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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.42 n.3 São Paulo set. 2008

 

DIÁLOGO

 

Reflexões sobre uma “sessão instalação”: comentário à entrevista

 

Reflexiones sobre una “sesión instalación”

 

Reflections on a “session installation”

 

 

Thais Blucher*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora faz algumas reflexões a partir da idéia de que a arte reflete os procedimentos culturais de cada instante e que a psicanálise está inserida no mesmo contexto histórico cultural a arte contemporânea pode estar mais próxima do que se tem pensado na psicanálise. A conceituação do artista sobre a “instalação” – “uma organização espacial em que as coisas acontecem só e quando definitivamente se entra nela” – permite um paralelo com a clínica psicanalítica, aqui ilustrada por uma vinheta chamada “sessão instalação”.

Palavras-chave: psicanálise; arte contemporânea; estética; sublimação; “sessão instalação”.


RESUMEN

El autor hace algunas reflexiones a partir de la idea de que el arte refleja la cultura de los procedimientos de cada momento y que el psicoanálisis se inserta en el contexto histórico y en la cultura el arte contemporáneo puede venir más cerca que pensamos en el psicoanálisis. El concepto de lo artista de instalación “una organización espacial en el que las cosas suceden, y sólo cuando se llega finalmente que permite un paralelismo con la clínica psicoanalítica, ilustrado por una viñeta clínica llamada “sesión instalación”.

Palabras clave: psicoanálisis; arte contemporáneo; estética; sublimación; “sesión instalación”.


ABSTRACT

The author makes some reflections inside the idea that art reflects the cultural procedures of each moment, and that psychoanalysis is embedded in the historical context culture a contemporary art can come closer than we thought in psychoanalysis. The concept of the artist on “installation” “a spatial organization in which things happen, and only when it finally comes, it allows a parallel with the clinical psychoanalytic, illustrated by a clinical vignette called “installation session”.

Keywords: psychoanalysis; contemporary art; aesthetics; sublimation; “installation session”.


 

 

São os espectadores que realizam as obras.
Marcel Duchamp, 1957

 

O artista plástico e professor Carlos Fajardo nos dá idéia das reflexões de um artista contemporâneo através do relato de sua história, seu percurso e sua preocupação com o aprendizado do ofício. O artista, pintor, escultor e fotógrafo propõe também, como forma de expressão, a ruptura com o discurso moderno da arte como linguagem e entra no campo da temporalidade.

Segundo Fajardo, a arte rompe com o simbólico, rompe o compromisso com a representação e encontra um sistema de equivalências. De forma distinta do espectador que de forma passiva vê na obra de arte a busca de um significado, a arte contemporânea, na concepção do artista, propõe uma relação de fisicalidade, de interação esta que se traduz na “instalação”, que, nas palavras de Carlos Fajardo, funciona como “uma organização espacial em que as coisas acontecem só e quando definitivamente se entra nela”.

Será que a arte contemporânea, dentro da definição do artista, pode se aproximar do que temos pensado a respeito da psicanálise?

Pode-se dizer que a arte reflete os procedimentos culturais de cada instante. A arte moderna se refere a uma nova abordagem que rompe com a idéia de representar literalmente um assunto ou objeto. Aqui os artistas passam a experimentar novas visões sobre a natureza, os materiais e as funções da arte.

A psicanálise, por sua vez, também está inserida nesse mesmo contexto histórico-cultural. Nasce na modernidade vienense, com Freud. Calcado em moldes positivistas e num método de observação herdado de suas atividades como neurologista, o qual se fundamentava na observação rigorosa da matéria empírica para obtenção de leis gerais, Freud acaba subvertendo sua própria origem. O método psicanalítico diverge da observação científica da época. Freud desaloja a consciência e a razão de seu papel central e inclui os conflitos do ego e os sonhos no campo de observação científica (Kon, 1996).

A psicanálise se desenvolve, amplia suas fronteiras ao buscar a compreensão dos fenômenos mentais. Do modelo arqueológico inicial caminhamos para as fantasias inconscientes descritas por Melanie Klein, o “sem memória” e “sem desejo” de Bion, os fenômenos transicionais de Winnicott, os estados sexuais da mente de Meltzer.

 

Qualidades estéticas do processo psicanalítico

Durante muitas décadas o estudo psicanalítico da estética foi uma espécie de “psicanálise aplicada”, ou seja, as teorias psicanalíticas eram usadas para interpretar o autor ou a obra tema amplamente desenvolvido por João Frayze-Pereira em seu livro Arte e dor (2006).

Psicanalistas reconhecem, desde o próprio Freud, que os temas trabalhados e desenvolvidos por artistas são, sob vários aspectos, semelhantes aos temas da experiência humana dos quais se ocupa a psicanálise.

Para Freud, a arte é compreendida como sublime. Parte do pulsional, mas desvia-se para um alvo não-sexual, visando objetos socialmente valorizados (Freud, 1905). A idéia é pouco desenvolvida, mas a sublimação pretende conferir um outro destino à pulsão sexual aparentemente livre de conflitos. Se o destino é distinto, a origem é a mesma. Sonhos, chistes sintomas e a arte de maneira geral têm origem no mesmo caldeirão pulsional, e, portanto, permitem a busca de um significado oculto.

A escola kleiniana reforça e amplia essa idéia. O conteúdo da obra de arte revela fantasias inconscientes. Hanna Segal descreve o ato criativo como uma tentativa do artista de recriar um mundo harmonioso, perfeito, no sentido da reparação (Segal, 1991).

Tanto na escola freudiana como na kleiniana, o analista-espectador se aproxima da obra de arte como do analisando na sessão, buscando atribuir um significado às manifestações inconscientes.

Novas teorias aparecem para dar conta dos fenômenos da mente. Bion e Winnicott, cada um à sua maneira, propõem uma ampliação das dimensões estéticas dentro da compreensão psicanalítica. Suas teorias incluem a forma no campo de observação.

Bion, com o modelo do aparato mental, dá ênfase às formas de pensamentos por meio das quais os sentimentos são expressos, comunicados e contidos. Boa parte da comunicação na sessão entre analista e analisando se faz de forma inconsciente, segundo afirma o autor, através de mecanismos descritos como identificação projetiva. A fala ganha uma dimensão mais dinâmica de interação entre analista e analisando (Bion, 1987).

Winnicott, com o conceito de objeto transicional e de fenômenos transicionais, também cria um olhar para o que se passa na inter-relação entre analista e analisando. Fenômenos que acontecem entre a subjetividade e a objetividade da sessão. Estamos no campo das ilusões (Winnicott, 1975).

Entre os psicanalistas da atualidade, encontrei em Antonino Ferro uma descrição que parece se aproximar daquilo que Fajardo chamou de “instalação”.

Ferro descreve o acontecer na sessão de análise: “Falo daquela maneira de o analista estar na sessão, quando ele participa com o paciente da construção de um significado de forma altamente dialógica, sem grandes cesuras interpretativas.” Analista e paciente construindo juntos uma peça teatral em que os enredos podem crescer, se articular e se desenvolver de formas imprevisíveis e impensáveis para os dois co-narradores e sem que entre eles exista um depositário de uma verdade pré-constituída (Ferro, 1999). A busca de um sentido é construída através da interação da dupla analista-analisando durante a sessão.

Imaginando que a relação do espectador com a obra de arte, nos moldes da “instalação” proposta por Fajardo, possa ilustrar a aproximação entre analista e analisando, esboçarei um paralelo entre tais relações por meio do relato de uma sessão.

 

Uma “sessão instalação”

Ricardo, um menino de 12 anos, vem para análise devido a questões de insubordinação em relação à autoridade. Pequeno, magrinho, desafia a todos, comportamento que vem se acentuado. Na escola, costuma ser mandado para fora da classe diariamente. Confronta professores e familiares. Sou freqüentemente avisada das ações do menino.

Chega a esta sessão com alguns minutos de atraso. Entra sozinho no consultório, ofegante, mas logo é alcançado por sua avó, que entra reclamando que o perdera de vista (ele sempre sai correndo e se separa dela durante o caminho). Sou avisada por ela de que ele “enrolou” e por essa razão se atrasaram.

Ao entrarmos na sala, ele começa a se explicar e eu lhe digo que não o estou julgando, que podemos conversar. Pergunta em seguida se pode tomar água e, depois de tomar dois copos, indaga se ele é quem mais toma água em meu consultório, dizendo então que acha que vai acabar com toda a água que eu tenho lá. “Que boca grande que você tem!” Penso que é filho único e que depois dele não veio mais ninguém.

Logo ele me diz que sabe o que quer fazer e me pede um lençol que tenho na sala. Começa a construção de uma “cabana”. Vai pedindo minha ajuda para executar algo que pensou. Eu estou ali com ele, acompanhando sua construção, que vai sendo elaborada lentamente. Tenho pensamentos sobre bebês muito pequenos. Ao colocar na entrada da cabana uma mesa pequena, diz que quer uma entrada bem apertada, como um túnel. Penso em entranhas, útero, intestinos, vagina, ânus. Nada falo.

Não consigo encontrar palavras que expressem a situação que estamos compartilhando. A sensação é de que qualquer tentativa de inserir a atividade em palavras restringiria o que está acontecendo. Quando a cabana fica pronta, Ricardo entra e eu fico sentada numa cadeira a certa distância. Ele quer saber se consigo vê-lo e, lá de dentro e diante da minha negativa, me pede que eu adivinhe onde ele está. Anda pela cabana de um lado para outro e vai dizendo: “E agora, onde estou? E agora? Puxa, você é boa nisso, não errou nenhuma!”

Quando ele pára e fica quieto, digo-lhe que me veio uma imagem de um bebê que, quando está na barriga da mãe, às vezes ela consegue reconhecer uma parte do bebê, um braço, uma perna… Pergunto o que lhe ocorre.Ele me diz que pensou num super-rato com uma mochila voadora e uma cauda com uma bola de eSPInhos na ponta. Conforme vamos conversando, ele associa que tem cara de rato e que muita gente o chama assim. Rato é um animal pequeno, mas asqueroso. Dá idéia de sujeira, de doença. O super-rato se contrapõe a essa idéia. Tem muito poder.

 

Reflexões

Quantos caminhos podem ser seguidos numa tentativa de compreender os fenômenos que estão ocorrendo? Num primeiro momento, a fala que aplaca a crítica sobre a dificuldade de Ricardo chegar à sessão permite que ele expresse fantasias sobre sua relação com a analista, sua voracidade, seu sadismo. Nesse momento, a versão escolhida é a pontuação da fantasia inconsciente captada. Ao começar a construção da cabana, a comunicação se expande e eu sou convidada a compartilhar intensamente a sua atividade. Os limites estão menos claros, e a analista fica imersa no universo que está sendo proposto.

A busca do significado passa para segundo plano, e o que predomina na sala de análise está no âmbito das intensidades. O foco da sessão passa a ser, então, a construção, o ato criativo, a ampliação do campo de observação. A imagem do super-rato surpreende a analista e amplia nosso repertório.

A arte contemporânea, segundo Fajardo, propõe uma interação entre espectador e artista na qual importa o que está acontecendo no momento da experiência. O destino da obra será dado pelo olhar do espectador. A fala das crianças dentro da instalação do artista quando expressam o receio de cair em virtude da sensação provocada pelos espelhos ilustra essa idéia. Surge algo novo, impensado e transformador.

É a partir dessa noção que traço um paralelo com a psicanálise. A busca do sentido é uma dos possíveis seja diante de uma obra de arte, seja no encontro analítico. Penso inclusive que, quando esse sentido se faz possível, ele é transformador, talvez como Ricardo tenha podido escutar a minha fala durante a sessão.

Mas a circunscrição é temporária, o campo se abre para novas explorações. Como na instalação de Fajardo, estamos imersos na experiência da relação. O significado se constrói na dupla única e exclusivamente quando ambos os participantes estão aptos a conhecê-lo. Talvez a “sessão instalação” esteja presente no cotidiano da nossa clínica, como umas das alternativas possíveis para o par analista-analisando.

As teorias psicanalíticas, assim como as formas de expressão artísticas, estão em constante transformação. Ambas têm em comum a necessidade de permitir o surgimento do novo, do impensado, numa tentativa de ampliar o universo mental.

 

Referências

Bion, W. (1988). Estudos psicanalíticos revisados. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1969.)        [ Links ]

Ferro, A. (2000). A psicanálise como literatura e terapia. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1999.)        [ Links ]

Freud, S. (1972). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas, vol. 7. (Trabalho original publicado em 1905.)        [ Links ]

Frayze-Pereira, J. (2006). Arte, dor. São Paulo/Cotia: Ateliê.        [ Links ]

Kon, N. M. (1996). Freud e seu duplo. São Paulo: Edusp.        [ Links ]

Segal, H. (1993). Sonho, fantasia e arte. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1991.)        [ Links ]

Winnicott, D. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1971.)         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Thais Blucher
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo - SBPSP
Rua Pedroso Alvarenga, 1245/102 - Itaim Bibi
0451-012 São Paulo - SP - Brasil
Tel.: +55 11 3079-1316
E-mail: thblucher@uol.com.br

Recebido em 21.09.2008
Aceito em 10.10.2008

 

 

* Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP.

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