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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.41 n.3 São Paulo set. 2007

 

ARTIGOS

 

Processo psicanalítico e pensamento: aproximando Bion e Matte-Blanco1

 

Psychoanalytic process and thought: convergence of Bion and Matte-Blanco

 

Proceso psicoanalítico y pensamiento: aproximando Bion y Matte-Blanco

 

 

Viviane Sprinz Mondrzak2

Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Através da aproximação entre Bion e Matte-Blanco, a autora procura destacar a visão do método psicanalítico como promotor de expansão da capacidade do paciente de pensar suas experiências emocionais. Em seguida a um pequeno resumo das idéias de cada autor, são destacados alguns pontos de confluência entre ambos: a forma de perceber o campo dos fenômenos observados pela psicanálise, a intuição como método para observar esse campo, os sentimentos como matéria-prima para o pensar, a importância do conceito de infinito em psicanálise. É salientada a forma como as idéias de Matte-Blanco auxiliam na compreensão das propostas de Bion. Após essas correlações, a autora se detém em questões referentes ao método psicanalítico, propondo um modelo no qual o analista funcionaria como um mediador/catalisador no processo de revisão das formas com que o paciente organizou suas experiências emocionais e as teorias construídas para sustentar essas hipóteses. Fragmentos de material clínico são apresentados.

Palavras-chave: Processo psicanalítico; Pensamento; Experiência emocional; Dor psíquica; Bi-lógica.


ABSTRACT

Using the convergence between Bion and Matte-Blanco, the author attempts to stress the view of the psychoanalytical method as promoter of expansion of the ability of the patient to think his emotional experiences. After a brief résumé of the ideas of both Bion and Matte-Blanco, certain points of congruence between the two are emphasised: the way of perceiving the range of phenomena observed by psychoanalysis, intuition as a method for observing this field, the feelings as the raw material for thinking, and the importance of the concept of infinity in psychoanalysis. The way in which the ideas of Matte-Blanco assist in the understanding of Bion’s propositions is highlighted. Following these correlations, the author discusses certain questions pertinent to the psychoanalytical method and proposes a model in which the analyst acts as a mediator/catalyst in the process of revision of the ways in which the patient has organized his emotional experiences and the theories constructed to support these hypotheses. Samples of clinical material are presented.

Keywords: Psychoanalytic process; Thinking; Emotional experience; Psychic pain; Intuition; Bi-logic.


RESUMEN

A través de la aproximación entre Bion y Matte-Blanco, la autora trata de destacar la visión del método psicoanalítico como promotor de la expansión de la capacitad del paciente pensar sus experiencias emocionales. A seguir de un pequeño resumen de las ideas de cada autor, son destacados algunos puntos de confluencia entre ambos: la forma de percibir el campo de los fenómenos observado por el psicoanálisis, la intuición como método para observar este campo, los sentimientos como materia prima para pensar, la importancia del concepto de infinito en el psicoanálisis. Se destaca la forma como las ideas de Matte-Blanco auxilian la comprensión de las propuestas de Bion. Después de estas correlaciones, la autora se detiene en algunas cuestiones referentes al método psicoanalítico, proponiendo un modelo en el cual el analista funcionaria como un mediador/catalizador en el proceso de revisión de las formas como el paciente organizó sus experiencias emocionales y las teorías construidas para sostener estas hipótesis. Fragmentos de material clínico son relatados.

Palabras clave: Proceso psicoanalítico; Pensamiento; Experiencia emocional; Dolor psíquico; Bi-lógica.


 

 

Introdução

Einstein, quando perguntado sobre suas motivações para a pesquisa, afirmava que a emoção mais profunda é inspirada pelo senso do mistério:

[…] a existência de algo que nós não conseguimos penetrar […] da beleza radiante do mundo a nossa volta, acessíveis a nossa mente apenas em suas formas mais primitivas, esta é a emoção fundamental que inspira a arte e a verdadeira ciência (Gleiser, 1997, p. 309).

Freud se encarregou de outro mistério, o da beleza e magia dos processos da nossa mente, de um mundo interior. Ambos, Einstein e Freud, cada qual a sua maneira, romperam com séculos de verdades estabelecidas, deixando claro que somos muito menos senhores do que supúnhamos, tanto da natureza quanto de nossas ações.

Nesses mais de cem anos, muito aconteceu na física e na psicanálise. Na nossa área, chama a atenção o fato de que, apesar de todo o progresso no conhecimento e de tantos trabalhos sobre o assunto, ainda permanecem muitas controvérsias a respeito dos mecanismos de ação da psicanálise. Somos, com freqüência, criticados por isso.

Uma breve descrição da trajetória percorrida a esse respeito começaria com Freud, a hipnose, a sugestão e a catarse, o tornar consciente o inconsciente ou colocar o ego onde estava o id, superando as resistências transferenciais. Seguiria com Klein, buscando promover a integração de partes cindidas e projetadas do self, com a passagem da posição esquizo-paranóide para a depressiva, processo marcado pelo balanço entre as pulsões, determinado constitucionalmente. Klein destaca a importância do manejo da inveja e introduz um conceito fundamental, a identificação projetiva. Em 1934, Strachey, em seu clássico trabalho, apresenta uma tentativa de sistematizar a ação terapêutica da psicanálise integrando as idéias kleinianas e introduz a “interpretação mutativa”, a noção do analista como superego auxiliar, que busca abrandar o superego rígido do paciente.

Na esteira dos últimos trabalhos de Freud, ganham destaque, no trabalho analítico, todos os elementos que possibilitariam aumentar os recursos adaptativos do ego. Os seguidores de Klein, especialmente Bion, desenvolvem seus conceitos de forma surpreendente, e a contratransferência e a identificação projetiva como forma de comunicação abrem todo um novo leque de perspectivas. A maneira como são processadas as experiências emocionais ganha relevância e a relação analista-paciente assume novos contornos, propondo mudanças nos objetivos de uma análise e na sua forma de atuar. Nessa proposta, busca-se o crescimento da capacidade da mente de pensar essas experiências e aprender com elas, e a relação analista-paciente torna-se o centro do processo de análise-aprendizagem. Além disso, os estudos sobre o desenvolvimento dos bebês trouxeram mais clareza a respeito dos complexos caminhos em que a relação bipessoal intermedeia o crescimento e a capacidade de simbolização, e o modelo mãe-bebê passa a ser utilizado para se referir ao trabalho analítico.

