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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.43 n.2 São Paulo jun. 2009

 

PRÊMIOS

 

O que representa representação?1

 

Que es lo que la representación representa?

 

What does representation mean?

 

 

Josênia Maria Heck Munhoz2

Membro Aspirante da Sociedade Psicanálise de Porto Alegre

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora busca compreender o conceito de representação na obra de Freud, buscando também o auxílio de outros autores como Green, Hanns, Garcia-Rosa, Laplanche & Pontalis e Valls. Entendese que representação é um conceito complexo e extremamente articulado, que une no interior de sua definição, a pura metapsicologia freudiana relacionada com as pulsões e os afetos. Assim, representação representa um fenômeno, cuja função está ligada à estruturação do aparelho psíquico e da mente, tanto inconsciente como consciente, abarcando os três pontos de vista da teoria psicanalítica: o topográfico, o econômico e o dinâmico.

Palavras-chave: Representação; Pulsão; Aparelho psíquico.


RESUMEN

La autora busca entender el concepto representación en la obra de Freud, buscando también el auxilio de otros escritores como Green, Hanns, Garcia-Rosa, Laplanche & Pontalis y Valls. Se entiende que la representación es un concepto complejo y muy articulado que une en el interior de su definición la metapsicologia freudiana pura, relacionada a las pulsiones y los afectos. Siendo así, la representación representa un fenómeno cuya función está unida a la estructuración del aparato psiquico y de la mente, tanto inconsciente cuanto consciente abarcando los trés puntos de vista de la teoría psicoanalitica: el topográfico, el económico y el dinámico.

Palabras clave: Representación; Pulsión; Aparato psíquico.


ABSTRACT

The author aims to understand representation as a concept in Freud’s work, using the help of other authors such as: Green, Hanns, Garcia-Rosa, Laplanche & Pontalis and Valls. It is understood that representation is a complex and extremely articulated concept which unites in the core of its definition, pure Freudian metapsychology in relation to the instincts and affects. Hence, representation embodies a phenomenon of where its role is linked to the structuring of the psychic apparatus and to the conscious and unconscious mind. It covers the three psychoanalytic points of view which are: economic dynamic and topographical.

Keywords: Representation; Instinct (trieb); Psychic apparatus.


 

 

Os poemas são como pássaros que chegam

Não se sabe de onde

Pousam no livro que lês.

Quando fechas o livro,

Eles alçam voo como de um alçapão.

Ele não tem pouso, nem porto.

Alimentam-se um instante em cada par de mãos e partem.

E olhas, então, essas tuas mãos vazias,

No maravilhoso espanto

De saberes que o alimento deles

Já estava em ti.

(Mário Quintana)

 

1. Breves considerações

Freud (1915a/1969) ao falar sobre “As pulsões e suas vicissitudes”, refere que a principal característica da pulsão, é a de ter sua origem em fontes de estimulação dentro do organismo e de ser uma força constante (konstante kraft) em que nenhuma ação de fuga prevalece contra ela. Esta marca da errância ou determinismo que a pulsão possui para Freud, nos lembra o voo dos pássaros do poeta que saem de um alçapão, ou de dentro do organismo e partem, subindo aos céus. E ao olhar o céu, o homem pensa que os pássaros sumiram, mas ledo engano, pois suas marcas já haviam sido deixadas ao fazerem suas moradas. E novos pássaros nascerão independentes da vontade do homem… (p. 125).

Neste momento, nos perguntamos: Por que, ao pensarmos em escrever sobre Representação, começamos a falar em Pulsão? Que ligação, ou ligações há entre estes conceitos?

A construção do conceito de pulsão inicia-se no texto “Projeto para uma psicologia científica” (Freud, 1950[1895]/1969). Nele Freud distingue que existem estímulos provenientes do mundo externo, os exógenos, e de outros, que se originam no próprio corpo, os chamados endógenos. Cada um deles requer diferentes exigências do aparelho psíquico.

