo parecem estar associadas às práticas de atenção plena e contemplativa de campo aberto. Na próxima seção discuto esses aspectos através de fragmentos de um caso clínico.
Regulação atencional e emocional e descentramento para novas metáforas e narrativas
Os processos de transformação na consciência de si mesmo e de redescrição identitária em Mindfulness são compreendidos como processos de descentramento que implicam a vivência experiencial de que a ideia que temos de nós mesmos é construída no fluxo das experiências, impermanentes e multideterminadas. Essa compreensão advém da vivência durante as práticas meditativas – já que no fluxo da experiência de auto-observação o sujeito é continuamente reconstruído – e do reordenamento dessa experiência no plano linguístico, na conversa terapêutica. Tal vivência é mais clara quando a prática é contínua e frequente, possibilitando a experiência da reconstrução contínua da subjetividade como algo vivo e cambiante, que depende de que coloquemos em prática jogos recorrentes ou interrompamos o fluxo das narrativas habituais sobre nós mesmos para reconstruí-las.
A pesquisa em Mindfulness hipotetiza que os processos de descentramento do eu são facilitados pela desativação da rede neuronal por padrão (Hölzel et al., 2011; Moñívas et al., 2013; Orzech et al., 2009), um modo de funcionamento do cérebro que nos prepara para os processos conscientes e que está associado à nossa ideia de self (Hölzel et al., 2011). Vivenciar com consciência que nós interferimos ativamente na produção daquilo que chamamos de “eu” é algo facilitado pela desativação desse modo de funcionamento através da observação de nossos próprios estados. Essa desativação parece ser potencializada principalmente pelas práticas de campo aberto, nas quais se pratica a observação contemplativa do fluxo de experiências sem estabelecer um único foco e sem julgá-las, com aceitação e curiosidade, e também pela atenção no corpo.
A observação contemplativa implica a redução da atividade autorreferente e da reatividade cognitiva e emocional, o que em estudos de neuroimagem sobre meditação é observado como uma menor atividade nas regiões cerebrais correspondentes ao modo de funcionamento habitual associado à autorreferência (Hadash, Plonsker,Vago, & Bernstein, 2016; Hölzel et al., 2011; Orzech et al., 2009). A redução desses processos conduz à diminuição do número e da intensidade de pensamentos circulares rumiativos e estados emocionais difíceis. A ancoragem da atenção no corpo é apontada já na literatura como um dos mecanismos associados à desativação da rede por padrão e descentramento das perspectivas do sujeito (Hervás et al., 2016; Hölzel et al., 2008), incrementando a consciência corpórea da experiência psicológica.
Para esse descentramento e desidentificação, a atenção no corpo foi uma porta de entrada para a mudança terapêutica para M., que chegou para terapia aos 16 anos conhecendo de cor e salteado os modelos cognitivo-comportamentais depois de ter passado por internação em um hospital e um tratamento ambulatorial de longa duração. Ele conhecia a teoria, sabia onde falhava, quais eram seus erros cognitivos, mas assim que baixava a vigilância e o controle, tudo começava outra vez, o que o obrigava a controlar mais e mais até que tudo ficasse insustentável e ocorria outra vez a quebra, com o consequente isolamento, interrupção das atividades cotidianas e impossibilidade de sair às ruas. A história de M. esteve marcada desde a infância por ansiedade social, estados obsessivos, uma forte autoexigência e rigidez. Capaz de usar muito bem as palavras, a terapia conversacional era um bom caminho para trabalhar com ele, mas era, ao mesmo tempo, sua via de escape através do discurso e também a porta para o monólogo circular obsessivo e autorreferente. A conversa era, para M., uma forma “técnica” de lidar com a vida, mostrando rendimento, baseada no controle de si e do mundo.
Os exercícios de Mindfulness foram incluídos nas sessões de terapia conversacional de M. com o objetivo de que ele pudesse vivenciar outra forma de lidar com a experiência que não fosse a prática do controle. Os exercícios foram postos em uso quando motraram-se úteis para interferir também nos processos rumiativos e autorreferentes. Na terapia de M. foram utilizadas como ferramentas de Mindfulness:
1. focalização da atenção na respiração, isolando a percepção em uma única parte do corpo ou na própria respiração, buscando desenvolver mecanismos para reconhecer o foco atencional para depois poder estabilizá-lo e movê-lo de forma intencionada;
2. observação aberta das sensações no próprio corpo em meditação, com o fim de reconhecer e se familiarizar com as próprias sensações, podendo permanecer com elas ainda que fossem aversivas;
3. combinação de meditação baseada na focalização da atenção e de campo aberto, possibilitando a vivência da interação entre foco atencional, rede de orientação e processos de regulação;
4. meditação em campo aberto para observação da atividade mental, que possibilitou a M. observar seus processos narrativos recorrentes, familiarizando-se com seu funcionamento e com sua ação sobre eles, não apenas na auto-observação, mas também durante a conversa terapêutica;
5. regulação emocional com atenção no corpo em posturas de Yoga que demandam consciência e regulação atencional e emocional;
6. meditação com exercícios propostos pela Terapia Baseada na Compaixão (Gilbert) para redução dos processos de rigidez e autoexigência.
