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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641Xversão On-line ISSN 2175-3601
Rev. bras. psicanál v.43 n.3 São Paulo set. 2009
DIÁLOGO
Em que nos toca a neurociência? Comentário à entrevista de Fúlvio Scorza
Comentário a la entrevista de Fúlvio Alexandre Scorza
Comment to the interview of Fúlvio Alexandre Scorza
Plinio Montagna1; Yusaku Soussumi2
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo - São Paulo
RESUMO
Os autores apresentam ideias sobre a possível integração e cooperação entre a psicanálise e as neurociências, apontando fatores favoráveis e as resistências de profissionais de ambas as áreas para um diálogo mais frutífero.
Mostram, através da entrevista de Fúlvio Scorza, da experiência psicanalítica e de pesquisas e leituras na área da neurociência, exemplos de elementos úteis, os quais confirmam a propriedade da cooperação, que pode ser muito útil a todos.
Palavras-chave: Processo psicanalítico; Neurociências; Neuropsicanálise; Memória; Resistências; Diálogo interdisciplinar.
RESUMEN
Los autores proponen ideas acerca de la integración y la cooperación entre psicoanalisis y neurociências, referindo a factores de apoyo o resistência al diálogo entre ellas.
Muestran ejemplos, desde sus practicas personales, estúdios, etc, y elementos de la entrevista que confirman la utilidad de la cooperación.
Palabras clave: Processo psicoanalítico; Neurociências; Neuropsicoanálisis; Memória; Resistência; Integración; Interdisciplinaridade.
ABSTRACT
The authors discuss the possible cooperation and integration between psychoanalysis and the neurosciences, pointing out favorable factors and the resistances to a fruitful dialogue between them.
They show examples, extracted from the interview and other personal experiences that confirm the usefulness of the cooperation.
Keywords: Psychoanalytic process; Neurosciences; Neuropsychoanalysis; Memory; Resistance; Interdisciplinary dialogue.
Em que nos toca, como psicanalistas, a rica entrevista do professor Fúlvio Scorza? Em que nos toca o desenvolvimento das Neurociências?
Algumas considerações preliminares são necessárias. Conversar sobre psicanálise com neurocientistas não é corriqueiramente simples, da mesma maneira que não o é conversar sobre neurociências com psicanalistas.
Exceções existem, como demonstra a entrevista do Professor Scorza, o qual, além de exemplos, declara expressamente sua paixão por Freud, aliando-se a Eric Kandel. Do mesmo modo, entre os psicanalistas, existem aqueles - inclusive dentre nós - que vêm pesquisando há décadas correlações entre as duas áreas, publicando seus estudos, dialogando, até vindo a criar a International Society of N europsychoanalysis.
Pode-se atribuir uma surdez mútua a diversos fatores, dentre os quais pouco ou nenhum conhecimento da outra área, limitações pontuais referentes às especificidades de seus métodos e objetos de estudo etc. De parte dos psicanalistas, também um fechamento à aproximação com conhecimentos advindos das ciências de modo geral, temor de que os neurocientistas quisessem se outorgar o direito de validar ou não conhecimentos adquiridos pela psicanálise, medo de uma ameaça fantasiada ou real de desqualificação da psicanálise por parte de quem nada entende dela etc.
Uma vez desfeitos mal-entendidos iniciais e estabelecida a possibilidade de identificar interlocutores lúcidos, um diálogo nos parece muito frutífero para ambas as partes, a partir de cooperação, integração, delimitação das características metodológicas de cada uma, com respeito mútuo, com verificação de áreas de sobreposição.
Podemos ter como exemplo de áreas de interesse comum e integração, como aponta Mancia: o estudo das emoções e seu papel no desenvolvimento, pesquisas de diferentes sistemas de memória, as descobertas sobre sonho REM e não REM e suas relações com o sonhar, informações sobre comunicações primeiras entre neonatos e suas mães, pesquisa no desenvolvimento da fala a começar com o efeito da voz materna no período pré-natal, maturação biológica e desenvolvimento dos sistemas consciente e inconsciente, estudos sobre empatia e do compartilhamento de estados emocionais e afetivos, toda a gama de questões abertas pela descoberta dos neurônios espelho etc. Os trabalhos sobre memória implícita e declarativa têm servido mesmo, para a clínica psicanalítica de alguns, como balizadores de compreensão da dimensão do inconsciente não reprimido, ou não reprimível, assim como se expressa no campo transferencial, e, do ponto de vista teórico-conceitual, têm auxiliado a compreensão de como se estrutura o inconsciente.