Essa brevíssima descrição tem como único objetivo delinear uma espinha dorsal no desenvolvimento da forma de pensar o trabalho analítico. O tema é, até hoje, controverso, com inúmeras questões em aberto, envolvendo entre elas os objetivos de uma análise e os possíveis agentes de mudança psíquica.

Neste trabalho, procuro focar uma linha que destaca a centralidade do “pensar” no desenvolvimento e no funcionamento da mente e, por extensão, do método psicanalítico, a partir de algumas correlações entre Bion e Matte-Blanco, autores que colocaram ênfase no processo de pensamento. Assim, começo fazendo um pequeno resumo das principais idéias de ambos os autores como ponto de partida para uma aproximação entre suas formas de pensar o funcionamento da mente e algumas implicações na forma de ver o processo psicanalítico.

 

Matte-Blanco e a bi-lógica

Ler Matte-Blanco demanda um esforço especial, já que, em seus trabalhos, os conteúdos psicanalíticos se mesclam com a lógica matemática, um raciocínio ao qual não estamos habituados e que temos tendência a considerar como não tendo nada a ver com psicanálise.

Profundo conhecedor de Freud, Matte-Blanco coloca, ao lado da visão freudiana da mente dinâmica, com impulsos, instintos e desejos que podem ou não estar em conflito, uma visão da mente como classificadora, permanentemente ordenando dados, internos e externos, que precisam ser organizados para que possamos ter conhecimento deles, já que não podemos conhecer nada em si mesmo, de forma absoluta (Rayner, 1995). O conhecimento se conseguiria através da possibilidade de discriminar relações entre eventos, verificar semelhanças e contrastes, estabelecendo o que é chamado de função proposicional, que determina a formação de conjuntos. Em outros termos, nossas mentes estariam sempre fazendo proposições sobre uma coisa, outra coisa e a relação entre elas. Um conjunto potencialmente infinito dessas tríades seria o ponto de partida para a construção de todo pensamento. A partir daí, chegamos a conceitos cruciais nas idéias de Matte-Blanco: as características das relações simétricas e assimétricas, as formas de organização que estariam à disposição da mente.

Usando basicamente as contribuições de Russell, Matte-Blanco considera que há um modo simétrico e um modo assimétrico de organizar dados e conhecer algo– conhecimento aqui entendido de modo amplo, não apenas como conhecimento intelectual, mas como percepção de qualquer fenômeno. O primeiro, regido pelo princípio da simetria, registra a identidade, a homogeneidade, o que há de comum entre os fenômenos; o segundo, que corresponde à lógica aristotélica, discrimina diferenças (Matte-Blanco, 1975).

Na proposta de Matte-Blanco, consciente e inconsciente não são locais da mente, mas modos de funcionamento. A mente poderia ser vista como uma seqüência de estratos, cada um com uma determinada proporção entre simetria e assimetria, compondo sempre uma estrutura bi-lógica. Do ponto de vista evolutivo, sugere que o bebê nasceria com um predomínio de simetria e sua primeira forma de perceber qualquer estímulo seria através de uma emoção que iria sendo submetida a um processo de atividade proposicional, crescendo em assimetria com o desenvolvimento. O predomínio da lógica simétrica no funcionamento inconsciente seria responsável pelas características de atemporalidade, ausência de contradição, equivalência entre parte e todo etc., já destacadas por Freud. Além disso, os princípios da simetria fariam com que o funcionamento inconsciente não conhecesse indivíduos, apenas funções proposicionais.

Seguindo seu raciocínio, o que é inconsciente nunca se torna consciente, e o que podemos é tomar consciência de porções dele. Matte-Blanco chama de “tradução” o processo que transforma o que é inconsciente simétrico em consciente assimétrico. Aqui vale lembrar Freud (1924/1976), quando ele afirma que o que é mental é, em si próprio, inconsciente e que ser consciente é uma qualidade que pode ou não advir, pelo funcionamento da consciência, órgão capaz de perceber as qualidades psíquicas. Para ele, a consciência “permanece a única luz que ilumina nosso caminho e nos conduz através das trevas da vida mental” (Freud, 1940b/1975, p. 321).

Matte-Blanco coloca o pensamento como um processo de distinção, como “um lençol fino de assimetria entre dois volumes de simetria” (Matte-Blanco, 1975, p. 289). No esforço contínuo de compreender o que não pode, por estar além do alcance da compreensão humana consciente, o pensamento tenta, inicialmente, procurar expressões em termos de conjuntos infinitos, gerando um afeto, um “entendimento emocional”. Portanto, a emoção pode ser definida como uma forma elementar de classificação, como uma atividade cognitiva básica, produto da lógica simétrica.

A transferência pode ser vista como uma estrutura bi-lógica. Por um lado, simetria, já que a parte é tratada como tendo as potencialidades do todo, com a projeção de conjuntos que se sucedem infinitamente, chegando até o analista e mantendo sempre algum ponto de contato com o objeto original. No entanto, o paciente sabe que o analista não é o objeto primário, havendo uma assimetrização capaz de perceber as diferenças. O caráter paradoxal da transferência, na qual o analista é/não é o objeto primário, pode ser compreendido pela particular concomitância de simetria e assimetria.

O que temos até aqui? Da leitura de Matte-Blanco emerge um modelo, a mente classificadora, permanentemente ocupada com a tarefa de tornar os estímulos capazes de serem entendidos. A emoção é a estrutura cognitiva básica, sobre a qual podem ser construídos níveis de pensamento de complexidade crescente. As lógicas simétricas e assimétricas são essenciais na composição dos fenômenos mentais, sem hierarquia entre elas. Há uma visão da mente operando concomitantemente em vários níveis, fazendo com que cada estrato “sinta/pense” um mesmo evento, interno ou externo, de maneira diversa. Ao contrário de uma visão na qual o processo secundário triunfa sobre o processo primário, que fica praticamente relegado aos sonhos, destaca-se a permanência da simetria na vida adulta. Mais do que a permanência, o essencial dessa presença.

E sobre o trabalho psicanalítico? Matte-Blanco destaca o papel do processo de “tradução”, que trabalha em sentido contrário ao da repressão, introduzindo assimetrias que permitam tornar acessíveis à consciência novas compreensões, com um potencial infinito de criatividade, como nas artes (Matte-Blanco, 1975).

