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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.41 n.3 São Paulo set. 2007

 

DIÁLOGO

 

Isaias Raw: entrevista*

 

Interview: Isaias Raw

 

Entrevista: Isaias Raw

 

 

Isaias Raw (São Paulo, 1927) é médico e cientista. Publicou 99 trabalhos originais em revistas internacionais, 215 comunicações científicas e dezesseis livros. É professor emérito da USP e foi professor visitante da Universidade Hebraica de Jerusalém, do MIT (Massachusetts Institute of Technology) e da Harvard University School of Public Health, além de professor do Center Biomedical Education do City College of New York. Foi um dos fundadores das editoras da Universidade de São Paulo e da Universidade de Brasília, assim como da Funbec (Fundação Brasileira para o Desenvolvimento do En­sino de Ciências), da Fundação Carlos Chagas (onde criou o Cescem, o vestibular unificado de me­dicina), da Fundação Butantan e da Fundação Sardi. Foi também um dos fundadores do curso de medicina experimental da USP. De 1996, foi diretor do Instituto Butantan. No período de 1985 a 2002, fundou e dirigiu o Centro de Biotecnologia do Instituto. Atualmente preside a Fundação Butantan.

 

rbp Gostaríamos de ouvi-lo falar sobre esta sua trajetória tão multifacetada. Como você chegou à medicina?

Isaias Raw Na verdade, eu sempre quis trabalhar como pesquisador, não propriamente como médico. Comecei a me interessar por ciência já na adolescência, quando li um livro de química farmacêutica de um tio, médico. Também havia lido um livro muito interessante sobre a história de Pasteur. A Faculdade de Medicina da USP me atraiu porque oferecia laboratórios e permissão para trabalhar em pesquisa em tempo integral. Nunca assisti a muitas aulas lá, eram sempre as mesmas; muitas vezes, era melhor ler um livro bom do que acompanhá-las. No prédio da faculdade, que foi construído com luxo, cada departamento tinha um andar, cada professor tinha três assistentes. O grande sonho era ser professor, nada mais que isso. Ter um laboratório e fazer o que você quisesse, isso já era um privilégio.

Para atender às necessidades sociais na área da saúde, a única forma é dar liberdade e estímulo aos jovens que ingressam na pesquisa. Quando se tem um chefe que orienta, já é uma grande vantagem, o que não foi o meu caso. Meu chefe era uma ótima pessoa, mas não fazia pesquisa, então eu comecei sozinho. Havia alguns professores estrangeiros que foram o máximo. Vários tinham fugido da Europa antes da Primeira ou da Segunda Guerra. Alguns vieram para o Brasil, outros foram atraídos diretamente para os Estados Unidos. Isso também se passou na Faculdade de Filosofia. Eles deram a base para o desenvolvimento das ciências biológicas aqui. Na época, o Carlos Chagas já era uma pessoa importante e conhecia bem o pessoal da Fundação Rockfeller, que naquele tempo era uma coisa bem pequenininha, mas tinha muito dinheiro e patrocinou muito a Faculdade de Medicina, desde a construção. Eu lembro que trabalhava lá o profo. Dustin Miller, que tinha um faro especial para escolher o pessoal da genética. Uma vez eu o encontrei na faculdade e ele me disse:“Venha comigo, venha ver o que aconteceu com um aparelho que financiamos…” Descemos até a Fisiologia e encontramos o tal aparelho ainda encaixotado. Havia chegado fazia dez anos… Essas coisas aconteciam.

rbp Como o senhor passou a se preocupar com as questões da educação no país?

