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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641Xversão On-line ISSN 2175-3601

Rev. bras. psicanál v.41 n.2 São Paulo jun. 2007

 

ENTREVISTA

 

Almeida Prado

 

 

José Antonio de Almeida Prado é compositor, pianista e professor. Diplomou-se no Conservatório de Santos em 1963. Foi aluno dos compositores Camargo Guarnieri e Osvaldo Lacerda e, em Paris, onde viveu de 1969 a 1973, estudou com Olivier Messiaen, Nadia Boulanger e Annette Dieudonné. De seu catálogo, constam cerca de 250 obras. É professor de composição do Departamento de Música do Instituto de Artes da Unicamp. Seu estilo, múltiplo, vem do nacionalismo de Villa-Lobos e Guarnieri, passa pelo pós-serialismo atonal, toma um caminho pós-moderno e envereda por uma linha tonal livre.*

 

RBP Você tem uma obra mito importante entre os compositores contemporâneos consagrados, e é uma honra tê-lo aqui na Sociedade para conversarmos. Sabemos, claro, que a psicanálise não tem o monopólio da reflexão sobre o mundo interior ou sobre o inconsciente. A música é um território privilegiado dessa reflexão, e não há dúvida, então, de que nossa conversa será bastante fértil. Pensamos em dirigi-la em duas direções básicas. A primeira seria pensar um pouco a música como uma forma de filosofia e de linguagem. Existe um texto de Alain de Mijolla em que ele diz mais ou menos assim: quando um paciente faz uma série de associações, eu não posso me sentar ao piano, tocar alguma coisa e dizer a ele que isso é a interpretação; não posso porque que não tenho talento nem aptidão para isso, mas seria maravilhoso poder interpretar o paciente com o piano ao lado. Uma segunda direção seria discutirmos as variadas formas e soluções que a música encontra no mundo contemporâneo, comparando com as soluções encontradas no século XX e ao longo da história. A música compartilha do viver de cada época. Como o músico vê os tempos atuais? Com que dilemas ele se defronta? Que respostas descobre?

Almeida Prado Eu fiz análise quando tinha 20, 21 anos, em Santos. Mais tarde a vida foi me levando para várias etapas. Meu casamento entrou em crise, eu precisei de uma ajuda. Estava muito em desordem – era difícil botar ordem no meu destino. Voltei então à análise, em Campinas, com um lacaniano, durante três ou quatro anos. Aí, chegou a hora em que eu quis ficar só. Não sentia mais necessidade de continuar, mas foi um trabalho que me ajudou muito. O compositor é, entre os criadores, o mais frágil. O pintor tem o elemento com que ele pinta; pode pegar, pode ver, pode colocar numa posição, está lá. O escultor, idem. O cineasta tem o filme. O escritor tem o livro. O compositor tem a partitura, que, se ninguém tocar, não serve para nada. Não dá para colocar na parede, por exemplo. Se você pendurar uma partitura de Beethoven na sala, para quem não conhece música aquilo não representa nada: é preciso o intérprete. A música é temporal. Você toca e acabou. Se tocar de novo, é outra coisa, e assim até o infinito. Dá uma angústia muito grande. Quando eu era criança, minha irmã mais velha, Tereza Maria, tocava piano muito bem, e em Santos, na nossa casa, eu ficava no cercadinho. Eu era bem pequeno, um bebê, e ficava escutando ela tocar Beethoven, Schumann, Mozart, aquilo foi entrando em mim, foi uma musicoterapia indireta.

Meu pai gostava de ópera e eu também gosto. Comecei a estudar piano e um dia, com oito anos, fui para o piano e fiz uma música. Se chama Adeus, eu tinha oito anos. “Adeus” porque minha irmã Maria Luiza, que se tornou freira, tinha ido para o convento, foi embora. É uma música muito simples, mas eu fiz inteira. Tem uma forma coerente, uma harmonia tonal correta, e comecei a brincar assim. Como a palavra em inglês: play. Não é brincar, é tocar, como jouer em francês também. Em português, é tocar; compor é juntar. E várias obras foram se sucedendo, pequenas pecinhas.

Com quinze anos, fui estudar com Camargo Guarnieri, que era o único professor viável em São Paulo. Porque o Claudio Santoro não estava mais no Brasil, e naquela época não havia uma Unicamp, uma Unesp, uma USP; havia o conservatório, que não ensinava composição. Isso em 1958, 59. Com o Guarnieri, eu tive de entrar na linha do Mário de Andrade: Se você é brasileiro, faz música brasileira. E eu obedeci. Fazia temas folclóricos, harmonizava temas folclóricos com invenções etc., mas não estava muito interessado em boi-bumbá, queria texturas Eu dizia: Mas por que é que eu não posso fazer uma música chinesa? E ele: Porque você é brasileiro. Mas de repente eu podia fazer uma coisa da África, eu sentia uma independência em mim, um desejo de ser planetário, e o Guarnieri puxava para aquela escola nacionalista. Entrei na minha primeira crise: não acreditava mais que ser brasileiro era fazer toada e baião. Achava aquilo chatérrimo, já aos vinte anos. Aí eu conheci em Santos o Gilberto Mendes, que era um compositor pouquíssimo conhecido na época. Trabalhava num banco e fazia música por prazer, e cantava como tenor num coral. Comecei a me interessar pelo trabalho dele, a aprender com ele, a aprender tudo o que era possível, quer dizer, o atonalismo. Fiquei encantado. Eu não me preocupava absolutamente se ia ou não comunicar alguma coisa: aquilo era uma necessidade da minha inteligência.