Segue referindo que a principal tarefa do sistema nervoso, seria o princípio de inércia neuronal, onde os neurônios tendem a se livrar de Q (estímulo). Mas em função das exigências da vida, o sistema nervoso é obrigado a abandonar sua tendência original à inércia e tolerar um acúmulo de estímulos endógenos (Qn), suficientes para satisfazer as exigências de uma ação específica. Assim, o princípio de inércia, deu lugar ao princípio de constância. Nesse texto vemos o surgimento do esboço de um modelo de aparelho psíquico, embora ainda aqui com características neurológicas, e necessárias para dar vazão a esta carga de estímulos internos e externos a que o ser humano está sujeito (p. 348).

Freud nomeou esses estímulos internos de pulsões, referidos no “Projeto...”. No texto “O inconsciente” (1915b/1969), sobre o mesmo tema, diz:

… imaginemo-nos na situação de um organismo vivo, quase inteiramente inerme, até então sem orientação no mundo, que esteja recebendo estímulos em sua substância nervosa. Este organismo muito em breve, estará em condições de fazer uma primeira distinção e uma primeira orientação. Por um lado, estará cônscio de estímulos que podem ser evitados pela ação muscular (fuga); estes, ele os atribui a um mundo externo. Por outro lado, também estará cônscio de estímulos contra os quais tal ação não tem qualquer valia e cujo caráter de constante pressão persiste apesar dela; esses estímulos são os sinais de um mundo interno, a prova de necessidades pulsionais. A substância perceptual do organismo vivo terá assim encontrado, na eficácia de sua atividade muscular, uma base para distinguir entre um ‘de fora’ e um ‘de dentro’, o que mais tarde levará à distinção entre mundo interno e realidade ou mundo externo. (p. 125)

Os estímulos externos, por atuarem como forças de impacto momentâneas, podem ser removidos por uma única ação conveniente. Porém, a pulsão jamais atua como força que imprime um impacto momentâneo, mas sempre um impacto constante.

Lembra, ainda, o fato de o estímulo pulsional advir de dentro do organismo e não de fora, imprime a condição de não existir possibilidade de fuga deste estímulo, a não ser por uma medida apropriada, ou específica, que elimine a necessidade interna, devolvendo ao organismo a satisfação, anterior à necessidade (p. 124).

Freud, em “Sobre o narcisismo: uma introdução” (1914/1969):

… reconhece o aparelho psíquico como sendo um dispositivo destinado a dominar as excitações que de outra forma, seriam sentidas como aflitivas ou teriam efeitos patogênicos. Sua elaboração na mente auxilia de forma marcante um escoamento das excitações que são incapazes de descarga direta para fora, ou para as quais tal descarga é, no momento, indesejável. (p. 92)

Garcia-Roza (2000), complementa que aparelho psíquico deve ser entendido, portanto, como um aparato de captura, transformação e ordenação dessas intensidades que lhe chegam de fora (de fora do aparato) e, dentre elas, as que atingem com maior intensidade são as pulsionais (p. 251).

 

2. Então, o que é pulsão?

No artigo sobre pulsões de 1915, Freud refere que

… se agora nos dedicarmos a considerar a vida mental de um ponto de vista biológico, uma ‘pulsão’, nos aparecerá como sendo um conceito situado na fronteira entre o mental e o somático, como o representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo e alcançam a mente, como uma medida da exigência feita à mente no sentido de trabalhar em consequência de sua ligação com o corpo. A pulsão deve ser considerada um estímulo aplicado à mente. (p. 127)

Green (1990), complementa essa definição referindo que pulsão é um conceito extremamente complexo e extremamente articulado que une no interior de sua definição a pura concepção da metapsicologia freudiana, isto é, a conjunção dos três pontos de vista: o tópico, o econômico e o dinâmico.