Isaias Raw Naquela época a situação do ensino de ciências no Brasil era muito precária. Na maioria das vezes, os equipamentos que vinham da Europa ficavam guardados em armários e os alunos só podiam olhar para eles. Ou então o aluno usava o equipamento para demonstrar uma experiência, não para fazer uma experiência. Geralmente demonstrar uma experiência não funciona, ainda mais no caso de um equipamento daqueles, feito para nunca dar errado. Então não se aprendia nada. Nas escolas religiosas os laboratórios eram trancados, só existiam para serem mostrados, porque a ciência muitas vezes entrava em conflito com a religião, tornava-se um pecado mortal. Os mesmos livros eram usados no Brasil inteiro, todo mundo lia o mesmo livro. Podia ter autores diversos, mas o conteúdo era sempre o mesmo, e os erros também. Mas nunca se questionava nem o livro nem a informação do professor, de maneira que se formava toda uma geração que sabia responder de cor o que era folha lisa, folha oposta, folha serrilhada, só que na verdade não sabia nada, não entendia como funcionava a ciência.

Entender ciência nem é só para o cientista. O melhor modo de aprender ciência é com materiais muito simples, experimentando, procurando saber por que algo deu errado ou deu certo, pensando: “Eu tenho este material e vou fazer com ele uma experiência diferente daquela que a escola me mandou fazer”.Não é entender um monte de palavras que hoje estão até no computador. Eu entendi naquela época que não bastava existir vinte pesquisadores talentosos na universidade; só eles não mudariam o Brasil. Precisávamos estimular os jovens a se interessarem pela ciência, isso em larga escala. Precisávamos investir na escola secundária, e a criação dos clubes de ciência naquele momento foi um passo importante. Quase não existiam equipamentos médicos; se um médico queria fazer o eletrocardiograma de seus pacientes, era obrigado a importar o aparelho e carregá-lo para onde fosse necessário. Começamos então a construir alguns aparelhos com alunos num torno da Escola Politécnica. Torno sem motor, tocado com pedal.

rbp Foi aí que surgiu a Funbec [Fundação Brasileira para o Desenvolvimento do Ensino de Ciências]?

Isaias Raw Foi, mas antes disso, desde 1955, existia o Ibecc [Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura], patrocinado pela Unesco, muito importante para o ensino da ciência no Brasil. O Ibecc virou a Funbec. Eu comecei trabalhando no quintal da minha casa. A idéia era fazer um pacote, kits com materiais para experiências de química, física, biologia etc., para as pessoas trabalharem em casa. Depois passamos a fazer esses kits na garagem da Faculdade de Medicina e, mais tarde, num galpão na Cidade Universitária. Recebíamos ajuda da Fundação Rockefeller e da Fundação Ford. Até hoje encontro algum aluno meu que diz: “Eu tinha um Kit Cientista e guardei para o meu filho”. Mais tarde isso foi para a iniciativa privada– foi uma das poucas coisas que eu passei para a iniciativa privada–, pois era necessário um mecanismo de distribuição e de publicidade para a venda. A editora Abril, depois de muito tempo e muita discussão, pensa relançar a série no próximo ano. A Funbec fez o primeiro eletrocardiógrafo, o primeiro monitor, o primeiro desfilibrador. Era uma verdadeira indústria.

rbp O senhor chegou a trabalhar com Anísio Teixeira?

Isaias Raw Não diretamente, mas tive bastante contato com ele no Ministério da Educação, conversávamos de quinze em quinze dias. Foi um educador e pensador brilhante, que tinha a concepção de uma escola pública e gratuita. Não era um cientista, era um filósofo; vivia mudando de opinião, mas sempre de uma maneira perfeitamente lógica.

rbp Para contextualizar os acontecimentos de que estamos falando, é preciso lembrar que sua trajetória se insere num quadro ideológico que marcou a Faculdade de Medicina e outros centros, redundando no exílio vivido por você e tantas outras pessoas. Felizmente, como outros dessa geração, você não se tornou vítima; pôde voltar ao país e retomar atividades criativas.