M. mostrou mudanças terapêuticas significativas associadas especificamente à atenção no corpo, abrindo espaços nas narrativas recorrentes, criando novas metáforas para a vida social e para as descrições de si mesmo baseadas na ideia de equilíbrio, percepção do valor do descanso como reparação para poder permanecer em uma atividade, bem como a substituição de metáforas de si mesmo baseadas na rigidez por metáforas baseadas na flexibilidade. Para ele, ativar as metáforas baseadas nas sensações no corpo em situações da vida diária possibilitou um processo de reconstruções com novas formas de enfrentar situações com as quais lidava sempre desde a busca de uma construção cognitiva prévia que conduzia aos seus jogos recorrentes de antecipação e controle rígido.
Enquanto a focalização da atenção proporcionou uma ferramenta para acalmar a agitação no corpo e a ansiedade, a contemplação da experiência em campo aberto possibilitou a consciência de processo que lhe permitiu substituir esquemas rígidos de ação para lidar com a vida social pela ideia de equilíbrio. Essa metáfora veio da vivência de que o equilíbrio ocorre na sucessão de reequilíbrios sucessivos, em um processo que atua inscrito na impermanência e na instabilidade. Essas vivências ocorreram em práticas de atenção ao corpo e de sustentação do olhar durante as quais M. pôde manifestar em palavras os novos significados que ia construindo conforme seu discurso ia também se reequilibrando na instabilidade.
A rigidez também cedeu lugar à flexibilidade, generalizando a experiência vivida no corpo para a vida e para a existência relacional. A flexibilidade só é possível quando há acomodação, e a acomodação requer aceitação da nova condição ou postura para que o corpo se adapte a ela pouco a pouco em um diálogo entre músculos, tendões, respiração, conteúdos mentais e respostas emocionais. A necessidade de regulação emocional surgiu nas sessões de foco no corpo quando foi preciso administrar o diálogo entre estado físico e emocional. M. pôde observar que seu padrão rígido de rendimento estava presente também no corpo, e que permanecer estável exigia movimentos de ajuste e espaço às fases de recuperação.
O controle e a autoexigência nas atividades diárias passaram a ceder espaço à compreensão de que pequenas pausas de recuperação possibilitam a continuidade dos processos que antes eram interrompidos pela quebra decorrente da autoexigência que o afastava da vida social e da vida de estudante. Assim, ao voltar à escola depois de faltar alguns dias, por exemplo, M. podia permanecer e continuar porque passou a permitir um período de acomodação, e buscar a acomodação no corpo em momentos de agitação passou a funcionar como um processo de ancoragem para lidar com a ansiedade sem ter que abandonar, como antes, a situação.
Os espaços de descanso da atenção e ideia de recuperação como uma fase no processo necessária para poder continuar e não como um fracasso puderam ser generalizados para situações externas à sala de terapia, que ele nomeou de laboratório. Antes, M. era consciente de que através do discurso podia participar de uma conversa com sentido de uma forma técnica. Com conhecimento também no corpo, deixou de depender apenas dos processos cognitivos e ideações sobre a conversa para poder falar conectado consigo mesmo e com o interlocutor. Os pacientes de terapia com Mindfulness me contam, em algum momento do processo terapêutico, que se surpreendem a si mesmos regulando a agitação sem que seja de forma intencionada, conduzindo e reconduzindo a atenção com naturalidade, como quem aprende a andar em bicicleta e não precisa mais pensar em como pedalar para não cair.