No texto “O Inconsciente” (1915b/1969), Freud segue falando que

… uma pulsão nunca pode tornar-se objeto da consciência, somente a representação que representa a pulsão é que pode. Mesmo no inconsciente, uma pulsão não pode ser representada de outra forma, a não ser por uma representação. Se a pulsão não se prendeu a uma representação, ou não se manifestou como um estado afetivo, nada poderemos conhecer sobre ela. Não obstante, quando falamos de moção pulsional inconsciente ou de uma moção pulsional reprimida, não é senão por um inofensivo descuido de expressão. Podemos apenas referir-nos a uma moção pulsional cujo representante-representação é inconsciente, pois nada mais entra em consideração. (p. 182)

O que significa ‘moção pulsional’ (Triebregung)? Segundo Laplanche & Pontalis (1967), entre Triebregung e Trieb (pulsão), existe uma diferença muito pequena: “a moção pulsional é a pulsão em acto, considerada no momento em que uma modificação orgânica a põe em movimento” (p. 364).

Como o aparelho psíquico é um aparato de captura do disperso pulsional, esta captura há de impor às pulsões, destinos variados (Garcia-Roza, 2000, p. 119). O alvo da pulsão é a satisfação, mas o caminho em direção a esse alvo não se dá de forma direta e imediata. Segundo Freud (1915a/1969), a pulsão deve passar pelo objeto, no qual e pelo qual, a pulsão buscará atingir seu alvo. Nesse caminho, porém, a pulsão se depara com as exigências da censura e estas levarão as pulsões a ter destinos que serão também e, ao mesmo tempo, defesas contra as mesmas. Entendemos, assim, que os representantes psíquicos da pulsão terão caminhos diferentes que obedecerão a diferentes mecanismos de transformação, tais como transformação ao contrário, retorno em direção ao próprio eu do indivíduo, repressão e sublimação.

Aqui nos deparamos, novamente, com a característica principal da pulsão, ou seja, sua imperiosa indestrutibilidade e de que, sendo uma força constante, também buscará de forma imperiosa sua expressão, ou, como coloca Freud, sua satisfação.

Entendemos que este caráter indestrutivo da pulsão, torna-se ainda mais explícito quando Freud justifica a existência do inconsciente, dizendo que

… aprendemos com a psicanálise que a essência do processo de repressão não está em pôr fim e destruir a representação que representa uma pulsão, mas em evitar que se torne consciente. Quando isto acontece, dizemos que a representação se encontra num estado inconsciente… tudo que é reprimido, deve permanecer inconsciente… mas o alcance do inconsciente é mais amplo… o reprimido é apenas uma parte do inconsciente. (p. 171)

A pulsão, continua Freud (1915b/1969), enquanto tal, é incognoscível, ela só é conhecida através de seus representantes, ou seja, os representantes da pulsão. Assim, a antítese entre consciente e inconsciente, não se aplica às pulsões (p. 182).

Para Garcia-Roza (2000), o que se pode depreender sobre a pulsão, é que “ela própria, está para além da distinção entre consciente e inconsciente, para além, portanto, do espaço da representação, não se fazendo presente no psiquismo a não ser através de seus representantes psíquicos.” (p. 97)

O autor segue dizendo que esta outra característica da pulsão, a de ser incognoscível, é também, para Freud, fundamental, pois

… as pulsões, em si mesmas, seriam todas qualitativamente da mesma índole. A diferença entre elas é dada pelos modos de presentificação no aparato anímico: o modo disjuntivo e o modo conjuntivo. Se a pulsão se faz presente no aparato anímico promovendo e mantendo uniões, conjunções, ela é dita “de vida”; se ela se presentifica no aparato anímico disjuntivamente, “fazendo furo”, então ela é dita “de morte”. Dessa forma, pulsão de vida e pulsão de morte, seriam modos de presentificação da pulsão no psiquismo e não qualidades das pulsões elas mesmas. (p. 162)

Assim, respondendo a pergunta inicial, podemos entender que a “representação” é a maneira como a pulsão se faz presente no aparelho psíquico. Então, o que a “representação” representa, em última instância, é a pulsão.

Podemos ver, assim, como os conceitos pulsão e representação estão ligados, interligados ou entrelaçados, como por “elos”, como se formassem uma corrente de condução. Na linguagem de Freud, no “Projeto...”, de condução de energia, na construção do aparelho psíquico. Assim, no início da corrente que leva à construção do aparelho psíquico, teríamos os estímulos endógenos somáticos, que se transformariam em pulsão e seriam percebidos pela mente, ao se transformarem em representação. Lembramos também que Freud (1915b/1969), coloca que o aparelho psíquico não é só formado a partir da pulsão, mas que se forma para dar conta do “caos” advindo da vida pulsional.