Alguns de nós, psicanalistas, viemos de uma formação médica; outros vêm da psicologia ou da filosofia, por exemplo. Trabalhamos com seres humanos, e também para nós a questão da formação é importante, pois lidamos com a formação de analistas. Na medicina, é clássica a crise que vive o estudante na passagem do mundo das cadeiras básicas para o contato com seres humanos. Alguns não conseguem atravessar esse tipo de crise ou ficam num estado hipocondríaco, melancólico. Com o tempo, na própria instituição surgiram cuidados para atender o aluno nesse momento. Você falava a respeito de investimentos econômicos. Nós também vivemos situações muito complicadas. Às vezes somos considerados uma elite, no sentido de que a análise não é acessível a todos ou no sentido de alienação, como se nós fôssemos o próprio nome deste prédio aqui– Torre Olímpica–, o que não é verdade. E seu trabalho no Butantan, pode nos falar dele? Como são os recursos, as fundações? Como faz para manter o fogo aceso para as pesquisas dirigidas aos problemas de saúde?

Isaias Raw Eu sou bipolar, na linguagem de vocês. Um ponto importante na ciência é saber quando algo não dá mais leite. Às vezes, quando você manda um jovem para o exterior, ele vai trabalhar com um chefe– como eu fui trabalhar com Severo Ochoa, Prêmio Nobel de Medicina– que lhe diz: “Esse é o buraco que você vai cavar”.E aí, quanto mais você cava, mais tem para cavar. Você morre dentro do buraco sem enxergar o que está fora. Esse tipo de atividade nunca me satisfez. Eu sempre mexi com muitas coisas diferentes. Com freqüência orientava um monte de estudantes, e para cada um eu tinha de inventar uma coisa diferente para fazer. Já tive de lidar com pesquisadores que falsificavam resultados e fui forçado a despedi-los.

Isso acontece com quem não entende o que é ciência, não a respeita. A ciência deve ser autofiscalizada. Se você quer fazer uma pesquisa, precisa de quem a financie– no caso do Brasil, por exemplo, a Fapesp ou o CNPq. Se o seu projeto é aprovado, você recebe o dinheiro, faz a pesquisa e depois submete o resultado a avaliadores anônimos que vão julgar se o seu artigo é publicável. Acho que tenho o mérito de ter acabado com os anais da Medicina e do Butantan, que eram muito ruins. As revistas científicas devem ser internacionais e autofiscalizáveis. Se eu publico um trabalho ali, alguém pode ler e dizer: “Se isso é assim, vejamos qual a conseqüência”. Nesse processo, o leitor revê o que você fez, aceita ou não, contesta as suas observações ou as confirma, e pode partir para uma próxima etapa. Esse processo contínuo de revisão é muito importante. Mas voltando: a Fundação Rockfeller investiu na Faculdade de Medicina para criar sobretudo as cadeiras básicas, que são fundamentais. Existia, sim, o divórcio que vocês apontaram, entre as cadeiras básicas e a clínica, e também entre as próprias cadeiras.

rbp Como foi a criação do curso experimental de medicina da USP?

Isaias Raw Todas as dificuldades que vivíamos na Faculdade de Medicina sugeriam a idéia de reformulação do curso, e foi assim que chegamos ao experimental. Encontro freqüentemente alunos que me dizem: “Eu fiz o experimental”. A idéia era acabar primeiro com a divisão completamente arbitrária das disciplinas, integrando três áreas desde o início: ciência básica, clínica e medicina social. Não existe nenhuma diferença entre bioquímica, fisiologia e farmacologia, é um continuum. Não deve existir o salto das cadeiras básicas para as clínicas. A medicina evoluiu, e o que evoluiu mais foi a parte visual, digamos assim. Com as máquinas, hoje você pode examinar uma pessoa muito melhor do que com os recursos da bioquímica. Hoje, em vez de “chutar”, você vê o que o paciente tem. Na psiquiatria ainda não, mas chegaremos lá rapidamente, essa é a verdade. A idéia era criar um curso de relevância, e esse objetivo foi alcançado. Os primeiros colocados no vestibular passaram a escolher o curso experimental. Mas não durou muito, a própria faculdade acabou com o curso.

rbp Por que o senhor foi trabalhar no Instituto de Química?