Para tentar visualizar o modelo de Matte-Blanco, vejamos uma situação simples, de uma análise de poucos meses, com quatro sessões semanais. Há um padrão na forma como a paciente se apresenta após o fim de semana: um relato angustiado de várias situações nas quais não se sente bem recebida, ajudada. A empregada queimou a comida, a sogra disse que nora não é parente, a mãe disse não poder ficar com os netos para que a filha fosse ao cinema. A forma como sente essas situações é intensa, cheia de angústia, todas são a mesma, carregadas de simetria: há uma classe de mães que não cuidam, se irradiando em todas direções. Um assinalamento inicial, mostrando que um mesmo sentimento unia todas as situações descritas e dificultava sua capacidade de verificá-las individualmente, provoca um pequeno alívio; introduz-se assimetria, o que organiza o que estava disperso, tornando evidentes mecanismos simétricos de generalização, deslocamento. Pensar que não estava braba com todos a sua volta, que essa era a expressão de uma emoção única, que se manifestava em todas essas situações, proporciona uma outra perspectiva para pensar.

Mostrar-lhe que estava se sentindo especialmente sem ajuda nos fins de semana foi o passo seguinte, introduzindo uma dimensão tempo-espacial, aproximando-a da percepção de que a queixa principal, nesse momento em que depositava todas as suas expectativas na análise, era quanto a se sentir sem essa ajuda justamente nos fins de semana. A queixa não se relacionava apenas aos fins de semana; correspondia a uma decepção generalizada com a análise, já que chegara idealizando-a intensamente. Embora isso fosse muito claro, não pôde ser assimilado em seguida. Cada situação, envolvendo as mais variadas circunstâncias e pessoas, teve de ser “assimetrizada” com detalhes, discutida, procurando estabelecer contradições e diferenças, até que se pôde retornar à expressão transferencial. A intensidade com que a paciente experimentava habitualmente suas emoções pôde ser melhor discriminada: a idealização era extrema, bem como a decepção. A intensidade do afeto sentido tendia ao infinito, positivo ou negativo.

 

Bion e o aparelho para pensar

Sendo impossível abarcar o universo das questões propostas por Bion e o processo de evolução de suas idéias, abandono de saída qualquer pretensão nesse sentido, limitando-me a colocar apenas uma linha de base que nos situe em relação ao seu pensamento. Usarei como ponto de partida uma síntese das principais idéias de Bion adaptada daquela proposta por Meltzer (1978/1990).

Para Bion, as experiências emocionais são a base para a formação de um aparelho mental capaz de pensar. O campo da mente é um mundo de possibilidades infinitas de significação cuja falta de forma deve permitir a construção de um mundo interno coerente, mediante a operação de pensamento sobre a percepção das experiências emocionais.

Na infância, através da capacidade de reverie da mãe, fornecendo um continente capaz de conter a emoção e dar-lhe um significado, esse aparelho vai se estruturando e formando elementos alfa, utilizáveis para sonhar e pensar, em vez de apenas evacuar a emoção Ao mesmo tempo, organizam-se resistências contra esse processo, criando mentiras ao invés de verdades, porque estas implicam dor psíquica, de reconhecimento de faltas, de quebra de onipotência. Esses elementos impedem o crescimento da mente, porque a alimentam de mentiras. A psicanálise é um método que estuda essa interação a partir da experiência emocional vivida na sessão, procurando revelar os mecanismos utilizados para evitar a dor mental e, assim, evitar o confronto com a verdade, principalmente através de ataques aos vínculos que possibilitam o desenvolvimento do pensamento.

As experiências emocionais são vividas como um vínculo, não podendo ser concebidas isoladas de uma relação. Seriam três os vínculos básicos: L (love), H (hate) e K (knowledge). Os vínculos são os responsáveis pela possibilidade de criar significados e, portanto, produzem inveja. Esta, em termos de Bion, não seria suscitada nem pelo continente nem pelo conteúdo, mas pela conjunção de ambos. Esse desenvolvimento promoveria um avanço do pensamento em termos de complexidade e abstração (exemplificados na grade). Para isso, o pensamento perturbado precisa achar um continente que possa acolhê-lo primeiro para, então, modificá-lo mediante uma mudança no sistema de valores utilizado, introduzindo outros vértices que permitam um melhor juízo de realidade. Ao analista cabe proporcionar esse continente– que deve ser suficientemente flexível para não comprimir a idéia, mas suficientemente forte para não ser destruído por ela–, assim como oferecer outros vértices, provenientes de sua observação intuitiva. As operações dentro do continente funcionariam na oscilação PS-D, cisão-integração, estado de paciência e estado de segurança.

A análise não procuraria acabar com a dor psíquica, mas aumentar a tolerância a ela, necessária para o enfrentamento com verdades dolorosas, mas inevitáveis. As resistências não se levantam apenas contra o afeto reprimido, mas contra a dor psíquica; o trabalho psicanalítico não busca apenas levantar repressões, mas expandir a capacidade da mente de transformar suas emoções em elementos pensáveis. Bion destaca os requisitos essenciais do estado mental do analista para promover esse processo: “sem memória e sem desejo” e com “capacidade negativa” (que corresponde a poder tolerar o que é impossível para o paciente, a falta de significado). Chama de ato de fé a esse estado– fé na existência desta “coisa” chamada psicanálise e mundo psíquico.

 

Aproximando Bion e Matte-Blanco

Apesar de terem feito a formação psicanalítica em Londres, em épocas próximas, Bion e Matte-Blanco só se conheceram pouco antes da morte de Bion (Talamo, 1999). Na tese de doutorado de Parthenope Bion Talamo (Talamo, 1999), encontramos uma comparação entre as tentativas dos dois autores de sistematizar a psicanálise através da matemática, apontando pontos de encontro e de desencontro. No artigo que escreveu em homenagem aos 80 anos de Bion, Matte-Blanco deixou clara sua admiração por ele e a identidade entre seus posicionamentos (Matte-Blanco, 1981); na introdução a esse mesmo artigo, Grotstein já aponta a importância de Matte-Blanco para o entendimento de Bion. Da parte deste, não encontramos nenhuma referência a Matte-Blanco, mas, segundo sua filha (Talamo, 1999), ele teria dito, antes de morrer, que reconhecia na obra de Matte-Blanco o melhor ponto de partida para a compreensão de suas idéias.

O que primeiro chama a atenção é o fato de dois psicanalistas contemporâneos, mas sem contato entre si, se preocuparem com uma forma de sistematizar a psicanálise usando para isso conceitos matemáticos, mesmo que de linhas diferentes. Enquanto Matte-Blanco segue a lógica matemática de Russell, Bion se apóia em Poincaré, para quem matemática e intuição mantêm um vínculo estreito, em que cada raciocínio complexo é erguido sob um andaime de intuição (Talamo, 1999). É evidente a preocupação em organizar o corpo de conhecimentos psicanalíticos utilizando um referencial científico indiscutível, como a matemática, ciência que, muito mais do que quantificar fenômenos, tem função delimitadora de conceitos, indicando movimentos mentais (Talamo, 1999).

