Serviços Personalizados
Journal
artigo
Indicadores
Compartilhar
Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.44 no.3 São Paulo 2010
DEBATE- COMENTÁRIOS
A prática clínica e os Grupos de Trabalho
La práctica clínica y los Grupos de Trabajo
Clinical practice and the Working Parties
Luís Carlos Menezes1
RESUMO
O autor, responsável por coordenar a implantação dos Grupos de Trabalho – Working Parties – na América Latina por intermédio da FEPAL, faz uma breve descrição dos princípios comuns às diferentes modalidades dos mesmos, notando que objetivos fundamentalmente diferentes foram buscados com estas práticas, criadas e desenvolvidas na Europa. Discute-os brevemente e afirma a política de estímulo e receptividade equitativa da FEPAL com relação a todas as iniciativas e modalidades.
Palavras-chave: Grupos de Trabalho; Working Parties; escuta analítica; modalidades; clínica.
RESUMEN
El autor, encargado de la coordinación de la implantación de los Grupos de Trabajo – Working Parties – en América Latina formula una breve descripción de los principios compartidos por las diferentes modalidades. Destaca que estos grupos, creados y desarrollados en Europa tienen objetivos diferentes. Describe brevemente estas prácticas y afirma la política de estimulo y equitativa receptividad por parte de Fepal en relación a estas iniciativas.
Palabras clave: Grupos de Trabajo; Working Parties; escucha analítica; modalidades; clínica.
ABSTRACT
The author, responsible for the coordination and implementation of the Working Parties in Latin America through Fepal, makes a brief description ranging from their common principles to the different modalities in each of them. He notes that each of these groups, originally created and developed in Europe, pursue essentially different objectives in their group practices. The author presents a brief discussion on these groups and affirms the stimulating and receptive policy of Fepal in respect to all the different modalities and initiatives proposed within Latin America.
Keywords: Working Parties; Fepal; modalities; clinical practice.
Há dois anos iniciamos, sob a coordenação da FEPAL, a implantação na América Latina de uma prática que vinha sendo desenvolvida há uma década na Europa, com o nome de Working Parties – WP, e que aclimatamos a nossas línguas como Grupos de Trabalho (ou de Trabajo) – GT. Novidade? não propriamente, pois não se trata de nada além de estabelecer um diálogo dentro de um grupo de analistas sobre um material clínico. É até uma prática antiga, pois desde que o iniciador da psicanálise começou a encontrar alguns interlocutores com os quais podia reunir-se semanalmente, era exatamente isso que faziam. O empolgamento, como aconteceu com o caso do Homem dos ratos, em 1908, levou-os a discutirem horas a fio os ensinamentos e problemas suscitados pelo relato. A atividade supervisiva, entendida de forma ampla como a reflexão entre analistas sobre um relato clínico faz parte do dia a dia de nossas práticas, seja em encontros de dois colegas, seja em outras modalidades de reuniões em que discutimos nossos trabalhos e às quais costumamos chamar de "científicas".
Talvez o que haja de mais específico com estes Grupos de Trabalho (Working Parties) seja o contexto em que essas práticas surgiram e em que estão se difundindo hoje tanto nos EUA como entre nós, na América Latina. Contexto caracterizado, nas últimas duas décadas, pela diminuição da força e da pretensão à hegemonia das escolas na psicanálise, escolas estas, como bem sabemos, sempre constituídas como tendências em torno da obra de algum dos grandes autores que marcaram o período pós-freudiano. Talvez, mais do que o desaparecimento desses mestres, tenha pesado para isto a percepção das limitações de cada um desses sistemas de pensamento psicanalítico que, quando fechados sobre si mesmos, acabaram se mostrando insuficientes como referência exclusiva para pensar as questões com as quais a clínica vai nos confrontando, na diversidade e sutileza de seus contornos.
Ora, o que é comum às diferentes modalidades de Grupos de Trabalho que foram sendo desenvolvidas é que, em todas elas, um pequeno grupo de psicanalistas se reúne para discutir uma ou duas sessões, de forma detida, com bastante tempo: um dia e meio a dois dias de trabalho conjunto. Nesta "imersão" na clínica, ao seguir o desenrolar, em câmara lenta, de uma sessão de análise, as conjeturas que vão surgindo no exercício da escuta imaginativa e sensível dos analistas, permitem perceber momentos reiterativos no grupo ou em alguns colegas quando certos horizontes temáticos privilegiados por determinadas escolas, capazes, em outros contextos, de inspirar produtivamente a escuta e trazer luzes para o caso, podem também, pontualmente, se tornar repetitivos e estéreis para a discussão. Aparecem então em um modo resistencial.