Isaias Raw Havia um fechamento muito grande na Faculdade de Medicina, onde só trabalhavam médicos. Aliás, todas as faculdades viviam muito isoladas, ninguém falava com ninguém, mesmo depois de já existir a Cidade Universitária. E para existir uma universidade é fundamental a interação entre os profissionais de todas as áreas. Na época em que o Ulhôa Cintra era reitor da USP [1960-1963], surgiu a idéia de levarmos o Departamento de Bioquímica, que eu chefiava, para o Instituto de Química, que pertencia à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Pusemos tudo num caminhão e levamos para o prédio do instituto, que nem estava pronto ainda, e é claro que a reação da Medicina a isso foi péssima. Mas, logo em seguida, a Farmácia fez a mesma coisa, e todas essas mudanças só trouxeram benefícios.

rbp O senhor trabalhou na Secretaria Estadual da Educação.

Isaias Raw Sim, trabalhei com o Ulhôa Cintra, que era o secretário. Eu havia sido indicado para o cargo no governo do Abreu Sodré [1967-1971], mas o Exército vetou meu nome. Praticamente só fizemos uma coisa importante: acabamos com o exame de admissão ao ginásio. Metade dos alunos era reprovada e assim acabava ficando fora da escola. Isso apesar de a lei dizer que o ensino era público e gratuito até os 14 anos. Ao incluirmos todos, o nível caiu, é claro, mas isso podia ser melhorado.

rpb Como foi seu afastamento da universidade brasileira?

Isaias Raw Bem, naquela época eu tinha um pseudopoder. Presidia a Fundação Carlos Chagas, onde estava envolvido com o vestibular unificado, estava na Edusp, na Funbec, era candidato imbatível no concurso para professor catedrático da Faculdade de Medicina. Vocês sabem bem o que isso pode gerar… Felizmente, já tinha aprendido com meu pai que eu não era presidente de coisa alguma, só estava lá desempenhando uma função. Mas queriam me tirar do caminho, e só eu, ingenuamente, não percebia nada. Em 1964 fiquei preso por treze dias, acusado de ser comunista, subversivo. Deixei em casa meus filhos pequenos, minha sogra muito doente. Só fui solto porque estava inscrito num congresso de bioquímica nos Estados Unidos e um grupo de professores, incluindo vários ganhadores do Nobel, passaram um telegrama de protesto ao presidente, o marechal Castello Branco. Eu tinha também uma entrevista com Albert Baez, da Unesco, e ele foi me procurar no quartel onde eu estava preso. Isso também ajudou a me libertar. Voltei ao trabalho, fiz o concurso, fui aprovado, toquei a vida. Em 1969 fui aposentado pelo AI-5 e tive de deixar o país. Para isso, recebi ajuda imediata da Fundação Ford, que já tinha financiado tantos projetos meus. O adido científico deles me sugeriu ir para o Rio e lá me ajudou a embarcar. Fiquei dez anos fora do país.

rbp E como foi o exílio?

Isaias Raw Fui primeiro para Israel, para a Universidade Hebraica de Jerusalém, que já havia me convidado antes. Eu havia decidido não trabalhar mais em pesquisa básica; havia perdido minha equipe, coisa muito difícil de ser montada, e isto é fundamental: ciência é um trabalho que se faz em equipe. Levei muitos anos para voltar à pesquisa. Fui trabalhar então em ensino de ciências, mas fracassei nisso. É muito difícil, sendo estrangeiro, interferir no projeto de educação de um país. Fui para o MIT [Massachusetts Institute of Technology], nos Estados Unidos. Fiquei lá por quatro anos. O começo foi difícil, e decidi fazer uma coisa que sabia bem, tentar cuidar do ensino de ciências. Mais tarde trabalhei também em pesquisa. Fizemos um trabalho sobre a alimentação do americano que foi capa do Chemical News, uma publicação de grande prestígio na época. Depois fui para a Escola de Saúde Pública da Universidade Harvard.