Meu objetivo, entretanto, não é destacar a sistematização da psicanálise– aliás, depois abandonada por Bion, mas não por Matte-Blanco– e, sim, o que parece paradoxal: os dois autores que empregaram a matemática em suas teorizações são os que mais salientam a importância de uma liberdade de imaginação no transcorrer de uma sessão analítica, não como um detalhe, mas como fator essencial, com status de recomendação técnica. Essa posição parece estar diretamente relacionada à forma como ambos entendem o campo dos fenômenos observados pela psicanálise, tomando como ponto de partida o fundamental da visão freudiana:

[…] por trás dos atributos do objeto em exame que se apresenta diretamente à nossa percepção, temos que descobrir algo que é mais independente da capacidade receptiva particular de nossos órgãos sensoriais […] Não temos a esperança de poder atingir este estado em si mesmo, visto ser evidente que tudo de novo que inferimos deve ser traduzido de volta para a linguagem de nossas percepções, da qual nos é simplesmente impossível libertar-nos […] A realidade sempre permanecerá incognoscível (Freud, 1940a/1975, p. 225).

Para Matte-Blanco, todo o nosso conhecimento do mundo é, em última instância, um conhecimento de relações. A verdadeira realidade é desconhecida para nós, que apenas temos acesso ao que o trabalho de assimetria pode realizar. A consciência consegue captar algumas porções da realidade inefável, transformando-a para que possa ser percebida (Matte-Blanco, 1988/1999). Bion fala da realidade última, do “O”, do qual só podemos ter conhecimento através de transformações que guardam alguma invariância em relação ao fenômeno original (Bion, 1970/1991). Temos, portanto, como ponto de partida, não apenas uma concordância de conceitos que tomam a visão kantiana como pressuposto, mas uma delimitação do campo de observação do analista e um alerta para a limitação dos nossos instrumentos de pesquisa.

Talvez uma das questões mais importantes, no pensamento de ambos os autores, seja a articulação entre “sentir” e “pensar”. Para eles, não há dicotomia entre os dois processos. As experiências emocionais são a matéria-prima para o desenvolvimento do pensar e o cognitivo depende da capacidade de processar adequadamente essas experiências. Para Matte-Blanco, o modo simétrico, preponderante no nascimento, não conhece distinção entre sentir e pensar, é um infinito de experiências homogêneas. O pensamento surge como “um fino lençol” de assimetria entre bolsas de simetria, assim como os elementos alfa formam uma barreira que indica contato e separação entre o que é consciente e o que é inconsciente (Bion, 1962/1991).

Assim, o pensamento deixa de ser sinônimo de racional, em oposição ao sentir. Sentir e pensar vão num continuum de simetria máxima para assimetria máxima, nunca excluindo uma das formas. Ambos podem ser usados criativamente ou de forma defensiva, enganosa (configurando a coluna 2 da grade).

A noção de conhecimento assume uma perspectiva diferente a partir do vínculo K, tornando-se uma emoção básica, ao lado de amor e ódio. Conhecer poderia ser considerado uma atividade que permite ao sujeito reconhecer uma experiência emocional e formular uma representação adequada dela que servirá de base para o aprender com a experiência, a simbolização e a compreensão, processo que depende da tolerância à dor psíquica. Seria necessária uma discussão mais detalhada sobre a perspectiva epistemológica do “conhecimento” que a psicanálise pode proporcionar, mas isso fugiria aos objetivos deste trabalho. De qualquer forma, nessa proposta, o trabalho psicanalítico passa a ter como função primordial capacitar o continente psíquico a tolerar verdades acerca de suas experiências emocionais.

Ainda sobre conhecimento, Bion destaca a diferença entre “saber acerca” de algo e “vir a ser” esse algo (Bion, 1970/1991). Se formos para Matte-Blanco, veremos que ele remete à experiência simétrica (num extremo do espectro), que não “conhece” relações de objeto, onde o sujeito “é” o objeto, com suas potencialidades infinitas. O trabalho analítico buscaria o conhecer menos lógico, menos racional e assimétrico, o mais próximo possível da simetria. O temor à megalomania é sempre associado a essa experiência, já que a pessoa passa a ser a própria verdade. Todo processo de crescimento e de busca da verdade é vivido como um desejo narcísico de ser Deus, o que explica o potencial “catastrófico” do pensar. Para Matte-Blanco, o ser humano, diante da frustração pela ausência do seio, sentido como Deus, desenvolve, nas origens do pensar, a tendência a ser o Seio, a ser Deus, procurando negar a ausência e a dependência (Bria, 1992). No entanto, é a tolerância a essa frustração que pode permitir um pensar simbólico, organizador, assimetrizante, que protege do medo de se perder no infinito da experiência simétrica, narcísica.

Como vemos, a noção de infinito surge como fundamental para ambos os autores. Para Matte-Blanco, o inconsciente é formado por conjuntos infinitos e o espaço tridimensional (o que podemos abarcar) é inadequado para representar o espaço mental, que seria de infinitas dimensões, embora os pensamentos possam representá-lo em três dimensões. Assim, os pensamentos seriam uma sucessão infinita de representações tridimensionais simbólicas (Matte-Blanco, 1975).

Bion, por sua vez, coloca a noção de infinito como anterior à de finitude, e a sua descrição do “terror sem nome”, de um conteúdo perdido num universo infinito, se sobrepõem ao modo simétrico de ser. Mais ainda, quando descreve a formação de um conceito, a partir de uma pré-concepção que encontra uma realização, e cada conceito servindo como pré-concepção para um novo conceito, está propondo uma cadeia infinita de desenvolvimento do pensar (Bion, 1962/1991).

Tanto Bion como Matte-Blanco coincidem em considerar a experiência de infinito possível em alguns momentos de insight muito especiais, nas manifestações artísticas e em vivências místicas. Não é fácil assimilarmos a semelhança entre insight e experiência mística. Mas Matte-Blanco parece ter encontrado, nos conjuntos infinitos, uma possibilidade de tentar assimetrizar essa experiência de homogeneidade, tornando-a mais lógica para nosso entendimento. Pensar numa perspectiva simétrica, distante das cadeias lógicas de pensamento, onde estamos mais perto de sentir a experiência, aproxima misticismo de insight, sem o risco de nos transformarmos em místicos. No entanto, talvez seja só uma forma de nos tranqüilizarmos, transformando uma experiência difícil de ser percebida numa conseqüência da lógica dos conjuntos infinitos.

