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Nova Perspectiva Sistêmica
versão impressa ISSN 0104-7841versão On-line ISSN 2594-4363
Nova perspect. sist. vol.28 no.64 São Paulo ago. 2019
CONVERSANDO COM A MÍDIA
Cafarnaum
Adriana Mattos FráguasI, Janice RechulskiII
I Instituto Sistemas Humanos, São Paulo/SP, Brasil.
II Instituto Sistemas Humanos, São Paulo/SP, Brasil.
“A resiliência não é um catálogo de qualidades que um indivíduo possui. É um processo que, do nascimento à morte, nos tece sem cessar com nosso entorno” (Cyrulnik, 2004)
Cafarnaum, filme dirigido por Nadine Labaki, foi indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro em 2019. Estrelado por Zain AL Rafeea, Nadine Labaki, Yordanos Shiferaw, entre outros, ganhou premio do júri em Cannes, e foi ovacionado em sua primeira apresentação, em 2018.
Cafarnaum, segundo Aurelio, é sinônimo de lugar em que há tumulto, desordem; ou, ainda, local onde objetos diversos são amontoados e/ou colocados desordenadamente. É também nome de uma cidade bíblica, que ficou conhecida em certa época por ter uma alfândega, em função de sua localização geográfica.
O filme conta a história de Zain All Hajj, um menino de aproximadamente 12 anos, refugiado sírio, que foi preso por conta de uma facada proferida em defesa da honra de sua irmã, que tinha quase sua idade. Estando preso, apresenta na justiça uma queixa contra seus pais, requerendo que sejam impedidos de terem mais filhos. Zain é filho de Souad e Selim Al Hajj, juntamente com muitos outros irmãos. Vivem no centro de Beirute, numa região onde habitam refugiados sírios, imigrantes e libaneses sem documentos. As ruas são invadidas por pessoas e crianças brincando com armas de madeira, exibindo-as como se fossem troféus, em meio a carros, barulhos de buzina e pessoas vendendo de tudo e pedindo por comida e atenção.
É nesse contexto que Zain, o protagonista da história, luta por sua vida, trabalhando para levar comida para casa e garantir que a família numerosa tenha abrigo e o mínimo para viver, num quadro de absoluta precariedade e desamparo afetivo e emocional.
O que mais nos toca em Zain é sua absoluta determinação de lutar pela sobrevivência de si e dos outros, o que em alguns momentos quase nos faz esquecer que tem apenas 12 anos.
Aceitar o convite para escrever sobre Cafarnaun foi um grande desafio. Transformar em palavras alguns dos sentimentos e emoções que emergiram ao assistirmos ao filme não foi tarefa fácil. Impactante é a primeira palavra que surge, frente aos temas abordados, tais como violência, relações abusivas, desamparo, pertencimento, resiliência, num contexto do dia a dia da vida de refugiados sírios em Beirute, no Líbano. O filme fala de um amontoado onde as pessoas não são vistas como seres humanos, é só um “amontoado de coisas”. Triste realidade desses indivíduos que deixaram suas histórias e raízes, contra a própria vontade, e passaram a viver à margem da sociedade, na pobreza e abandono, sem pertencimento, documentos, ou qualquer papel que os identifique, duvidando às vezes da própria existência. Ser estrangeiro na terra de outrem. A dor do não pertencer.
Zain clama por um lugar na existência, um lugar no mundo, clama por ser. Questiona o fenômeno da procriação. A procriação por procriar. Procriar é bom para quem e para quê? Zain denuncia e revela a miserabilidade humana.
Temos a crença de que a possibilidade de desenvolvimento e da existência humana se dá no vínculo. Zain nos faz refletir sobre seus recursos de resiliência em si mesmo. Nele a dor e a raiva caminham juntas, não permitindo que se paralise. A raiva é um dos ingredientes mobilizadores de sua resiliência. Facilita seu caminhar em busca de saídas possíveis, confirmando a esperança no humano.
Durante sua trajetória, Zain se encontra com a refugiada etíope Rahil e seu filho Yonas, um bebê de 1 ano. Acreditamos que esse encontro possibilitou uma liga fundamental entre eles, que permitiu que Zain pudesse se dar conta do que seria uma relação de cuidado, proteção, maternagem e paternagem, até então desconhecidos por ele.
A cena fundante do filme se passa no tribunal, onde Zain, enquanto réu, presta queixa contra seus pais, reclamando por ele ter nascido, e como requerente, frente ao juiz, clama para que sejam impedidos de terem mais filhos.
“Quero que eles parem de ter filhos”!
Zain é porta-voz de todas as crianças órfãs de pais vivos.
A diretora Nadine Labaki, que também atua no filme no papel de advogada de defesa de Zain, conta que, por ter nascido durante a guerra, viveu sua infância confinada nos ambientes internos, assistindo a filmes na TV, o que lhe permitiu criar histórias diferentes da realidade, e desde cedo decidiu se tornar cineasta para contar e recontar sua história.
Essa obra merece ser vista. Impactante, emocionante, inquietante... toca o coração. Convida-nos a lidar com nossos abandonos, negligências e impotências, mas sempre acreditando na capacidade do ser humano.
Parabéns, Zain, por sua força e capacidade de transformar situações de desamparo, sobreviver e encontrar saídas. Parabéns à diretora Nadine Labaki, que retratou com muita sensibilidade histórias de dor e miséria humana... e esperança.
Esse é um filme em que a vida imita a arte e a arte imita a vida, pois a vida do menino Zain All Rafeea foi transformada através da oportunidade de seu encontro com Nadine. A diretora, ao escolher esse menino como ator, através do vínculo, possibilitou que ele transformasse sua vida. Finalmente, tem um passaporte norueguês e está frequentando a escola pela primeira vez, recuperando sua infância. Um lugar no mundo, com nome, identidade e pertencimento.
“A arte não é um fim, mas um começo” Ai Wei Wei (artista e ativista chinês)
Referências
Cyrulnik, Boris (2004) – “ Os Patinhos Feios”. São Paulo: Martins Fontes .Melilo. Aldo Y Suarez Ojeda, Nestor (2003) – “ Resiliência: descubriendo las propias fortalezas” . Buenos Aires: Paidós.
I Adriana Mattos Fráguas: Psicóloga, terapeuta individual, de casais e famílias. Sócia-fundadora e formadora do Instituto Sistemas Humanos. E-mail: afraguas5@gmail.com
II Janice Rechulski: Psicóloga, terapeuta individual, de casais e famílias. Sócia-fundadora e formadora do Instituto Sistemas Humanos. E-mail: janrechulski@hotmail.com