 

RBP Você se lembra da sensação que teve ao ouvir a primeira música atonal?

Almeida Prado Foi num festival de música, em Santos, tocada pelo Gilberto Tinetti. Achei uma maravilha. Era uma porta que se abria e que me era proibida, então eu fui à aula do Guarnieri na semana seguinte e disse que estava encantado com aquele atonal. E ele disse: Mas como!? Aquilo é um absurdo! Comecei a me sentir atado, castrado, mutilado. E disse não, não quero mais, quero a minha liberdade. E o Gilberto me dava essa liberdade, porque ele nunca disse que música regionalista era errada. Já o Guarnieri dizia: música atonal, não serve. Era muito dogmático, o Guarnieri, e o Gilberto não. Não existia proibição com o Gilberto Mendes, e com o Guarnieri elas eram severas. Então ele era um pouco como meu pai. Meu pai tinha mania de dizer assim: Você não vai ao cinema. Eu dizia: E por que não? Eu tenho dinheiro! E ele: Porque eu não quero. Eu não admitia isso já aos dez anos, e meu pai ficava pê da vida, porque eu era desobediente. O Guarnieri começou a parecer meu pai, me castrando. E nessa ocasião eu estava fazendo psicanálise em Santos, e meu analista gostava da minha atitude. Achou que foi uma coisa de dentro de mim. Nesses anos em que fiquei com o Gilberto Mendes, informalmente, comecei a compor autodidaticamente. Quando fiz o Concurso Guanabara, em 1969, ganhei o primeiro prêmio e com o dinheiro me mandei pra Europa. Fui sem bolsa, lá eu consegui uma. A música atonal era como se fosse uma porta nova por onde eu não podia entrar. Eu achava ótimo se não me entendessem. Para mim, era chique ser incompreendido. Mais tarde é que eu revi essa posição, mas na época eu sentia assim. Stravinsky foi vaiado, eu fui vaiado... Na minha juventude eu achava isso uma maravilha.

RBP O que é que a música tonal não podia dizer?

Almeida Prado A atonal era a ruptura. Não tinha mais tônica, era um discurso contínuo, e o que orientava a bússola era a textura. Você podia ir aonde quisesse, o caminho era que fazia o rumo, não precisava mais voltar para casa. Isso é muito simbólico. É uma nova identidade, me fez um bem enorme. Eu tocava aquela música e ninguém entendia, ficavam em silêncio, e eu nem queria mesmo ser entendido. Mas quando cheguei em Paris e toquei minhas músicas moderníssimas, aqueles franceses diziam assim: É démodé. E eu espantado: como? Estou fazendo série e é démodé? Achei aquilo um insulto. Agora que eu tinha descoberto que não era mais tonal, eles estavam querendo voltar ao tonalismo, voltar ao pré-minimalismo. Eu estava lá, correndo pra pegar o trem, e eles já tinham descido.

Um dos primeiros a questionar a utilidade daquele atonalismo cerebral foi Luciano Berio, que compôs a Sinfonia em 1968. Quando cheguei em Paris, em 1969, o must era ele, porque ali tinha um acorde de sétima diminuta, ali usava uma citação do Mahler. E eu querendo fazer uma música de 1923, como o Schoenberg, toda atonalzinha. Eles olhavam e diziam: Démodé, Prado! Aí comecei a me perguntar: Então aonde é que eu vou? Porque, em Paris, eu tive a capacidade absurda de estudar com mestres de orientação oposta. Segundo a psicanálise, eu quis isso, mas não conscientemente: Nadia Boulanger, Olivier Messiaen, Annette Dieudonnée. Eu queria, acho, o martírio. Lembro que eu fazia uma obra e a Nadia falava assim: Trop Messiaen. Eu então mostrava a mesma obra para o Messiaen e ele dizia: Trop neoclassique.

Comecei a achar que não era mais compositor, que aquilo era inútil, que eu devia vir para o Brasil, trabalhar numa fazenda de café, porque o resto não tinha sentido. Foi quando o Messiaen disse: Você precisa se voltar para a rítmica brasileira, para Villa-Lobos, fazer outra coisa, não folclore, esquece toda essa velharia, pensa no seu país, na flora, na fauna. Comecei a pesquisar uma coisa do candomblé: uma coisa minimalista, a simplicidade de intervalos que se repetem. Não volta nunca, não tem um leitmotiv, não tem um tema. Compus então uma obra chamada Táaroa; é uma deusa da Polinésia, não me lembro se ela é homem ou mulher – uma imagem, um totem. Coloquei um tema serial melódico e um tema de acordes, numa tentativa de acordes com dois temas. Haydn tinha feito isso muito bem; Beethoven, não. Ficou uma obra muito interessante. Aí fiz uma experiência de compor um oratório com texto do Henry Doublier; era o quarto centenário do Villegagnon, recebi a encomenda do governo francês. Eu pude colocar nesse oratório os elementos tonais que eu havia abandonado por motivo de dramaticidade. No fundo, o que eu queria era conciliar o que havia abandonado e o tonalismo com o mais moderno, e aí consegui uma fusão do atonal com o tonal que funcionou. Na volta ao Brasil, fiz as Cartas celestes, que acho a minha obra mais importante – me fez sair da crise. Consegui usar as ressonâncias de dó maior, sem ser Beethoven, os harmônicos dó, dó, sol, a série harmônica, trabalhar a coisa meio estática, com momentos seriais e de ressonância, quer dizer, uma fusão feita muito mais intelectualmente. Como se fosse um Heureka!, encontrei um caminho novo.