 

3. Diante do exposto, o que podemos entender como representação e como se dá a sua construção no aparelho psíquico?

O conceito representação é utilizado por Freud desde os seus estudos sobre afasias, em 1891.

Para Laplanche & Pontalis (1967), representação em português é a tradução de Vorstellung no alemão. Vorstellung é um termo clássico em filosofia e em psicologia para designar “aquilo que se representa, o que forma o conteúdo concreto de um acto de pensamento” e “em especial a reprodução de uma percepção anterior”. Freud opõe a representação ao afeto, pois a cada um destes dois elementos cabe, nos processos psíquicos, sorte distinta (p. 582).

Hanns (1996), no Dicionário Comentado do Alemão, coloca que Vorstellung é um vocábulo de difícil tradução. A Standard Edition, tende a utilizar os termos idea, image, concept, conception, expression e presentation. A Edição standard brasileira, utiliza as palavras ideia, imagem, conceito, concepção, expressão e apresentação, respectivamente. A tendência da tradução francesa é empregar représentation e derivados deste termo. A tradução espanhola, também utiliza representación e excepcionalmente idea. No artigo de Freud (1912) “A Note on the Unconscious in Psycho-Analysis”, escrito em inglês, os termos utilizados são idea e conception e retraduzidos para o alemão por Hanns Sachs, aluno de Freud, por Vorstellung. A tais dificuldades de optar por uma tradução unânime, acrescenta-se ainda o fato de Vorstellung ter uma inserção secular na filosofia alemã e isto ter influenciado as escolas de psicologia e psicofisiologia do século XIX (p. 396-397).

Valls (1995), refere que Freud outorga significados originais ao conceito representação e que a representação e o quantum de afeto que a investe, são os dois componentes fundantes do psiquismo. Segue dizendo que as representações se produzem de forma complexa. Em sua origem, a princípio, possuem direta relação com a percepção e o registro que esta percepção deixa no aparelho psíquico. Esta relação é tão estreita, que a princípio pareceriam que ambos, representação e traço perceptivo, seriam sinônimos de traços de memória e, portanto, registros de memória. Em última instância, o autor não considera representação um conceito simples.

Laplanche e Pontalis (1967), referem, como é visto também em Green (1990), seis entradas para o termo representação: “representante da pulsão (Triebrepräsentanz); representante psíquico (psychische Repräsentanz); representante-representação (Vorstellungsrepräsentanz); representação (Vorstellung); representação-meta (Zielvorstellung); e representação de coisa (Sachvorstellung ou Dingvorstellung) e representação de palavra (Wortvorstellung)” (p. 39).

Green (1990) refere que nos textos de Freud, não há definições precisas das diferenças entre esses diversos termos. E muito foi pesquisado para saber se o representante psíquico (psychische repräsentanz) é a mesma coisa que o representante-representação (Vorstellungrepräsentanz). O autor coloca que esses termos utilizados por Freud (1915c/1969), são encontrados no texto sobre “Repressão” onde diz:

… existe uma repressão primeva, uma primeira fase de repressão, que consiste em negar entrada no consciente, ao representante psíquico (Vorstellungrepräsentanz) da pulsão. Com isso, estabelece-se uma fixação; a partir de então, o representante em questão continua inalterado e a pulsão permanece ligada a ele. A segunda fase da repressão, a repressão propriamente dita, afeta os derivados mentais do representante reprimido, ou sucessões de pensamentos que, originandose em outra parte, tenham entrado em ligação associativa com ele. (p. 153)

Green (1990), estabelece a diferença entre “o representante psíquico da pulsão” e a Vorstellungrepräsentanz (representante-representação). Esse autor parte do princípio de que a construção do aparelho psíquico se dá por meio da relação entre quatro territórios: o somático, o do inconsciente, o do consciente e o do real. Sendo assim, quando há uma excitação endossomática, alguma coisa parte da esfera somática e penetra no psiquismo, onde encontra as excitações que chegam do psíquico: e isto é a pulsão. Para Green

é aí que ela aparece como conceito-limite entre o psíquico e o somático; é aí que ela aparece como representante psíquico das excitações que nascem no interior do corpo e chegam ao psíquico; é aí que ela aparece como medida de exigência de trabalho imposta ao psíquico em face de seu vínculo com o corporal.