Ou seja, isto acontece quando modelos pré-construídos e privilegiados pelo analista acabam engessando a escuta e limitando a ousadia inventiva que a situação clínica requer, na singularidade do que se apresenta. Quando teorias, em uma versão esquemática, acabam obstruindo o trabalho de pensamento do analista, inspirado e balizado pela geometria variável e flexível oferecida pelas referências metapsicológicas, em seu poder imaginativo, torna-se necessário ultrapassá-las para poder prosseguir pensando com a maleabilidade necessária para permanecer em sintonia com o caso clínico em discussão. Trata-se de um exercício salutar de reavivamento da escuta analítica dos participantes e da detecção, que cada um fará à sua maneira, do aporte e das limitações introduzidas pelos diferentes referenciais teóricos ao se tornarem ideológicos. Oferecem, portanto, a possibilidade de ultrapassar os limites escolásticos que estejam, circunstancialmente, mais atrapalhando que ajudando a sensibilidade clínica do analista em sua busca de sintonia fina com o material em discussão.
Este é, em minha opinião, o interesse maior dos Grupos de Trabalho que nos estão sendo legados pelos nossos colegas europeus, embora em alguns casos essas práticas sejam encaminhadas a serviço de uma preocupação de avaliação do valor heurístico de tal ou qual campo conceitual, com vistas a estabelecer a sua validade ou, ao contrário, a sua inoperância. Nesta fase pós-escolástica da psicanálise – sempre em parte, porque as escolas como caldos de cultura formativos permanecem atuantes – há também o propósito de separar o joio do trigo, os conceitos e noções úteis, efetivamente constatados na experiência clínica, e os que, ao contrário, esta invalidaria. Assim, pela via do exame cuidadoso da experiência, seria possível depurar a psicanálise e encontrar um conjunto mais efetivo e confiável de conceitos.
Estes forneceriam o suporte para separar, em última análise, certo e errado na prática da psicanálise, oferecendo também direções mais definidas para orientar a formação analítica e a avaliação do trabalho dos novos analistas. Este procedimento contemplaria a suposta busca de seriedade e consistência, defendida por alguns e ventilada por um dos criadores de Working Groups na Europa através de um artigo, cujo título em forma de pergunta coloca a questão: "vale tudo", ou seja, na prática da psicanálise "vale tudo"? Se não, temos que ir vendo o que vale e o que não vale, para termos parâmetros mais confiáveis sobre o que seja ou não correto como psicanálise. A prática dos Grupos de Trabalho poderia ser utilizada, deste ponto de vista, também para esta finalidade. Claro que fica a pergunta de sempre sobre quem e com que referências, com que critérios, vai ser realizado este projeto. De toda maneira, trata-se de uma preocupação que toca no cerne do que entendemos por psicanálise e o debate em torno dela, intenso na Europa, provavelmente vai também surgir entre nós em torno da prática dos Grupos de Trabalho. Vou avançar, desde já, o meu modo de ver no momento.
Acredito que, ao menos em parte, esta preocupação tenha a ver com a crise vivida em regiões nas quais houve uma grande redução da busca por formação nos Institutos e, também, diminuição da busca de análise pelas pessoas, num momento, como em tantos outros em que a psicanálise foi objeto de críticas – em geral bastante primárias – tanto pela grande imprensa, como pelo mundo médico. Este se encontrava numa espécie de euforia ao ver a Psiquiatria, com uma tradição tão rica de séculos, atrelar-se ao justificado entusiasmo que novas tecnologias trouxeram às pesquisas sobre o funcionamento do cérebro. Note-se que há uma grande distância entre as neurociências, ao menos no estágio em que se encontram hoje e a Psiquiatria. No entanto, esta passou a apoiar-se no prestígio desses estudos para fazer uma clínica centrada, quando não reduzida, à prescrição de psicotrópicos, que se diversificaram bastante desde os primeiros, tão preciosos, dos anos 1950 e 1960. O que poderia ser um enriquecimento, esta diversidade maior de produtos farmacológicos, resultou finalmente numa clínica psiquiátrica quimiocentrada, tendo perdido de vista o ser humano modelado constantemente pelo contexto conflitual do seu entorno, familiar e social em geral.
As próprias neurociências, um front de pesquisas científicas do maior interesse, fascinante e desafiador, no entanto, até o momento não chegaram a nenhuma virada de perspectiva sobre o funcionamento do cérebro, o que não é de surpreender dada a extrema complexidade do órgão (o mais complexo do Universo, na expressão de Gerald Edelman, renomado neurocientista americano, prêmio nobel) e aos tempos próprios à ciência, menos mágicos do que gostaríamos.