RBP Como é o seu momento de criação, o que se passa com você?

Almeida Prado Primeiro, preciso ter alguma coisa que me excite, que suscite algo dentro de mim, ou uma encomenda, e aí é fora de mim. Ou eu mesmo de repente sinto a necessidade de dizer no papel, como um poema que você faz em música. Começa sempre com muito pouco, três notas, um acorde, uma série de acordes. Fica ali na mesa, eu olho, toco... Aquilo ainda não é meu. De repente, uma manhã, uma tarde, a coisa vem inteira. Com esse “vir inteiro”, eu poderia dizer que a obra está composta, mas não nasceu: se eu não escrever, vou morrer com ela dentro de mim. Mas não está completa nitidamente, meticulosamente, sei que está dentro daquele fuá, e que posso escrever. Aí, não tenho mais crise. Fico senhor absoluto da minha obra. Só que até eu começar, aquele papel pautado me dá uma angústia, tem hora que dá vontade de rasgar tudo. Ele fica me dizendo assim: Você não vai conseguir, você não é compositor. É coisa de pirar, são vozes que dizem para eu não fazer. Mas eu faço.

RBP Pierre Schaefferé seu contemporâneo?

Almeida PradoÉ bem mais velho do que eu, foi criador da música concreta.

RBP Ele dizia compartilhar repetição e variação. Qualquer coisa sonora que tenha repetição torna tudo muito parecido. Quando você toca uma música serial, ela te parece sempre igual?

Almeida Prado Beethoven compunha da mesma maneira que o homem da taverna cantava para tomar vinho. Não existia esse “Eu sou tonal”. Ser tonal era óbvio. Só que você podia ser tonal genialmente, como Beethoven, ou ser medíocre. Você ouve até o Tristão do Wagner, que é uma ruptura, mas está cheio de cadências tonais, está cheio de pontos de repouso. É que o cromatismo é tão grande, que dá a impressão de que é atonalismo. É um tonal cromático, mas tonal. Agora, quando Schoenberg, de boa vontade, resolve botar o cromatismo com a série, quando compôs a Noite transfigurada, que é uma obra-prima, não tinha preocupação com nada disso, por isso é que todo mundo toca e ouve. As primeiras peças para piano dele são um atonal livre. Quando ele começa a organizar, fica chato, fica uma coisa ortodoxa. No fundo, ele queria mesmo era fazer Brahms.

Vejo nos meus alunos da Unicamp que eles não têm a menor preocupação em ser brasileiros, aquilo que o Guarnieri tentava incutir em mim. Eles estão planetários, têm o computador, escrevem direto no computador, não escrevem mais à mão, o que é uma pena. E têm uma cabeça que pensa assim: Isso que eu faço hoje, amanhã não vai existir mais. Eles são todos dessa geração do efêmero e do rápido. Eu achava que a minha música ia ficar para sempre. Achava igual ao Gilberto Mendes, igual a todo mundo. Que, aos 64 anos, a minha música, que está na partitura, nunca mais iria morrer. Os alunos estão lá na rapidez deles, querem fazerjingle, fazer música descartável para cinema, fusion... Não consigo mais passar para eles uma estética nítida, é um multitudo. Eu tinha uma linha com Gilberto Mendes e uma linha com Guarnieri, era uma linha nítida. Tentei uma fusão, consegui isso na minha música, mas às vezes eu também tentava um pós-Chopin, um pós-Mendelssohn, pra ver se seduzia a minha platéia, se seduzia os alunos de conservatório... Porque não tocam as Cartas celestes, não tocam minha música atonal. Quase ninguém toca.