Quando voltei para o Brasil, deixei dois dos meus filhos nos Estados Unidos; uma outra já havia ficado em Israel. Acho que minha decisão de voltar foi até egoísta. Na cultura americana é normal, depois dos 18 anos, dizer até logo aos filhos: “Até o Natal… Se você ligar antes e eu puder te atender… Até logo, não te vejo mais, a não ser, eventualmente, quando você casar, ou quando eu morrer, se você vier ao meu enterro…” Em 1952, eu não aceitei um emprego nos Estados Unidos porque, por algum motivo, ficou na minha cabeça que seria o fim da minha família. Mais tarde, eu quis voltar ao Brasil porque nos Estados Unidos criou-se um sistema em que você corre, corre, corre para ficar no mesmo lugar.

Eu saí daqui, muito jovem, já com o título de professor catedrático; não podia aceitar um cargo de assistente, o que complicava minha vida. Sobrevivi bem por dez anos lá, produzi o que tinha de produzir, mas dentro de um sistema que foi piorando, que foi pervertido. Alguém é o dono do laboratório onde você trabalha até que, eventualmente, você falha. Aí, vai para a rua. Não há estabilidade nenhuma. Juntam-se pessoas dos lugares mais remotos do mundo– japoneses, coreanos, indianos, escravos que trabalham doze horas por dia, sete vezes por semana. Quando acaba a bolsa, se a pessoa quiser viver, ir ao cinema de vez em quando, ter família… “Até logo, pode ir embora, não te damos mais lugar, porque tem uma fila de outros escravos que estão dispostos a ocupar o seu posto.” O pesquisador é apenas um trabalhador temporário; só tem atividade permanente quem está no topo, isto é, menos de 1%. Acredito que esse sistema, com o passar do tempo, talvez acabe por se autodestruir.

rbp Sabemos, através de alguns depoimentos atuais, que uma parte da obstetrícia é realizada somente pelos latino-americanos, porque os americanos têm um medo enorme das situações que envolvem falhas, que podem gerar processos. Isso cria uma cultura paranóica. Claro, estão envolvidos aí fatores econômicos, políticos, ideológicos, e o resultado é uma bomba atômica.

Isaias Raw Acho que esse sistema vai sobreviver muitos anos ainda, embora nenhum superimpério tenha sobrevivido para sempre. É mais difícil hoje desmontar o superimpério americano porque ainda não dá para competir nem de longe com aquilo. Os Estados Unidos são a elite do mundo, pagam e recebem o que e quem quiserem. Então, na realidade, por muito tempo eles vão continuar a dominar a ciência. Se você está doente, tem 65 anos e não tem seguro, pode ir para casa, porque não será aceito em nenhum hospital. O receio do médico de ser processado é brutal, ele toma uma série de precauções: não atende ninguém sem uma terceira pessoa na sala, porque amanhã poderá ser acusado de assédio. Se no elevador estiver só uma mulher, você só entra com mais alguém. Essa paranóia vem vindo para o Brasil, o sistema aqui está ficando parecido. É inacreditável!

rpb O que aconteceu na sua volta ao país?

Isaias Raw Bem, a condição da anistia para a pessoa ser reintegrada ao trabalho era assinar um documento dizendo que aceitava o perdão do Estado– e eu não tinha nada a ser perdoado. Já estava aposentado, e o Instituto de Química tinha uma ótima equipe de professores, não precisavam mais de mim. A Funbec estava num momento que eu não achava interessante. Surgiu então a possibilidade de vir para o Butantan. Nessa época, veio à luz um fato incrível: o soro antiofídico produzido no Butantan foi testado num laboratório de controle de qualidade e ficou demonstrado que era inativo. Foi uma comoção enorme, o Brasil não tinha soro antiofídico! Isso exigiu uma remodelação do instituto e de sua produção. A questão do soro antiofídico se resolve com qualidade do produto e boa distribuição; a pessoa mordida pela cobra precisa tomar o soro lá onde está, não precisa vir ao Butantan. O Butantan não realizava pesquisas nem tinha alunos, não havia integração com a USP. E o aluno é uma arma importante, porque obriga o professor a funcionar.