Assim, o método de observação psicanalítico que emerge dessas colocações parece levar a recomendação freudiana da atenção flutuante mais ao extremo (no mínimo, ao extremo do que podemos pensar atualmente). Bion (1970/1991) sintetiza essa visão com a recomendação de que o analista observe “sem memória e sem desejo”, abandonando as memórias conscientes, que são buscadas como refúgio, para que seja possível surgir, espontaneamente, as memórias oniróides, como um sonho. Essa forma de observar não se dá através dos órgãos dos sentidos, depende de uma intuição– “intuir” como uma forma de observar da qual não temos plena consciência. Matte-Blanco nos ajuda a precisar essa “intuição” quando afirma ser necessário que o analista afrouxe as cadeias lógicas do curso de seu pensamento para poder perceber o modo simétrico. Se é impossível um abandono completo dessas cadeias, podemos “enfraquecê-las”, utilizando a percepção emocional do que ocorre entre paciente e analista, aceitando essa dimensão menos lógica como um modo legítimo de conhecer (Jordan, 1994).

No entanto, abandonar o pensamento lógico, mesmo que por pouco tempo, não é tarefa fácil para o analista. Algumas palavras de Matte-Blanco sobre o assunto:

[…] a lógica foi criada ao longo da história do homem e tem se mostrado útil para ter algum poder sobre a natureza. Do ponto de vista emocional, é uma reação contra a ansiedade provocada por sentimentos de fragilidade e insegurança, inicialmente do seio e, depois, de todos os elementos que deixam exposta a impotência diante do mundo […] O pensamento lógico-científico é a mais extrema forma de defesa contra sentimentos de impotência e é útil para conquistar a natureza, mas representa um empobrecimento, pois é apenas uma parte da mente humana. Apesar das possibilidades que o estudo do inconsciente traz, não podemos descuidar da angústia que provoca, no paciente e no analista, porque devem se despojar, nem que seja por momentos, das cadeias da lógica aristotélica, que oferece proteção contra a confusão (Matte-Blanco, 1975, p. 58).

O trabalho psicanalítico precisa, portanto, para se desenvolver, ultrapassar resistências nos dois termos da equação, esperando-se que um dos termos (o analista) esteja mais bem preparado para isso.

Das colocações de Bion e Matte-Blanco se depreende que ambos julgam possível que essa atitude mental do analista pode ser atingida, mesmo que apenas em alguns momentos, a partir de um esforço consciente. Meltzer (1978/1990), ao contrário, não acredita que esse estado possa ser alcançado por um ato de vontade. Com algum otimismo, pode ser algo passível de ocorrer em alguns momentos ou de “ir acontecendo” aos poucos, como uma transformação no caminho de se tornar um analista. De qualquer forma, faz diferença se vamos ou não ter em mente essa proposta, mesmo como uma utopia que, apesar de inalcançável, não pode ser abandonada.

Em resumo, o que é proposto para que o analista observe adequadamente os fenômenos de uma sessão é o abandono, em alguma escala, dos laços da lógica e da razão, para poder perceber outra dimensão que também faz parte da natureza humana: o modo simétrico. É uma dimensão mística no sentido de afrouxamento de ligações com o que é apenas assimétrico, que permita uma aproximação com a simetria. Um estado mental o mais próximo possível de uma condição sem memória e sem desejo seria indispensável para uma observação intuitiva, ponto de partida para que uma interpretação possa ser formulada.

Chegamos, assim, ao trabalho analítico. As contribuições de Bion e Matte-Blanco ampliam o universo da tarefa psicanalítica, que passa a incluir um aumento (às vezes, inclusive, o início) da capacidade do paciente de pensar sobre suas experiências emocionais, tolerando a dor psíquica envolvida nesse processo de busca de conhecimento da verdade. Para Bion, o modelo mãe-bebê, colocado em termos de relação conteúdo-continente, serve como referência para o trabalho analítico. É como um protótipo do processo de aprendizagem, e, nele, o analista deve propiciar ao paciente um continente ativo onde novos vértices de compreensão possam ser formados, através de operações alternantes de integração-desintegração. A base é a experiência emocional analista-paciente intuída na sessão, numa atmosfera de privação para ambos (Bion, 1963/1991).

Matte-Blanco enfatiza, no trabalho analítico, o processo de assimetrização, de expansão nas relações possíveis dentro do infinito do simétrico, o que claramente se relaciona com a expansão da capacidade de pensar sobre a experiência emocional. Seria o trabalho de conduzir da simetria à assimetria, através da simetria (a percepção emocional do analista, não usando a lógica). O mecanismo de “tradução” do que é inconsciente ao modo assimétrico se baseia na possibilidade de transpor de um tipo de lógica a outro, usando o conhecimento emocional como ferramenta, o que coloca o efeito da análise como afetivo-cognitivo. É a forma como Matte-Blanco parece entender a interpretação, um trabalho de formulação em termos assimétricos do que foi percebido simetricamente.

Para Bion, a partir do surgimento do “fato selecionado”, uma experiência emocional de descobrimento de coerência, será possível fazer uma síntese e formular uma interpretação. Interpretar significa a capacidade do analista de verbalizar suas intuições e reações frente àquilo que o paciente diz (Bion, 1970/1991). Assim, apesar da ênfase na experiência emocional, a interpretação verbalizada continua essencial para que o pensamento cresça em sofisticação, além do nível do sonho e do mito. A insaturação das interpretações, deixando abertura para diversas construções no infinito simétrico, muda a formulação usual, propondo uma hipótese, uma nova perspectiva surgida do vértice de um outro observador, supostamente preparado para essa tarefa.

O início da análise de João, de 10 anos, pode ilustrar um pouco o que se destacou até aqui. É um menino muito inteligente, interessado em matemática e astronomia, com uma séria dificuldade no controle de suas emoções, apresentando crises em que chora desesperado, atira objetos e agride os colegas. Tem rendimento escolar baixíssimo. Descreve assim a percepção que tem de “dentro da cabeça”: “São várias semi-retas se cruzando em todas as direções… uma confusão… uma parece infinita, viaja pelo cosmos, pode se perder no espaço… outra se perde num buraco escuro, sem fundo, cheio de raiva…” A relação entre afeto e pensamento é direta: a impossibilidade de organizar e conter emoções inviabiliza o desenvolvimento cognitivo. O continente psíquico mostra-se excessivamente flexível, sem contornos seguros que impeçam que a emoção seja vivida como infinita, perigosa, apavorante.