Mesmo diante dessas perspectivas, alguns psicanalistas decididamente descartarão informações advindas das neurociências como não relevantes, seja por ideologia ou, ‘petição de princípio’.
A psicanálise não necessita das neurociências para existir, é bem verdade, e a entrevista do Professor Scorza evidencia quão diferentes são as perspectivas das duas áreas de conhecimento. Mas evidencia, também, quão fascinantes podem ser os aportes das neurociências, além do que mencionamos acima. As evidências da neuroplasticidade cerebral, fato neurológico que nos habilita a transitar pela nossa área cônscios de que nossa ação psicanalítica se inscreve num todo corpo-mente formado por elementos indissociáveis, de influência inquestionável um sobre o outro. E mais: nossa ação psicanalítica tem como corolário a transformação de circuitos neuronais, e isso não podem ignorar. Algumas vezes, o próprio fato de que as investigações partem de um viés incomum no âmbito do grupo psicanalítico gera distorções como a preocupação de que, aquilo que é apresentado como um exercício especulativo, ou investigativo, passa a ser tomado como uma verdade última. É muito importante esta distinção, exercícios, como os que fizeram Karl Pribam e Merton Gill, em 1976, em Freud’s “Project Reassessed” podem ser muito úteis. N ão podemos nos esquecer que as ideias de Freud contidas no “Projeto para uma psicologia científica”, estavam alinhadas com os desenvolvimentos e descobertas subsequentes realizados no campo da N eurologia, e como as teorias metapsicológicas representavam a contraparte psicológica dos mecanismos neurodinâmicos. Um de nós (Yusaku Soussumi) vem acompanhando esse desenvolvimento e buscando desenvolvimentos próprios na área desde aquela publicação.Sua experiência é a de que, embora com total respeito ao método psicanalítico, teve durante muito tempo de lutar contra resistência tenaz, na IPA, e em círculos psicanalíticos externos a ela.
Um artigo mencionado pelo Professor Scorza é particularmente instigante. É o publicado na revista N ature em 2004, em que se compara imagens cerebrais de um grupo de pacientes com depressão, somente tomando inibidores da recaptação de serotonina com as de um grupo de pacientes só em tratamento psicanalítico. Os primeiros tinham ativação de áreas corticais e os últimos ativação de áreas subcorticais. Diz o entrevistado: ‘a psicanálise cura de cima para baixo e psicofarmacologia cura de baixo”. É claro que, colocado dessa maneira, foge-se ao mundo imenso das considerações psicanalíticas a respeito, mas não deixa de ser, no mínimo, intrigante esse resultado a ser trabalhado por nós.
A entrevista de Fúlvio Scorza traduz bem o que se passa na mente do neurocientista lúcido, esclarecido, que não faz das N eurociências uma profissão de fé, e, como tal, pode discriminar suas possibilidades e limitações, colocando-a no contexto de um saber geral integrado, do qual é parte, e reconhecendo o valor de outras ciências, a contribuição de outros ramos do conhecimento, sem ameaças, sem preconceitos, como complemento que se soma, e não que subtrai ou divide.
Podemos também ver o trabalho de Mark Solms, como é exatamente feito por ele hoje. Em outra experiência, para verificar se a psicanálise tem alguma coisa a ver com neurociência, pegam pacientes que estão em tratamento psicanalítico, usam a técnica da neurociência, que é SPET ou Ressonância Magnética, e através de marcadores de neurotransmissores conseguem avaliar o que está acontecendo naquele tecido em vivo, durante uma experiência psicanalítica ou antes e após um período de trabalho psicanalítico, observando determinadas experiências em situações selecionadas. Portanto, durante um tratamento.