Naquele momento, tornou-se possível a contratação de dez professores e a implantação de uma política de pesquisa e produção tecnológica voltada para as necessidades sociais. Fomos reconstruindo as instalações que estavam caindo, trocando equipamentos obsoletos por outros, atuais. O Butantan não produzia vacinas imunológicas e hoje produz 200 milhões de doses. Para isso, foi necessário desenvolver tecnologia adequada e conseguir recursos financeiros. Necessitamos igualmente da pesquisa básica, que traz a inovação, e da pesquisa aplicada, da qual resulta o produto. A pesquisa acadêmica é indispensável, a publicação dos trabalhos também, mas saúde publica só se faz quando se obtém o produto e esse produto pertence à sociedade como um todo. Hoje temos o Instituto Butantan, que produz vacina e soro, e a Fundação Instituto Butantan, criada em 1985, que funciona como uma empresa privada. Através dela são contornadas as questões burocráticas referentes ao manejo dos recursos financeiros. O Brasil vem investindo na fabricação de vacinas, é o único país em desenvolvimento que faz isso. Hoje produzimos 96% das vacinas usadas aqui no país. O Butantan fabrica 82% delas; o restante é fabricado pela Fiocruz, no Rio de Janeiro, e pela Fundação Ataulpho de Paiva, em Niterói.

Fazemos a DTP, que é a vacina básica, a primeira vacina múltipla. Você pica uma criança e já aplica cinco ou seis vacinas diferentes, então essa vacina deve ser da melhor qualidade possível. Pode ocorrer que a criança tenha uma convulsão com essa vacina, e nunca se tirou a limpo se a convulsão é da vacina ou é coincidente com a vacina. Vamos admitir que seja com a vacina, mas de todo modo é uma convulsão que passa espontaneamente, não causa outros problemas. Morrer de difteria, tétano ou coqueluche é muito mais grave do que ter uma convulsão. Na época da coqueluche, escolhemos a vacina que era mais segura e a doença realmente quase desapareceu, nós não matamos ninguém. É muito importante entender que vacina não é um remédio. Se você der um remédio a um paciente, ele sara ou morre. Mas dar vacina a todas as crianças, de todas as idades, é uma responsabilidade gigantesca. Você pode produzir um desastre, pode matar milhares. A vacina DTP do Butantan nunca teve problemas. Aí, de repente, deu um estalo e nós resolvemos melhorá-la. Tiramos dela uma parte da membrana e passamos a dispor então de uma vacina sem efeitos tóxicos. Mas aqui ainda se prefere usar a vacina celular, inventada no Japão, muito mais cara e tóxica. Como entender isso?

Temos conseguido fabricar vacinas por um preço que o país pode pagar. No inverno, temos o problema da gripe nas crianças e nos velhos. Atrás da gripe, vem a pneumonia e a necessidade de médicos e hospitais para tratá-la, tudo isso a um alto custo. A solução é a vacinação. Estamos conseguindo vacinar praticamente toda a população acima de 60 anos, e não são só os pobres que vão ao posto se vacinar contra gripe. Isso não acontece em nenhum outro país do mundo. A vacinação fica limitada aos maiores de 60 anos por causa do preço. Estamos pesquisando um caminho que vai permitir usar apenas um quinto da dose em cada pessoa, o que tornará possível oferecê-la para a faixa dos 50 anos em diante.