No início do atendimento, minha principal função era não me desesperar com seu sofrimento e seu descontrole, apesar de não conseguir evitar um sentimento de apreensão, um temor de que ele me agredisse. Essa percepção, mais próxima da simetria, me fazia sentir o que, provavelmente, ele sentia– pânico, insegurança e fragilidade–, e era essencial para que eu pudesse compreendê-lo. Durante muito tempo, passamos classificando tipos de raiva, organizados num papel, totalizando sete tipos, com n maneiras de se combinarem entre si. Nessa fase, não importava tanto o conteúdo dos “tipos” de raiva ou o conflito que poderia estar envolvido, mas a atividade de assimetrização de suas emoções, a tentativa de estabelecer semelhanças e diferenças no que era um sentimento homogêneo, diminuindo seu pânico de “se perder” no infinito da simetria. Era essencial que ele percebesse que se pode pensar sobre sentimentos, não apenas senti-los. Para isso, eu precisava não apenas pensar, mas também sentir. Minhas interpretações precisavam se basear num sentir prévio, não numa atividade assimétrica dissociada da simetria.

Mais tarde, começamos a catalogar tristezas, que foram ganhando nome, junto com as raivas; pudemos conversar sobre o recente nascimento de um irmão, depois de ele ficar dez anos como filho único, os desejos de matá-lo e aos pais traidores, as preocupações sobre seu corpo, sobre não ser o melhor em todas as matérias e não ter habilidade para os esportes, etc. Abriu-se um espaço em que era possível pensarmos sobre o que sentia. Claro, com momentos nos quais nada parecia acontecer, quando ele se queixava de um tédio sem fim, com saudades da raiva que sentia antes. Sua mente e as sessões pareciam preenchidas com um infinito de nada, correspondendo a sua queixa pela perda do poder onipotente que a raiva parecia lhe fornecer. Nas suas palavras: “Agora sou um comum…”

 

Algumas “assimetrizações” possíveis

O que se segue é uma tentativa de refletir sobre algumas questões referentes ao método psicanalítico a partir do que foi destacado do pensamento de Bion e Matte-Blanco. Por sua própria natureza, é uma organização pessoal e provisória, que se espera venha a ser modificada e ampliada.

Neste trabalho, me detive em dois autores, Bion e Matte-Blanco, formados numa linha do pensamento psicanalítico que parte de Freud e o integra a Klein. Mais do que um exercício de detectar semelhanças, procuro, através da superposição de vértices, ampliar a possibilidade de pensar sobre o trabalho psicanalítico, seguindo o que esses autores propõem como sendo essencial para que um pensamento se desenvolva.

A posição em que vemos o analista, hoje em dia, não é mais aquela de quem fornece interpretações como quem assegura verdades, uma espécie de “analista positivista”. A posição do paciente também se afigura menos passiva, assumindo por vezes o papel do “melhor colega” do analista, o que tem as informações vitais, apesar de não poder utilizá-las (Bion, 1978/1992). Ambos aprendem durante o processo. A “mente do analista” se sobressai como o instrumento de trabalho básico, nosso microscópio, quase ganhando status metapsicológico. Essa perspectiva retira o analista de uma posição onipotente, mas traz o risco de que se centre o trabalho psicanalítico nas capacidades dessa mente, afastando o paciente do processo, ou de que se esqueça que a relação analista-paciente é, e precisa ser, assimétrica, como lembrou Bion (1978/1992). O fato de que sentimentos no analista são inevitáveis e servem como seu instrumento de trabalho não o isenta da responsabilidade de, diferentemente do paciente, precisar elaborá-los e não atuá-los, usando-os para conhecer a realidade psíquica do paciente e não como descarga de emoções. A abolição da assimetria, em nome de uma posição mais próxima, menos “ortodoxa”, é eximir-se de uma responsabilidade ética que é inerente à condição de psicanalista, conseqüência inevitável de uma real compreensão de seu papel.

O estudo da relação analista-paciente, substituindo a visão de transferência e contratransferência como fenômenos isolados um do outro, coloca em evidência as formas através das quais se dá a transmissão e a recepção de mensagens durante a sessão. Além das palavras, há toda uma comunicação pré-verbal, mediada pela identificação projetiva, e parece não haver dúvidas sobre o papel terapêutico do que o analista comunica através de um estado mental de disponibilidade reflexiva e não-crítica, que procura pensar ao invés de descarregar emoções. Nesse sentido, é importante que o paciente perceba que não somos imunes aos mesmos sentimentos que ele experimenta, que poderíamos nos descontrolar, mas não o fazemos, porque algo nos permite uma outra solução (Bion, 1980/1992).

No entanto, sabemos que a maior parte do que é comunicado se dá por via inconsciente e, portanto, a construção de uma identidade analítica consistente, não apenas racional, parece ser a única forma confiável de buscar essa comunicação. Assim, cada vez mais, é para o preparo do psicanalista que essas questões convergem, não buscando garantias de resultados terapêuticos com isso, mas enfatizando a necessidade da formação de profissionais com recursos para lidar com a complexidade do psiquismo. Uma boa análise é pré-requisito para a formação de um bom analista. Como se obtêm boas análises? Formando bons analistas. De que forma se pode ampliar esse raciocínio, para que não se feche sobre si mesmo ou na repetição pura e simples do tripé da formação psicanalítica?

Os dois autores destacados neste trabalho, apesar de diferenças importantes, preocupam-se com as características do objeto de observação da psicanálise, o psiquismo, e com a melhor forma de observar esse objeto. O que fazer se a observação mostra que a natureza do psíquico tem incertezas, contradições, não podendo ser explicada com rigor? Seria conveniente e mais simples se o mundo da realidade, interna e externa, se mantivesse dentro da nossa compreensão, mas não há nenhuma razão para que seja assim (Bion, 1978/1992). Nesse sentido, as idéias de Matte-Blanco oferecem substrato para um melhor conhecimento não só das propostas de Bion, mas dos fenômenos mentais como um todo, mostrando a antinomia fundamental e permanente entre simetria e assimetria. O que surge daí não é um mundo vago, onde tudo é possível, onde tudo é interpretação, mas um mundo cujos fenômenos incluem incertezas e probabilidades, o modo simétrico de ser.