Não sei se isso não foi uma rua sem saída, talvez sim. Eu não via outra solução a não ser pós, pós. Stravinsky, depois do Sacre, vai visitar Pergolese, Tchaikovsky. Taylor andou de estilo em estilo, porque dizia que depois de visitar o Sacre ele não podia mais compor. Será que Beethoven teve essa crise com a Heróica? Porque é uma ruptura com tudo o que vinha antes, uma profecia. Só que em Beethoven as grandes rupturas vão acontecer nos quartetos, nem é nem nas sonatas para piano. Na Grande fuga parece que eu estou ouvindo música eletrônica, é um caos organizado. Tenho a impressão de que quem escreveu aquilo foi o Schoenberg. Quando Boulez estudou com Messiaen, o Messiaen fez uma obra capital, chamada Modo de valores e intensidades, uma obra para piano em que ele teve um insight da música eletrônica. No piano. Quando Boulez, Stockhausen, jovens águias, descobriram aquilo como uma nova possibilidade, seguiram por esse caminho. Boulez deu de bandeja para nós o testamento de tudo o que a série pode dar, e veio então o pós-serialismo. A coisa se tornou quase impossível de tocar e se converteu em eletroacústica. Porque na eletroacústica você pode fazer o que quiser. O Messiaen ficou em crise. Ele dizia: Sou eu o responsável por isso que está aí, eu não queria isso, era só um exercício de classe. Você vê, alguém lança uma idéia e não aproveita, o outro é que vai aproveitar, e de uma outra maneira. A música do Messiaen sempre soa agradável acusticamente. Aonde ele foi buscar inspiração? Nos pássaros. Porque de certa maneira os pássaros cantam serialmente, e aí ele usa esse canto com texturas modais, uma música estática, que dura às vezes uma hora e meia. O Boulez continuou compondo esse tipo de música, até chegar um momento em que ele não tinha mais como, não dava mais, porque a orquestração soava oca. Começou a reger Mahler, Stravinsky, Beethoven. Entrou em crise, e com ele toda uma geração, que agora faz quase tonal – aí nasceu o minimalismo. Que vem de onde? Da repetição. Philip Glass, foi aluno da Nadia Boulanger, como todos foram, Copland, Penderecki. Dizem que um dia a Nadia disse para o Glass: Pegue os seus exercícios de harmonia e comece a tocar sempre igual. Ele começou, e assim nasceu a coisa. Philip Glass, com as suas pequenas variações, variações mínimas, é contra Boulez, que seria a repetição. Voltaram as tríades, as cadências, que tinham ido parar no lixo, para horror do Boulez.

RBP Talvez até por causa da mística, está havendo uma reconciliação com gente como John Tavener e Arvo Pärt, em que se retoma um contato com a espiritualidade.

Almeida PradoUma nova simplicidade: Arvo Pärt, Tavener, Gorecki. Existem compositores medíocres e existem compositores geniais. Minimalismo ou tonalismo não faz ninguém genial. Se você embarca no minimalismo pela facilidade, ele vira uma rua sem saída. Philip Glass, quando não é comercial, quando está inspirado, é uma beleza. A grande sacada foi quando o Messiaen começou a praticar aquele som contínuo, de cítara, que apareceu na década de 60, criando essa aura mística, a coisa de levitar, de sair da pulsação. Pulsação é isto: 1, 2, 3, 4, 1, 2, 3, 4. Agora, se eu faço taaaaaaaaaaa, não tem pulsação. É macrotempo. Eu entro no tempo eterno.

Pensando na literatura, eu posso comparar com o quê? Não sei se existe uma literatura minimalista. Existe? Agora, um filme minimalista é O ano passado em Marienbad. Foi a primeira vez que um cineasta repetiu várias vezes a mesma cena, e eu não entendia aquilo. Hoje, se você for ver, está atual. Não ficou démodé. Acho que ainda vai surgir uma época de fusão de tudo isso, eu tenho essa impressão. Não sei se nós pegaremos isso porque tudo pode ser posto em causa, em dúvida. Não sei se na psicanálise é assim. É? Não é tudo tão certo como se pensava. Lacan não é a verdade absoluta, Freud tem várias releituras. (Eu não sou psicanalista, mas gosto de ler.) Não há nada que te dê um sofá pra você botar o braço, e isso é bom: você não dorme. A crise é boa, mas dói. A ferida fica. Eu convivi muito com a Hilda Hilst, minha prima. Os poemas dela, os trabalhos, são uma maravilha. No final da vida ela dizia assim: Vou escrever o que mais? Ela estava tão cansada que resolveu escrever livros pornográficos, horrendos, pra ver se o povo lia. Eu disse: Hilda, o povo vê Tititi, novela, Big Brother... Se você escrever palavrão, vai parar na Sorbonne. E foi mesmo! A mística pornô da Hilda virou tese, ela ficou p. da vida. Nem na banca da esquina vão ler os meus livros. Porque o pensamento dela era sofisticado, era elitista, não tinha como. Eu tentei fazer minha música ser popular – não dá. Porque acaba ficando simples, mas continua a ser sofisticado. Não tem jeito, é para poucas pessoas. Você está condenado a falar para poucos.

RBP Beethoven fez coisas muito sofisticadas. No tempo da Heróica ele era quase um ídolo pop, e era sofisticadíssimo. O que aconteceu? Por que hoje nós nos descolamos dos níveis de representação da vida cotidiana das pessoas?

Quando você liga a sua televisão, a tv que pega no mundo inteiro, o que você ouve, seja em novela da Globo ou da Record, é música tonal. Anúncio de carro é tonal. Nunca vi anúncio com Schoenberg nem com Boulez. Depois, o que se costuma chamar de popular, música de rodoviária, é o que há de mais elementar, parece a mesma música sempre. O Beethoven podia fazer música altamente filosófica e não era tão diferente do homem que era sapateiro, que podia cantar essa música perfeitamente, sem a sofisticação do Beethoven. Isso começa quando Debussy fragmenta, dando a impressão de uma música não inteira, já começando a abstrair o grande arco: o começo e o fim, e ficou atonal. Atonal não se memoriza: ninguém sai de um concerto assobiando Schoenberg. Aí começaram a idolatrar: quanto mais fragmentado, quanto mais ininteligível, melhor. É o que eu também achava no começo, era bom quando ninguém entendia. Meu pai falava assim: É pra entender? E eu dizia: Não, papai. Pobre é que entende, e eu não sou pobre, eu sou um gênio. Eu quero ser lembrado daqui a duzentos anos. Ele: Pra que você faz esse troço aí? Ninguém compra, ninguém ouve. Meu pai era muito pé no chão. Era de Jaú, do interior, um homem rural, e no final da vida dele eu lhe dei razão. Eu brigava com ele e dizia: Eu não era Ari Barroso. Ele: Mas pelo menos compram a música do Ari Barroso, né? E o Gilberto Mendes sentiu isso num momento da estética dele, que era altamente atonal. Entramos também num outro impasse: se eu faço um discurso igual a Chopin, Chopin é melhor do que eu. Porque Chopin foi o primeiro a fazer e, na verdade, era moderno; estava indo para o futuro e eu para o passado.

Quando, por exemplo, o Picasso pinta uma figura, acho que ele está sendo atonal, quer dizer, você olhava uma mulher pintada, que era aquela perfeição fotográfica, podia ser gorda ou magra, nova ou velha, mas era uma mulher belíssima. Quando Picasso põe três olhos e fica aquela coisa cubista, as pessoas falam: É um horror, isso é estética do horror. Quando, por exemplo, o Stravinsky fez o Sacre du printemps com três melodias, cada uma numa tonalidade, aquilo soou como o Apocalipse. O próprio Stravinsky ficou tão chocado que logo depois fez a Histoire du soldat, que tem soldado, tem marchinha. É como Wagner, que depois de fazer Tristão, com todo aquele cromatismo, com a dissolução da tonalidade, se sentiu num beco sem saída, sem saber como continuar, e voltou a fazer tonal, nos Mestres cantores, no Anel. Veja, Carmem é uma ópera de público. Brahms, que é hermético, adorava o não-hermético de Bizet. Dizia que queria ter escrito Carmem. Fiquei estupefato quando li o Brahms dizendo isso. Ele queria ter feito a habanera, sentiu que a música dele não tinha o público do Bizet. É como Wagner querer ser um pouco Verdi, que tinha o público na mão. La donna è mobile, por exemplo, é genial, mas é música de opereta. Acho que não depende do compositor ter esse dom do simples, popular, não adianta você querer ser isso. Você tem que ter. O Brahms tinha de ser hermético e genial como foi. Beethoven tinha inveja das óperas de Mozart, porque elas fluem de uma maneira tão grandiosa e, ao mesmo tempo, tão natural. Já ele fez Fidélio, que não tem nada de popular, você põe em cena e aquilo não anda, não era a praia dele, mesmo ele sendo um gênio. Beethoven era mesmo instrumental.

Bem, e na minha idade eu já devo saber que eu fiz o que fiz porque foi o que eu pude fazer. Não vou ganhar muito dinheiro com a minha música, que não tocam muito. As encomendas também são poucas. Uma vez eu queria ganhar algum dinheiro com o que eu compunha, mas meu disco não vendia, a minha sinfonia não era tocada. Fui num estúdio em Ribeirão Preto e disse: Escuta aqui, eu vou gravar duas horas da música de rodoviária. O rapaz tocou para mim as que ele tinha, eram bem ruins, péssimas. Fiz então as minhas e fiquei com a ilusão de que ia estourar na parada de sucesso Aí, quando ele tocou para pessoas do ramo, elas disseram: Mas que coisa ruim! Aí eu desisti, porque eu queria ser banal e não conseguia. Foi como aconteceu com a Hilda. Ficava sofisticado, ficava pós-moderno, minimalista, mas não ruim, esse ruim necessário para ser vendável. Mas a gente nunca sabe o que pode acontecer. Uma vez eu vi um quadro, um quadro imenso, azul, e só tinha azul, parece que o título era Blue. Eu pensei: Será que não vai ter outro, o yellow? Era uma peça única, oito metros de mural azul. Não daria para ser feito também em verde, preto ou branco. Ficou como obra única, não teria filhos, era estéril. O pintor não poderia continuar nada a partir dela. Como o Sacre, que não teve continuação. Tudo se esgotou ali, tudo. Obra única, isolada. Seria como o escritor de um livro só, de um poema só, não sei. É como ter um insight, mas que não se pode continuar. Veja, Joyce foi um revolucionário, mas quem lê Joyce? Poucas pessoas. Quem lê Lacan? Não foi um gênio, foi um homem inteligentíssimo, veio com uma coisa nova. Mas não dá para vender na esquina, são coisas muito elevadas. Será que a arte tem que ser assim, sempre para poucos?

RBP Um ótimo livro pode ser relido algumas vezes, um filme ótimo pode ser visto duas ou três vezes, mas você pode ouvir uma boa música dezenas de vezes, infinitamente. A que você atribui essa diferença? O ouvir permite, mas o olhar, não. A poesia permite também, mas a poesia tem um parentesco muito grande com a música, a poesia é a música em literatura.