Discuti essa possibilidade num encontro internacional sobre gripe e as empresas presentes disseram:“Você está louco, não vamos fazer isso, não vamos abaixar os preços. Vamos fazer também a vacina contra pneumonia”. E para quê? Existem mais de vinte tipos de pneumonia, mas o quadro básico é a gripe. A vacina contra a pneumonia que se pensa usar no Brasil custa 159 dólares por pessoa, o que representaria uma conta de 600 milhões de dólares para o Ministério da Saúde. O pneumococo não é importante no Brasil. Quando se tenta imunizar o paciente contra determinadas cepas, ele começa a ter outras, que são resistentes aos antibióticos. Aí, em lugar de usar amplicilina por 10 centavos, usa-se a medicação de terceira geração, a 50 reais o comprimido. Claro que a questão básica é vacinar contra a gripe. E é importante também que as crianças que entram na escola sejam vacinadas, pois assim não terão gripe, otite, pneumonia. Bloqueando a entrada dessas doenças nas casas, indiretamente estaremos protegendo toda a família.

Nós vamos continuar com as pesquisas para reduzir a dose da vacina da gripe porque nossa tecnologia nos permite produzir a custo pequeno. E também porque temos uma coisa extremamente importante: temos uma fábrica. Hoje, um grande negócio no mundo é vender vacina. No governo Ford, falava-se de uma gripe do porco que não chegou a existir, mas metade da população dos Estados Unidos foi vacinada contra ela. Um número enorme de pessoas teve problemas com isso e acionou o governo americano. As indenizações pagas foram altíssimas. O pessoal que anda pelo mundo com a malinha de vacina embaixo do braço chega para um ministro e diz: “Olha, se vier a pandemia, você está ferrado, vai morrer todo mundo no seu país. Para estar seguro, você deve começar a vacinar agora, antes que ela chegue”. Então o ministro compra a tal vacina e fica aguardando a suposta pandemia. Bem, nós temos a nossa fábrica e não precisamos de certas substâncias porque as criamos no ovo (e o Brasil é o maior produtor de ovos de galinha no mundo), então ninguém mais nos segura.

Li que em 1918 a Câmara dos Vereadores resolveu criar o cemitério da Lapa. Foi a única coisa inteligente que eles fizeram em relação à epidemia de gripe. O resto era tomar um Biotônico Fontoura, anunciado como medicação que curava a gripe. Até hoje continuam dizendo que vitamina C cura gripe. Eu tenho uma vontade louca de fazer umas quinhentas garrafinhas com corante e distribuir sugerindo um teste: você toma um comprimido de vitamina C, vai no banheiro, urina e pinga lá o corante; se urinar cor de laranja, é porque você acabou de expelir a vitamina C que tomou. Claro, porque nós precisamos apenas de 50 miligramas e somos induzido a tomar 500 miligramas, 1 grama.

Graças à ajuda da Fapesp, temos desenvolvido a técnica de produção do sulfactante, indispensável para a proteção dos bebês prematuros. Milhões de crianças morrem no mundo no dia em que nascem e a grande causa é a prematuridade, sempre maior entre os pobres, naturalmente. Criança que nasce bem e morre em dez minutos, isso é um trauma para os pais para o resto da vida. Morre sufocada, na frente da mãe. Para cuidar disso, estamos fabricando um sulfactante de baixo custo, não a 500 ou 700 reais a dose, que futuramente será distribuído gratuitamente para todas as maternidades públicas. Será um grande avanço.

E há quinze anos estamos pleiteando fazer o plasma brasileiro. A resposta é: “Nós não vamos te dar sangue para fazer isso”. Foi preciso estourar o escândalo dos vampiros, que já era conhecido por todo mundo, para permitirem que o Butantan entrasse nesse campo. Mas a máfia nessa área é terrível. Um dos vendedores de plasma para o Brasil foi a Cruz Vermelha americana, que fechou sua fábrica há mais ou menos cinco anos. Como então ela pôde vender para o país? O que ela vendeu, afinal?

rpb E a questão da dengue, como está?