O autor diz que pulsão é a tensão que, por exemplo, o bebê sente, ao ter a sensação de fome, embora o bebê não saiba, ainda, que essa tensão que ele sente é porque está com fome. O bebê não possui essa representação. Ele sente apenas a tensão e esta imprime um sofrimento, para o qual deve haver uma resposta. A saída é, então, procurar no psiquismo algo suscetível de lhe dar satisfação, ou seja, procurar o objeto que outrora lhe trouxe essa satisfação. Esse conjunto, completa Green, é denominado “realização alucinatória do desejo e dessa matriz fundamental nascerão dois outros componentes do inconsciente: o representante-representação (Vorstellungrepräsentanz) e o afeto.” (p. 42)

Assim, continua Green (1990)

… o representante-representação, oriundo da combinação entre o representante psíquico e a representação de coisa preexistente, faz com que o representante-representação, seja investido de considerável força econômica, dinâmica e tópica, de energia. É o imperioso caráter do desejo, é o caráter da compulsão, é o caráter da manifestação inconsciente, contra a qual a vontade nada pode fazer. É exatamente por haver esse investimento pela pulsão, que deparamos com representações dinâmicas. Mas o representante-representação que continua insatisfeito vai tentar passar para a consciência e aí vai encontrar a segunda barreira, que é a barreira do pré-consciente e devido às relações que existem com a repressão, ele é reprimido. Mas a repressão, como lembra Freud, diz Green, obriga-o a trabalhar.

O autor refere, ainda, que uma representação não fica no inconsciente tal como estava no início, porque em seu estado bruto, será reprimida. Assim, a representação se transforma, disfarça-se, condensa-se, desloca-se, para que possa ser aceita pelo sistema consciente. Quando alcança o sistema consciente, então não teremos mais apenas representação de coisas inconscientes, mas representações de palavras, que seriam a junção da representação de coisas mais o afeto (p. 44).

Freud, retomando os conceitos de A interpretação de sonhos, diz em “O inconsciente” (1915b/1969) que:

… agora já sabemos qual a diferença entre uma representação consciente e uma inconsciente. A representação consciente abrange a representação da coisa, mais a representação da palavra que pertence a ela, ao passo que a representação inconsciente, é a representação da coisa apenas. O sistema inconsciente contém as catexias da coisa dos objetos, as primeiras e verdadeiras catexias objetais. O sistema pré-consciente ocorre quando essa representação da coisa é hipercatexizada através da ligação com as representações da palavra que lhe correspondem. São essas hipercatexias, que provocam uma organização psíquica mais elevada, possibilitando que o processo primário seja sucedido pelo processo secundário, dominante no pré-consciente. Estamos, assim, em condições de declarar o que é que a repressão nega à representação rejeitada nas neuroses de transferência: o que ela nega à representação é a tradução em palavras, que permanecerá ligada ao objeto. Uma representação que não seja posta em palavras, ou um ato psíquico que não seja hipercatexizado, permanece a partir de então, no inconsciente em estado de repressão. (p. 206)3

Pela repressão, os processos inconscientes só se tornam conscientes, através de seus derivados, como é visto nos sonhos ou nos sintomas neuróticos. Mesmo no processo secundário, como por exemplo, no pensamento, este só poderá tornar-se consciente, se for investido por representações de palavras altamente distanciadas dos resíduos das percepções originais, como também referido por Green (1990).