Almeida PradoEu acho o seguinte: a linguagem da música é abstrata, atemporal, não sofre o desgaste que a palavra sofre. E não só isso. Por exemplo, na Nona Sinfonia de Beethoven, que é um monumento, até a entrada do coro ela é pura música, ela não se desgasta, não tem palavras, tem alturas e ritmo. Quando entra a famosa melodia que Beethoven elaborou duzentas vezes até resolver – foi o tema que ele mais reelaborou –, fica quase híbrido. Ele queria um tema que não tivesse cara, vai botando a cara aos poucos, vai reduzindo o interesse do tema até ficar nada... e aí vem aquele texto em alemão. Eu ouço é música! Se vou a uma ópera do Wagner, eu entro no fluxo, não interessa o que Isolda está falando. Eu sei que ela está com Tristão no jardim, que o rei vai chegar e interromper, mas o resto todo é sonoro. Eu posso não entender alemão, mas não importa. Quando você junta palavra e música, a palavra já perde. Curioso, quando vou musicar uma canção, eu já sei que, ou eu faço uma declamação gregoriana, para o texto ficar grandioso, ou então eu vou depender da articulação da cantora, porque ninguém vai entender o texto. Agora, se eu declamo um poema, aí é teatro. Veja Otelo, que o Verdi transformou naquela ópera maravilhosa: você vai no fluxo do ciúme. Só que é Otelo, é teatro, aí você tem a palavra soberana, e então pode criar uma música incidental de fundo, cantada.

Outro dia passou um filme alemão na televisão que mostrava o Beethoven ensaiando a Heróica, quando ela ainda era dedicada ao Napoleão Bonaparte. A orquestra era amadora e o ensaio estava sendo realizado na casa do arquiduque, com Beethoven ainda não muito surdo. O Haydn chega de bengala, tremendo (fizeram um Haydn muito velho), senta numa poltrona com mil almofadas e pergunta: Começou? Como? Ainda é o primeiro movimento? Mas isso é uma aberração, um insulto aos ouvidos, está louco? E agora, acabou? Não, tem a marcha fúnebre. E desde quando sinfonia tem marcha fúnebre? Pois tem. Mas e por que não começou com o tema? Ele não entendeu que era uma passacalha com chacona. Quando acabou, Beethoven foi beijar a mão do mestre e o Haydn diz: Beethoven, você realmente é único. Eu não gostei dessa obra, mas declaro a todos aqui presentes que hoje a história da música mudou. Nunca mais será a mesma! Hoje você ouve a Heróica sentado numa cadeira e não cai no chão. Mas pensem bem como foi na época... As sinfonias demoravam vinte minutos no máximo.

RBP Tem havido atualmente um grande interesse por Shostakovich, que vem sendo bastante tocado, mesmo aqui em São Paulo. Como você o vê?

Almeida Prado Bom terem me perguntado isso. Shostakovich foi um dos compositores mais prejudicados da história da música, um gênio que não pôde ser todo o gênio que poderia ter sido, por causa de um regime completamente cego, o regime implantado pelos ditadores do Partido Comunista da época. Ele tinha que fazer a música dita “para o povo” e foi o que ele fez, mas jamais o povão vai entender aquilo. De tão gênio que era, ele conseguiu, apesar de tudo, fazer se não me engano catorze sinfonias maravilhosas, sempre tentando, com aquele material pobre que é tonal, supertonal, criar a sua obra, deslumbrante. Mas eu me pergunto: será que, se ele tivesse liberdade total, teria feito o que fez? Será que lutar com tantas restrições não o ajudou a ser um criador maior ainda? A música dele é amada e respeitada no mundo inteiro.

RBP É como o que se costuma dizer de Beethoven, que a genialidade dele está, por exemplo, no que ele fez dentro dos princípios da sonata, isto é, a fórmula é estrita, mas é dentro dela que existe a ruptura. Se não houvesse a fórmula, não haveria Beethoven?

Almeida PradoBeethoven não mexe no tema A, no tema B, nem no desenvolvimento. Ele mexe na harmonia. Isso ninguém tinha feito antes. Foi um escândalo, a ruptura estar na harmonia, não no tema em si. No final das últimas sonatas é que ele insere a fuga – em sonata nunca tinha havido fuga antes. Uma coisa nova, não é? E na Nona Sinfonia, ele põe um coral com solista. É uma ruptura muito grande. Nos quartetos, Beethoven mexe muito mais com a forma. Nos últimos quartetos, até para analisar é difícil. Nos primeiros, o tema é A, B, ele não tem necessidade de romper com a forma.

RBPEssa ruptura dá certo porque corresponde a uma ruptura de mundo. Não faz sentido apresentar o mundo novo de um modo velho. As pessoas vão percebendo que aquilo faz algum sentido, nitidamente. É um escândalo que se absorve, que navega nos tempos, nos ouvintes. Ninguém tem dificuldade de ouvir boa música, ela não propõe perplexidade, propõe que você raciocine sobre que mundo afinal é esse em que vivemos. A música é uma linguagem, a música é um pensamento. Como você vê que a música terá que se encaminhar, ou como você quer encaminhar sua música? Qual é o impasse atual na música, qual é a obscuridade que está pela frente?

Almeida Prado Penso no Pierre Boulez, que é mais um gênio como compositor do que como pensador. Faz análises importantes, geniais, os livros são fantásticos, você pode se acomodar numa velha poltrona do lado da lareira e não vai ter sobressalto. Anestesia você. Para Boulez, voltar ao passado é cômodo, ele detesta tudo isso. Eu também acho cômodo, mas não estou vendo o futuro da música com muita nitidez, não. São tantos os caminhos atualmente! E se você lembrar que não são feitos muitos cds de música contemporânea... Lá na Fnac não tem, na Laserland não tem. Eu faço um programa na rádio Cultura que se chama Kaleidoscópio, a música contemporânea com Almeida Prado.Eu procuro cds, às vezes desesperado, e quase não tem. Não é só porque não importam, na Europa também não tem. O cd vai acabar, de cinco anos para cá tem ficado tudo no computador. Meu editor na Europa faliu, nem me responde. Lição de música se tira pela internet, em casa você imprime. Então, para que comprar uma música na Alemanha? Eu tenho 80% da minha obra na Alemanha, num porão úmido, nem querem me devolver, não posso dar para ninguém tocar. As poucas que tenho, eu xeroco e tiro o nome do editor, porque ele nunca mais me pagou e desapareceu. E até com uma razão, ninguém compra, tem a internet. Um aluno meu tem toda obra de Brahms em casa, eu não tenho; tem de graça, porque já é domínio público.

Me contaram que existe um blog Amigos de Almeida Prado, em que falam de mim e eu nem estou sabendo que estou lá, que estou sendo falado. Dizem: O Almeida Prado, quando fez as Cartas celestes, foi a Urano... Eu nunca fui a Urano! Ele foi sugado por um disco voador... É uma instalação de palavras, eu nem sei de onde vem isso, eles se divertem, é scrap. É um tema, um assunto, eu podia estar morto, tudo podia ser uma invenção, é esse mundo... Como é que você pode levar a sério? Tanto faz para um jovem, porque ele fala assim: oi, tá, fica. Mas fica onde? Vou, não tem, fui. Outro dia um aluno meu falou: Ah, isso já era, isso é da hora. Eles não lêem. Nenhum jovem lê. Os livros estão lá. Agora, ler Paulo Coelho, é melhor não ler nada, porque é um escândalo aquela bobajada toda, e ele é lido no mundo inteiro, é traduzido. O que é isso? É nível tititi, é o cara na glória. Auto-ajuda, então... Qualquer pessoa escreve Seja feliz em três dias, Ganhei dinheiro em dois dias. Isso vem dos Estados Unidos. Como é que seria psicanálise em uma semana? E você fica curado? Não sei também do quê! Mas esse é o nosso tempo. Como é que se pode mudar tudo isso, eu não sei. Eu ainda dou aula no piano, e quando mando escrever à mão, o aluno reclama: Mas à mão, professor? Eles já trazem tudo impresso. Você vai corrigir como? Eu chego diante do computador e... Mas não é como escrever à mão. A caligrafia na música é como a caligrafia de uma carta, você analisa uma pessoa: a letra que cai, que sobe, que treme. Hoje é tudo perfeito, é uma máscara, você se esconde ali, e então nunca vê os seus buracos. Eu vejo os meus quando escrevo à mão; um jovem não vê os dele. Um aluno meu fazia aula de orquestração e depois trazia a música toda, com todas as partes de orquestra, piano, violino, violoncelo... Porque a máquina dá tudo, nem tem o trabalho de copiar. Aperta o botão, sai violino, aperta outro, sai clarineta, o que você quiser. E, além disso, nenhuma orquestra atual toca uma obra se for manuscrita. Mesmo que a partitura esteja muito nítida, só tocam se for impressa pelo computador.

Eu penso muito no silêncio na música. Beethoven é cheio de silêncios. O silêncio da música pode ser como a respiração. Num monólogo exaustivo, você se cala para respirar e tem o silêncio dramático da pontuação. Nas aberturas, que é para chamar a atenção. Mozart não usava isso. Beethoven vem conscientizar o silêncio. Eu uso na minha música o silêncio, mas não quero que o público aplauda, pensando que acabou. Sabe o artifício que eu uso? Coloco um som – um violino, um vibrafone, quase nada – apenas para impedir a pessoa de pensar que acabou a música. É uma faixa, um som neutro, sem expressão nenhuma. Isso eu chamo de silêncio sonoro. Uso muito, e funciona. Vocês sabem que agora na Sala São Paulo não tem mais aquela gafe de aplauso depois do primeiro movimento. O Neschling botou em ordem isso. Porque incomoda. Porque, na concepção de uma sinfonia, ela é só um movimento, são quatro atos de uma peça. Agora, se aplaudem, acabou o mistério. Em ópera é curioso, pelo menos nas óperas de Verdi: acaba a ária, a mulher está morrendo... mas levanta da cama, agradece os aplausos e morre de novo, e se for bis então... Wagner foi muito inteligente, não tem ária, é melodia contínua. Isolda toma a taça dos desejos, por exemplo, e depois ninguém aplaude. Mas em Verdi, a heroína morre, agradece e ainda mostra o barítono, e aquilo continua. Mas para mim já acabou, é show de televisão. Mas não se pode mudar isso, porque os que gostam de ópera assim formam um clube, são de outra humanidade. Eles entram na Fnac e compram tudo de ópera, aqui, nos Estados Unidos, na Europa. A pessoa já tem dezoito versões de Madame Buterfly e está procurando mais alguma. No teatro, fulano namora fulana e eles vão sempre aplaudir naquele determinado momento... Já se você dá um recital, quando termina um prelúdio de Bach, por exemplo, não pode ter aplauso, quebra, e é chato pedir silêncio, é pior. O público precisa ser educado para isso, para esperar acabar a música e então aplaudir, senão rompe a ligação.