Isaias Raw Não é possível controlar o mosquito da dengue, nem no Brasil nem na África. Se conseguíssemos acabar com eles, estaríamos interferindo na cadeia alimentar, coisa que não devemos fazer. Precisamos chegar à vacina e estamos trabalhando nessa direção, como os Estados Unidos estão fazendo também. Dentro de mais ou menos dois anos, vamos produzir uma vacina que o Brasil poderá pagar.

rpb Qual é sua posição em relação aos transgênicos?

Isaias Raw Esse negócio é totalmente paranóico. As leis contra os transgênicos derivam em parte de um fato: se não ensinarmos os jovens a pensar criticamente, a democracia passa a ser uma coisa extremamente perigosa, porque quem menos entende é que vai tomar as decisões. Muitas vezes ficam tentando discutir o que é indiscutível. São brigas homéricas, em que os leigos acabam decidindo sobre temas científicos. Claro, a presença deles é necessária, mas leigos inteligentes, com capacidade crítica. A comunidade científica não está dividida em relação a esse problema; a divisão só existe entre os leigos. Alguns países não aceitam os transgênicos e, naturalmente, continuam a usar insulina e vacina contra hepatite B– e tudo isso é transgênico.

rpb E os medicamentos, os monopólios nessa área? Como você vê a questão?

Isaias Raw Tentei, e não consegui, que fosse publicado no Brasil um livro de uma professora da Harvard, Marcia Angell, chamado The Truth about the Drug Companies: How They Deceive Us and What to Do about It [A verdade sobre as companhias farmacêuticas: Como elas nos enganam e o que fazer]. É um livro que vale a pena ser lido, sobretudo pelo fato de que quem o escreve tem uma autoridade enorme. A indústria farmacêutica manipula os fatos. Faz pequenas modificações num remédio já existente, dá a ele um novo nome e age como se tivesse inventado um produto melhor, sem testá-lo com o velho, cobrando muito mais por ele.

A indústria não usa muitos recursos em pesquisas, usa mesmo é em propaganda. Nos Estados Unidos e na Inglaterra ou na França, principalmente, a pesquisa básica começa sempre com dinheiro público, e a indústria usa esses recursos convertendo-os em produtos. Muitas vezes a publicidade dos produtos farmacêuticos é enganosa, como acontece muito com as pastas de dente, por exemplo, que anunciam um grande poder de proteção não comprovado por nenhum dado. Colocar cálcio na pasta não protege o dente. Há uma busca de lucro exagerada, sem limites. Todo dia inventam uma nova escova de dente, um novo modelo indispensável, um novo líquido para lavar a boca. Se você fizer tudo o que eles sugerem, não vai fazer outra coisa na vida. Você nem consegue mais se deliciar com a comida, porque mal acaba de comer e tem de começar a lavar a boca sem parar. E vejam a questão dos genéricos, que causou tanta polêmica, tanta oposição. Hoje, metade dos medicamentos que está no mercado é composta de genéricos. Briguei por eles. Eu de vez em quando me irrito muito e brigo pelas coisas que merecem briga.

rbp Você parece ter a capacidade de ser um grande catalisador, é isso?

Isaias Raw Eu sei que sou, mas brigar com o governo é muito complicado. Às vezes alguém tem de ouvir a verdade, o que é difícil, ninguém gosta. Temos mesmo muitos problemas. E eu acabo sendo o escolhido para brigar porque sempre fui o brigão. Sou um velho ranzinza que fala o que tem de ser falado. Os velhos costumam dormir pouco, e durante a noite fico pensando no que preciso fazer. Chego muito cedo ao Butantan, tenho sempre muitas questões pela frente. Às vezes preciso até pensar no telhado, em mandar arrumar. Cai muito telhado por aqui com a chuva.

 

 

* Entrevista realizada em 11 de agosto de 2007 na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, com a participação de Antonio Sapienza, Chulamit Terepins, Luís Carlos Menezes, Inês Zulema Sucar, Maria Ângela Gomes Moretzsohn, Maria Aparecida Quesado Nicoletti, Maria Elisa Franchini Pirozzi, Sonia Soicher Terepins e Suzana Muszkat.

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