No tratamento psicanalítico, diz Freud (1915b/1969)

… pedimos ao paciente que forme numerosos derivados do inconsciente, fazemos com que ele se comprometa a superar as objeções da censura a essas formações pré-conscientes que se tornam conscientes, e, pondo abaixo “essa” censura, desbravamos o caminho para a ab-rogação da repressão realizada pela “anterior”. A isso, acrescentamos que a existência da censura entre o préconsciente e o consciente, nos ensina que o tornar-se consciente, não constitui um mero ato de percepção, sendo provavelmente também uma “hipercatexia”, um avanço ulterior na organização psíquica (p. 198).

 

4. Vinheta de uma paciente atendida em psicoterapia, visando retratar o que entendemos do conceito de representação

Paula é uma jovem de 25 anos. Procurou atendimento, há três anos, por estar se sentindo “estranha”, frente à morte repentina de seu pai. Não conseguia “falar nisso”, muito menos “chorar”. Dizia: “parece que não estava acontecendo aquilo… eu olhava para ele, morto, e não era ele, parecia que era outro homem… eu sei que ele está morto, mas eu penso que vou encontrar ele a qualquer momento… isto está sempre na minha cabeça”.

Enquanto contava sobre a morte do pai, falava lenta e pausadamente. Com o olhar às vezes parado e distante, despertava preocupação e uma sensação gélida, como se ela estivesse meio-morta, meio-viva, ou que algo desastroso fosse acontecer a qualquer momento. Além disso, referia estar “inquieta”, não conseguindo dormir, comer e com “muita vontade de voltar a beber como antes”. Paula, até os 18 anos, usava diariamente álcool e maconha. Com essa mesma idade, fez uma tentativa de suicídio, pela qual foi internada em um hospital psiquiátrico, por um período curto. Essa tentativa foi atribuída ao término de um namoro de dois anos.

Conta que aos 8 anos os pais se separaram e apesar de ficar morando com a mãe, dizia: “não me relacionava com ela… parecia que a gente era duas estranhas morando na mesma casa”. O relacionamento era diferente com o pai e o irmão mais moço, de quem ela gostava e “sempre queria estar junto deles”.

A morte do pai deu-se de forma inesperada e impactante. Paula e o pai haviam discutido e brigado por telefone. Estavam há alguns dias sem se falar. Começou a ficar “preocupada” pelo fato de o pai não procurá-la. Após várias tentativas frustradas de contato, foi até o trabalho do pai, encontrando-o morto.

Após um período de seis meses de tratamento, uma determinada sessão com Paula foi significativa. Ela chega à sessão e, como sempre, fica em silêncio. Diz que hoje, mais do que outras vezes, não vai conseguir falar, pois está de “ressaca” e “muito enjoada”… segue dizendo: “acho que se eu falar, eu vou vomitar”. Avisa que vai ao banheiro vomitar. Ao voltar, senta, me olha e sorrindo, diz: “tá, agora já dá para falar”.

Freud (1927/1969), em “O futuro de uma ilusão”, nos diz que

… foi assim que se criou um cabedal de ideias, nascido da necessidade que tem o homem de tornar tolerável seu desamparo e construído com o material das lembranças do desamparo de sua própria infância e da infância da raça humana. Pode-se perceber claramente que a posse dessas ideias o protege em dois sentidos: contra os perigos da natureza e do Destino, e contra os danos que o ameaçam por parte da própria sociedade humana. (p. 27)

Como no sentimento de desamparo do homem, descrito por Freud, Paula também precisava lidar com o seu desamparo, talvez não só sentido com a morte do pai, mas talvez um mais antigo. Paula referia não ter um bom relacionamento com a mãe, como se fossem “estranhas” uma à outra.

Na possibilidade de Paula poder vomitar, colocou para fora o peso da morte do pai e o desamparo sentido por essa perda, essa falta. A morte, ao sair do seu corpo, ao sair da “ressaca”, ao ‘poder ser vomitada’ e, então, poder ser trocada por palavras, por sentimentos, foi entendida como uma tentativa de preencher o vazio e de lidar com a dor da perda. Significava a negação de não poder reconhecer que o pai estava morto, talvez também por essa morte remetê-la aos problemas da relação com sua mãe.