Na verdade, um processo semelhante ao ocorrido com os físicos, quando tiveram de se render à observação de fenômenos quânticos. No mundo do muito pequeno, o observador tem um papel fundamental na determinação da natureza do que está sendo observado. E, além disso, o próprio objeto de observação apresenta, em sua natureza, incertezas, o que faz com que os resultados só possam ser dados em termos de probabilidades. A certeza é substituída pela incerteza, o determinismo pela probabilidade, os processos contínuos pelos saltos quânticos. Para Heisenberg (1958/1998), incertezas, dualidades e complementaridade não são apenas representativos de nossa ignorância, representam como a natureza realmente é, fundamentalmente incerta e dual, ao menos na nossa percepção. A natureza do psíquico, em seus aspectos mais microscópicos, não parece distante dessa descrição. Mas, como sabemos, a incerteza apavora, assim como o sentimento de pequenez quando nos aproximamos de nossa posição no universo e dos limites do que podemos saber sobre os fenômenos. A resistência não é apenas no paciente, como gostaríamos de acreditar. Também queremos certezas, causas que expliquem o que se passa. Talvez sirva de consolo o fato de Einstein ter ido até o fim da vida sem aceitar a teoria quântica, mesmo constatando sua validade. Para ele, Deus não jogava dados e as certezas ainda seriam alcançadas.

De qualquer forma, a observação psicanalítica, ponto de partida para que possamos entender o paciente e formular uma interpretação, tem sua especificidade, dada a natureza do que se propõe a observar. Portanto, as recomendações para o analista, de afrouxamento do pensamento lógico e um estado mental sem memória e sem desejo, talvez precisem ser mais discutidas. Também são pontos sujeitos a interpretações muitas vezes equivocadas, que vêem aí riscos de uma atitude não-científica, quando, justamente, o proposto é que busquemos aprimorar o instrumento levando em conta o que se quer observar. A postura em relação à intuição e ao conhecimento que ela pode proporcionar está na dependência da linha epistemológica seguida, mas uma aproximação cuidadosa de sua aplicação na psicanálise poderia abrir novas perspectivas. Seguindo um pouco mais, é sempre bom lembrar que o proposto não é um método psicanalítico intuitivo de atuar, mas, sim, de observar. É necessário todo o trabalho posterior de elaboração dessa percepção, trabalho que possibilite que ela seja traduzida, assimetrizada, ganhando contornos que lhe permitam ser apresentada para a consciência, ser pensada e significada, podendo, então, assumir uma forma comunicável.

A experiência emocional, dentro da perspectiva desenvolvida aqui, assume o centro da vida mental, tornando-se o foco do trabalho analítico. E uma experiência emocional não pode ser concebida isolada de uma relação, de um vínculo. Assim, o determinante não são os objetos, mas a natureza da relação entre eles, que vai ser percebida como uma emoção. Mas essa perspectiva não coloca o método psicanalítico como a análise do vínculo; o que se destaca é que a forma de que dispomos de perceber as experiências é estabelecer relações. Para Matte-Blanco, a mente está sempre formando proposições sobre “uma coisa”, “outra coisa” e a relação entre elas, formando um conjunto infinito de tríades, ponto de partida para todo pensamento (Matte-Blanco, 1975). A centralidade da transferência como fonte privilegiada de conhecimento da forma de funcionar de nossos pacientes, uma das noções básicas da psicanálise, pressupõe essa visão da importância da relação.

No entanto, na literatura psicanalítica atual, percebem-se formas diferentes de abordar o tema “transferência”. A recomendação técnica clássica de interpretação sistemática da transferência, considerada o diferencial de uma psicanálise, também parece não estar presente como antes. Goldberg (2000), a propósito dessa questão, diz só ter encontrado em Gill a ênfase na resolução da transferência por meio da interpretação. O que fica claro é que há um conhecimento mais detalhado sobre a relação analista-paciente e que os conceitos de transferência e contratransferência isoladamente não dão conta do que é observado numa sessão analítica. Um estudo mais detalhado sobre a posição do conceito de transferência e sua utilização técnica na literatura analítica atual seria de muita utilidade, já que a forma como muitas vezes é abordado termina por esvaziar sua riqueza, levando à mera repetição estereotipada do termo. De qualquer forma, somente a compreensão do clima emocional da sessão pode colocar o analista em posição de oferecer interpretações de qualquer natureza, inclusive extratransferenciais, que serão implicitamente transferenciais quanto ao processo. Para Ahumada (1996/1999), as colocações de Matte-Blanco situam a transferência, as recordações do passado e a vida atual do paciente como fatores das mesmas funções proposicionais inconscientes, atemporais. Assim, a distinção entre interpretação transferencial e extratransferencial diria respeito aos indivíduos e não às formas proposicionais.

Neste trabalho, foi enfocada a perspectiva que coloca a ação da psicanálise como promotora da aprendizagem de uma nova forma de organizar os dados, aqui entendidos como os sentimentos que acompanham as experiências emocionais. A posição do analista lhe dá uma função pedagógica diferente, de organização dessas emoções em elementos capazes de produzir pensamentos. A lenta maturação do bebê humano, que o torna dependente de outro ser para sua sobrevivência física e emocional, se traduz na eterna necessidade de outro para significar suas experiências. Na situação analítica, do outro-analista, para que algo seja ressignificado (ou ganhe significado pela primeira vez). A aproximação do modelo de funcionamento da análise com o modelo da interação mãe-bebê precisa ser claramente diferenciada de maternagem ou de recuperação de falhas passadas e entendida como metáfora. Esse modelo destaca a importância de conhecermos a forma como se dá o desenvolvimento afetivo-cognitivo, como se organizam os vários dados recebidos para a apreensão do mundo e a conexão indissociável desses processos com uma relação bipessoal. Sabemos hoje, pelo avanço das neurociências, que o cérebro funciona como um sistema fechado, já contendo, desde o nascimento, todas as capacidades potenciais, uma superabundância de conexões sinápticas e infinitas variações na forma como podem se organizar funcionalmente, na dependência das vias que forem estimuladas. O que percebemos e o que lembramos não é a experiência em si, mas o que foi determinado pelos caminhos mais estimulados ao longo do nosso desenvolvimento (Pally & Olds, 1998). Ainda mais: as emoções têm papel fundamental em todo o processo, coordenando mente e corpo, organizando percepções, pensamento, memória, fisiologia e interação social, sendo capazes de desencadear todo um processo de ativação de vias neuronais (Pally, 1998).