RBP Às vezes o ouvinte também pode querer se fazer ouvir. Nos intervalos das sinfonias, quando as pessoas tossem, elas podem estar querendo se manifestar. O Barenboin costuma olhar feio quando isso acontece; deixa muito claro que não é pra tossir...

Almeida Prado Existe aquela peça do John Cage, chamada Quatro minutos... com uma versão para piano que eu toquei num festival em Santos. O pianista entra, senta no banquinho, faz o gesto de que vai começar a tocar e fica totalmente imóvel, feito uma estátua, não pode mexer um músculo. Parece que vai tocar e não toca. Existe também uma versão para grande orquestra: as partituras estão em branco, e toda a orquestra faz o gesto de que vai começar a tocar mas fica imóvel, inclusive o maestro, é fantástico. Se a mão dele cai, acaba tudo. É também uma grande ironia do compositor. Eu acho as músicas preparadas para piano do John Cage interessantíssimas, aquelas que ele compôs na década de 40. É um negócio muito original, mas ficou à parte. O Cage é um compositor marginal, não dá pra dizer que seja continuador de ninguém. É uma figura como o Satie, que incomodava todo mundo, ia contra a intelectualidade francesa, que era chique, pensante. Ele era zero. Eu acho muito importantes essas figuras isoladas.

RBPVocê ouve de ópera?

Almeida Prado Sim, ouço. Já pensei em fazer ópera, mas não foi possível por falta de grana. Leva muito tempo, é preciso pensar na orquestra, nos cantores, no texto, no cenário, pode levar semanas. Ninguém quer arriscar. Eu tinha um projeto de fazer a Chica da Silva, por ser uma coisa colorida que poderia ser sucesso na Europa. A negra que virou rainha, o barco tipo Cleópatra. Foi na época do filme; me deram o texto em francês, mas eu não consegui fazer aquilo em francês, não deu. Depois pensei em fazer Macunaíma, mas quando vi o espetáculo no teatro, tinha tanto personagem! Ia ser impossível. E tive um outro projeto, fazer Teresa d’Ávila. Quem sabe, um dia... Agora, canção eu fiz muitas; é uma ópera em miniatura, numa canção você pode dizer tudo. Mas a ópera tem que ter grandes momentos, coral, a orquestra pura, trama, senão cai a peteca. Tem que pensar nos cantores, no texto, no cenário, pode levar semanas. Ninguém quer arriscar. Verdi é um gênio da ópera. Você assiste Madame Buterfly e a peteca não cai nunca. Carlos Gomes é um grande compositor de óperas. Agora, Wagner é especial: é uma celebração. Você fica sete horas em Tristão, precisa de inúmeras horas para Parsifal e tudo bem. Eu estive em Bayreuth. As cadeiras são de madeira, sem almofada, haja traseiro. As americanas levam uma almofada na bolsa. Não tem como esticar as pernas. Não sei se as pessoas eram pequenas, mas o fato é que você fica todo encolhido. Ou então queriam mesmo era adoração, porque é como uma igreja, não tem nada de confortável. É uma penitência. Mas é um teatro como eu nunca pensei que pudesse existir. Um teatro tão lindo que você não vê o fundo dele. Quando Siegfried entra a cavalo e surge lá do fundo... É Hollywood total. O poço não é reto, é para baixo, os músicos da orquestra ficam em degraus, o primeiro violino, as violas... Quando chega a tuba, já é lá embaixo. E você ouve tudo, porque o chão do teatro é de aço perfurado, como uma peneira, e o som vem lá de baixo do cantor, e se cria então um amálgama que nunca abafa quem está cantando. É o melhor lugar para ouvir uma ópera de Wagner.

RBPE Mozart como compositor de óperas?

Almeida Prado É onde ele é mais genial. Porque Mozart, mesmo quando ele faz concerto para piano, a peça é uma ópera instrumental. Quando faz música para piano, ele pensa em ópera ali. Beethoven pensa orquestra: orquestra no piano, orquestra no coro — as sonatas de Beethoven são orquestra. Agora, na ópera, ninguém bate Mozart. Don Giovanni é sublime. Così fan tutte, Figaro, tudo puro deslumbramento. Ele tinha oito anos e já fazia ópera, como é possível? Para quem acredita em reencarnação, que é o meu caso, acho que Mozart já veio feito, pronto, de bandeja. Acho que ele é um grande mistério. E o Réquiem inacabado? Para mim, o Réquiem acaba no ponto em que Mozart chegou. O aluno, Süssmayr, pegou elementos do próprio Mozart e terminou a peça, então a obra fica de pé, mas eu ouço o resto e acho que não é Mozart. Quando a Lacrimosa acaba, acaba Mozart. E é curioso, uma das estrofes termina em homo reus. Judicandus homo reus, o homem será julgado.

RBP Bem, tivemos uma linda conversa, para todos nós, sem dúvida. Muito obrigado.

 

 

* Entrevista realizada em maio de 2007, na sede da SBPSP, com a participação de Chulamit Terepins, Cíntia Buschinelli, Ignácio Gerber, Lepold Nosek, Maria Ângela G. Moretzsohn, Maria Aparecida Q. Nicoletti, Maria Elisa F. Pirozzi e Sonia Soicher Terepins.

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