A tentativa de falar nas suas sessões, era o representante de uma tentativa de lidar com seu desamparo e assim, ao sentir poder colocar em representação, em significado, o luto pela morte do pai. Representar a lembrança com a vivência do afeto, seria poder aceitar a perda do pai e o sentimento de solidão que esta significou para ela. Certamente, chegar a ligar uma experiência primitiva com mãe a uma revivência posterior na morte do pai. Um primeiro botar para fora, para só depois começar a aprender a botar para dentro, foi uma tentativa de ligar, de lembrar, de sentir, de significar e de transformar, quem sabe, a dor, a morte, o caos, o vazio. Uma esperança de poder começar a viver, a simbolizar e a ressignificar suas experiências, suas vivências, passadas e presentes, mesmo que ainda cercada pelo intenso desamparo que por vezes se sente aprisionada.

Assim nascem as representações, como vimos em Freud (1927/1969), para ajudar o homem a pensar, a significar e a dar um destino a muitas de suas vivências, que para ele podem ser, por vezes, impensáveis, assustadoras ou catastróficas; vivências quer de seu mundo interno, quer de seu mundo externo.

Então como pássaros que chegam não se sabe de onde… alimentam-se um instante em cada par de mãos e partem… Paula, parafraseando o poeta (Quintana), quem sabe, também poderá olhar para as suas mãos vazias, sem a angustiante e aterrorizante sensação de solidão e vazio, e descobrir que mesmo que suas mãos estejam vazias, sem o alimento dos objetos, na realidade pode buscar e contar com o alimento que possui dentro dela e que sequer sonhava ter.

Finalizo este breve estudo, identificada com as palavras de Green (1990), ao colocar a importância de pensarmos a

… estrutura psíquica como desdobrada de uma formação intermediária do diálogo entre o corpo e o mundo. Por quê? Porque esse diálogo é brutal, porque a luz do mundo é ofuscante, porque as exigências do corpo são tirânicas e se não dispuséssemos dessa formação amortecedora dos choques, que é constituída pelo psiquismo inconsciente e pelo psiquismo consciente, ou por representações inconscientes, ou por representações conscientes, estaríamos ainda, provavelmente, num estádio pré-hominiano. (p. 59)

 

Referências

Freud, S. (1969). O projeto para uma psicologia científica, v. 1. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1895[1950])        [ Links ]

Freud, S. (1969). Sobre o narcisismo: uma introdução, v. 14. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1914)        [ Links ]

_____ (1969). As pulsões e suas vicissitudes, v. 14. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1915a)        [ Links ]

Freud, S. (1969). O inconsciente, v. 14. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1915b)        [ Links ]

_____ (1969). A Repressão, v. 14. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1915c)        [ Links ]

_____ (1969). O futuro de uma ilusão, v. 21. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1927)        [ Links ]

Garcia-Roza, L. A. (2000). Introdução à metapsicologia freudiana: artigos de metapsicologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, v. 2 e 3.        [ Links ]

Green, A. (1990). Conferências brasileiras: metapsicologia dos limites. Rio de Janeiro: Imago.        [ Links ]

Hanns, L. A. (1996). Dicionário comentado do alemão de Freud. Rio de Janeiro: Imago.        [ Links ]

Laplanche, J.; Pontalis, J.-B. (1967). Vocabulário da psicanálise. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes.        [ Links ]

Valls, J. L. (1995). Diccionário freudiano. Buenos Aires: Paidós.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Josênia Maria Heck Munhoz
Rua Saldanha Marinho, 33, sala 1007, Bairro Menino Deus
90160-240 Porto Alegre, RS
E-mail: jomunhoz@hotmail.com

Recebido em: 4.5.2009
Aceito em: 11.5.2009

 

 

1 Artigo “Tema Livre” do XXII Congresso Brasileiro de Psicanálise, Rio de Janeiro, 2009. Prêmio Virgínia Bicudo para candidatos ABC (Associação Brasileira dos Candidatos).
2 Membro Aspirante da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre, SPPA.
3 O grifo é da autora.

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