Ter em mente uma noção do desenvolvimento nos possibilita diferenciar os vários níveis de funcionamento afetivo-cognitivo dos pacientes e estabelecer prioridades em nossas intervenções, desde situações nas quais a tarefa analítica primeira será ajudar o paciente a formar a capacidade de pensar sobre emoções, até outras em que, já estando essa capacidade presente, se buscará alterar aquelas teorias até então não sujeitas a questionamento. Aqui se trata, evidentemente, de uma simplificação, mas exemplifica um aumento dos recursos técnicos disponíveis. Conhecemos hoje com mais clareza os vários níveis em que as interpretações podem ser formuladas (ou aguardar para formulá-las), de acordo com particularidades de cada paciente. Da mesma forma, as interpretações ganham em riqueza e, possivelmente, eficiência, na medida em que ficam menos presas à necessidade de serem conclusões explicativas e se tornam mais conjeturas possíveis. A linguagem utilizada, se mais coloquial e menos estereotipada, confere mais calor às interpretações. O conhecimento da riqueza do modo simétrico e da importância da comunicação analógica nos sinaliza a importância de que nossas interpretações sejam “humanas”, tolerantes, e que possamos usar uma linguagem mais rica, buscando metáforas que auxiliem a compreensão. No entender de Bion (1963/1991), as interpretações devem se expandir ao terreno dos mitos (permitindo que se criem modelos) e ao terreno das paixões (uma evolução do sensório para o estético, com o resgate da sensibilidade para perceber as emoções com intensidade e calor). Dito de outra forma: os dados da experiência emocional da sessão, captados com paixão simétrica, podem ser assimetrizados em infinitos modelos.

Assim, podemos dizer que nossa proposta ao paciente é que sejam revistas as formas de organizar suas experiências afetivas e as teorias construídas para sustentar essas hipóteses. É fundamental, nesse processo, que a crítica do paciente se atenue e que ele possa ficar menos horrorizado consigo mesmo (Bion, 1978/1992), sem que isso signifique uma caricatura de analista amoral, que sugere ao paciente que tudo é possível e que qualquer comportamento está certo se ele assim o quiser. Podemos dizer que, para que uma teoria seja revista, é necessário um tribunal especial, regido por um código diferente daquele de um superego tirânico, sem ser amoral. A moralidade é estabelecida pela regra de procura da verdade e não-aceitação da mentira ou imputação de culpas ou absolvições. Desse código não constam saídas maníacas e, portanto, não é aceita a proposta de mudar o passado como alternativa, pelo simples motivo de que isso não é possível.

Numa visão ideal, cabe ao analista ser, nessa corte, o representante do desejo do paciente de promover alguma mudança. Nessa função, deve garantir, antes de mais nada, que todas as facções em litígio– e aqui a noção de conflito se destaca– tenham asseguradas seu direito de expressão, procurando evitar que qualquer posição seja tomada antes de bem examinada, antes que testemunhas sejam chamadas a depor, que contradições sejam percebidas. Assim, todas as tentativas de boicotar esse processo, tanto por parte do paciente como do analista, devem ser denunciadas, e esta é uma parte fundamental do trabalho: detectar os obstáculos colocados, procurando esclarecer suas razões. Devem-se esperar diversas alegações de que mudanças vão trazer sofrimento, que abrir mão da fantasia de onipotência e aceitar as limitações que a realidade traz a todo o momento é muito ameaçador. Continuamos, analista e paciente, nos estratos mais profundos de nossa mente (se tivermos presente o modelo proposto por Matte-Blanco), a organizar nossas experiências de forma simétrica, procurando abolir diferenciação e conflitos, buscando a homogeneidade onipotente.

A tentativa, no processo psicanalítico, é de obter algum novo acordo onde nada pode ser simplesmente descartado, onde os sentimentos devem estabelecer outra relação entre si e onde, ao invés de culpas e castigos, haja responsabilidade pelo que se sente, se pensa e se faz. O principal objetivo desse acordo deve ser aumentar a capacidade de tolerar frustrações, já que estas são inerentes à realidade, tanto interna como externa, e só a tolerância a elas pode permitir a possibilidade de buscar alternativas criativas para as faltas. Cada um tem seu reservatório próprio de simetria, de onde infinitas relações podem derivar. Só a neutralidade genuína do mediador-analista pode garantir esse processo e se baseia na compreensão profunda de que, nesse tribunal, não lhe cabe julgar ou decidir penas, mas catalisar um processo no qual seus sentimentos são um dos ingredientes fundamentais da reação que se desencadeia. A busca de verdades só tem valor quando feita de forma humana, não como procura arrogante, a qualquer preço. Como bem lembrava Bion, verdade sem compaixão é crueldade. A tarefa psicanalítica requer, portanto, mais um ingrediente imprescindível: humanidade.

 

Conclusão

A visão que se terá do trabalho analítico depende inevitavelmente do modelo de funcionamento da mente e da natureza dos fenômenos psíquicos que for utilizado, relacionando-se, portanto, com o referencial teórico de cada analista e, principalmente, com a posição epistemológica adotada. A perspectiva de Bion e Matte-Blanco apresenta uma mente com infinitas possibilidades de organizar os dados das experiências emocionais, matéria-prima para a expansão da capacidade de pensar, sem dicotomia entre sentimento e pensamento.

De qualquer forma, podemos pensar que o pensamento psicanalítico não está estático, que há um pensamento psicanalítico em expansão, e nunca é demais lembrar o custo emocional envolvido em mudanças, a relutância em aceitá-las, ainda mais quando é proposto lidarmos com fenômenos que não podemos controlar com precisão. Assim como Einstein e Bohr se dispuseram a longos debates, nós, psicanalistas, não podemos nos furtar à discussão da natureza da nossa tarefa e do mistério fascinante envolvido nela. Quando nos defrontamos com limitações, as nossas próprias e as do nosso instrumento, temos de aproveitá-las para buscar novas relações, assimetrizações que possam expandir o pensamento psicanalítico. E termos presente, nos inevitáveis momentos de desânimo, as palavras de Bion: “Esta conversa esquisita que denominamos psicanálise funciona– é inacreditável, mas funciona”(Bion, 1978/1992, p. 126). Não de forma onipotente como talvez desejássemos, mas como algo essencialmente humano, limitado, porém com infinitas possibilidades de desenvolvimento.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Viviane Sprinz Mondrzak
Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre
Av. Taquara 198/201
90460-210 Porto Alegre - RS Brasil
Tel.: +55 51 3330 6513
E-mail: mondrzak@terra.com.br

Recebido em 3.7.2006
Aceito em 15.12.2006

 

 

1 Trabalho publicado no International Journal of Psychoanalysis, 85, 2004.
2 Membro efetivo da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre SPPA.

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