Menciono isto brevemente para dizer que, a meu ver, no conjunto, a psicanálise tem avançado de forma robusta e com impressionante capacidade de renovação de suas linguagens e modelos, sem que estes invalidem, pelo contrário, as fundações das descobertas e postulações que a constituíram como campo do saber e como prática clínica. Em seu "vale-tudo", tenho a tranquila convicção de que se mantém viva, com fôlego suficiente para ir sobrevivendo às tensões internas e às suas verdadeiras crises, aliás presentes ao longo de toda a sua história. Confiaria mais em deixar os "vale-tudo", as práticas e modos de pensá-la com as quais eu discorde ou que eu considere imposturas ou bobagens; prefiro deixar isto tudo entregue à, digamos, uma "seleção natural" do que a uma "seleção orientada", dada a minha certeza na solidez dos alicerces e dos pilares que a constituem. Temo que esta sim possa resultar na criação de sistemas impositivos e de projetos político-institucionais que podem dar mais segurança para quem tem a necessidade de domesticar as incertezas e as singularidades, com o propósito de alcançar mais ordem, clareza e eficiência.
Ora, estamos num campo em que a incerteza e a singularidade, em cada análise, assim como na maneira como cada pessoa se torna analista e vai buscando o seu modo de sê-lo, é a condição da fecundidade e da própria existência da Psicanálise. A preocupação em torná-la mais científica, mais respeitável, lembra a preocupação do infatigável E. Jones em seu esforço para implantá-la na Inglaterra, nas primeiras décadas do século passado, e poderia ser entendida também como resposta às dificuldades atuais em certos países da Europa ou dos EUA, dotando-a da capacidade de demonstrar empiricamente a sua eficácia terapêutica. Não há por que não falarmos de sua eficácia, pelo contrário, somente não podemos fazer isto negligenciando o que lhe é mais próprio: a sua abertura para o singular da experiência subjetiva de cada um, o que inclui necessariamente o imprevisível. Podemos tentar fazer dela uma ciência, no sentido convencional, mas esta já não será mais, com toda a certeza, a psicanálise.
Portanto, os Grupos de Trabalho surgiram e se desenvolveram na Europa, nestas últimas duas décadas, tanto em função de uma preocupação ordenadora de um campo analítico considerado demasiado frouxo e diverso em suas concepções teóricas e práticas, como maneira de corresponder ao desejo dos analistas de se voltarem para sua experiência de consultório de uma forma mais metódica, pondo em evidência "o que fazemos", "o que acontece", "o que se passa em toda a sua variedade na prática clínica", avivando assim o pensamento do fazer clínico em toda a sua diversidade. Os Working Parties vêm evoluindo entre a busca de respostas organizadoras da teoria e da prática psicanalítica e o propósito de propiciar ao máximo o exercício da capacidade para ouvir e se ouvir na diferença, nos diferenciais em que, para cada analista, ocorre o essencial, o mais precioso das análises, o propriamente analítico.
na América Latina, a tarefa de estimular e coordenar a realização desses Grupos foi entregue à FEPAL. Esta vem mantendo uma política de tratamento equitativo para todas as iniciativas de Grupos de Trabalho, quaisquer que sejam os seus métodos e sua "filosofia", desde que realizados com a necessária competência. Em um tempo relativamente curto, várias modalidades já foram postas em prática entre nós, seja nas Sociedades seja nos dois dias que precederam o recente Congresso da FEPAL, em Bogotá, quando haviam cinco modalidades, mais uma apresentada em um tempo curto durante o Congresso e que, com certeza, em breve vai constituir a sexta modalidade de GT entre nós. Os seus criadores ou colegas mais experientes na modalidade têm sido convidados para coordená-las. E a iniciativa editorial da Revista Brasileira de Psicanálise de tratar deste tema, incluindo alguns artigos de criadores e animadores de diferentes modalidades de GT (WP), é importante e de grande atualidade, pois os GTs são, sem dúvida, um desenvolvimento valioso e extremamente estimulante que, com certeza, continuará se expandindo na América Latina.
Luís Carlos Menezes
[Sociedade Brasileira de Psicánalise de São Paulo SBPSP]
Rua Deputado Lacerda Franco, 300/134 – Pinheiros
05418-000 São Paulo, SP
e-mail: luismzes@hotmail.com
[Recebido em 23.9.2010, aceito em 30.9.2010]
1 Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP. Cordenador Científico da FEPAL 2008-2010.