A terapia de M. prosseguiu com muito trabalho no quadro relacional e conversacional, mas os processos discursivos circulares e recursivos tornaram-se mais porosos, com novas aberturas a partir dos momentos de atenção no corpo, abrindo espaço para mudanças importantes no trabalho terapêutico. A presença plena significa ter a mente presente na experiência corpórea cotidiana (Varela, Thomson, & Rosch, 2016). A atenção no corpo é uma porta de entrada para um trabalho complexo que avança nos terrenos emocional e cognitivo. No caso de M., mostrou a potência para a interrupção dos fluxos narrativos e discursivos circulares e recorrentes que M. não conseguia transformar apenas com os recursos conversacionais porque o discurso era a “técnica” que havia desenvolvido para controlar sua experiência no mundo. A importância da focalização da atenção no corpo está amplamente documentada na literatura sobre Mindfulness acerca da regulação atencional e redução da ansiedade, e alguns autores já sinalizam a importância da atenção no corpo para os mecanismos de consciência de si mesmo (Dunn et al., 2010; Mehling et al., 2012; Moñivas et al., 2016; Quezada-Berumen, González-Ramírez, Cebolla, Soler, & García-Campayo, 2014).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Do lugar de terapeuta, situo o acionamento das ferramentas de Mindfulness como um movimento de aproximação que é facilitado por uma desaceleração, uma mudança de ritmo na interação derivada do ajuste do foco na cena em movimento, um processo no qual é preciso sustentar e ao mesmo tempo deixar que o movimento aconteça sem precisar trazer para a cena interpretações rápidas ou retirar o paciente imediatamente do estado de angústia. A percepção de uma dinâmica de foco e movimento com desaceleração me foi descrita por pacientes em diversos momentos em que utilizamos Mindfulness, quando tomavam consciência de seus processos atencionais e emocionais em interação.
Na prática da terapia conversacional, a incorporação de Mindfulness oferece ferramentas valiosas para o terapeuta, o que está já documentado na literatura (Hernández & Miró, 2015; Hick & Bien, 2010; Simón, 2013). Contudo, em minha prática observo que o emprego intencional de Mindfulness como ferramenta para construir um espaço terapêutico alicerçado na atenção conjunta tem se mostrado relevante para que o espaço terapêutico seja um espaço comunicativo, no qual o paciente pode ser consciente de como transforma seus processos de ordenamento linguístico (Miró, 2013) quando tem a oportunidade de aprender, em um quadro relacional e com ferramentas facilitadoras, a observar seus próprios processos em interação, vivos, em movimento, aqui, agora. O corpo mostra-se como porta de entrada para a desaceleração necessária para a observação atenta (Moñívas, Díex, & Silva, 2012), principalmente em meio à agitação e às formas habituais e recorrentes.
Uma das chaves para a mudança terapêutica na terapia conversacional é a comunicação, e a intersecção entre os campos da terapia conversacional, das ciências da comunicação e Mindfulness mostra-se como um terreno de pesquisa produtivo, com conexões a serem exploradas em trabalhos futuros. A pesquisa sobre o papel da atenção no corpo nas mudanças na perspectiva de si mesmo é ainda incipiente, mas oferece dados importantes para pensar aberturas. A conversa terapêutica é o processo que viabiliza as reconstruções a partir das vivências, de forma que estudos futuros que explorem os mecanismos das práticas colaborativas e de comunicação na atenção conjunta com Mindfulness no corpo podem constituir um campo promissor para a pesquisa em psicoterapia e para a prática clínica.
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Recebido em: 05/09/2017
Aprovado em: 15/12/2017
1 As expressões “atenção plena” e “consciência plena” são traduções utilizadas habitualmente na literatura para a palavra Mindfulness.
2 O nome e dados que pudessem identificar o sujeito do estudo de caso apresentado foram omitidos para proteger sua identidade. Foi também assinado o termo de consentimento livre e esclarecido.
3 Para uma teorização sobre a neurobiologia interperssoal no desenvolvimento humano, ver Siegel, 2001.
4 A palavra compaixão, em Mindfulness, é utilizada aqui para designar a sensibilidade ao sofrimento do outro e também ao sofrimento próprio, acompanhada do compromisso de aliviar o sofrimento. Essa noção difere da ideia de compaixão na tradição judaico-cristã, equivalente à ideia de pena e lástima pelo sofrimento do outro. O termo compaixão foi mantido na citação literal, embora esteja mais próximo de uma ideia de percepção de igualdade, cuidado e empatia.
5 A língua páli é uma língua litúrgica utilizada na escola Teravada do Budismo. Pertence ao tronco linguístico indo-europeu, sendo uma língua antiga indiana que pode ser considerada uma forma simplificada do sânscrito. Sua importância advém do fato de ser a língua na qual as escrituras do budismo teravada foram registradas.
6 A experiência dissociativa pode apresentar diferentes graus e intensidades. Neste trecho refiro-me às experiências dissociativas que ocorrem na sala de terapia e que permitem recondução no consultório.
I Asociación Española de Mindfulness y Compasión (AEMIND), Valencia, Espanha. Universidade de São Paulo (USP), São Paulo/SP, Brasil. Psicóloga clínica, pesquisadora e doutora em Ciências da Comunicação. Membro da Associação Espanhola de Mindfulness (AEMIND), com especialização em Mindfulness aplicado à clínica psicológica. E-mail: lmoretti.psi@gmail.com