Neurocientistas desse calibre, a exemplo de Pribram e de Kandel, cada um em condições pessoais diferentes, puderam se dar conta da genialidade de Freud ao tomar contato com suas obras e sua história e ao perceber a unidade do fenômeno mental, apreensível em dois níveis distintos, mas inseparáveis, e, por essa razão, concomitante na manifestação: o nível neurofisiológico e o nível psicológico. Compreenderam, igualmente, a razão pela qual Freud pôde optar por trabalhar somente no nível psicológico, apesar de ter o olhar da binocularidade voltado para a dinâmica neurológica, sem, no entanto, poder evidenciá-la pelo fato de a ciência neurológica encontrar-se muito atrasada. Perceberam o que é inegável: ao longo de suas obras, até o último trabalho, Freud adverte sobre o momento em que as ciências do cérebro alcançarão o desenvolvimento necessário que corroborará essa visão unificada. Isso não significava, em suas próprias palavras, a substituição da metapsicologia pela dinâmica neural, a Psicanálise pela N eurociência, mas tão só a desejável e sonhada complementação, para ampliação da psicanálise. Assim, esses neurocientistas não desejam eliminar a Psicanálise, nem substituí-la pelas N eurociências ou pela Psicologia Cognitiva.
Os neurocientistas que pertencem ao grupo da N europsicanálise, e tantos outros, independentes, vêm estudando e buscando aprofundar sua compreensão da psicanálise, na tentativa de entender suas peculiaridades, submetendo-se a seu método de investigação pessoal para a experiência única na primeira pessoa, o que é fundamental para a apreensão do fenômeno psíquico no nível inconsciente, para, a partir daí, realizarem suas investigações nos níveis neurais, em outra dimensão. Hoje, como disse o professor Fúlvio Scorza, as agências de fomento à pesquisa não aceitam mais projetos duros, que não contenham essa interação interdisciplinar. Graças aos neurocientistas que realizam investigações no campo do psíquico, que passaram a utilizar os referenciais dinâmicos psicanalíticos, hoje a psicanálise vem conquistando o espaço que lhe era negado. Outrora, nas publicações científicas que incluíam o psicológico em sua abordagem, a psicanálise não era aceita de forma absoluta. Hoje as portas começam a se abrir.
A genialidade de Freud em identificar a psicanálise como a única abordagem de fato abrangente no sentido da totalidade do ser, no sentido consciente/inconsciente, concreto/ metafórico, sobrevivência/transcendência, tem sido cada vez mais reconhecida pela comunidade neurocientífica. Neurocientistas que outrora eram críticos ferozes, ácidos e destrutivos, hoje se unem a psicanalistas abertos, para trocar ideias sobre memórias, repressão etc., buscando aprender a apreender essa outra vertente do fenômeno, que abrange o cerebral e o psíquico. Os mecanismos neurais, que se espalham pelo cérebro em níveis as sinalados como subcorticais, corticais, e pelas infinitas regiões, trazem como contribuição a possibilidade de acompanhar as ações que vão se processando no trabalho psicanalítico, nos diferentes níveis e nas diferentes regiões cerebrais, influenciando e afetando as funções reguladoras somáticas e psíquicas, em busca do equilíbrio perdido, da restauração da função lesada, do reposicionamento da visão de mundo, proporcionando, hoje, o que nunca antes pôde ser aprendido ou criado etc. Com a possibilidade que dispomos por meio dos recursos investigatórios entre os quais as neuroimagens funcionais, podemos hoje observar as conexões indissociáveis entre as funções somáticas e psíquicas compondo o universo autorregulatório. Isto nos permite a possibilidade de termos a apreensão das formas de relação e influências dinâmicas do psíquico e do somático reciprocamente, permitindo uma maior efetividade psicanalítica psicossomática a que sempre aspiramos. Excluir o corpo da psicanálise é amputá-la de uma dimensão na qual ela inicia. Fundamentalmente a nós, psicanalistas, importa a psicanálise. E é evidentemente a ela que remetemos quando discutimos com outras áreas do conhecimento. Fundamentalmente, a identidade se sedimenta no contato com o outro, não no solipsismo. E esse contato, sem dúvida, pode facilitar crescimento e amadurecimento.
Endereço para correspondência
Plinio Montagna
[Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP]
Rua Gracindo de Sá, 71, Jardim Paulistano
01443-080 São Paulo, SP
E-mail: pmontagna@uol.com.br
Yusaku Soussumi
[Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP]
Rua Paes de Araújo, 29/ 176, Itaim Bibi
04531-940 São Paulo, SP
E-mail: soussumi@terra.com.br
Recebido em 16.10.2009
Aceito em 22.10.2009
1 Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP.
2 Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP.